"A Metamorfose dos Pássaros": a primavera silenciosa da nossa saudade
A particularidade de “A Metamorfose dos Pássaros” encontra-se na sua incessante busca pela memória, um processo que executa através dos objetos afetivos que se indiciam como atalhos para essas réplicas emocionais. Da mesma forma que existe genuinidade e ternura neste gesto proustiano de perpetuar o passado (mais do que experienciar o presente), há também uma farsa cometida que instala-se como uma readaptação ao seu cerco cinematográfico. As recordações, essas, são verídicas, mas a realizadora Catarina Vasconcelos recorre à encenação, aos pseudónimos, aos embelezamentos que a própria revela para tornar todo esta genealogia de alma numa belíssima galeria de quadros pintados, muitos deles remetendo à natureza morta, pelo qual delineia a fronteira deste microcosmo.
Começamos então no primeiro ato, no isolamento que atormenta mentes que navegam por mares de saudade e de exaustão emocional, aqui, o “ancião” Henrique (avô de Catarina) assume-se como o voluntário dessa condição de eremita, falando e mencionando fantasmas, o amor que nunca esqueceu e que igualmente nunca verdadeiramente possuiu. Na sua sala de estar, o náufrago memorial pendura um quadro, diríamos mais uma cópia, um Joaquín Sorolla (“Madre”, 1895), como o próprio informa, remetendo automaticamente a essa ausência afetiva – Beatriz, ou como gostava de ser chamada Triz – a “assombração” que nos levará para o passado das coisas, para à ante-existência da autora.
"Madre", Joaquín Sorolla (1895)
“A Metamorfose dos Pássaros” é um filme verdadeiramente pessoal e falsamente desencadeado na sua estética, é íntimo como igualmente exibicionista e incômodo como confortável. Catarina Vasconcelos demonstra constantemente a sua posição de “contadora de histórias”, seja pela narração omnipresente e coletiva, seja pelo visual que vai acompanhando a “ditadura das palavras”, prevalecendo a sua estética quase eclética e sobretudo trabalhada para original metáforas visuais (“observamos o mundo como fosse um quadro“).
Esta sua primeira longa-metragem (Vasconcelos concretizou um curta em 2014, “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso”) paraleliza com “Elena”, da brasileira Petra Costa (filme que não canso de referenciar, não vá cair no esquecimento ou no desprezo dos “privilegiados”), devido à sua recriação de revivescências e sentimentos vividos, pela carta pessoal aberta que acolhe o espectador e o familiariza como “seu”. Existe sim, um fabricado poema, proclamado com todas as suas estrofes. Em “A Metamorfose dos Pássaros” é a beleza desse encontro que suscitará a mãe de todas as alegorias, aliás, é essa mesma, Mãe, a palavra-chave desta jornada de diário escancarado e subitamente “violado” por curiosos.
“O mistério nascia nos detalhes“, ouve-se a certo ponto, conferindo nesses pormenores a riqueza escondida pelas “fachadas” de beleza nos planos confinados à confidência de Vasconcelos. “A Metamorfose dos Pássaros”, ao contrário do seu título, não contrai nenhuma transformação no seu processo de criação; é acima de tudo um filme que merece encanto mas de um universo demasiado fechado, e talvez por isso, um adquirido e requerido tom privado.