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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"A Metamorfose dos Pássaros": a primavera silenciosa da nossa saudade

Hugo Gomes, 29.02.20

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A particularidade de “A Metamorfose dos Pássaros” encontra-se na sua incessante busca pela memória, um processo que executa através dos objetos afetivos que se indiciam como atalhos para essas réplicas emocionais. Da mesma forma que existe genuinidade e ternura neste gesto proustiano de perpetuar o passado (mais do que experienciar o presente), há também uma farsa cometida que instala-se como uma readaptação ao seu cerco cinematográfico. As recordações, essas, são verídicas, mas a realizadora Catarina Vasconcelos recorre à encenação, aos pseudónimos, aos embelezamentos que a própria revela para tornar todo esta genealogia de alma numa belíssima galeria de quadros pintados, muitos deles remetendo à natureza morta, pelo qual delineia a fronteira deste microcosmo.

Começamos então no primeiro ato, no isolamento que atormenta mentes que navegam por mares de saudade e de exaustão emocional, aqui, o “ancião” Henrique (avô de Catarina) assume-se como o voluntário dessa condição de eremita, falando e mencionando fantasmas, o amor que nunca esqueceu e que igualmente nunca verdadeiramente possuiu. Na sua sala de estar, o náufrago memorial pendura um quadro, diríamos mais uma cópia, um Joaquín Sorolla (“Madre”, 1895), como o próprio informa, remetendo automaticamente a essa ausência afetiva – Beatriz, ou como gostava de ser chamada Triz – a “assombração” que nos levará para o passado das coisas, para à ante-existência da autora.

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"Madre", Joaquín Sorolla (1895)

“A Metamorfose dos Pássaros” é um filme verdadeiramente pessoal e falsamente desencadeado na sua estética, é íntimo como igualmente exibicionista e incômodo como confortável. Catarina Vasconcelos demonstra constantemente a sua posição de “contadora de histórias”, seja pela narração omnipresente e coletiva, seja pelo visual que vai acompanhando a “ditadura das palavras”, prevalecendo a sua estética quase eclética e sobretudo trabalhada para original metáforas visuais (“observamos o mundo como fosse um quadro“).

Esta sua primeira longa-metragem (Vasconcelos concretizou um curta em 2014, “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso”) paraleliza com “Elena, da brasileira Petra Costa (filme que não canso de referenciar, não vá cair no esquecimento ou no desprezo dos “privilegiados”), devido à sua recriação de revivescências e sentimentos vividos, pela carta pessoal aberta que acolhe o espectador e o familiariza como “seu”. Existe sim, um fabricado poema, proclamado com todas as suas estrofes. Em “A Metamorfose dos Pássaros” é a beleza desse encontro que suscitará a mãe de todas as alegorias, aliás, é essa mesma, Mãe, a palavra-chave desta jornada de diário escancarado e subitamente “violado” por curiosos.

O mistério nascia nos detalhes“, ouve-se a certo ponto, conferindo nesses pormenores a riqueza escondida pelas “fachadas” de beleza nos planos confinados à confidência de Vasconcelos. “A Metamorfose dos Pássaros”, ao contrário do seu título, não contrai nenhuma transformação no seu processo de criação; é acima de tudo um filme que merece encanto mas de um universo demasiado fechado, e talvez por isso, um adquirido e requerido tom privado.

Fenómenos ... da repetição

Hugo Gomes, 26.02.20

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A maneira como ele se repete é absurda”. Não sou eu que o afirmo, quem proclama é umas das personagens, numa espécie de desdém à “popularidade” de um autor, neste “The Woman who Ran” (“A Mulher que Foge”, inexplicável vencedor de um Prémio de Melhor Realização no último Festival de Berlim). Aproprio-me das suas palavras e as posiciono de frente a esta 24ª longa-metragem do sul-coreano e “falso-marginal” Hong Sang-soo, de forma a não empregar sentimentos muitos profundos do meu “ser”. Começo a desconfiar deste “fenómeno”, há aqui um radicalismo que já não se aguenta.

