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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

2020: uma odisseia na crítica de cinema

Hugo Gomes, 28.03.20

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 Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Uma “nova normalidade” que poderá ditar uma futura revalorização do cinema como experiência de sala, mas por enquanto é o trabalho do crítico de cinema a derradeira prova de fogo para estes dias negros. Há uns dias a comunidade da crítica de cinema sofria com um abalo sísmico: o fim anunciado da Cahiers du Cinèma, a revista francesa encarada, mesmo nos dias de hoje, como a sagrada instituição deste ramo profissional. Atualmente, a profissão, à semelhança de praticamente todas as outras, sofre com a vinda de uma nova realidade, a de uma declarada pandemia do Covid-19, que desencadeou uma série de alterações sociais, económicas, culturais, etc.

A quarentena forçada levou ao cancelamento de diversos eventos cinematográficos, pois nenhum é imune à ameaça patológica. A própria ida à sala do cinema tornou-se restrita, para não dizer nula,  e nem mencionamos o trauma que virá a seguir e que a China – país onde já reabriram centenas de salas – está já a revelar. Na verdade, o cinema isolou-se agora em múltiplas plataformas de streaming, no VOD, Home Video ou simplesmente na incerteza. O trabalho do crítico de cinema tem novos desafios e a questão que se coloca é: como sobreviver perante estes novos (e forçados) hábitos de ver e escrever sobre cinema sem diluir-se na esfera da opinião pública, onde se competirá com milhares de vozes que habitam as redes sociais e outras plataformas de partilha? Será que a profissão vai-se desintegrar perante a crise financeira anunciada e suscitada como efeito secundário desta epidemia?

EUA, Reino Unido e França, três países onde a crítica de cinema ainda goza do estatuto presencial na cultura popular e intelectual, debatem-se nas “sombras” pela futura existência deste modo de pensar em cinema, e como se enquadrará no mundo pós-2020. Em Portugal, mesmo que o mercado e público seja menor que nos países referidos, a preocupação não é menor, até porque os críticos de cinema profissionais são “espécies em vias de extinção”, que tentam ainda encontrar novos meios de comunicação para com os seus seguidores. Alguns deles usufruem mesmo da imagem de “guru”, figuras de culto de uma cinefilia em perpétua mudança. Como encaram os nossos profissionais neste novo cenário? Como irá evoluir a crítica de cinema, ou como muitos vão subsistir perante este hiato? Será esta a derradeira ameaça para a definição tradicional de crítica de cinema?

Nem todas as perspetivas são catastróficas, como aponta Vasco Câmara, um dos três críticos em atividade no jornal Público e editor do suplemento Ípsilon. O mesmo partilhou uma feliz experiência desse “enclausuramento“, dando o exemplo do número saído na passada sexta-feira (20/03), “todo ele feito em isolamento” e que mesmo assim resultou, segundo as suas palavras, “nas melhores coisas” que o jornal já fez. Para Câmara, estamos a viver “uma nova normalidade”, conceito que é partilhado por outros colegas.

Jorge Leitão Ramos, um dos críticos do semanário Expresso, desmonta a preocupação alarmista que muitos vêem nesta realidade ainda por digerir: “até agora, a grande diferença profissional é não escrever sobre filmes em sala, mas sobre ‘coisas’ na Internet.“. Já João Lopes, crítico veterano do Diário de Notícias, para além de colaborar na rubrica Cartaz Cultural da SIC Notícias, sublinha que “não há volta a dar: todas as atividades humanas, das mais essenciais (a defesa da saúde pública) às de reflexão e pensamento (em que, melhor ou pior, se inclui a crítica de cinema), estão a ser desafiadas nos seus pressupostos e fronteiras.“. O mesmo salienta, sem uma visão completamente catastrófica sobre o seu ramo profissional, que “não deixámos de ser espectadores e a dimensão drástica daquilo que estamos a viver tem, para muitos de nós, o efeito paradoxal de reforçar a nossa atividade enquanto espectadores. Nesta perspetiva, o labor específico do crítico de cinema não muda: ‘Lawrence of the Arabia’ não foi feito para ser visto na estreiteza do nosso ecrã de computador (muito menos de telemóvel), mas resiste a todas as dimensões de ecrã e contextos de visão…

