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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Carl Reiner: mortos não pagam dívidas

Hugo Gomes, 30.06.20

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Carl Reiner, o proclamado Mestre da Comédia, como tem sido descrito, nos deixou hoje, aos 98 anos. Dele (enquanto realizador) gostaria de salientar Dead Men Don't Wear Plaid (Cliente Morto Não Paga a Conta, 1982), que confesso, ser dos escassos trabalhos o qual tolero Steve Martin, porém, este não é um filme de ator e das respetivas gags, é sim, uma obra zeitgeist munido de um elenco estrelar, do melhor visto daqueles lados de Hollywood.
 
Se bem verdade que muitos dos “companheiros” de Martin não partilharam, literalmente, o ecrã, mas é nas suas memórias (aquelas registadas) que deparamos num utensilio inventivo e hilariante. Estes atores convertem-se automaticamente em recortes distorcidos nesta ação, e só para mencionar alguns dos rostos e corpos emprestados; Cary Grant, Bette Davis, Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Ava Gardner, Barbara Stanwyck …. Quer dizer … já devem estar a perceber a figura!
 
Mas no fundo é isto: Carl Reiner não foi apenas um artesão em “fazer-nos rir”, foi um entusiasta no riso e na procurar dele através da criatividade, inventividade e engenho. 2020 não está a ser particularmente generoso com a comédia …

São Pedros, São Pedrocas, São Peters, São Pierres e São Pietros

Hugo Gomes, 29.06.20

Hoje, dia de São Pedro, recordo alguns 10 Pedro(s) célebres do Cinema. E para vocês, qual "Pedro" destacaria na lista?

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Peter Sellers, ator de “Dr. Strangelove” e da saga “The Pink Panther

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"Pierrot, Le Fou" (Pedro, O Louco), filme de Jean-Luc Godard com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina

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Peter Lorre, ator de "M", "Casablanca" e "The Man Who Knew Much"

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Peter O'Toole, ator de "Lawrence of the Arabia" e "Venus"

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Peter Weller, ator de "Robocop" e "Naked Lunch"

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Pedro Almodovar, cineasta de "Pain and Glory", "All About My Mother" e "Women on the Verge of a Nervous Breakdown"

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Pedro Costa, realizador de "Vitalina Varela" e "Quarto da Vanda"

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Peter Cushing, ator de "Star Wars" e vários títulos da Hammer

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Peter Weir, realizador de "The Mosquito Coast", "Truman Show" e "Picnic at Hanging Rock"

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Peter Bogdanovich, realizador de "The Last Picture Show" e "Paper Moon", um dos responsáveis pela conclusão de "The Other Side of the Wind", de Orson Welles

A Autópsia

Hugo Gomes, 28.06.20

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Todas as novidades portuguesas no cinema de género são (e serão) sempre bem-vindas, nem que seja para incentivar a diversidade, visto que, na grande maioria dos casos, não abunda nem temática, nem estética, nem mesmo inventividade. No universo fantástico/terror, estes exercícios (ou exorcismos) parecem ainda não ter encontrado uma apetecível emancipação perante a saturação de ideias. Desde as tentativas semi-falhadas de António Macedo ao ainda notável “Coisa Ruim”, pouco evoluímos. Fora as curtas-metragens às voltas dos moldes de protótipo e o culto garantido à Troma de “Mutant Blast” ou do esforço de “A Floresta das Almas Perdidas”, ainda não conseguimos reativar uma fórmula ou ter uma equação própria.

Este esmiuçar histórico não é mais que um ritual de higienização de um patologista pronto para dissecar o seu “cadáver”, “acabadinho” de chegar à "mesa de autópsia": o "corpo" é “Faz-me Companhia”. Este é o título prometedor de um realizador, Gonçalo Almeida, que se aventurou no círculos das curtas-metragens com algum êxito – “Thursday Night” (premiado em Austin e no MOTELx) – e que prossegue agora em força num formato ainda maior e com abordagens escassas e, em certa parte, ingratas no panorama do cinema português.

