Devil / Angel in Disguise - A "farda" é a identidade!
Der Hauptmann (Robert Schwentke, 2017)
Corpus Chistis (Jan Komasa, 2019)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Der Hauptmann (Robert Schwentke, 2017)
Corpus Chistis (Jan Komasa, 2019)
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Era fácil “Big Fur” cair na paranóia ou redigir-se nas proféticas tertúlias de loucos, mas existe um ponto a seu favor: o taxidermista Ken Walker é somente um dos melhores e mais respeitados da sua área, logo não estamos a lidar com delírios.
Para Ken Walker, a taxidermia é mais que um hobbie, é uma arte eclética e sobretudo desvalorizada, a “criação de uma ilusão de vida que não difere de um truque de magia” (parafraseando o artesão), que lhe garante as ferramentas necessárias para executar uma “fantasia”. Quer dizer, para alguns, mas para Walker é bem real. Falamos do Bigfoot, o Pé Grande, o Sasquatch; diversos nomes para uma criatura símia que julga-se viver nas densas florestas da América do Norte, e que foi apanhada em vídeo em 1967, um registo ainda hoje discutido quanto à sua veracidade.
O taxidermista jura a pés juntos que o viu e como tal decide recriar esse testemunho na sua arte. A grande oposição neste ato é que Walker não é nenhum parolo; o seu conhecimento da fisionomia animal garante-lhe a legitimidade no processo deste documentário, quer na exploração do mito, quer na sua vida afetiva e profissional, que de certa maneira se diluem.
“Big Fur” assume-se como um documentário em torno de um único caso de estudo, mas trai-se a si próprio, oscilando por temáticas ou abordagens que vão muito mais além do que o somente o “sonho molhado” do Pé Grande ou dos excrementos congelados guardados no frigorífico de Walker, que, segundo este, tratando-se de uma prova da existência da besta mitológica. Contudo, Dan Wayne consegue uma obra modesta e tratada com uma certa leveza alucinante, mesmo que despachada pela gula de um realizador inexperiente ao sabor dos tiques televisivos.
Quanto às questões levantadas, estas continuam intactas até ao genérico final, encarando-se como uma espécie de visita guiada ao “ninho de cucos“, que só nós, espectadores, assumimos como uma presunção de “superioridade moral“. Portanto, é ver sem julgar os focados, porque há mestres nas artes mais menosprezadas, e nem sempre queremos saber.
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Ontem, dia 27 de janeiro, comemorou-se os 75 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz.
Um dia para relembrar e nunca esquecer que experienciamos o Holocausto, hoje cada vez mais fomentando como uma “mera opinião politica” alicerçado a uma certa ideologia que se infiltra nas sociedades ocidentais. Mas não seguiremos por esse caminho tenebroso, a memória é aqui a nossa moral. O “Shoah”, essa palavra sem tradução atribuída de forma a assinalar e distinguir, assume-se como a garantia de que tais trevas não se repetirão. Infelizmente, o “andar da carruagem” segue em direção desses mesmos erros passados.
No cinema, a memória mantêm-se viva, quer no registo documental, quer na ficção, de forma a garantir o “Never Forget” (nunca esquecer).
Nuit et brouillard (Alain Resnais, 1956)
Kapô (Gillo Pontecorvo, 1960)
German Concentration Camps Factual Survey (Sidney Bernstein & Alfred Hitchcock, 2014)
La vita è bella (Roberto Benigni, 1997)
Shoah (Claude Lanzmann, 1985)
Treblinka (Sérgio Tréfaut, 2016)
Denial (Mick Jackson, 2016)
The Boy in the Striped Pyjamas (Mark Herman, 2008)
The Schindler's List (Steven Spielberg, 1993)
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Uma sombra se projeta em todo este "J’Accuse" – a atualidade e a convergência histórica. E conforme seja a nossa opinião quanto ao "Caso Roman Polanski", difícil mesmo é separar este seu novo filme (vencedor de um Prémio Especial de Júri no Festival de Veneza) do seu autor. Por mais negações que o realizador dos clássicos “Rosemary’s Baby” e “Chinatown” faça sobre as ligações entre esta encenação da história verídica de Dreyfus, protagonista de um dos escândalos políticos e militares do século XIX (imortalizada pelo influente escritor Emile Zola sob o título “J’Accuse”), com as acusações e condenações de violência sexual que o cercam, é essa mesma natureza que dá uma invulgar dimensão ao filme.