Já para Inês Lourenço, também ela colaboradora do Diário de Notícias, para além de ser a voz do programa de rádio A Grande Ilusão, é difícil neste momento perspetivar, a longo prazo, o efeito desta situação no seu trabalho como crítica e jornalista. “Naturalmente, a cessação abrupta das estreias em sala é algo que, desde logo, se impõe como uma mudança no quotidiano e provoca uma sensação de estranheza e apreensão. Mas depois há as alternativas do streaming e da televisão (entre outras), que ganham terreno nisto que se espera ser uma considerável fatia de tempo até que tudo volta à “normalidade“. Talvez com o correr desse tempo a angústia aumente, mas por agora tenho algum otimismo de que quando se puder regressar às salas de cinema haverá uma revalorização da experiência – um bocado aquela ideia de que é quando estamos privados de algo que aprendemos a dar valor. Nestes dias, o mais importante é tentar ser criativo para contornar a limitação dos “conteúdos” habituais.

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Lawrence of Arabia (David Lean, 1962)

Essa revalorização não é somente uma ideia de Inês, pois o seu colega João Lopes referiu também esse regresso da sala de cinema como um marco de superação da era de confinamento e sequencialmente a sua ribalta: “O “lugar” de consumo dos filmes envolve uma questão adensada ao longo dos últimos anos: creio que é fundamental continuar a defender a especificidade do cinema como um acontecimento da sala escura, para a sala escura — um acontecimento social, enfim. Ao mesmo tempo, seria um ‘lirismo’ sem fundamento negar, ou renegar, o modo como as alternativas do streaming criaram uma nova paisagem de consumo, não só recheada de oportunidades como também, convém não esquecê-lo, quase sempre menos dispendiosa do que a visão dos filmes em sala. A situação de pandemia agravou esta clivagem, transformando-nos a todos em espectadores online, ao mesmo tempo que, mesmo por perversa ironia, nos faz (re)valorizar a experiência insubstituível da sala. Já com saudade.

Para Rui Tendinha, também crítico do Diário de Notícias, para além dos seus trabalhos na televisão sob o formato Cinetendinha, esta “nova normalidade” defendida por alguns dos seus colegas são “dias de apocalipse“. O crítico expressou as suas preocupações, confessando que estes tempos poderão prejudicar o seu trabalho, mesmo que “felizmente”, ainda haja cinema online. “Mas não é o mesmo”, remata, acrescentando: “Sou crítico de cinema e não de Home Cinema. Acredito muito no cinema em grande ecrã. Também estou a ser prejudicado como programador – 3 dos festivais que trabalho foram adiados… Perdi também entrevistas que tinha marcado no estrangeiro e uma série de outras possibilidades. O melhor de tudo isto é que estamos todos a levar um curso crash para sabermos viver com menos. O streaming vai crescer e poderá deixar marcas de hábito. Quem descobre um ‘Uncut Gems’ na Netflix talvez comece a querer perder o hábito de pagar um bilhete de cinema. Preocupa-me muito a situação dos cinemas mais independentes. A pirataria vai voltar a ter dias mais felizes e isso dos festivais online também vai proliferar. Se me perguntam se isso é melhor do que não haver, sou o primeiro a dizer que não, mas temo os efeitos futuros. A ressaca de tudo isto vai fazer com que haja depois um período longo em que muitos não vão querer estar numa sala escura cheia a ver cinema. Será psicossomático. O cinema vai mudar, a vida de um crítico de cinema também.“ Não foi apenas Rui Tendinha a expressar uma visão negativa em todo este cenário: um crítico que preferiu não ser identificado, mencionou que como “não há estreias, as páginas de cultura diminuíram ainda mais”. “Não publico, logo não ganho“, concluiu.

