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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Carl Reiner: mortos não pagam dívidas

Hugo Gomes, 30.06.20

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Carl Reiner, o proclamado Mestre da Comédia, como tem sido descrito, nos deixou hoje, aos 98 anos. Dele (enquanto realizador) gostaria de salientar Dead Men Don't Wear Plaid (Cliente Morto Não Paga a Conta, 1982), que confesso, ser dos escassos trabalhos o qual tolero Steve Martin, porém, este não é um filme de ator e das respetivas gags, é sim, uma obra zeitgeist munido de um elenco estrelar, do melhor visto daqueles lados de Hollywood.
 
Se bem verdade que muitos dos “companheiros” de Martin não partilharam, literalmente, o ecrã, mas é nas suas memórias (aquelas registadas) que deparamos num utensilio inventivo e hilariante. Estes atores convertem-se automaticamente em recortes distorcidos nesta ação, e só para mencionar alguns dos rostos e corpos emprestados; Cary Grant, Bette Davis, Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Ava Gardner, Barbara Stanwyck …. Quer dizer … já devem estar a perceber a figura!
 
Mas no fundo é isto: Carl Reiner não foi apenas um artesão em “fazer-nos rir”, foi um entusiasta no riso e na procurar dele através da criatividade, inventividade e engenho. 2020 não está a ser particularmente generoso com a comédia …

São Pedros, São Pedrocas, São Peters, São Pierres e São Pietros

Hugo Gomes, 29.06.20

Hoje, dia de São Pedro, recordo alguns 10 Pedro(s) célebres do Cinema. E para vocês, qual "Pedro" destacaria na lista?

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Peter Sellers, ator de “Dr. Strangelove” e da saga “The Pink Panther

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"Pierrot, Le Fou" (Pedro, O Louco), filme de Jean-Luc Godard com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina

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Peter Lorre, ator de "M", "Casablanca" e "The Man Who Knew Much"

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Peter O'Toole, ator de "Lawrence of the Arabia" e "Venus"

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Peter Weller, ator de "Robocop" e "Naked Lunch"

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Pedro Almodovar, cineasta de "Pain and Glory", "All About My Mother" e "Women on the Verge of a Nervous Breakdown"

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Pedro Costa, realizador de "Vitalina Varela" e "Quarto da Vanda"

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Peter Cushing, ator de "Star Wars" e vários títulos da Hammer

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Peter Weir, realizador de "The Mosquito Coast", "Truman Show" e "Picnic at Hanging Rock"

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Peter Bogdanovich, realizador de "The Last Picture Show" e "Paper Moon", um dos responsáveis pela conclusão de "The Other Side of the Wind", de Orson Welles

A Autópsia

Hugo Gomes, 28.06.20

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Todas as novidades portuguesas no cinema de género são (e serão) sempre bem-vindas, nem que seja para incentivar a diversidade, visto que, na grande maioria dos casos, não abunda nem temática, nem estética, nem mesmo inventividade. No universo fantástico/terror, estes exercícios (ou exorcismos) parecem ainda não ter encontrado uma apetecível emancipação perante a saturação de ideias. Desde as tentativas semi-falhadas de António Macedo ao ainda notável “Coisa Ruim”, pouco evoluímos. Fora as curtas-metragens às voltas dos moldes de protótipo e o culto garantido à Troma de “Mutant Blast” ou do esforço de “A Floresta das Almas Perdidas”, ainda não conseguimos reativar uma fórmula ou ter uma equação própria.

Este esmiuçar histórico não é mais que um ritual de higienização de um patologista pronto para dissecar o seu “cadáver”, “acabadinho” de chegar à "mesa de autópsia": o "corpo" é “Faz-me Companhia”. Este é o título prometedor de um realizador, Gonçalo Almeida, que se aventurou no círculos das curtas-metragens com algum êxito – “Thursday Night” (premiado em Austin e no MOTELx) – e que prossegue agora em força num formato ainda maior e com abordagens escassas e, em certa parte, ingratas no panorama do cinema português.