Se não passa na “rádio Tuk-Tuk” é porque nunca existiu

Hugo Gomes, 24.02.20

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“Nós e os espanhóis é que inventamos a globalização, e hoje é a globalização que nos lixa”

Afirma o condutor de tuk-tuk (João Patrício) num dos seus enésimos trilhos turísticos por uma Lisboa, que segundo o próprio, vive na sombra daquilo que fora e que se debate quanto à sua identidade. Paulo Abreu (“I Don’t Belong Here”) concretiza em “Alis Ubbo” um mapa sobre as diferentes metamorfoses da capital portuguesa, desde a sua germinação nas margens do rio “Tagus” [Tejo] sob a assinatura fenícia (o título do filme advém da primeira e oficial designação) até à idealização de um quinto império, uma utopia harmoniosa apenas centrada no imaginário de Fernando Pessoa.

A curiosidade neste documento que utiliza e reutiliza as imagens e os sons num prolongado método de mixagem, encontra-se na cadência do seu registo fílmico que compõe uma atribulada e invulgar jornada pela história da cidade, sempre pontuando a sua ironia. É um filme turístico, mas não sob o ponto vista do turista, e sim de quem acarreta os “estrangeiros” de passagem na redescoberta de uma Lisboa vendida à ilusão (será este o dito quinto império?).

O nevoeiro abate-se logo nos primeiros minutos, isso depois do letreiro reafirmar uma das perdas do património citadino, destruído por via desse processo de exposição à estátua de D. Sebastião, o “messias” perdido na bruma marroquina. E após a dissipação, um cruzeiro atraca no porto (Ventura é o que se lê na sua proa, hoje tido como uma coincidência política de mau gosto) “despachando” de seguida os “cidadãos de outros mundos” que vieram “contaminar” Lisboa numa caótica Torre de Babel.

São as diferentes línguas que se amontoam e dificilmente é mesmo ouvir o português perante essa barafunda linguística, somente palavras soltas, aquelas que o condutor de tuk-tuk profere para explicar “à portuguesa” o percurso histórico da cidade, ou da “Rádio Tuk-Tuk” que se ouve lés-a-lés e que contextualiza todo este cenário.

Não se trata de lições de histórias aquelas que Paulo Abreu deseja difundir nesta sua obra, e sim um registo de uma cidade em movimento, instalado como um oásis turístico, a “faca de dois gumes” para a salvação da sua identidade e ao mesmo tempo o seu caminhar para o anonimato; a dita “globalização”. “Alis Ubbo” provoca essa silenciosa discussão, enquanto premeia um ritmo de passagem em toda esta jornada por quatro estações e um punhado de séculos vividos.

Sim, breve e efêmera, como um  guia turístico.

"Gretel & Hansel": a emancipação da irmã sob a eterna ‘casinha de chocolate’

Hugo Gomes, 20.02.20

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Os irmãos Grimm transcreveram o conto que ficaria eternizado como “Hansel & Gretel”: o qual resumimos como duas crianças que, devido à desfavorecida situação, são abandonadas pelos próprios pais na floresta negra e que ao tentar regressar ao lar, deparam-se com uma casa feita de doces que abriga uma bruxa esfomeada. A história passou ao longo da sua existência por várias versões e narrativas, e com a passagem no audiovisual nada disso mudou, tornando-se inspiração para as mais diferentes variações: umas fieis aos escritos da dupla de “contadores de histórias”, outras nem por isso.

Com Osgood Perkins (Oz Perkins para os amigos), realizador que tem dedicado a sua carreira a desconstruir o género do terror (basta relembrar o anti-clímax de lume brando que é “I Am the Pretty Thing That Lives in the House”), o enredo das duas crianças “desnaturadas” é palco para uma bizarrice estética que afronta uma pseudo-emancipação feminina num prolongado sonho molhado. É um filme construído sob “maliquices”* que se apronta na expressividade da sua Gretel (aqui interpretada pela ascendente Sophia Lillis). Não é por acaso que o título é alterado (com o nome da ‘menina’ a surgir em primeiro). Oz Perkins decidiu criar toda aquela jornada pela sinistra floresta negra como uma alusiva apoteose à puberdade feminina, com claras misturas com outros célebres contos colecionados pelos Grimm.