Terminando esta ronda pela crítica profissional, João Lopes terminou a nossa conversa com ambiguidade, mas sobretudo crença na conservação do papel do crítico no futuro pós-coronavírus: “o crítico de cinema, seja qual for o seu talento, não é um profeta, muito menos um adivinho. Quando se pergunta a um crítico ‘…quem vai ganhar os Oscars’, convém começar por responder o mais rudimentar: ‘Não sei.’ Ou seja: ninguém consegue antecipar o que está para vir, desde a economia global até ao universo tão particular do cinema. Digamos apenas o óbvio: nada será como dantes. O que quer dizer que o labor específico do crítico — e, em particular, do crítico ligado às formas clássicas de imprensa — vai enfrentar dúvidas e temas para os quais, em boa verdade, não estava preparado. De um modo ou de outro, será preciso continuar a defender/pensar o cinema, não como um mero “gadget” de usar e deitar fora, antes como uma forma de expressão artística & industrial com mais de um século de história (com coronavírus ou sem coronavírus, comemorar-se-ão este ano 125 anos da primeira projeção pública de filmes). As incertezas desse futuro obrigam-nos a sermos suficientemente ágeis e inteligentes na preservação da memória cinéfila.

Stuart Gordon, um perverso que nos (re)animou ...

Hugo Gomes, 25.03.20

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Em matéria de canonização do género de terror, Stuart Gordon sempre se sentiu à margem da história desse mesmo universo. Alicerçado a um cinema 80’ de valor sintético e de somente jubilo, à imagem de tantos outros congéneres, nunca foi devidamente ‘resgatado’, tendo caindo na “graça” das produções Z ou das promessas de (re)ascensão que nunca foram cumpridas.

Stuart Gordon era mais que isso! Possivelmente hoje é difícil desassociá-lo do imaginário de H.P. Lovecraft, assim como os escritos adquiriram uma nova dimensão perante as suas adaptações. Deste lado, é com um sabor agridoce que recordo a astúcia, e por vezes delírio, de Re-Animator ou do perverso (muito, aliás) de From Beyond, e acima de tudo, o humor com que apresentava cada uma destas sessões durante o especial promovido pelo MOTELX.

Muito obrigado, Gordon.

Bem-vindos ao "buffet"!

Hugo Gomes, 24.03.20

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A grande sensação da Netflix, “El hoyo” ("A Plataforma") deseja ser um filme-alegórico que combina os elementos do cerco vistos e revistos desde “Cube” (Vincenzo Natali, 1997) e os derivativos que se seguiram e prolongaram até aos nossos dias.

O que adensa o mistério conceptual desta longa-metragem de estreia de Galder Gaztelu-Urrutia, vencedora do Festival do Cinema Fantástico de Sitges, é uma previsível tese da instituída pirâmide social. Aqui, numa espécie de “não lugar”, encontramos uma coluna edificante, dividida em mais de 200 pisos, com pequenas celas de dois residentes (prisioneiros ou voluntários) que, todos os dias, se alimentam através de um "buffet" cuidadosamente preparado numa plataforma que vai de cima para baixo. Por outras palavras, os dos pisos de cima empanturram, os do meio colhem as sobras e os de baixo … bem, tentam manter-se vivos. E este é um sistema que constantemente procura a sua sustentabilidade, nem que para isso tenha que alterar mês a mês a posição dos seus "hóspedes".

Inspirado na alegoria das Colheres Longas, onde o saciar da fome se consegue graças à entreajuda, "A Plataforma" é essa tentativa de descodificar o armadilhado processo de distribuição, que se torna o "conflito" de uma obra atmosférica que se mantém devidamente presa aos lugares-comuns deste tipo de exercícios cinematográficos. Para tornar as “coisas” menos interessantes, o clímax é povoado do mesmo material de muitos desses filmes, inclusive num final em aberto, críptico e demasiado dependente da imaginação do espectador.

Dito isto, "A Plataforma" pode não ser "revolucionário", mas tem ideias políticas, sociais e éticas “deliciosas” e provocadoras. Como iguaria, não é coisa pouca...

Voltaremos a ver Mektoub?

Hugo Gomes, 22.03.20

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Tudo apontava que “Mektoub”, a planeada trilogia do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, tornar-se-ia à sua “Capela Sistina”, a sua consagração enquanto autor. Ao invés, transformou-se numa “obra de Santa Engrácia”.

