Três décadas de bom Parker!
Angel Heart (1987)
Bugsy Malone (1976)
The Commitments (1991)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Angel Heart (1987)
Bugsy Malone (1976)
The Commitments (1991)
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Despedimos de José Pedro Amaro dos Santos Reis, mais conhecido entre nós como Zé Pedro, em 2017, a partir daí, para além da saudade deixada em familiares, amores, amigos e fãs, surgiram enésimos e enésimos tributos prestados à sua figura. Para o mais cético, todo este movimento que cultua o guitarrista da banda de sucesso “Xutos e Pontapés” não é mais que um mero exagero de vista para o oportunismo, porém, a persona por detrás dos acordes de “Não Sou Único” e “Circo de Feras” revelou-se ser uma das peças centrais da História do rock português.
No documentário de Diogo Varela Silva (realizador de “Celeste”, sobre a fadista Celeste Rodrigues, e produtor de “O Ornitólogo”, de João Pedro Rodrigues), é possível esclarecer as dúvidas quanto à sua influência. Zé Pedro encarava a vida com uma ambição inabalável, de sorriso exibido e com amor à música para dar e vender. O filme inicia, previsivelmente, na sua infância “salta-pocinhas” devido à carreira militar do pai, com paragens obrigatórias no seu despertar musical (aos 16 anos escrevia críticas a álbuns) e na sua tremenda coleção de bilhetes de concertos e eventos. Pelo meio deparamos com a história a génese da banda que o consagrou, “Xutos & Pontapés” (anteriormente e efemeramente intitulado de “Beijinhos & Parabéns”), do bar que geriu com Alex Cortez (baixista de "Rádio Macau”) – Johnny Guitar – que tornaria num dos principais focos de inspiração musical de Lisboa na década de 90, e ainda as suas aventuras na rádio, uma rúbrica do qual este filme apropria o título.
Está tudo em “Zé Pedro Rock’n’Roll”, das tragédias às memórias, embrulhadas num gesto de carinho e de recordação com base em testemunhos (os "talking heads" tão habituais neste tipo de registo) ou material de arquivo. E com a sua alma e iluminação, as palavras do homenageado, recolhidas em entrevistas, intervenções e até confessionários de palco, preenchem este documento que tão bem alimentará a saudade dos fãs.
Por se tratar de um tributo com carácter amistoso e fúnebre, não deslumbramos uma obra que se sustenta por si própria. Não existe uma intenção de explorar ou ir mais ao fundo nas nas questões que formaram a "persona" de Zé Pedro que é constantemente descrita e citada. É uma esquematização do seu percurso com o auxílio dos amigos cúmplices.
Zé Pedro é claramente o vulto que está a ser comemorado, num filme que não vai mais além disso, e por isso mesmo, conquista à primeira. É humilde, sem pretensões para estetizar ou “sujar as mãos”. Nesses termos funciona como um réquiem alegre e sintetizado com os seus acordes. Ou seja, aqui não se defraudam familiares, amigos, adeptos e curiosos, nem sequer aqueles que anseiam conhecer um pouco mais de quem chegou a ser eleito numa sondagem um dos portugueses mais queridos...
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Partimos do pressuposto que não existe revolução social sem a dita libertação sexual, nesse sentido encararemos um pequeno filme como este “Yes, God, Yes” como um subtil punho erguido, ou, de forma a apropriar o contexto da obra, uma mão (nada invisível) nas partes baixas.
Extensão de uma homónima curta-metragem (2017), a realizadora Karen Maine (que assume similaridades autobiografias aqui) centra-nos na história de uma jovem cristã (vindo de uma família ortodoxamente católica, e frequentadora de uma escola de iguais doutrinas religiosas) que em certo dia, durante uma aula de educação sexual (na sua forma possível dentro do selo da castidade), é lhe ensinado que o sexo é somente legitimo para fins de procriação (e, ressalvando, depois do matrimónio), pelo meio ainda houve de condenação eterna pelo pecado infernal que é a masturbação. Foi através dessas palavras, que a protagonista, Alice (Natalia Dyer, sob o holofote do êxito da série “Stranger Things”), decidiu na sua pura ingenuidade aventurar-se pelo “país das maravilhas” do tal “cyber sexo” e consequentemente provar os sabores da sua própria carne. O ato foi interrompido a tempo, mas já era tarde demais … a “porta” foi aberta, e que muitas questões surgem de lá.