Porém, nem sempre os riscos compensam: com o azar de chegar aos cinemas ainda embrulhados no medo e histeria próxima da pós-pandemia, esta longa-metragem é um mero casulo oco, esvaziado por uma doença prolongada e crónica. Isto para dizer que "Faz-me Companhia" não se orgulha da sua natureza: cinema de terror. Portanto, a sua vida foi efémera e a morte prematura, mesmo que não possamos negar que o "corpo" que nos chega encontra-se aparentemente em bom estado, graças à "maquilhagem" autodidata de uma estética artificializada que disfarça as profundas feridas causadas por acidentes de percurso.

No nosso relatório legista estas foram as causas da morte: falta de espessura, uma concepção contemplativa sem garra, ideias cansadas, redução de duas atrizes que já mostraram melhor (Cleia D’Almeida, de “Sangue do meu Sangue”, e Filipa Areosa, de “O Sintoma de Ausência”, ao lado da ascendente Mia Tomé) a meros fantoches cadavéricos sem qualquer química uma com a outra (nota-se a falta de direção e emotividade nos diálogos rudimentares). E, fatalmente, uma inexistente perícia na construção atmosférica.

Como filme de terror, "Faz-me Companhia" simplesmente não funciona. Gonçalo Almeida teve receio de sujar as mãos e ficou pelas aparências. O resultado é totalmente inglório e frustrante. Vai ser preciso um grande trabalho de tanatopraxia para fazer a cerimónia de caixão aberto.

«Roman Porno»: Onde o sexo continua a ter lugar ...

Hugo Gomes, 26.06.20

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 A Noite das Felinas em Shinjuku / Mesunekotachi no yoru (Noboru Tanaka, 1972)

Continuando na nossa viagem pelos sentidos com o “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Nesta segunda parte do ciclo, chegamos às “mulheres-gatos” com “Night of the Felines” (“Mesunekotachi no yoru”, 1972), de Noboru Tanaka, e a modernizada versão, “Dawn of the Felines” (“Mesunekotachi”, 2017) de Kazuya Shiraishi.

 

 

- "NOITES FELINAS EM SHINJUKU": SEXO E BANHO A PEDIDO DO FREGUÊS -

 

As noites escaldantes ocultadas pela ferocidade do quotidiano dos hedonistas, empresários e yakuzas disfarçados povoam a segunda longa-metragem de Noboru Tanaka (1937-2006), realizador que se estreou sob o selo da Nikkatsu com “Kaben no shizuku” em 1972 e por lá andou até se converter num dos importantes nomes do movimento do "Roman Porno". Com as “Noites Felinas em Shinjuku” (Mesunekotachi no Yoru, 1972), a inspiração é um dos clássicos do cinema nipónico, “A Rua da Vergonha” / “Street of Shame” (Kenji Mizoguchi, 1956), onde nos era dado um retrato de época da mais antiga profissão do Mundo.

Atualizado e contextualizado no espírito algo libertino dos anos 70, Tanaka reproduz a cumplicidade de prostitutas que se dignam a exercitar a profissão sob o disfarce de “banhos turcos” (de forma a contornar a lei anti-prostituição), negócio movimentado no bairro Shinjuku por todo o tipo de homens, muitos deles ansiosos por escapar das rotinas carrasqueiras dos matrimónios e dos seus percursos profissionais. Por aqui encontramos Masako (Tomoko Katsura), que vive uma relação ainda por identificar com o seu vizinho fura-vidas Honda (Ken Yoshizawa), sendo que este lhe propõe que tenha sexo com o seu amigo Makoto, um jovem gigolo que nunca tivera relação alguma com mulher que se veja.

Nasce aqui uma espécie de triângulo amoroso, sem as ditas arestas reconhecíveis, que irá culminar numa viragem sexual ao som de cantos gregorianos a explorar territórios não-binários da sexualidade de cada um. Digamos que se descobre que as mulheres têm algo de gato dentro delas, independentes, matreiras e nunca devidamente domesticadas, enquanto os homens, meramente ridículos do debaixo das suas propositadas capas de masculinidade (ou como, no caso de Makoto, sensibilidade à flor-da-pele), abrem portas para um universo, ainda que secreto, da homossexualidade da altura em Tóquio.