Mektoub’ [“destino” em árabe] seria uma distorção autobiográfica (com inspiração no romance de François Bégaudeau) com os seus cheiros proustianos à boleia da brisa da sua primeira obra – “La Faute à Voltaire” (2000) – o qual se centrava num jovem tunisino que, à sua maneira, fazia vida “clandestina” (mas romantizada) em Paris.

Em “Mektoub Mon Amour: Canto Uno”, a ação movimentava-se perante os corpos joviais e fervorosos em desejo crescente numa espécie de bucolismo balear e um hedonismo inconsequente, cuja figura epicentral é a de Amin (Shaïn Boumedine), em plena descoberta sexual como desculpa para se colocar na margem da lasciva iniciação e expedição ao encontro do seu “eu” intelectual. Pelo meio está a sua Ofélia, na verdade Ophélie (Ophélie Bau), o seu Santo Graal sentimental.

Porém, a atualidade não tem sido “simpática” para o realizador que certo dia venceu uma Palma de Ouro (e que a vendeu para financiar este seu “monumento”), o que tornou mais difícil a conclusão deste mesmo percurso jovial. Um primeiro canto recebido com apupos e reprovações durante a sua estreia no Festival de Veneza, o olhar mimetizado de um jovem na reinvenção do seu centro e carnalidade não foi de todo encarado com agrado pelas iniciativas #metoo e os movimentos anti-male gaze [o chamado “olhar masculino”], assim como pela auto-censura presente em cada um de nós.

Voyeurismo, fetichismo, misoginia, muitas foram as pejorativas etiquetas para classificar esse “coming of age” de 3 horas de duração. Após isso, a resistência para a chegada de um capítulo intermédio, um segundo canto, que caiu como “bomba” na Competição do Festival de Cannes, prenunciando um cenário infeliz para a derradeira conclusão deste épico.

Amin chega das suas férias em Paris, o “La Faute à Voltaire” evocativo, apresentando-se de forma cerimonial à sua trupe: a comitiva que nos acompanhará durante os próximos tempos (convém afirmar que o tempo tem aqui uma pesada aura). Um convívio sob a areia branca da praia e o sol abrasador, uma introdução (ou melhor, uma recapitulação) destas personagens do verão passado. O que acontece de seguida nessa tarde de reencontros é uma rotina tribal, uma simples ida a uma discoteca. “A noite é uma criança“, ninguém menciona, mas bem poderia evocar.

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O que se intromete neste “Intermezzo” é a prova viva de Kechiche em provocar, nem que para isso faça da sua bíblia o Tempo, essa palavra-chave do cinema arquitetado por Chantal Akerman ou por Tarkovski [“Esculpindo o Tempo“], essa demanda em reproduzir a manifestação temporal sensorial. Ao espectador, o sentimento é tão próximo de uma direta, uma noite em branco.

A música é incansável e repetitiva, e por cada Abba ou shot somos forçados a mais um teste de twerk ou de jovens dançantes, loucos por esquecer o exterior, abraçando o momento na esperança de que este se torne eterno. Mas esta representação do delírio boémio e auto-destruidor tem as suas limitações (sempre acompanhado por uma câmara tão ou mais “ébria” que os próprios jovens). O ensaio rompe pelas suas insensibilidades. Cansaço pode muito ser a vivência perante esta experiência, mas fora essas “sequelas” infligidas nada de mais se absorve. Kechiche auto-mutilou-se no preciso momento em que se deixa vencer pelo Tempo, sem saber o que fazer com ele e sucessivamente ser esmagado pelo mesmo.

Amin é novamente uma figura passiva à margem, mas de longa dedicação à experiência dos outros. Enquanto isso, a “musa” Ophélie não é mais uma imagem de paixonetas distantes que nos remete àquele verão de 1994, mas sim, uma figura despida do seu encanto, vulgarizada pelas provocatórias decisões de Kechiche. E não falamos da tão infame cena de cunnilingus de 12 minutos (segundo as cronometragens durante a sua estreia no Festival de Cannes), e sim da posição pelo qual é colocada nas relações efémeras desta ordinária noite de copos.