O cómico, e em certa parte trágico deste subtil coming-of-age, está na ridicularização da própria instrumentalização do sexo por parte da Religião, o qual usufruem como uma ferramenta de constante opressão e repreensão. Só que ao invés de se estender na interveniente propaganda, no óbvio “in your face” como muitas das produções que surgem (e surgirão) nos círculos independentes norte-americanos, “Yes, God, Yes” transcreve essa crítica, focalizada mas de leitura abrangente, para o conflito interior da sua personagem principal (curiosamente, também protagonista da curta génese). Nesse aspeto, Alice é a heroína de uma fábula sobre a importância dos nossos prazeres como estandarte de uma revolução iminente, que triunfa até mesmo na emancipação declarada.
Conduzindo-se por objetivos modestos, Karen Maine não interessa, com isso, despoletar um tumulto algum, o que importa na sua causa é a superação pessoal, o desenvolvimento da sua personagem-espelho como a sua atingida satisfação. E verdade seja dita, dentro do enorme puritanismo que indústria norte-americana parece ter sido atingida (qualquer que seja o orçamento), um filme que nos fale de sexo tão naturalmente como aqui e principalmente da masturbação com alguma compaixão (com ou sem lente religiosa, continua como um ritual de estigmatização e de associações perversas no cinema), é uma verdadeira [pequena] revolução.
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One Cut of the Dead (Shin'ichirô Ueda, 2017)
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Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)
Os holofotes estão apontados para Alba Baptista, a portuguesa que conseguiu quebrar fronteiras tornando-se na protagonista na série de ação sobrenatural "Warrior Nun", da Netflix.
Porém, o cinéfilo mais atento já tinha reparado que a jovem atriz andava a conquistar o seu espaço desde que se destacou como a menina obsessiva da curta “Miami”, de Simão Cayatte, trabalhado posteriormente com realizadores como Edgar Pêra (“Caminhos Magnétykos”), Justin Amorim (“Leviano”) e Ivo Ferreira (“Equinócio”).
Agora na primeira longa-metragem assinada pelo também ator Gonçalo Waddington "Patrick", que chega esta semana aos cinemas portugueses, ela é Marta, uma jovem com a missão de recuperar o Mário que conheceu e que espera ainda existir em Patrick, rapaz detido em Paris e que se vem a descobrir tratar-se de uma criança portuguesa desaparecida há vários anos (papel de Hugo Fernandes).
Tendo o papel crucial de expor este confronto identitário, Alba Baptista orgulha-se da sua prestação e do filme, manifestando o desejo de permanecer ativa na produção portuguesa apesar do reconhecimento internacional que lhe trouxe "Warrior Nun".
Antes de tudo, gostaria que me falasse sobre a sua integração neste projeto e o trabalho de desenvolvimento em relação à sua personagem.
Fui chamada para casting, como qualquer outra atriz. Foram três, se não estou em erro. A escolha final demorou algum tempo, mas sim, tive que demonstrar o meu valor ao realizador. Quanto à personagem, o Gonçalo [Waddington] trabalhou connosco durante a nossa estadia numa residencial artística na Sertã, onde filmamos. Portanto, isto aconteceu antes da rodagem, ou seja, estivemos uma semana juntos, a conhecer-nos melhor, a ensaiar e a criar cenários hipotéticos no passado destas personagens. E é então que, quando arrancou a rodagem, já estávamos todos conectados uns com os outros e bastante entranhados nas nossas respetivas personagens.
Em “Patrick” notamos um constante confronto identitário e existencial, não só do protagonista, mas de outros personagens. Não pude deixar de notar que é, na sua forma geral, um filme preenchido por silêncios, olhares e (não)olhares, e nesse sentido, a sua personagem é a que mais fala, tentando resgatar o Mário em Patrick. Sentiu essa importância no guião?
Sim, sem dúvida que senti. Esta personagem é um tipo de luz para a vida (muito) densa que ele leva, assim como para a jornada em si. Uma lufada de ar fresco. E o facto de esta personagem possuir bastante falas em comparação com as outras, é um sinal do quanto descomprometida está com a vida em geral, e sem filtros. É por essa razão que ela é a única personagem que não julga o Mário à partida, não possui qualquer tipo de preconceito. Encarei isso como uma personagem muito especial.
Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)
E, no entanto, ela, provavelmente, será a pessoa que mais sofrerá com a resistência intrínseca de Patrick.
Ela funciona como um mártir. É um pouco uma metáfora em relação a tudo da sua vida [Patrick]. Ele é incapaz de relacionar algo positivo ou amoroso na sua vida.