Este é um daqueles filmes em que o “roman porno” se joga a favor de um retrato social (notamos como o Japão está cada vez mais ocidentalizado), cuidado sem nunca dissipar a sua vertente lasciva de entretenimento para as massas. Mas também é um objeto profundamente cinematográfico que prevalece numa comunhão de referência e ideias abstratas tanto de fora quanto de dentro do país.

Da mesma maneira que se cita o americano “Rear Window” (Alfred Hitchcock, 1954), com um sabor de procrastinação artística e intelectual por parte de um assumido voyeurismo do fura-vidas Honda, também integra uma crítica à contemporânea cultura japonesa dos "pink films" (produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo interior), que aparecem aqui como uma tentativa falhada de excitar Makoto, enquanto Masako reativa os seus sentidos num forçado e perpétuo ato de masturbação (tudo isto sob a musicalidade deliciosamente dessincronizada de Kôichi Sakata).

 

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O Alvorecer das Felinas / Mesunekotachi (Kazuya Shiraishi, 2017)

 

- "O ALVORECER DAS FELINAS": GATAS DE MADRUGADA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE -

 

Na homenagem dos 45 anos do “roman porno”, Kazuya Shiraishi transcreve as experiências felinas de Noboru Tanaka com um tributo modernizado e vincado num realismo encenado (a câmara é o mais nervoso dos voyeuristas ou "stalkers"). Aqui o bairro é outro: saímos de Shinjuku e entramos em Ikebukuro, também em Tóquio, acompanhando de “mão dada” três “raparigas de programa”, cada uma delas com os seus dilemas pessoais que diluem com a sua profissão de encomenda. Ao contrário do original de 1972, a narrativa procura uma igualdade no tratamento do trio em vez de afunilar numa só protagonista, mesmo que seja uma demanda parcial.

Acima de um filme que atribui positivismo ou negativismo à prostituição, é uma janela entreaberta para um submundo de prazeres, alguns deles alicerçados aos ensinamentos do Marquês de Sade, que desejam encontrar a legitimidade na sensibilidade dos seus praticantes em vez de estagnarem como pecaminoso desejo a merecer nada mais que a obscuridade. A par do “Noites Felinas em Shinjuku”, este “O Alvorecer das Felinas” (“Mesunekotachi”) é uma obra de múltiplas saídas, descrições e encruzilhadas.

Se falamos anteriormente do sadomasoquismo como espetáculo de cabaret, há aqui outras visões que de certa forma dialogam com o Japão que ultrapassou o período exposto por Tanaka, mas que ainda vive na sua sombra de globalização resistente. Por isso, é impossível não mencionar o regresso do ator Ken Yoshizawa, o Honda oriundo de Shinjuku, que em Ikebukuro é somente um viúvo que se deseja ligar com a falecida mulher através da sua prostituta (Michié, vista em “Silence”, de Martin Scorsese, e no censurado episódio de "Masters of Horrors" assinado por Takashi Miike).

Fora do objeto de estudo de “O Alvorecer das Felinas” (o sexo e a sua relevância no aceleramento social), Kazuya Shiraishi compõe uma obra que, como tantas outras que parecem surgir como “cogumelos” na atual indústria cinematográfica nipónica, esboçam uma metrópole acorrentada à sua permanente solidão e isolamento. Ou seja, antes dos confinamentos impostos pela crise pandémica da COVID-19, os japoneses já enfrentavam a distância com a mais requisitada das normalidades.

As tuas palavras, Martin Eden, serão as minhas!

Hugo Gomes, 25.06.20

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Ainda estou arrepiado! Degusto devagar e de forma prazenteira os sentimentos que este Martin Eden me convocou. Pelo menos, com este filme (pensando bem, rasuro, e troco pela palavra “obra”, adequa-se mais) de Pietro Marcello fez-me acreditar, por breves momentos, que o Cinema Italiano está de boa saúde. Pelo menos isso … Isso e um ator chamado Luca Marinelli (culpa minha, já devia ter reparado há tempos).

Perdão pelas palavras vazias, mas é o calor do momento. Brevemente tento domar as palavras de Martin Eden como minhas.