A faca de dois gumes está aí mesmo, em diluir Ophélie a este ambiente e a “camuflar” com todos os outros seres ambulantes sem determinação alguma no seu “mektoub”. O selo romantizado estampado na sua personagem descola, o mesmo que o desejo de Amin. Em certa parte, Kechiche alerta-nos para  a força ilusória das memórias e dos sentimentos anexados. Mas por outro lado, onde está o romantismo? Aquilo que separa o cinema da nossa realidade?

Intermezzo” é essa perda de inocência, e é o maior risco de um dos realizadores mais arriscados da atualidade. Porque é na sua provocação que se poderá ditar o fim da sua consagração. Sim, a dita trilogia. Em tempos de sensibilidades e de consciências, Kechiche não é bem vindo, o seu tempo está expirado e nem mesmo as suas “fracassadas” experiências conseguem ser vistas sob as luzes do saudosismo emocional. O dito interlúdio peca pela sua real natureza – a da transição.

Falando com Cédric Le Gallo e Maxime Govare, realizadores de "Les Crevettes Pailletées"

Hugo Gomes, 18.03.20

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Num espaço de um ano, França viu duas obras de sucesso sob a temática de polo aquático a estrear nas suas salas. A primeira, com direito a estreia no Festival de Cannes, “Le Grand Bain”, com direção do galã Gilles Lelouch, seguia na aventura de um grupo de cinquentões numa comédia pela desconstrução da masculinidade, enquanto este “Os Camarões Brilhantes” (Les crevettes pailletées / The Shiny Shrimps), instalava-se como um hino à alegria homossexual, remetendo a uma equipa em competição nos chamados Gay Games. Tendo chegado às salas portuguesas no início de novembro, depois de ter integrado a Festa do Cinema Francês, “Os Camarões Brilhantes” chega ao formato digital em VOD.

O Cinematograficamente Falando ... teve o prazer de conversar com os dois autores do projeto (Cédric Le Gallo e Maxime Govare), que já nos prometeram estar encarregues de uma sequela deste brilhante grupo do desporto aquático.

Devo começar pela questão mais comum, de onde surgiu a ideia para este filme?

Cédric Le Gallo: Bem, foi inspirado numa verdadeira equipa de polo aquático, aliás, a minha equipa [risos]. Eu jogo com eles há mais de 8 anos e participamos nos Gay Games, em Paris. Sempre ambicionei fazer ficção, quanto mais uma longa-metragem de ficção, sendo que já tinha concretizado algumas curtas e até uma série televisiva, e por isso, refleti e achei que esta minha história resultaria em boa ficção. Até porque todas estas personagens são coloridas e tem algo para dizer.

O meu produtor introduziu-me a Maxime que me ajudou a concretizar um guião, eu nunca tinha escrito um na minha vida. Trabalhamos juntos e foi aí que tudo começou.

Maxime Govare: Tínhamos uma equipa fantástica, bem verdadeira que trouxe a mim algo que nunca tinha visto antes na minha carreira no cinema. Fiquei automaticamente seduzido por ter um projeto que falasse de desporto no geral e que possuísse personagens aparentemente “leves”, mas todas elas com historiais “pesados”. Eram personagens fortes e de bom coração.

Uma das dúvidas que sempre tenho em relação à representação de personagens LGBT no cinema, muito mais no género da comédia, é como fazem para evitar os estereótipos?

CLG: Nós brincamos com eles. Eu diria mais que são arquétipos do que estereótipos. Neste caso, são arquétipos, porque temos um rol tão diferente de personagens, desde o pai até ao solteiro, passando pelo velho ativista até à mulher transgénero. No fim de contas, estas personagens são aquilo que experienciei na minha jornada com esta equipa. Neste tipo de desporto temos jovens de 20 anos até adultos de 60, são toda uma variedade distinta de gays.

E porque o arquétipo existe, o nosso trabalho é demonstrar que estas personagens vão mais longe que estes arquétipos.

MG: Existe verdade nos arquétipos, e talvez seja essa a razão para eles existirem, porque a sua existência advém da experiência coletiva e isso transgride. Ao trabalhar com este coletivo consultei diversas vezes o Cedric se podia usar ou não isso, e quando ele respondia “eu tenho alguém assim na minha equipa”. Tudo bem, é um arquétipo. Obviamente, que tivemos casos em que o Cedric dizia “não é de todo verdade”, e colocávamos de lado essas mesmas ideias.