Sabendo que este filme já se encontrava pronto desde o ano passado, tendo estreado no Festival de San Sebastián, e ter atingido a fama em 2020 com “Warrior Nun”, como insere este “Patrick” no estado atual da sua carreira?
É um assunto complicado falar de um filme que já fizemos há mais de um ano, mas nunca é uma má altura para inserir mais um no nosso currículo e tenho muito orgulho neste “Patrick”. Acho que é neste tipo de assinatura que desejo criar nos próximos anos, em futuros projetos, e com realizadores de cinema de autor genuínos. Por isso fico muito feliz que o filme esteja a estrear na mesma altura que a série. Obviamente que, em termos de comparação, são dois pólos extremos – algo comercial e outro … bom, não comercial de todo, e mais pesado de certa maneira. É um filme especial, até porque está a representar o marco da reabertura dos nossos cinemas [após o fecho por causa da COVID-19], e por isso e muito mais, esta é uma razão para que os portugueses possam retornar novamente às salas.
Para um português, a intriga do filme invoca-nos o caso Rui Pedro [a criança desaparecida em Lousada em 1998]. Acha que foi inspiração para “Patrick”?
Sem dúvida que é uma inspiração para a personagem do Mário, mas atenção, o Gonçalo trabalhou neste guião com tanto perfeccionismo e sensibilidade para que não fosse ofensivo para ninguém, e, como qualquer outra coisa do filme, fosse só uma personagem. Sim, é um filme que demora a digerir, mas falo por mim, que gosto de sair do cinema com uma sensação quase desconcertante que me deixa a remoer e refletir durante algum tempo.
Além disso, é um filme que desafia a nossa perceção de maternidade/paternidade.
Sim, sem dúvida. E é um tópico que não se fala muito no cinema português. Pelo que me lembro, não existe nenhum filme do nosso panorama com esta abordagem. Por isso, acho que estamos bem encaminhados com a assinatura do Gonçalo. É sensível, claro que sim, mas é um tipo de filme que vale a pena vê-lo para poder discutir. “Patrick” é rico em termos de discussões, argumentações e trocas de ideias. E gosto disso no cinema. Desafia-nos.
Em relação a novos projetos, gostaria que me falasse de “Nothing Ever Happened", de Gonçalo Galvão-Teles [“Gelo”], e sobre a sua experiência com o ator Filipe Duarte, que também integra o elenco e possivelmente este seja o seu último papel.
Em relação ao papel do Filipe Duarte vou deixar para os espectadores descobrirem. Mas é um papel muito bonito, e ele representou brilhantemente. Não contracenei diretamente com ele, mas nos momentos em que nos cruzavam, o Filipe partilhava muita luz. Ele era uma pessoa muito luminosa. A minha personagem lida com o existencialismo da vida e que se identifica com mais dois colegas e amigos, que acabam por desenvolver uma relação, cujo trio, na verdade, confronta estas questões filosóficas do que representa a vida para eles, do que é o amor … Lá está, também é uma assinatura dedicada, muito sensível e identificável.
Leviano (Justin Amorim, 2018)
Quanto à nova obra de João Mário Grilo [“Os Olhos da Ásia”], “Campos de Sangue”? Segundo consta, a sua personagem chama-se apenas de “Loira 1”.
Sim. [Risos] É a adaptação de um livro que bem se poderia resumir desta maneira, um homem que encontra uma jovem loira por quem se apaixona perdidamente. Fica obcecado, sendo que esta rapariga loira se materializa em mulheres diferentes. E pronto, sou uma delas. [risos]
Confesso que sou um defensor de “Leviano”, outro filme em que participou. Veremos uma nova colaboração com o realizador Justin Amorim?
Bem, o “Leviano” levantou muita discussão também. Também sou uma defensora eterna do filme, é uma raridade ter um tipo de obra como essa no nosso cinema. Por isso, sem dúvida que queremos voltar a trabalhar juntos. Para já as nossas agendas estão totalmente opostas, mas … estamos a criar algo juntos. Como somos bastante próximos na vida real, é só juntar o útil e agradável, e o facto ser ambos criativos e discutirmos o que ele gostaria de realizar e o que eu gostaria de representar e portanto conceber um projeto especial para os dois.
Quer partilhar como foi a experiência numa produção de outra escala como “Warrior Nun”, da Netflix?