Podemos esmiuçar parentescos entre os caos e “escavar” a pertinência do interesse de Roman Polanski em contar, exatamente, esta mesma história, mas “J’Accuse - O Oficial e o Espião” também é uma obra plena de um tipo cinema quase extinto nos nossos dias: classicista sem o ser e calculoso na temática, escapando do fervor da denúncia que passa por muitos outros filmes. Quase de uma forma erradamente pejorativa, dir-se-ia que estamos perante um “filme de velho”, construído e embarcado por um cineasta que tem atravessado as mudanças mais extremas da indústria, de produção a estéticas, e ao mesmo tempo resistindo a todas elas, tentando com isto perpetuar o seu cinema.
Curiosamente, Roman Polanski é um realizador de espaços, e como tal fez disso o seu perfeito signo autoral, seja na tão citada trilogia do apartamento (“Repulsa”, "Rosemary's Baby”, “The Tenant”), seja nos exercícios que fez durante a sua prisão domiciliária (“The Ghost Writer”, “Carnage”). Em “J’Accuse”, o espaço adquire uma perfeita analogia do enclausuramento moral que o filme conjuga com planos perfeitamente adaptados à sua "mise-en-scène". Nota-se, por exemplo, o cerco humano que delineia a ação na sua abertura: a despromoção, humilhação e condenação de Dreyfus (Louis Garrel) é o comité de boas-vindas para pressentimos um realizador preocupado com a estética estagnada de um filme que se queira político.
Todas as sequências que se seguem persistem nesse fascínio pelo adorno, pela reconstituição e pela atmosfera que se readapta ao clima imposto na história. É um policial sem o assumir, é um filme de tribunal sem o pretender ser é uma cinebiografia sem o desejar: “J’Accuse” é um gesto ativista corrompido por uma passividade, essa, a de fazer cinema como uma peça de “História Morta” (sem ênfases dramáticas nem epifanias), um exemplo trazido à luz para o “hoje”.
Portanto, estamos novamente a diluir Dreyfus e Polanski, mas até nisso há um calculismo minado porque não é à toa que o realizador se apropria do caso, assim como não é coincidência que o faça sob os embrulhos de um cinema estático que faz sobressair as suas qualidades técnicas e foge da mera temática de engodo...
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Uma das grandes apostas da competição do Festival de Slamdance é Xia Magnus, que chega-nos com um não convencional filme de terror, “Sanzaru”.
No filme seguimos um quarteto de personagens, cada uma delas desafiada a lidar com os seus fantasmas. Esta primeira longa-metragem leva-nos ao coração de uma América que ainda não superou os seus demónios interiores e que negligencia a sua solução.
Conversei com uma das promessas do cinema de género nos EUA – Xia Magnus – porém, ele próprio despreza essa atitude de diferenciação. O terror como metáfora, como manifestação individual e sobretudo como materialização de traumas, tudo reunido em “Sanzaru”, a mais sombria conversão do provérbio dos três macacos sábios (“não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal“).
Para uma primeira longa-metragem, porquê o género do terror como inauguração?
Sempre adorei filmes de terror. Adorava ter medo quando era criança e acho que é porque o medo é uma emoção tão pura. Na vida quotidiana, definitivamente, não temos o controlo sobre isso. Mas quando o transformamos em arte, podemos possuí-lo, dizer ao medo o que fazer. É como domesticar uma besta selvagem, é um tipo de proteção. Na minha primeira longa-metragem, sabia que iria trabalhar com recursos limitados. O meu pensamento era que poderia alcançar o tipo de história que queria, isto se pudesse manter-me contido num único local.
Além disso, sou atraído por histórias em que o antagonista é um lugar ou uma circunstância. Assim, uma casa assombrada parecia óbvia! Isso deu-me tempo e precisava colaborar com os atores e manter o foco nas personagens e nas suas ações. Eu não iniciei este projeto tendo a perceção de estar a escrever um filme de terror, apenas começou a tornar-se obscuro e como tal o “Sr. Sanzaru” apresentou-se para mim. Na altura percebi: “bem, esta será uma história assustadora“.