Porém, nem sempre os riscos compensam: com o azar de chegar aos cinemas ainda embrulhados no medo e histeria próxima da pós-pandemia, esta longa-metragem é um mero casulo oco, esvaziado por uma doença prolongada e crónica. Isto para dizer que "Faz-me Companhia" não se orgulha da sua natureza: cinema de terror. Portanto, a sua vida foi efémera e a morte prematura, mesmo que não possamos negar que o "corpo" que nos chega encontra-se aparentemente em bom estado, graças à "maquilhagem" autodidata de uma estética artificializada que disfarça as profundas feridas causadas por acidentes de percurso.

No nosso relatório legista estas foram as causas da morte: falta de espessura, uma concepção contemplativa sem garra, ideias cansadas, redução de duas atrizes que já mostraram melhor (Cleia D’Almeida, de “Sangue do meu Sangue”, e Filipa Areosa, de “O Sintoma de Ausência”, ao lado da ascendente Mia Tomé) a meros fantoches cadavéricos sem qualquer química uma com a outra (nota-se a falta de direção e emotividade nos diálogos rudimentares). E, fatalmente, uma inexistente perícia na construção atmosférica.

Como filme de terror, "Faz-me Companhia" simplesmente não funciona. Gonçalo Almeida teve receio de sujar as mãos e ficou pelas aparências. O resultado é totalmente inglório e frustrante. Vai ser preciso um grande trabalho de tanatopraxia para fazer a cerimónia de caixão aberto.

«Roman Porno»: Onde o sexo continua a ter lugar ...

Hugo Gomes, 26.06.20

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 A Noite das Felinas em Shinjuku / Mesunekotachi no yoru (Noboru Tanaka, 1972)

Continuando na nossa viagem pelos sentidos com o “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Nesta segunda parte do ciclo, chegamos às “mulheres-gatos” com “Night of the Felines” (“Mesunekotachi no yoru”, 1972), de Noboru Tanaka, e a modernizada versão, “Dawn of the Felines” (“Mesunekotachi”, 2017) de Kazuya Shiraishi.

 

 

- "NOITES FELINAS EM SHINJUKU": SEXO E BANHO A PEDIDO DO FREGUÊS -

 

As noites escaldantes ocultadas pela ferocidade do quotidiano dos hedonistas, empresários e yakuzas disfarçados povoam a segunda longa-metragem de Noboru Tanaka (1937-2006), realizador que se estreou sob o selo da Nikkatsu com “Kaben no shizuku” em 1972 e por lá andou até se converter num dos importantes nomes do movimento do "Roman Porno". Com as “Noites Felinas em Shinjuku” (Mesunekotachi no Yoru, 1972), a inspiração é um dos clássicos do cinema nipónico, “A Rua da Vergonha” / “Street of Shame” (Kenji Mizoguchi, 1956), onde nos era dado um retrato de época da mais antiga profissão do Mundo.

Atualizado e contextualizado no espírito algo libertino dos anos 70, Tanaka reproduz a cumplicidade de prostitutas que se dignam a exercitar a profissão sob o disfarce de “banhos turcos” (de forma a contornar a lei anti-prostituição), negócio movimentado no bairro Shinjuku por todo o tipo de homens, muitos deles ansiosos por escapar das rotinas carrasqueiras dos matrimónios e dos seus percursos profissionais. Por aqui encontramos Masako (Tomoko Katsura), que vive uma relação ainda por identificar com o seu vizinho fura-vidas Honda (Ken Yoshizawa), sendo que este lhe propõe que tenha sexo com o seu amigo Makoto, um jovem gigolo que nunca tivera relação alguma com mulher que se veja.

Nasce aqui uma espécie de triângulo amoroso, sem as ditas arestas reconhecíveis, que irá culminar numa viragem sexual ao som de cantos gregorianos a explorar territórios não-binários da sexualidade de cada um. Digamos que se descobre que as mulheres têm algo de gato dentro delas, independentes, matreiras e nunca devidamente domesticadas, enquanto os homens, meramente ridículos do debaixo das suas propositadas capas de masculinidade (ou como, no caso de Makoto, sensibilidade à flor-da-pele), abrem portas para um universo, ainda que secreto, da homossexualidade da altura em Tóquio.