Foi fantástico, uma experiência diferente de tudo aquilo que já vivi em Portugal em termos profissionais. É uma equipa abismal, muito grande, foi também um processo muito diferente. Nunca lidei com tanta pressão na minha vida, mas tendo em conta o resultado, acho que compensou. Foram os melhores anos da minha vida. Agora, em termos de produção, os EUA estão bastante mais evoluídos do que nós, mas chegaremos lá com o nosso tempo e à nossa maneira.
Vai prosseguir numa carreira internacional?
Sim, é o foco neste momento. Sem nunca querer perder o pé aqui em Portugal. Vou querer chegar a esse meio-termo e juntar-me a projetos em Portugal por querer e não por ter que fazer. Nunca desvalorizando o meu país, nem a nossa cultura.
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No inicio do mês comemorou os 104 anos … idade invejável não é? O fim chegou! Olivia de Havilland morreu e com ela todo um Cinema, que a partir de hoje declaradamente, extingui. O último rasto … a última lenda viva da Hollywood de ouro.
Olivia de Havilland (1916 - 2020)
The Heiress (William Wyler, 1949)
The Private Lives of Elizabeth and Essex (Michael Curtiz, 1939)
Gone with the Wind (Victor Fleming, 1939)
Olivia de Havilland e Basil Rathbone nos bastidores de "Robin Hood" (Michael Curtiz & William Keighley, 1938)
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Charulata (Satyajit Ray, 1964)
Há treze anos, neste mesmo dia, decidi por quase como mera brincadeira iniciar um blog, um repositório dos filmes que visualizava, considerações e nada mais. O que não esperava é que esse júbilo vira-se um compromisso, um aliado à minha carreira como crítico de cinema e freelance. Porém, a mudança é prima da vitalidade, o estaminé que ganhou vida teve que fortalecer, cortes foram feitos, mas o espírito mantém-se. O blog aprendeu a ser um blog, para isso teve que recuar, tornando ainda mais pessoal, quase diarista e por outro, mais livre, sem compromissos editoriais, o Cinematograficamente Falando … alcançou uma ideia, e invocado tal, sobreviveu e após uma pandemia, chag-nos de “cara lavada” e de atitude renovada. Devo dizer que este post não é exclusivamente dedicado à antiguidade do espaço, mas sim a vocês, os leitores, que sempre me acompanharam. Por isso, um muito obrigado, e veremos o que o futuro nos reserva.
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Gonçalo Waddington
Selecionado para a secção competitiva do Festival de San Sebastián do ano passado, "Patrick" remete-nos a um enredo de confrontos existenciais e identitários de um jovem português que regressa a casa, após ter sido raptado e levado para França enquanto criança. Aí nasce a dicotomia que servirá de conflito interno, sob a assinatura constante de Patrick / Mário (interpretado com intensidade pelo ator Hugo Fernandes).
Como realizador e argumentista, por detrás do filme está Gonçalo Waddington, que pode muito ser um dos atores portugueses mais reconhecidos pelo grande público, mas o que indicia esta sua estreia como realizador e argumentista nas longa-metragens é que se poderá tornar num dos futuros signatários do cinema nacional.
Falei com o célebre ator de produções como “O Capitão Falcão” e “As Mil e Uma Noites”, e a série “O Último a Sair”, sobre este passo emancipado na esfera autoral e aquilo que tanto deseja contribuir no nosso panorama cinematográfico.
Gostaria de começar com a questão de onde surgiu a ideia para este filme e também mencionar a invocação que a muitos de nós irá suscitar – o trágico caso Rui Pedro. Houve inspiração?
A primeira imagem que posso associar foi extraída de uma notícia que saiu por volta de ‘94 e ’95, sobre uma menina que fugiu de uma casa de alterne no norte de Espanha e que foi encontrada. Por volta das cinco da manhã, à beira da estrada e já com os pés ensanguentados. No dia seguinte a polícia percebeu que ela tinha fugido de uma casa de alterne, e que lá se encontravam mais raparigas que foram raptadas. Bem, mas isto é somente a imagem – alguém a fugir de uma situação de terror – e o que terá levado a rapariga até aquele momento. Na altura não tinha maturidade suficiente para escrever.
Depois de alguns anos, aconteceu o caso do Rui Pedro, do qual muitos filmes foram feitos a partir desse tema ou semelhante, como foi o caso de “Alice” [filme de Marco Martins, em 2005], em que participei e expunha o ponto de vista dos pais da criança desaparecida. Nessa altura já questionava o que poderia pensar o outro lado, o da criança. Que processos físicos e psicológicos estariam numa situação de sequestro/rapto? Mais do que isso, quais as consequências se tal estado fosse prolongado?