Como sabe, o género de terror nem sempre é um exercício lúdico, existe em muitos casos uma intenção de metáfora ou de repreensão dos nossos medos. Em “Sanzaru”, esse olhar ao nosso redor é uma espécie de ponto de partida.
Certamente. Acho que qualquer bom filme tem algo em mente, algo a dizer. Todas as histórias têm metáforas, mas acho que são mais eficazes quando o autor não fica muito prescritivo sobre o seu significado. Uma metáfora pode variar o seu significado para diferentes pessoas, é isso que as torna tão poderosas. Direi que, quando se trata de mudar, devemos sempre começar a olhar para nós mesmos.
Gostaria que me falasse sobre a sua decisão na “materialização” do sobrenatural. A nível estético, a sua entidade tem algo de semelhante com o Diabo de “Post Tenebras Lux”, de Carlos Reygadas, até porque ambos apresentam uma artificialidade propositada.
Sim! Reygadas foi definitivamente uma referência visual. Queríamos trazer algo surreal, com qualidade onírica à maneira como o sobrenatural se manifesta. Por mais que refletimos sobre fantasmas, uma verdadeira assombração só é real para a pessoa que a experimenta. É um evento psicológico. Imaginei que duas pessoas não a experimentariam da mesma maneira. Os espíritos em “Sanzaru” apresentam-se diferentemente para cada personagem, portanto, era importante fazê-los parecer visões, não manifestações objetivas.
O que é o medo para si? Pretende manter-se no género de terror ou explorar novos territórios cinematográficos?
O cinema é no seu melhor quando nos faz sentir, e o género de terror (especialmente quando é fundamentada num drama real) é extremamente afetivo. Acho que reduzir tudo a géneros é geralmente uma maneira de comercializar um filme, não façam isso. Nesse sentido, todos os filmes têm um género. Os dramas de maioridade têm tantos “rodriguinhos” e clichés como os filmes de terror. O género estabelece uma estrutura para o público abordar o seu filme com um conjunto de expectativas. Adorava trabalhar dentro da estrutura de horror e, se tiver sorte, poderei fazê-lo novamente. Dito isto, espero ter a sorte de experimentar a minha assinatura em outros géneros também. De momento estou a escrever um neo-western.
Quer falar-me mais sobre esse neo-western?
É sobre uma mulher que tenta libertar o seu filho de um grupo de supremacia masculina. As coisas vão ficar tensas … eu tenho um outro projeto no forno também. Definitivamente, mais virão!
Quanto ao casting? Como escolheu os seus atores?
Tive muita sorte! Eu “caçava” a Aina [que interpreta a protagonista, “Evelyn”] online depois que vi o seu showreel. Ela fez o teste e soubemos imediatamente que queríamos trabalhar com ela. Justin [que interpreta Clem] veio até nós através de um dos nossos produtores. Eu estava apenas a procurar por pessoas com quem queria colaborar. Era um cenário muito íntimo, então sabia que precisávamos que todos estivessem na mesma página.
Na minha interpretação, “Sanzaru” é um filme sobre o trauma. Os traumas que não pretendemos e que não conseguimos superar. De certa forma, encontramos neste seu filme um pequeno retrato dos EUA hoje em dia, um país de traumas profundos e sem incapacidade de superá-los.
O trauma é uma das principais palavras-chave nos EUA neste momento. Estamos publicamente a lutar com gerações de merda constituídas por pessoas de merda. Às vezes, pode ser um pouco esmagador, mas é um trabalho importante a ser feito como sociedade. Acho que nada mudará fundamentalmente até que realmente possamos abordar os traumas subjacentes nos quais a América se baseia. Ou seja, genocídio e escravidão. Trauma gera trauma, ações de merda causam reações de merda. Está tudo conectado.
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Classe … Clássico … Classicista.
Na sexta adaptação cinematográfica do clássico literário de Louise May Alcott (aliás dois livros num só filme), revela-nos uma realizadora madura, experiente e dedicada em trazer um retorno ao cinema classicista e de velha guarda. A conversão é reajustada aos tempos modernos com um olhar menos benevolente à estrutura patriarcal, porém, é uma produção de requinte que demonstra (de forma a contrariar um certo pensamento retrogrado) que as mulheres também estão preocupadas em citar um legado de técnicas e planificações tradicionais, e com uma certa classe.