Não tivemos problemas quanto a isso, porque “Os Camarões Brilhantes” não é pura ficção, é baseado numa equipa que existe. Se as pessoas pensarem que isto tudo é um amontoado de estereótipos ou “demais”, então o problema é deles. Nós temos uma base bastante sólida, que é uma verdadeira equipa.

 

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CLG: Por exemplo, os fatos de banhos foram “desenhados” por um colega meu. Aqueles fatos de banhos representam essa realidade. No caso de as pessoas acharem tudo isto exagerado ou demasiado delirante, bem, nós não somos os culpados, O preconceito é.

Tendo em conta a atualidade político-social que se vive, principalmente esta ascendente ideologia conservadora que ressurge em muitos países de primeiro mundo, é cada vez mais urgente termos obras desta natureza? Que abordam este tipo de assuntos?

MG: Penso que chegou um momento em que é urgente abordar tais tópicos. A primeira discussão que tivemos foi exatamente que género de filme pretendíamos fazer, e tendo em conta que tais temas já povoam com exaustão o drama e o documentário, por isso decidimos endereçar numa comédia, porque através do risos iríamos reunir um maior grupo de pessoas. A comunidade LGBT não precisava de ser “convencida”, mas sim o resto, e tal deu enfoque à ideia do humor, a comédia continua a ser uma linguagem universal de forte atração.

CLG: Enquanto adolescente, ou até mesmo como jovem adulto, sofri muito porque não tinha qualquer ficção ou série televisiva que demonstrasse que a vida homossexual poderia ser feliz, tal como o Maxime disse, tais tópicos residiam apenas no drama pesado e eu deseja ver um prisma mais alegre daquele estilo de vida. Eu era fã dos “Friends”, por exemplo, mas nenhuma daquelas personagens era gay. Exceto, talvez, Chandler, que julgas de início que é, mas acaba por não ser. [risos]

Ajudar-me-ia imenso se tivesse ao meu dispor essa ficção positiva sobre a vida gay, eu vivo uma vida feliz ao lado dos meus amigos, e este mundo é na maior parte das vezes, colorido, divertido e harmonioso. Se existisse essas propostas, possivelmente ter-me-ia assumido aos meus pais bem mais cedo do que realmente fiz. Mas voltando à tua pergunta, é um tema urgente e necessário de abordar, mas Camarões’ é um feel-good movie, não tínhamos um destes na França há mais de 25 anos. E mais importante que isso, é um filme feito para divertir.

O vosso filme estreou no Festival de Cinema dos Alpes, dedicado à comédia francesa, e desde aí tem sofrido com comparações com “Le Grand Bain” (“Ou Nadas ou Afundas”), êxito do ano retrasado.

MG: Na verdade, era suposto rodarmos o filme na mesma altura que La Grand Bain, possivelmente dois meses antes, mas chegaram a nós e disseram algo deste género “pedimos desculpa, um filme com grandes estrelas será produzido”. Por isso, aguardamos um ano e arrancamos assim as nossas rodagens. Quando estreamos o filme, ouvimos essas comparações, só que estas vinham de pessoas que ainda não tinham visto o nosso filme, depois do visionamento nos Alpes, mas ninguém falou sobre isso.

CLG: Não vi muito disso, até porque a única semelhança estava no desporto. “Os Camarões Brilhantes”, por sua vez, é baseado numa experiência real, e até bem poderia ser adaptada para outra modalidade, por exemplo, futebol. Até mesmo as personagens são bem distintas, em “Le Grand Bain” são um bando de homens cinquentões depressivos que tentam encontrar razões de existência no polo aquático.

MG: O que estamos a tentar dizer é que fora do desporto, aliás, serem ambos filmes de desporto, são duas obras completamente diferentes.

CLG: Sim, para dizer a verdade, filmes de desporto não eram produzidos há já algum tempo, e num espaço de um ano surgem dois. O que me parece ser bom.



Basta ter fé em Hollywood!

Hugo Gomes, 18.03.20

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A pandemia espetáculo à moda dos anos 90! Livremente inspirado na Ébola, um vírus mortal de proporções genocidas chega aos EUA hospedado num macaco, resultando numa iminente catástrofe.

