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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ela quer a nossa cabeça!

Hugo Gomes, 13.05.20

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O que leva uma mulher, supostamente encaixada numa perfeita vida profissional e familiar, a romper toda essa harmonia em prol de uma saciável fantasia? “A Rainha de Copas”, apropriando-se da eterna vilã de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol que vê na decapitação o seu mais comum castigo, orquestra toda e vertiginosa descida de uma mulher realizada nos mais diferentes quadrantes, que comete o “pecado” de prosseguir o seu íntimo desejo, que desconhecendo, a acorrenta-a. E isso acontece sob a forma menos provável, a vinda do filho problemático do seu marido, fruto de uma relação anterior, que despertará esse  fetiche, cuja sua concretização a confrontará e a desafiará os seus dotes manipulativos.

Assinado por May el-Toukhy, a “Rainha de Copas” (“Queen of Hearts”) aproxima-se das anteriores demandas do desejo que nos últimos anos experienciamos com filmes como “Gloria”, de Sebastián Lelio, “Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e “Elle”, de Paul Verhoeven, dando a nós uma sensação de abertura da ala sensualizada e emancipada de mulheres veteranas. Contudo, diferenciando dos exemplares referidos, o facto de ser uma mulher ao volante desta intriga aufere uma certa legitimidade no tom e identificação das desventuras e sensualidade imposta na nossa “Rainha’”. Coroada, e sendo a peça fundamental, desta tremenda espiral dramática está Trine Dyrholm, atriz dinamarquesa que tem destacado a passos moderados a sua compostura e frieza, quer em "Troubled Water", de Erik Poppe, ou na pele de Nico na cinebiografia dirigida por Susanna Nicchiarelli (“Nico, 1988” em 2017). A sua exposição é o que a demarca das demais atrizes que cometem tais jogos desejosos, e a sua arrojada forma de reafirmação dá compreensão quanto às suas jornadas sexualizadas, realçando um método verité na sua forma interpretativa.

É de surpreender essa disposição que nos faz alterar a comum perceção do que é uma interpretação, e como, à luz das leis strasbergianas, colocar o seu corpo e alma na prontidão do seu desempenho; quer no realismo dos seus sentimentos, quer na veracidade da sua sensação. Se a “Rainha de Copas” sustenta-se devido à dedicação da sua realeza, é também nos pequenos detalhes sugeridos pela realização, inteiramente observacionais na arquitetura e espaços, que colocam o espectador no centro deste igual trono. Depois segue-se a ambiguidade, o silêncio mórbido e a interiorização dos desejos como verdadeiras caixas de Pandora. Para cada liberdade há uma consequência, e para cada consequência, existe um amoral esquema de o evitar.

A Rainha de Copas” é outra peça fulcral daquilo que os EUA têm sempre evitado na sua definição de personagens femininas fortes, que é colocar o desejo carnal como emancipação da mulher nos seus mais variados estados de vida. No fundo, os homens têm exatamente medo disso, de uma mulher capaz de saciar os seus mais entranhados prazeres.

O Trabalho do Diabo no fascínio e na farsa

Hugo Gomes, 12.05.20

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The Devil's Reject (Rob Zombie, 2005)

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Once Upon Time in Hollywood (Quentin Tarantino, 2019)

 

Incorretamente associado a Charles Manson, a quoteI’m the devil, I’m here to do the devil’s business” foi, desde os tempos do monstruoso homicídio a Sharon Tate, convertido uma das proféticas citações de um certo cinema de género incutido numa determinada cultura popular. Sabemos, sim, que é na sombra de Manson encontramos a influência que redefiniu a metade de um século, que nos fez salivar pela violência descara como atentados aos então estabelecidas condutas moralistas da sociedade corrente. E devido a isso, o fascínio pela sua “ideologia” motivou todo uma vaga de filmes exploitation, sangrentos e distorcidos nos anteriores e estudados códigos de heróis e vilões.

A violência extrema tornou-se o ato corajoso contra uma sociedade “certinha” e aprisionada na sua hipocrisia, pelo menos, é nesse contexto que, por exemplo, Rob Zombie intromete nas suas personagens. Como é o caso do seu Devil’s Rejects (2005), o seu filme mais duro e definidor da sua aura artística, que funciona como uma homenagem ao gangue Manson e as suas novas interpretações familiares. Aqui, as palavras sagradas adquirem exatamente isso, a prece definitiva de um Deus menor, mas pertencente do Mundo Moderno, o palavreado antes de um imperativo fim.