E daí surgiu a minha ideia para este filme. É fácil e correto associar isto ao Rui Pedro, mas para já era incapaz de aproveitar essa tragédia vivida pelos pais, amigos, etc. Aquilo diz respeito a eles e legalmente deve ser investigado, seja judicialmente ou por meios jornalísticos. Algo que ajude. Mas a fantasia aqui é esta: isto não é inspirado em ninguém. Que eu saiba, estas personagens e situações não existiram nem aconteceram. A questão é o que é que lhe vai acontecer quando for exposto às suas identidades – as duas [Mário/Patrick]? Obviamente que a sua antiga desmorona como uma barragem, possivelmente porque fora mal construída, e como tal é obrigado a confrontar-se com a família, amigos. Que não recorda nem mantém relações afetivas. “Quem é que eu sou?”. Isto resume a minha ideia. Aquela que pretendia explorar para o filme.
Patrick (2019)
E estamos a falar de um filme, em certa parte, corajoso em colocar essas questões, remexer em identidade e sobretudo desconstruir ideias fixas de maternidade/paternidade, tendo como experiência um hiato.
O que propus/imaginei neste filme foi a imagem de uma criança de 10 anos que se recorda de "coisas" boas que já não tem, como o pai, os seus abraços, da comida, etc. E a um determinado momento, essas mesmas memórias tornar-se-ão dolorosas, por isso devem-se apagar a todo o custo. Esta criança sentir-se-á culpada, por sentir que não fez o que devia, não fugiu quando devia, e a certa altura pensar que os pais já se esqueceram dele – não vieram procurá-lo ou não fizeram o suficiente. Então o pensamento que fica é este: se não tenho, vou fazer por odiar, um processo psicológico (a meu ver). Se aquilo que tenho não o posso mais ter, então é porque não o mereço? Ou é não, porque não quero? O cérebro diz-lhe que ele não quer aquela vida, aquelas "coisas". Por isso, tentei com “Patrick” resolver essa questão.
E como foi trabalhar com o Hugo Fernandes? Construir, juntamente com ele, esta dicotomia de Patrick/Mário.
Ele é muito inteligente e muito intuitivo. Quando lhe explicava estas questões que lhe estou a apresentar, ele entendia-as e imprimia-as numa subtileza que me agradava. Nada vindo dele é exagerado, tudo era transmitido através dos seus olhos como uma verdade absoluta. Nós entendemos-nos muito bem.
Ainda este ano, o Gonçalo assinou o argumento de um dos mais incisivos filmes portugueses recentes – “Mosquito”. Como tal questiono-o, vê-se como uma nova “face” de uma possível futura vaga de cinema português?
Não. [Risos] Apenas vejo-me a fazer unicamente aquilo que julgo ser verdadeiro para mim. Não pretendo agradar os outros, quero fazer aquilo que desejo ver, e aí suscitarão assinaturas que poderão apelar às pessoas. Se tivesse que fazer o que os outros querem ver, não estaria a fazer nada de genuíno, nem sequer de jeito. [risos] Acho que estou cada vez mais perto daquilo que pretendo seguir em matéria de cinema. Quanto às “faces”, temos tantas caras e até mesmo caras mais velhas com trabalhos incríveis. Sou mais um num conjunto muito forte a fazer cinema.
Esta aproximação ao seu desejo é evidente. “Patrick”, em todo o caso, foi fruto de um longo processo de criação já iniciado com as suas duas curtas-metragens [“Sem Nome”, “Imaculado”].
E não só. Também existe nessa equação o meu trabalho de ator, dramaturgo e encenador. Tudo isso está associado à minha experiência e progressão. Mas claro, as minhas duas curtas, assim como o ato de ver filmes ou até mesmo participar neles. Aliás, aprende-se muito nas rodagens. Curiosamente, para quem está de fora, as rodagens são totalmente desinteressantes, mas quando participamos nelas, nem que seja para segurar num cabo, tornamos parte desta e entramos nessa homogenia. Tive a sorte de estar sempre implicado nas rodagens, não apenas como ator, mas também dando apoio à parte técnica desse processo. De momento, quando estou numa rodagem, mesmo como ator, olho ao redor e percebo perfeitamente como aquilo tudo funciona. Consigo descortinar a mecânica.
Então, veremos no futuro mais deste autor Gonçalo Waddington?
Sim, mas é um pouco como as peças de teatro. Enquanto ator, gosto de contar as minhas histórias, escrevê-las e projectando-as. No cinema também. É normal acontecer.