"Gagarine": o astronauta que (não) sou

Hugo Gomes, 24.06.20

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A 12 de abril de 1961, o soviético Yuri Gagarin rompeu a barreira que limitava à Humanidade desde a sua génese, com isso tornou-se no primeiro Homem a aventurar-se no espaço, o que acelerou ainda mais a dita “corrida espacial” (na qual os russos concorriam diretamente com os americanos, cuja meta, como é bem sabido, foi trespassada em 1969 com Neil Armstrong a pisar o solo lunar).

Após cumprida a sua odisseia, Gagarin converteu-se numa estrela internacional e, até à data da sua morte (acabaria por falecer em março de ’68, nunca testemunhou o feito do seu análogo norte-americano), transformou-se num dos bens preciosos do regime soviético. Entre as suas desfrutações de fama efémera está o complexo Gagarine, enormes conjuntos habitacionais situados nos arredores de Paris (França), com a aprovação municipal do Partido Comunista Francês. O explorador do espaço teve a honra de o inaugurar em 1963.

Hoje, tais blocos de apartamentos (370 para ser exato, divididos em 13 andares) foram desintegrados da paisagem da periferia, os seus habitantes realojados, mas as memórias persistiram naquela estrutura fantasmagórica até à sua iminente demolição. É nessa perpetuação da recordação lívida que Youri Gagarine (sim, o protagonista apropria-se do nome do astronauta) iça a sua bandeira de resistência. À semelhança do verdadeiro Gagarine, este inventivo jovem assume-se como náufrago no isolamento do espaço, neste caso sob a forma de uma arquitetura desocupada, que vai ao encontro do olhar dos realizadores Fanny Liatard e Jérémy Trouilh que filmam o edifício como se estivessem a descrever uma nave espacial.,

Por entre travellings que rodopiam a 180º, os planos diagonais que transmitem um efeito de inexistência de gravidade e os constantes picados a caminhar pelo infinito céu, “Gagarine” é uma citação da semiótica espacial para nos trazer um filme de área sem sair (hipoteticamente) do planeta, onde até a banda sonora é à base de sons metalizados transporta-nos para esse mesmo quadrante. Obviamente, tais códigos são propositados pela dupla de realizadores, até porque o protagonista converte (imaginativamente) o espaço onde se insere num autêntico vaivém interestelar. Existe em “Gagarine” uma vénia ao género, ao vulto “gagariano” (se pudermos chamar assim) e sucessivamente brava caminho até aterrar no seu drama coming-of-age, mas sempre de cabeça virada para a Lua (“Já ouviste falar de subúrbios espaciais? (…) No espaço, é a área suburbana em torno das estrelas.”).

We’re neighbors with the moon”, a canção de despedida que acompanha uma das personagens que nos guia à dita “missão espacial”, deixando o estreante Alseni Bathily (sólido) à deriva no seu faz-de-conta, a reprodução daquilo que tanto deseja. Talvez “Gagarine” seja um filme com mais olhos que barriga no sentido dramático, apoiando-se na capacidade da dupla de realizadores em transmitir aquilo que diríamos numa dimensão à parte. Este prolongado de uma homónima curta dos mesmos criadores, encontra um acolhimento a condizer com a nova fase de cinema social francês (é bastante difícil a nossa memória dissociar do recente “Les Miserábles”, de Ladj Ly), dando voz a minorias, mas sempre respeitando uma visão de cinema.

Neste caso, a ‘loucura’ de Liatard e Trouilh é conseguir fundir um filme de espaço (seja a interpretação que o leitor atribua) com a diversidade do meio e, por fim, sob um tom sonhador e de encanto próprio. É cedo para falar disto, só que deste lado apostamos que Gagarine terá adeptos num futuro próximo. Enquanto isso, olhamos para as estrelas e percebemos da nossa “pequenez”.

Regressando ao Cinema. De regresso à capital.

Hugo Gomes, 24.06.20

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Convidado pelo site Cinema Sétima Arte a partilhar o meu "desconfinamento" cinematográfico, que em certa parte está associado ao meu regresso a uma cidade que tanto afeto nutro.