Em dias de contingências e quarentenas, o medo foi encontrado sob a forma do retrato de Steven Soderbergh - Contágio (Contagion, 2011) – uma evocação ficcional do H1N1 (Gripe A) que contraiu contornos assustadoramente realistas, sendo o antídoto Outbreak: Fora de Controlo (Wolfgang Peterson, 1995), uma fantasia de heróis da pátria com perseguições e bombardeios à mistura para “embelezar” a contenção da epidemia-vilã. Há que ser otimista e acreditar que por vezes é nas fórmulas patriotas de Hollywood que deparamos com essas forças de vontade.

Prevenção acima de tudo. Tomem cuidado e aproveitem a “quarentena” para verem bons filme.

'Arnices' em 'Vindices'

Hugo Gomes, 12.03.20

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Cada geração tem o Arnold Schwarzenegger que merece!

Pois bem, um projeto como este “Bloodshot” (baseado numa banda-desenhada da Valiant Comics) seria, há uns valentes anos, mais um nas narrativas aventurosas do ator/culturista de origem austríaca. Hoje, não é mais que um pretexto para o domínio do império de Vin Diesel e do CGI autómata. O protagonista que muito dinheiro rende com a saga “Fast and Furious” parece ter tido como missão transformar um projeto com algumas ideias dignas dos confins imaginativos da ficção científica numa ode ao seu ego. O resultado é que algo que tinha potencial transformou-se numa bomba calórica de testosterona ao serviço da canastrice da estrela.

Mas nem sempre foi assim. Em tempos, mais concretamente em 2006, Vin Diesel tentou distanciar-se da imagem de “action man” bronco e monossílabo conquistada com alguns ensaios de ação bem-sucedidos e arriscou alterar por completo o físico e trabalhar com um dos melhores realizadores da história de Hollywood Sydney Lumet (saudades!) em “Find Me Guilty". O Óscar esteve na mira, mas o filme foi um fracasso de bilheteira. Os "fãs" não responderam ao chamamento e condenaram a Vin Diesel a uma corrente homogénea de projetos, todos em celebração da imagem que vendera em terras "hollywoodeanas".

De vez em quando, ele expressa essa vontade de romper a carreira-carrasco. Basta ver os primeiros momentos de “The Last Witch Hunter”, um dos fracassos fora do circuito “Fast & Furious”, em que é evidente o entusiasmo de trabalhar com alguém de pedigree de Michael Caine. Como uma escola de atuação ambulante, Vin Diesel quis aprender, mas prevalece este modelo de ação de peito aberto. Em “Bloodshot”, o panorama não é assim tão diferente, pois ao lado de atores como Toby Kebbell ou Guy Pearce, a estrela sai a perder. Mesmo comparado com os seus “colegas” automatizados. E a questão não é a falta de talento ou de esforço de Vin Diesel, é a necessidade de entregar aquilo que querem os fãs, um Arnold pitoresco que responda às necessidades desta nova geração. O último dos “homens viris” do cinema. 

Só que é injusta a comparação com a estrela celebrizada da saga "Terminator", “Total Recall” e “Predator” (três exemplos plenos no campo da ficção científica cinematográfica) porque "Arnie" sempre se mostrou disponível e bastante apto para as ridicularizações da sua própria figura. Já Vin Diesel passeia em "Bloodshot", na forma como age e é filmado, a auto-consagração do seu modelo habitual de "action man". Fora isso, eis um filme de ação que corresponde às epidemias tecnológicas destes tempos. O clímax é um autêntico videojogo gráfico (curiosamente, o realizador David Wilson fez parte da concepção de muitos videojogos, como “Mass Effect 2” ou “Halo Wars”) e a ação destaca-se pela falta de classe.

Numa indústria que vibra com as sequências "one-take" e as proezas físicas de um “John Wick”, ainda existem filmes com cortes sucessivos de montagem, "bullet time" mal empregue e rochedos em forma de bonecos de ação. E como "Bloodshot" ainda tem o apetite de abrir uma futura saga, esta overdose de Vin Diesel pode não ficar por aqui...

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