Capitão Falcão (João Leitão, 2015)
Fora “Patrick”, há uma pergunta que muitos anseiam que seja respondida. Para quando o confronto entre Capitão Falcão [personagem que Gonçalo Waddington interpretou no homónimo filme de 2015] e o antagónico Flamingo?
Isso não depende de mim. Isso, única e exclusivamente, depende do João Leitão [realizador do “Capitão Falcão”], ele é que se tem que chegar à frente. De certeza absoluta que eu, o David Chan Cordeiro [que interpreta o “Puto Perdiz”] e a pessoa que vai fazer de Flamingo, concordaríamos na hora. Era já! Uma das minhas vontades enquanto ator era de voltar a esse papel, não só ao filme, mas ao projeto inicial, à série. Tive a felicidade de fazer aquele episódio-piloto e de ter conhecimento e lido os muitos episódios que daí viriam [para a RTP]. E aquilo… bem… deveria ter sido feito.
Quanto a novos projetos?
Neste momento estou na fase de escrita de um novo projeto. Não sei quanto tempo demorará até filmar. É impossível dizer, porque são processos que demoram. Espero ter um guião até ao fim do ano e a partir daí, cá estaremos para falar sobre esse novo filme. Como ator, vou trabalhando em alguns outros projetos, tenho uma rodagem em outubro, e em teatro estreio em setembro. Sim, estou sempre atarefado.
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“Patrick” prescreve-se como uma reflexão identitária que, por sua vez, desconstrói ideias estabelecidas de maternidade/paternidade. A longa-metragem de estreia de Gonçalo Waddington é essa tese transcrita num conflito dramático da personagem-título (Hugo Fernandes), jovem parisiense (assim nós cremos) que após ser detido pelas autoridades é confrontado com um trágico e repreensivo passado.
Porque afinal Patrick é Mário, uma criança portuguesa desaparecida que tem, por fim, a oportunidade de reencontrar-se com a sua família “original”. Só que o hiato não foi generoso, enquanto o pai (Adriano Carvalho) prosseguiu com a sua vida, não escondendo o facto ao seu reavido filho, por outro lado, a mãe (Teresa Sobral) é atormentada por essa luta de reconhecimento a um encarado desconhecido. No meio, surge-nos a prima (Alba Baptista), que se assume como uma possível catarse às memórias perdidas de Mário/Patrick e a sua luta existencial que encontra assimilada no desajeitado uso do português – língua obsoleta que oculta o tal representativo Mário.
Mesmo sabendo à partida que a dicotómica persona estabelecerá as duas línguas como armas numa evidenciada batalha de identidades, “Patrick” (o filme) é preenchido, maioritariamente, por silêncios na sua chegada ao território português. Porque a luta é interna, emudecida, e, sobretudo, interpretativa pelas suas contrariedades para com as diferentes causas comuns.
Em Portugal, as “assombrações” do caso Rui Pedro (desaparecido na zona de Lousada, em 1998, até hoje um mistério sem resolução) são invocados como supostas inspirações, valendo a Waddington o trunfo da abordagem psicológica para uma realidade alternativa, e, nesse sentido, transportando as ideias ao campo do afeto e a definição deste em oposição ao tempo e contacto. É um filme provocador, sem com isso insinuar uma aura de delinquência ou anarquia formal, porque “Patrick” coloca o espectador em modo voyeurista, uma passiva e tímida espécie de “curioso” mórbido.
Gonçalo Waddington (que zelosamente foi um dos argumentistas de “Mosquito”, que também desconstrói campos sagrados da identidade portuguesa) avança desde o primeiro momento sorrateiramente à sua intriga, valendo num travelling ondulante, inicialmente rasteiro, que contorna o corpo de Patrick, estabelecendo o inaugural e cuidadoso contacto com o invólucro de carne e osso onde decorrerá a dita psicanálise. Como “comparsas” do “crime”, o ator, agora convertido a autor por inteiro, confia na fotografia do cada vez mais ascendente Vasco Viana (“Um Fim do Mundo”, “Montanha”) para criar um contraste visível entre a Paris luxuriosa e pecaminosa, e sobretudo moderna e “aberta”, para com a ruralidade portuguesa, sombria e “fechada” à mercê do seu constante receio às dúvidas existencialistas que serão impostas.
No fundo, é isto, “Patrick” é um dos episódios (e bem fortalecidos, aliás), de como o cinema português recente deseja rebelar contra as suas próprias idiossincrasias.
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