Por sua vez, Quentin Tarantino e o seu Once Upon Time in Hollywood cometem a blasfémia de despir tal citação (ou meia citação) da sua promoção de destino inadiável, aquela ultima sentença. Nesse aspeto, quando o “servente” de Charles Manson (Charles “Tex” Watson) profere a tão abalada tagline, o desenrolar é adulterado, dando, previsivelmente, ala a um descortinar de violência gráfica (e convém afirmar, satisfatória), mas desencadeada do lado oposto. São os hippies que sofrem nas mãos dos “artistas” que representam a ilusão do capitalismo (Hollywood) e não o oposto, marcado a tinta permanente da nossa História. Com esse feito, Tarantino desmonta o misticismo por detrás de Charles Manson e o ridiculariza, não o diretamente, mas através dos seus seguidores, o Grande Outro segundo o filósofo Slavoj Žižek. Essa é sátira perfeita de uma instituição convertida ao sagrado através da fome insaciável dos medias.

E Tarantino é perito nisso, desde a adulteração da queda do nazismo e o seu líder máximo - Adolf Hitler - “metralhado” em Inglourious Basterds (2009), até à troça ao Klux Klux Klan, tendo como alvo certeiro a “relevância fílmica” de The Birth of a Nation (D.W. Griffit, 1915), em Django Unchained (2012).

Mas antes de Once Upon Time in Hollywood, o realizador já havia brincado a esse ritual de matança, através da passagem bíblica transmitida pelo nosso eterno Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) em Pulp Fiction (1994). Ou seja, já era evidente a sua sede de atingir a cerne do mal que certamente encantou o audiovisual e nunca mais o largou. Foi preciso esperar 25 anos para que Tarantino vingasse verdadeiramente.

Petra Costa: na vertigem do trauma e da sensibilidade do Brasil

Hugo Gomes, 01.05.20

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Vertiginoso é o caminho que Petra Costa percorreu até chegar a esta sua retrospectiva no Visions Du Réel.

A cineasta brasileira tem caminhado de braço dado com a sua própria intimidade, até mesmo na proximidade com a esfera política, a qual resultou no seu filme mais bem-sucedido – “A Democracia em Vertigem” – conquistado uma histórica nomeação nos Oscars de 2020. Mas longe do estetizado retrato da fragmentação da ética política brasileira, Petra Costa sempre fora uma ativista no seu jeito autoral, entregando como grande arma massiva a sua sensibilidade.

Sabendo que os tempos do COVID-19 impediram que o festival suíço se realizasse sob os moldes tradicionais, decorrendo exclusivamente online, o meu reencontro da cineasta foi dividido por um ecrã, e partilhado por temas fortes e quentes, muitos deles impostos por esta “nova normalidade”. O cinema brasileiro, o estado do Mundo, o íntimo e o trauma como os mais cumpliciados inimigos, foram os tópicos trazidos nesta conversa “distante”.

Gostaria de começar com o próprio convite da Visions du Réel, do atelier que irá coordenar e claro, a retrospectiva integral da sua obra. Como se sente? O que espera atingir com este projecto?

Fiquei muito honrada com o convite, acompanho desde há muito este festival. Visions du Réel trouxe sempre consigo uma visão bastante interessante e inovadora do universo do documentário, assim como o ramo mais híbrido da ficção. A minha ideia para o atelier é falar sobre a minha trajetória, a minha busca nos meus filmes ao longo dos anos.

Tendo em conta estes novos tempos, o que tem a dizer sobre as mudanças trazidas com o COVID-19? Os festivais? A cultura? A política? O mundo?

Antes de tudo, é uma pena não estar presente, porque seria marcante o facto de todos os meus filmes serem exibidos em retrospectivas e poder falar sobre cada um deles. Tal vai acontecer, mas infelizmente não será presencial.

Quanto à pandemia, penso que ela trará uma reflexão importante para a Humanidade, visto que viemos de um ritmo insustentável há muitos anos. Não conseguindo perceber os recados ou pregados desse ritmo predatório da Humanidade, e muito pelo contrário, a ascensão de regimes fascistas tem acelerado ainda mais o capitalismo selvagem. Penso que o vírus acaba por deixar cair a máscara do fascismo, e mostra o quanto era um impulso de morte, uma forma de desconsiderar a vida humana, como fica claro com o governo do Bolsonaro aqui no Brasil. Espero que acorde mais consciências sobre o Estado, do bem-estar, da saúde pública, um governo mais ligado às questões sociais.