Este é um daqueles filmes em que o “roman porno” se joga a favor de um retrato social (notamos como o Japão está cada vez mais ocidentalizado), cuidado sem nunca dissipar a sua vertente lasciva de entretenimento para as massas. Mas também é um objeto profundamente cinematográfico que prevalece numa comunhão de referência e ideias abstratas tanto de fora quanto de dentro do país.

Da mesma maneira que se cita o americano “Rear Window” (Alfred Hitchcock, 1954), com um sabor de procrastinação artística e intelectual por parte de um assumido voyeurismo do fura-vidas Honda, também integra uma crítica à contemporânea cultura japonesa dos "pink films" (produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo interior), que aparecem aqui como uma tentativa falhada de excitar Makoto, enquanto Masako reativa os seus sentidos num forçado e perpétuo ato de masturbação (tudo isto sob a musicalidade deliciosamente dessincronizada de Kôichi Sakata).

 

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O Alvorecer das Felinas / Mesunekotachi (Kazuya Shiraishi, 2017)

 

- "O ALVORECER DAS FELINAS": GATAS DE MADRUGADA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE -

 

Na homenagem dos 45 anos do “roman porno”, Kazuya Shiraishi transcreve as experiências felinas de Noboru Tanaka com um tributo modernizado e vincado num realismo encenado (a câmara é o mais nervoso dos voyeuristas ou "stalkers"). Aqui o bairro é outro: saímos de Shinjuku e entramos em Ikebukuro, também em Tóquio, acompanhando de “mão dada” três “raparigas de programa”, cada uma delas com os seus dilemas pessoais que diluem com a sua profissão de encomenda. Ao contrário do original de 1972, a narrativa procura uma igualdade no tratamento do trio em vez de afunilar numa só protagonista, mesmo que seja uma demanda parcial.

Acima de um filme que atribui positivismo ou negativismo à prostituição, é uma janela entreaberta para um submundo de prazeres, alguns deles alicerçados aos ensinamentos do Marquês de Sade, que desejam encontrar a legitimidade na sensibilidade dos seus praticantes em vez de estagnarem como pecaminoso desejo a merecer nada mais que a obscuridade. A par do “Noites Felinas em Shinjuku”, este “O Alvorecer das Felinas” (“Mesunekotachi”) é uma obra de múltiplas saídas, descrições e encruzilhadas.

Se falamos anteriormente do sadomasoquismo como espetáculo de cabaret, há aqui outras visões que de certa forma dialogam com o Japão que ultrapassou o período exposto por Tanaka, mas que ainda vive na sua sombra de globalização resistente. Por isso, é impossível não mencionar o regresso do ator Ken Yoshizawa, o Honda oriundo de Shinjuku, que em Ikebukuro é somente um viúvo que se deseja ligar com a falecida mulher através da sua prostituta (Michié, vista em “Silence”, de Martin Scorsese, e no censurado episódio de "Masters of Horrors" assinado por Takashi Miike).

Fora do objeto de estudo de “O Alvorecer das Felinas” (o sexo e a sua relevância no aceleramento social), Kazuya Shiraishi compõe uma obra que, como tantas outras que parecem surgir como “cogumelos” na atual indústria cinematográfica nipónica, esboçam uma metrópole acorrentada à sua permanente solidão e isolamento. Ou seja, antes dos confinamentos impostos pela crise pandémica da COVID-19, os japoneses já enfrentavam a distância com a mais requisitada das normalidades.

As tuas palavras, Martin Eden, serão as minhas!

Hugo Gomes, 25.06.20

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Ainda estou arrepiado! Degusto devagar e de forma prazenteira os sentimentos que este Martin Eden me convocou. Pelo menos, com este filme (pensando bem, rasuro, e troco pela palavra “obra”, adequa-se mais) de Pietro Marcello fez-me acreditar, por breves momentos, que o Cinema Italiano está de boa saúde. Pelo menos isso … Isso e um ator chamado Luca Marinelli (culpa minha, já devia ter reparado há tempos).

Perdão pelas palavras vazias, mas é o calor do momento. Brevemente tento domar as palavras de Martin Eden como minhas.

Regressando ao Cinema. De regresso à capital.