É uma aventura gótica, com claras reflexões sobre a condição feminina e paciente na construção da sua atmosfera, nunca caindo no facilitismo dos “jumpscares” e outras mecanizações do género pelos grandes estúdios. É na sua estranheza que encontramos um exemplar raro e cintilante. Mesmo com o breu que estas personagens enfrentam, tendo como a “bruxa-má” uma sempre sinistra Alice Krige (que em tempos foi uma das grandes vilãs do legado “Star Trek”).

Esperava-se fidelidade com o senso comum reconhecido deste intemporal conto. Ao invés disso, obtivemos um filme que capta o sombrio do desconhecido. Para dizer a verdade, não se via nada assim desde “The Company of Wolves”, de Neil Jordan.

A miserabilidade é um espéctaculo em "Les Miserábles"

Hugo Gomes, 18.02.20

Não é como você cai que importa, é como você pousa

Passaram 24 anos desde “La Haine: O Ódio”, o drama de bairro francês que embebedou da sua marginalidade para nos transmitir, por fim, as vozes dos silenciados. Falamos de uma ebulição social e racial que culmina nas periferias de Paris, onde os “franceses” são de segunda categoria, citando os privilegiados do centro, e lidam diariamente com um cerco que somente eles conhecem. Ao som de um remixado ‎”Non, je ne regrette rien” (Edith Piaf), “O Ódio” demarcou-se dos filmes americanos sobre violência citadina que dominavam os cinemas, devido à sua ambiguidade, ou à sua ausência de moralismos vencidos, e pela denúncia da brutalidade policial que muito do cinema de Hollywood encarava como heroísmo vigilante. Foi aqui que o realizador Mathieu Kassovitz conseguiu a sua grande proeza, o seu “preto-e-branco” farsante que corroeria a cerne de um cinema francês feito de aparências e de ensaios de intelectualidade.

Há muito de consanguinidade entre “O Ódio” e neste “Les Miserábles”, a modernização do mais que célebre livro de Victor Hugo. Nas mãos do realizador Ladj Ly é uma releitura das velhas questões trazidas à luz pelos ecos da nossa contemporaneidade. É um “conto” de polícias e criminosos, vigilantes e traiçoeiros, onde nenhum papel é evidentemente atribuído. Mais do que tudo, a ambiguidade reina na construção deste ecossistema à margem desses tais “franceses de primeira”, apenas acedido por via férrea.

E já que falamos na categorização entre primeiros e segundos, basta olhar para a abertura, a vitória da seleção francesa no Mundial de 2018 e a união entre todos com as suas bandeirinhas, gestos assertivos de festejo e uma felicidade que não parece terminar. Para comemorar o título, "franceses de primeira" e "de segunda" tornam-se um só, uma utopia que não presta atenção à origem nem a tons de pele. Mas o dia termina e a ação transfere-se para os becos e os arranha-céus sobrelotados, para os meninos que crescem na violência e só esta conhecem, bem como a discriminação que habita no coração de todos como um instinto de sobrevivência.

Mas vai ao engano quem julga que "Les Miserábles" é apenas um panfleto de inclusão social ou de representatividade. O que se vê é também um portento técnico e narrativo, onde uma montagem incansável lhe dá um ritmo frenético, digno de um guerrilheiro pronto a executar a sua missão. É um autêntico “estrondo”, impulsivo e explosivo, quer na ação, quer na interação entre as personagens. Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].

Por enquanto, e não vamos com isso menorizar, “Les Miserábles” é a joia da coroa da Kourtrajmé, o coletivo artístico que Ly integra e encontra inspiração no clássico “La Haine”. O que nos diz é que os fantasmas da violência contra os “franceses de segunda” e a negligência social agitados por Kassovitz em 1995 continuam pelos arredores de Paris.

Ainda é cedo, mas já temos aqui um dos grandes filmes do ano...

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