Artisticamente, para todo o Mundo, mesmo com desafios imensos (toda a questão de desigualdade social que tanto aflora, as mortes – é muito duro lidar com isso), quem puder, ou simplesmente privilégio, ter este tempo como uma interiorização ou meditação e reflexão. Acho que é muito positivo, visto que ficamos muito virados para fora. Então, o vírus está a obrigar todo o mundo a parar e a refletir.

Sabendo que numa fase pré-pandemia o cinema brasileiro … como diria … encontrava-se de “mãos atadas” pelos constantes cortes e mudanças radicais no seu sistema de financiamento, produção e distribuição. Acha que o cinema brasileiro sobreviverá com este abalo, sabendo que depois disto, com alguma previsibilidade, surgirá uma recessão económica? Será o golpe misericordioso?

Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019)

Todos andam muito receosos, porque mesmo antes disto, já vínhamos de uma escalada de destruição do cinema nacional. São centenas de filmes que estão esperando o dinheiro que está bloqueado na ANCINE e muitos atos de censura no audiovisual brasileira. Está uma verdadeira destruição, e isto só vem agravar ainda mais esse cenário. Sim, preocupo-me com isso, e não tenho uma boa perspetiva. Mundialmente, a crise financeira vai ser calamitosa, e tenho receio do que isto nos vai levar. Ou uma ascensão ainda maior do fascismo ou não. Espero que uma onda de solidariedade seja motivado por essa pandemia, talvez o surgimento de governos mais presentes no bem social, mas por enquanto é difícil de prever o que vai acontecer.

Para terminar o assunto do COVID-19, gostaria que me falasse do projeto “Dystopia”.

É um projeto que surgiu desse desejo de retratar um momento histórico que nós estamos vivendo, e tendo essa quarentena ampliada, o que temos pedido às pessoas é registar as suas experiências na pandemia, quer no Brasil, quer no resto do Mundo. O nosso desejo é criar um mosaico de emoções dessa pandemia, ou pandemónio como quiserem chamar. Em que as desigualdades e as contradições da nossa sociedade fiquem escancaradas. Além disso, temos algum material filmado por nós mesmos, que tem sido bem fortes.

A Petra Costa vai realizar ou somente estará presente como produtora?

Ainda não sei. O projeto está em construção. Estamos produzindo e nem sequer sabemos como será o produto final.

Se pegarmos na sua obra, existe uma definição geral do seu cinema – intimidade. Desde a curta Olhos de Ressaca, passado pela belíssima confissão em “Elena” e até mesmo “A Democracia em Vertigem”, onde os avanços /recuos da política brasileira seguem em conformidade com a sua própria experiência, lidamos com essa mais íntima pessoalidade.

Muito antes de começar a fazer cinema, fiz um ensaio de uma peça, pelo qual sou encantada, que é o Hamlet, que joga na intimidade de Hamlet, da Ofélia, da Gertrudes. De muito estudar essa peça, adquire o desejo de fazer investigações que chegassem a esse nível de intimidade. Era justamente essa palavra: chegar nessa intimidade. E também, vem da minha experiência no teatro, um grupo chamado Teatro da Vertigem, inspirado na vanguarda norte-americana, que nessas minhas pesquisas teatrais o que tinha mais interesse era exatamente aquilo pelo qual tinha mais vergonha – da minha própria experiência. E quando conseguia acessar a isso, descobria material que era valioso em ser partilhado.

Também aproxima-se de outro conceito que tenho mergulhado muito que é o trauma. E o trauma, talvez seja as nossas experiências mais íntimas. As experiências, além das amorosas, são traumáticas. E o trauma é como um buraco negro que é contado através de uma cicatriz psicológica, onde se apaga todo o significado, a nossa capacidade de criar uma significância, e aí vem a tendência de repetir os atos traumáticos porque nunca tivemos a capacidade de elaborá-los. Os filmes, por um lado, também são tentativas de elaborar traumas; o suicídio de Elena [irmã de Petra Costa] e a sensação de estar a repetir os passos dela (que é próprio do trauma), e no “Olmo e a Gaivota” é o desafio de morrer para dar a vida ao outro (um trauma muito pouco explorado, as pessoas tentam desmistificar e apagar tudo o que é escuro do processo de gravidez, duma forma bem machista) e no "Democracia em Vertigem" é evidentemente o trauma político, o de ter a democracia como um dos poucos alicerces certos do qual me poderia posar na sociedade brasileira, ser rapidamente destruídos.