Hugo Gomes, 24.06.20

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Convidado pelo site Cinema Sétima Arte a partilhar o meu "desconfinamento" cinematográfico, que em certa parte está associado ao meu regresso a uma cidade que tanto afeto nutro.

"Porque foi com “A Cidade Branca” que regressei ao cinema e simultaneamente à cidade que tanto amo e que, infelizmente, me permite viver à sua porta. É a tela a dialogar diretamente comigo, a comunicar da única maneira que bem sabe, através de imagens e sons aparelhadas numa narrativa, ou numa não-narrativa, assim como tão bem pretenderem. Enquanto crítico, sempre tive a necessidade de coletar esses visuais e sonoridades na promessa de desvendar o hieróglifo decriptado do meu quotidiano e, através da branca cidade na perspetiva de Tanner, redescobri uma Lisboa “selvagem” que deseja sobretudo voltar a ser explorada (e filmada)." Ler texto completo aqui.

Obrigado.

Memórias em tempos saudosistas. O "mau" (bom) filme de Joel Schumacher!

Hugo Gomes, 23.06.20

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No cinema, quando alguém morre, automaticamente queremos relembrar os bons momentos trazidos pela sua existência. É um facto, ou até mesmo uma mania de cinéfilo que deseja “competir” ou coletar pelo filme perdido, pela obra-prima ou o desempenho para a eternidade. No caso de Joel Schumacher, não vou mentir, foi através de um dos piores momentos da sua carreira que me trouxe até aqui. E devo dizer, que tão boas memórias me trouxe essa obra do “piorio”.

Não querendo com isto a sublinhar uma tragédia familiar, porque nada de trágico ou de cómico tem a minha infância, mas esta foi marcada por uma certa distância para com o meu pai, não por negligência, nem nada que pareça, mas pelo seu trabalho de turnos até à exaustão. É essa particularidade que se torna no ponto de partida para esta minha breve história.

Porque foi com essa ausência que chegou-me uma espécie de compensação: uma ida ao cinema. Lembro-me que foi numa daquelas salas obscuras de galeria comercial (tentei puxar pela cabeça pelo local exato, mas tudo soa abstrato), em pleno verão de 1997 (sim, tive que ir pesquisar), que me estreei nas ditas sessões de meia-noite.

Em “pulgas” estava eu para me aventurar na última projeção do dia com o meu pai, que tentava antes de mais puxar pela conversa fiada como meio de alcançar o capítulo da minha vida. O filme, esse, tendo sido ele próprio a escolher, assumindo o facto de eu ser um rapaz que teria predileção por super-heróis, nomeadamente o mais popular de todos – Batman. A verdade é que ele estava parcialmente correto, não por gostar inteiramente do universo de super-heróis, mesmo com meia dúzia de banda-desenhadas no meu quarto, todos referentes a um aranhiço da Marvel e… um homem-morcego, possivelmente o meu preferido nos meus verdissímos anos.

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A esta altura, o leitor percebeu de que filme que se tratava. Sim, esse maldito “Batman & Robin“. Confesso que na altura (até hoje, ainda me encontro assim) não entendi rigorosamente nada da sua intriga; lembro-me vagamente de algumas imagens soltas e escandalosamente cobertas de neons e iluminação de género; um cartão de crédito com as insígnias do herói, um fato com mamilos, um Arnold Schwarzenegger azul e Uma Thurman (recordo que na altura engracei com o seu nome). Nada mais de memorável extraí desse filme transvestido, a não ser o seu final, não o da narrativa, mas o da porta fora da sessão. Nunca mais me esqueci do meu pai, que tinha adormecido algumas vezes durante a sessão, a dirigir-se a mim com um sorriso de aprovação, acompanhado com aquela pergunta de praxe: “Então? Gostaste?” Na altura, menti, abracei-o e respondi: “sim!”.

Mas não importa a mentira nesta história, nem mesmo o abandono do realizador ao projeto, visto que o próprio Joel Schumacher havia pedido perdão aos espectadores pelo filme que fizera. Eu cá há muito o perdoei, aliás, refazendo a minha resposta, não existe nada para perdoar.Batman & Robin” foi a minha primeira ida de cinema com o meu pai, a primeira de muitas, até porque anos mais tarde lá estávamos os dois a comprar bilhetes para a sessão da noite de “Phone Booth” no cinema do Olivais Shopping (deste vez lembro-me do local) ou alugar Flatliners ou The Lost Boys” no meu videoclube no bairro de Moscavide. Sim, outros tempos!