E voilá … utilizei os três termos familiares, até porque Greta Gerwig assim o quis nesta sua afirmação.
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Há muito que Laura e Israel passaram do “felizes para sempre”. Agora são um casal que se revê diariamente num gradual distanciamento. Eles já não se tocam, os diálogos são calculados, economizados e o único momento do dia em que tal acontece é durante a partilha do pequeno-almoço. Mesmo assim, as frases soam soltas, dispersas e sem motivação. Laura não encontra neste “falso-matrimónio” (é desta que forma que os seus pais caracterizam, pressionando o casamento segundo o termo social e cristão) uma comunhão, fala de destruição, apocalipse, a morte como destino certo. Para Israel, todo esse “papo” não é mais que puro delírio.
Certo dia, Laura parte em direção a “nenhures”, deixando para trás o casamento de fachada e o filho pelo qual questiona se nutre ou não afeto. Ela procura emoção, de uma vez por todas, para acordar o seu “eu” adormecido, o da mulher emancipada e forte, com um punhado de sonhos e ambições para o futuro. Nessa demanda pela procura do feminino, Maria Clara Escobar estreia-se na ficção com uma obra que cinematograficamente atravessa vários estilos e onde existem três personas que se embatem e debatem sobre um existencialismo frio de primeiro mundo: ela, ele e o casal. O filme parte no coletivo, retratando de forma quase mecanizada o tédio cometido pelo quotidiano que cada vez mais confunde a natureza de Laura e Israel.
Aqui, Escobar pratica o falso-raccord, os saltos de eixo, o pseudo-climax com que uma Chantal Akerman coloca a emotividade numa gaveta. É um olhar cínico para a ligação manufaturada pelo conceito de matrimónio, seja ortodoxo ou liberal como escape das doutrinas religiosas. Mas Laura parte, e aí o filme entra na perspetiva de Israel, demonstrando que em “Desterro” não há lugar para o solipsismo parcial. Aqui, o homem sofre, tentando soltar os gritos arrecadados de forma silenciosa como manda Leo Carax e a sua “má raça”, que Escobar ousa em citar de forma literal e vinculada. O ponto curioso deste “Ele” é a sua exposição do sistema burocrático que servirá de enfoque para os despertares emocionais desta personagem, enquanto “Ela” assombra-se no desconhecido.
Partimos, pois, para o terceiro capítulo, com Laura em direção à Argentina num autocarro – que por si só funciona como um “microcosmos”. As mulheres presentes, algumas delas “caras conhecidas” da recente cinematografia brasileira, confessam e expõem-se para câmara, quebrando a quarta parede, buscando, como faz Bárbara Colen que se autointitula de “gato”, a conexão com o espectador. Um curioso biótopo instável, este que acompanha Laura na sua viagem para o desconhecido, ao lado de Rômulo Braga que tão bem poderia envergar numa sequela do seu “Elon Não Acredita na Morte” (Ricardo Alves Jr., 2016).
Facto curioso de toda esta jornada, não só o capítulo “Ela”, mas em Laura que nos é apresentada como um ser soturno e acolhida pelo vazio emocional. A sua epifania, como diríamos, acontece por via do Nada, não como estado, mas como lugar. Aliás, um “não-lugar” ao som dos portugueses Trio de Odemira, contraindo um transe libertador. E bem, visto que Laura é o filme, a sua atmosfera, psicologia e catarse. O final cumpre-se com o lirismo surreal, a metáfora visual que poderá ser interpretada, quer um jogo politizado, quer um sentimento em oposição às instituições sociais que ditam a nossa vida. Seja o casamento, filhos, casa, carreira, ou simplesmente género. "Desterro'' é uma autêntica reunião de sabores em prol de uma afirmação pelo mundo dos homens e das suas regras milenares.
Era uma vez uma mulher
E ela queria falar de gênero
Era uma vez outra mulher
E ela queria falar de coletivos
E outra mulher ainda
Especialista em declinações
A união faz a força
Então as três se juntaram
E fundaram o grupo de estudos
Celso pedro luf
O Útero é do Tamanho do Punho (Angélica Freitas)
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“Nunca comas cornetos no café do Aires, ele desliga a arca durante a noite e a bolacha fica mole“
Bruno Aleixo atravessou fronteiras e plataformas e é hoje defendido por um “exército” de ávidos seguidores. “O Filme do Bruno Aleixo” é encarado como o próximo passo nessa tremenda “salta-pocinhas” de territórios criada por João Moreira e Pedro Santo em 2008 mas, ao contrário do expectável, o humor chico-esperto "aportuguesado" opera como um olhar satírico à nossa indústria do audiovisual, o oposto do que se poderia esperar e do que se viu nas conversões de outras marcas da cultura popular-nacional como "Morangos com Açúcar", "O Filme da Treta" ou "Sete Pecados Rurais".