"Porque foi com “A Cidade Branca” que regressei ao cinema e simultaneamente à cidade que tanto amo e que, infelizmente, me permite viver à sua porta. É a tela a dialogar diretamente comigo, a comunicar da única maneira que bem sabe, através de imagens e sons aparelhadas numa narrativa, ou numa não-narrativa, assim como tão bem pretenderem. Enquanto crítico, sempre tive a necessidade de coletar esses visuais e sonoridades na promessa de desvendar o hieróglifo decriptado do meu quotidiano e, através da branca cidade na perspetiva de Tanner, redescobri uma Lisboa “selvagem” que deseja sobretudo voltar a ser explorada (e filmada)." Ler texto completo aqui.

Obrigado.

Memórias em tempos saudosistas. O "mau" (bom) filme de Joel Schumacher!

Hugo Gomes, 23.06.20

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No cinema, quando alguém morre, automaticamente queremos relembrar os bons momentos trazidos pela sua existência. É um facto, ou até mesmo uma mania de cinéfilo que deseja “competir” ou coletar pelo filme perdido, pela obra-prima ou o desempenho para a eternidade. No caso de Joel Schumacher, não vou mentir, foi através de um dos piores momentos da sua carreira que me trouxe até aqui. E devo dizer, que tão boas memórias me trouxe essa obra do “piorio”.

Não querendo com isto a sublinhar uma tragédia familiar, porque nada de trágico ou de cómico tem a minha infância, mas esta foi marcada por uma certa distância para com o meu pai, não por negligência, nem nada que pareça, mas pelo seu trabalho de turnos até à exaustão. É essa particularidade que se torna no ponto de partida para esta minha breve história.

Porque foi com essa ausência que chegou-me uma espécie de compensação: uma ida ao cinema. Lembro-me que foi numa daquelas salas obscuras de galeria comercial (tentei puxar pela cabeça pelo local exato, mas tudo soa abstrato), em pleno verão de 1997 (sim, tive que ir pesquisar), que me estreei nas ditas sessões de meia-noite.

Em “pulgas” estava eu para me aventurar na última projeção do dia com o meu pai, que tentava antes de mais puxar pela conversa fiada como meio de alcançar o capítulo da minha vida. O filme, esse, tendo sido ele próprio a escolher, assumindo o facto de eu ser um rapaz que teria predileção por super-heróis, nomeadamente o mais popular de todos – Batman. A verdade é que ele estava parcialmente correto, não por gostar inteiramente do universo de super-heróis, mesmo com meia dúzia de banda-desenhadas no meu quarto, todos referentes a um aranhiço da Marvel e… um homem-morcego, possivelmente o meu preferido nos meus verdissímos anos.

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A esta altura, o leitor percebeu de que filme que se tratava. Sim, esse maldito “Batman & Robin“. Confesso que na altura (até hoje, ainda me encontro assim) não entendi rigorosamente nada da sua intriga; lembro-me vagamente de algumas imagens soltas e escandalosamente cobertas de neons e iluminação de género; um cartão de crédito com as insígnias do herói, um fato com mamilos, um Arnold Schwarzenegger azul e Uma Thurman (recordo que na altura engracei com o seu nome). Nada mais de memorável extraí desse filme transvestido, a não ser o seu final, não o da narrativa, mas o da porta fora da sessão. Nunca mais me esqueci do meu pai, que tinha adormecido algumas vezes durante a sessão, a dirigir-se a mim com um sorriso de aprovação, acompanhado com aquela pergunta de praxe: “Então? Gostaste?” Na altura, menti, abracei-o e respondi: “sim!”.

Mas não importa a mentira nesta história, nem mesmo o abandono do realizador ao projeto, visto que o próprio Joel Schumacher havia pedido perdão aos espectadores pelo filme que fizera. Eu cá há muito o perdoei, aliás, refazendo a minha resposta, não existe nada para perdoar.Batman & Robin” foi a minha primeira ida de cinema com o meu pai, a primeira de muitas, até porque anos mais tarde lá estávamos os dois a comprar bilhetes para a sessão da noite de “Phone Booth” no cinema do Olivais Shopping (deste vez lembro-me do local) ou alugar Flatliners ou The Lost Boys” no meu videoclube no bairro de Moscavide. Sim, outros tempos!

Resumindo: foi Joel Schumacher – um realizador fora do brilhante, por vezes tarefeiro, outras vezes engenhoso com um quiçá de trapalhão – a colocar algumas das mais importantes recordações da minha existência. A ele … sim … um muito obrigado!

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