Resumindo: foi Joel Schumacher – um realizador fora do brilhante, por vezes tarefeiro, outras vezes engenhoso com um quiçá de trapalhão – a colocar algumas das mais importantes recordações da minha existência. A ele … sim … um muito obrigado!

«Roman Porno»: Onde o sexo tem lugar ...

Hugo Gomes, 20.06.20

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Lady Karuizawa / A Senhora Karuizawa (Masaru Konuma, 1982)

Em alturas de desconfinamento, a grande questão lançada no mercado de audiovisual é como voltar a incentivar os espectadores a frequentar as salas? Como estratégia, há quem reveja a História para extrair lições de como demarcar as salas das propostas do confinamento, sejam elas serviços televisivos, streaming ou tudo o que esteja ao alcance de um dedo. Foi o que fez a Leopardo Filmes / Medeia Filmes, gerida pelo produtor Paulo Branco, e a solução a que se chegou chama-se "roman porno".

O termo nasceu do crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger, referindo a um nova abordagem produtiva dos estúdios Nikkatsu, um dos mais antigos do Japão (produziu filmes de todo o género desde 1912), virada para o “porno romântico”. Com a queda abrupta da afluência de público às salas, no início da década de 1970, que levou a uma decadência na indústria nipónica frente à cada vez mais abrangente televisão, o estúdio, que também enfrentava uma iminente falência, radicalizou-se e criou um novo esquema produtivo, que passava por invocar sexo “semiexplícito” em filmes de baixo-orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia (para que fosse exibido em "sessões duplas").

Na altura, o Japão estava dominado por uma forte censura, o que condicionava a própria ideia de sexo no grande ecrã, sendo explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital. Isto levou os realizadores a exercitar a sua engenhosidade criativa para não acanhar as imagens lascivas. Durante este período, vários nomes surgiam nestas “páginas” de erotismo transgressivo, passando por Masaru Konuma, Noburu Tanaka, Toshiharu Ikeda ou Tatsumi Kumashiro. Respondendo aos pedidos da produtora, eles preenchiam estes ensaios com evidentes referências e presunções cinematográficas, ao mesmo tempo em que focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.

Não fiquemos no equívoco de encarar estas obras como somente pornografia: o “roman porno” alcançou mundialmente uma conotação artística que os separava dos contemporâneos “pink films” (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo oriundas de pequenos estúdios independentes, normalmente de consumo interior), resgatando uma produtora veterana na “cruel” mudança dos tempos. O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário do “porno romântico” dos estúdios Nikkatsu, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos, e o resultado foram obras marcadas por diferentes abordagens e transposições do estilo até então estabelecido. 

Voltando agora aos estratagemas de apelo ao público “confinado”, a proposta da Leopardo Filmes / Medeia Filmes é a de seduzir com as mesmas armas dos estúdios Nikkatsu, apresentando um ciclo especial no Cinema Nimas, em Lisboa, sobre este género salvador-da-pátria e obcecado pelas tentações do corpo. Serão no total dez obras (cinco clássicos e cinco modernos). A primeira sessão será composta por "A Senhora Karuizawa" (“Lady Karuizawa”) e "O Lírio Branco" (“White Lily“).

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Na rodagem de "Lady Karuizawa" / "A Senhora Karuizawa" (Masaru Konuma, 1982)

 

- O VERÃO CHEGA-NOS QUENTE E HÚMIDO -

Já no arrefecimento da carnalidade do “roman porno”, nos primeiros anos da década de 1980, surgiu-o "A Senhora Karuizawa" (“Karuizawa fujin”, 1982), que adapta livremente o romance de Stendhal “O Vermelho e o Negro", contextualizando com as desigualdades sociais nas terras do Sol Nascente.