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Hector Babenco em "Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou" (Bárbara Paz, 2019)

No Visions du Réel, nem todos os filmes que englobam a sua retrospectiva são da sua autoria, uma delas é “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou”, de Bárbara Paz, que conta com a sua produção. Queria que me falasse sobre esse projeto de um dos “heróis esquecidos” do cinema brasileiro.

Sou amiga de longa data da Bárbara Paz e ela conversou comigo desde o começo sobre o seu desejo de fazer este filme. Ela era companheira do Babenco. Eu tinha uma grande admiração pelo seu trabalho assim como a “Elena”, o qual um dos seus grandes sonhos era ser atriz num dos seus filmes, visto que também era um dos poucos realizadores a trabalhar no Brasil nos anos 80. Ela até escreveu uma carta para ele, na altura que rodava “At Play in the Fields of the Lord”.

A Bárbara desejava elaborar um documentário mais afetivo, lírico e não ter a pressão de cometer uma biografia documental, então sugeri-lhe um filme – “As Praias de Agnès Varda” – e disse-lhe que ela teria que sentir-se livre para fazer aquilo que realmente sentia. No fundo, foi isso que o filme é, uma carta de amor, e como a poesia do cinema dele trouxe muito daquele cinema à vida. É muito emocionante, chorei juntamente com muitas na plateia durante a estreia do filme no Festival de Veneza, o qual acabou de vencer um prémio lá.

Durante a promoção de “Democracia em Vertigem” nos EUA, referiu inúmeras vezes que tinha material para uma espécie de sequela do filme.

Tinha sim, mas também teria que produzir muito mais, apesar que na política brasileira o argumentista continua excelente, com reviravoltas cada vez piores. Aliás, nós superamos o argumentista de “House of Cards”, que na altura nos disse impressionado que julgava que a sua ficção superasse a realidade, mas ao ver “Democracia Vertigem” apercebeu que a “vossa realidade supera a nossa ficção.”

Voltaria a trabalhar numa continuação dessa jornada na política brasileiro?

Não sei, por vezes sinto uma compulsão de fazer, mas ao mesmo tempo não desejo seguir o que já fiz. Procuro sempre novos desafios. Para dizer a verdade, não sei.

Voltando um pouco à temática da “Dystopia”. No Brasil, é irónica a guerra que existe entre o Presidente e vários governadores, anteriores apoiantes dos seus ideais, quanto ao confinamento e as formas de prevenção e combate da pandemia. Com isto gostaria de perguntar: é que com estes tempos de sobrevivência até mesmo os ideais são colocados em segundo plano?

É um pouco como eu falei, é um dos pontos positivos desta vinda do vírus, a máscara do fascismo vai caindo e também vai-se desintegrando. Mas é uma característica própria do fascismo e do nazismo, estão sempre se traindo a si mesmos. Acho que quando uma pessoa sai da barbárie acaba sempre por ser devorado pela própria barbárie. É como a SS [organização paramilitar ao serviço do partido nazi], que acaba por trair a SA [divisão de assalto do regime nazi] do e vice-versa, uma ala do Hitler começava a assassinar outra, é uma ideologia tão sem escrúpulos que se vai auto-destruindo. Mas acho que é muito positivo que tem tido uma dissidência e governadores que tem tido atitudes muito mais sensatas, aqui no Brasil, que estão a favor da quarentena e contra um Presidente que menospreza tudo isto como uma “gripezinha”, induzindo a Nação a um suicídio coletivo. Ele tem perdido cada vez mais apoios, entre eles.

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Elena (Petra Costa, 2012)

Toquei novamente na questão da política porque gostaria que me dissesse o que sente acerca dos ataques pelo qual a Petra Costa é alvo desde o lançamento de “Democracia em Vertigem”. Não sente raiva?

Não sei se diria raiva, porque grande parte disso são ataques orquestrados, são "robôs". Depois de terem me atacado, seguiram em frente contra a Patrícia Campos Mello, que é a jornalista que revelou o esquema de corrupção e fabricação de fake news que beneficiaram a campanha eleitoral de Bolsonaro. Isto não passa de uma “caça às bruxas”, vindo de um ímpeto machista que muito privilegia os erros do próprio governo, com apenas o intuito de atacar.

Assim que João Dória [governador de São Paulo] começou a posicionar-se a favor da quarentena e contra as indicações do Presidente, surgiu no Twitter, trends como #ForaDoria, #ImpeachmentDoria ou até mesmo #ImpeachmentMaia. São claramente ações orquestradas por robôs. Eles dominam essa tecnologia, por isso é uma tarefa das nossas instituições aprenderem rapidamente como os controlar, assim como as redes sociais como o Twitter e Facebook, a punir e controlar esses robots. Porque são um quinto poder que ameaça a nossa liberdade de expressão e influencia a nossa democracia. Não possuem qualquer tipo de regularização. Estão a colaborar com a reeleição dele e a destruir a nossa democracia. Ainda estamos muito atrasados em controlar esses exames tóxicos que estão extraviando as nossas redes. É uma tristeza, porque é um ataque a mim hoje, mas amanhã poderá ser a outro. É um ataque a todos.

Em Berlim deste ano, a produtora Sara Silveira (“Todos os Mortos”) fez um discurso emocionante na conferência de imprensa, proclamando o cinema como resistência. Acredita que o cinema brasileiro é a grande resistência da democracia brasileira?

É uma importante fonte de resistência desse avanço autoritário. Tem sido, ao longo das décadas, como nos últimos anos.

"Liberté" e que se abram os portões do Inferno!

Hugo Gomes, 01.05.20

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Perante o puritanismo da corte de Louis XVI, vários aristocratas, confiando os seus mais íntimos desejos no libertino e livre Duque de Walchen (Helmut Berger), refugiam-se num bosque cercado pela escuridão do ocultismo (enquanto no seu interior comemorava-se o devaneio do iluminismo). Aí, após cumpridos os preparativos, estes homens e mulheres de requinte, prestígio e glamour são automaticamente desprovidos das suas “peneiras”, convertidos em seres rastejantes que farejam as fantasias idealizadas. O objetivo é apenas um: antes da morte chegar de madrugada há que matar o desejo, sendo esse envolvido de prazer, dor e humilhação.

De Albert Serra, o cinema é algo inclassificável e despido de qualquer rigor na sua conceção. Desde a sua segunda obra – “Honor de cavalleria” (2006) – o catalão tem inventado, experimentado e tentando com isso descobrir a sua noção de cinema. É uma descoberta sentida ao longo de 15 trabalhos (sejam longas, curtas ou ensaios performativos), que revê na mortalidade das suas personagens, o tremendo travessão para as suas próprias narrativas.

Com a “La mort de Louis XIV”, o antepassado do monarca “invisível” de “Liberté”, Serra confiou num dito ator profissional, a repugna vencida que tem proclamado no seu percurso enquanto cineasta, Jean-Pierre Léaud, da mesma forma que os decadentes elementos da nobreza e os seus serventes cegamente são guiados pela “sabedoria” de Walchen (uma distorção da imagem e filosofia do Marquês de Sade). Foi nesse exato filme que o ator apoderou-se da forma tosca com que Serra se dirige aos seus recontos, e nesse aparato, a morte citada é revelada na queda do enorme “imperador” e do seu legado. Aí, o realizador reinventou-se, mas foi sol de pouca dura, contextualizado pelo decorrer das experiências estampadas no ecrã de “Liberté”.

Há aqui um regresso à sua normalidade improvisada e, como tal, fora Léaud, o ego de Serra paira sobre o mato cerrado, sendo o espectador novamente embatido na experiência como fruto do acaso ao invés de reflexão. O que “Liberté” destaca frente à fase ante-Louis XIV é a sua subliminar linha-guia e o dito experimento que vai ao encontro das fantasias segregadas por Serra. A perversão contínua pontuada por um autêntico “freak show” de masoquistas, sodomia e barbaras resoluções para sedes secretas no foro sexual; o eros e thanatos (amor/vida e morte) que bailam inseparavelmente no breu da noite. A experiência de Serra é um objeto acidental que refresca o sexo como mero estatuto social, sobretudo de poder, assim como Pasolini o entendeu no mais radical dos seus filmes – “Salò o le 120 giornate di Sodoma”.

Portanto, em “Liberté” assistimos com repugna e em modo voyeurista estas excentricidades encenadas, por vezes intermináveis, como parte de uma performance coletiva incrustada e documentada em digital. Os atores parecem deambular sem orientação alguma por parte de Serra (talvez seja essa a libertação requerida de todo este processo), determinado aqui a cometer mais um mimo ao seu imbatível ego. 

Com isto prova que é um piores e simultaneamente melhores cineastas do nosso tempo (eros e thanatos num só, como se consolida a sua obra); um homem refém das suas tentações e fantasias hedonistas que alimentam unicamente o seu paladar, deixando de fora a degustação do espectador.

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