Este romance erotizado centra-se na chegada de um jovem estudante pobre, Junichi (Takayuki Godai), à região de Karuizawa, local escolhido pelos afortunados como estância de férias, para trabalhar num serviço de "catering" de um restaurante da área. Após um acidente na mansão de uma das importantes famílias de Karuizawa, Junichi é despedido, mas acaba contratado por Keiko (Miwa Takada), a matriarca da tal família, como tutor do filho de cinco anos. Durante o serviço, ambos aproximam-se, afetiva e carnalmente, consumindo o desejo nesses tempos quentes quase animalescos.

Dirigido por Masaru Konuma, este é, notavelmente, um filme sobre o desejo impregnado como força animal. Diga-se que a própria construção visual é deveras alusiva a essa bestialidade interiorizada, sendo que a fauna e flora assume um papel fundamental nos registos de passagem e transformação das personagens, assim como as suas mais profundas fantasias. Veja-se por exemplo o canto dos animais noturnos como “vozes de aprovação” ao magnetismo sexual do par, com Keiko tentando resistir à mais perdida tentação (“Não me obrigue a despi-lo”). Esse apetite sexualizado é também rompido pelo onirismo de uma dendrofilia confessada pela protagonista aos espectadores, estendendo a ideia de um perverso apetite não apenas facultado pelo corpo de Junichi, mas de todo este lugar Karuizawa sob o sol escaldante e o cantar das cigarras em pleno verão (“Os invernos são rigorosos em Karuizawa, mas... o verão sempre volta!”).

O trabalho de Masaru Konuma persegue o calor dessa mulher à espera de ser libertada das amarras matrimoniais, tentando escapar do sexo bruto quase violatório por parte do autoritário marido para correr para os braços do jovem amante, onde o contato entre corpos é um ópio incorporado.

A grande infelicidade de "A Senhora Karuizawa" está na (não) coesão do argumento, que não passa aqui de um dispositivo para embarcar nesta jornada sexual e do retrato algo sádico da diferença entre classes, da subjugação dos mais baixos sob os aristocratas e da emancipação da mulher para fora do mero símbolo de estatuto social.

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White Lily / O Lírio Branco (Hideo Nakata, 2016)

 

- O PERPÉTUO DESEJO DO PODER -

Hideo Nakata foi um dos grandes impulsores do chamado "j-horror", um esquema de filmes de terror que conquistaram o Ocidente (tendo sido brindados com a variedade de "remakes", "reboots "e refilmagens em Hollywood). Da sua filmografia contam-se obras como “Ringu” (que originou o sucesso “The Ring – O Aviso” nos EUA) e “Águas Passadas”, mas antes dessas aventuras por espectros e maldições correntes, Nakata foi assistente de realização de Masaru Konuma, o que lhe garantiu legitimidade para invocar os seus gestos de sugestão e fabulação sexual durante a homenagem dos 45 anos.

O Lírio Branco” (“Howaito rirî”, 2016) é uma fantasia lésbica vigorosa no elo entre mestre e pupilo, neste caso de uma artesã e professora de olearia com a sua subserviente aluna/amante precária. Uma relação equilibrada entre o desejo e a necessidade que será abalada com a vinda de um terceiro elemento e um triângulo amoroso que se acerca e se estatela em territórios psicológicos e obsessivos.

Hideo Nakata comete a vénia da suscitação através de um embelezamento apropriado nas sequências sexuais entre as duas mulheres, tentando equiparar com isto o espírito proposto do legado “roman porno” dos estúdios Nikkatsu. As brancas flores dos lírios adquirem aqui um segundo sentido, um atalho visual que faz contornar o puro explícito, enquanto o barro moldado e os constantes focos nos dedos em plena operação atribuem um senso erotizado e afrodisíaco que inspira não só o ato sexualizado em si, mas também a moldagem desta relação perante a sua “oleira”.

Nakata consegue um trabalho saudosista e referencial, mas infelizmente cai como prosa numa teoria metaforizada, e como tal, em modo castração, impedindo-o  de transgredir para territórios próprios e ainda mais perversos. Em comparação com “A Senhora Karuizawa”, onde o sexo é quase uma imposição mística e quente como o verão que cita constantemente, em “Os Lírios Brancos” o contacto entre corpos é agressivo, animalesco e em recorrente conflito para estabelecer um domínio.

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