Um pouco como se vê no filme, a dupla Moreira e Santo foi abordada pela produtora O Som e Fúria, a casa de muito do cinema dito autoral português (como Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau) para fazer uma longa-metragem ao seu livre critério. Aos autores foram somente propostos os meios e as ideias foram debatidas por vias de um “brainstorming de meia hora” (citando João Moreira): o (não) conflito do filme que estende o sketch aos seus limites estéticos e narrativos é, nada mais nada menos, do que um uso da não-criatividade em prol da criatividade (convém afirmar que, nesse pequeno detalhe, o universo caricaturesco e desleixado de Aleixo assume-se como um filme “baseado em factos verídicos").
Aqui, o espectador vai ver Bruno Aleixo à procura de ideias para o seu filme, que encena deliberadamente diferentes géneros, que vão desde o manhoso "thriller" até à "sitcom" de um só cenário, passando pelo policial com tiques de "Sam Peckinpah" embriagado, que remetem para exemplos que todos podemos reconhecer. A grande questão de “O Filme do Bruno Aleixo” é se o nicho a que se destina o vai limitar e se consegue ser transmissível para fora de Portugal. Não se pode pedir tudo, mas é verdade que a sátira destes "episódios em géneros" se perde na tradução e, com isso, os seus atores e as respetivas conotações sociais, sejam eles Adriano Luz ou Rogério Samora, ou o recurso a Fernando Alvim (com muito abuso de imagem) ou o "zeitgeist" do cinema português de Manuel Mozos.
Fora isso, este é um dedo médio esticado às fórmulas estabelecidas do dito cinema autoral português … sim, porque queira-se ou não, “O Filme do Bruno Aleixo” é a palavra autoral no poder.
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O Filme do Bruno Aleixo (2019)
A personagem criada em 2008 dá o seu grande passo para o cinema. João Moreira e Pedro Santo podem ser dois nomes que nada dizem aos nossos leitores, até porque se escondem detrás de uma das personagens mais caricatas e amadas do nosso seio audiovisual – Bruno Aleixo.
O “Ewok coimbrão” de humor procrastinado saltou da internet para a televisão e criou em dez anos um culto garantido de admiradores. Mas Aleixo não está sozinho neste sucesso de popularidade. Ao seu lado encontramos outras figuras excêntricas, como O Homem do Bussaco, O Busto e Renato, todos eles reunidos na primeira aparição cinematográfica deste universo.
Curiosamente, não foi Moreira nem Santo a procurar este benefício de chegar ao grande ecrã. A oportunidade chegou sob o selo de O Som e a Fúria, a produtora gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar que hoje é tida como a casa de muito do cinema autoral português (Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau são alguns dos exemplos).
Conversei com a dupla sobre a conceção desta aventura inaugural da personagem nos cinemas. Um diálogo descontraído sobre o passado, o presente e o futuro desta união de criatividade. Um filme que chega para dinamizar a nossa “indústria”, se é que ela existe, mesmo que, segundo as palavras de João Moreira, não seja mais que “um brainstorming de hora e meia“.
Talvez comece com a pergunta base para esta conversa. Vocês trabalham há dez anos na construção desta personagem e do seu universo. Começaram na internet e passaram para a rádio e televisão. O cinema foi o passo que faltava. Estava planeado esse passo ou surgiu por mero acaso de uma proposta?
João Moreira: Um pouco das duas coisas. Era o passo que faltava…
Pedro Santo: Mas isso dá a entender que temos passos para dar, que planeamos todo este percurso.
JM: Os passos para dar, como há pouco falávamos, era o que nos faltava. Existe um número relativamente limitado que ainda não demos.
PS: Não que tenhamos obrigatoriamente que o fazer.
JM: Partindo do princípio que começamos na web e passamos para a televisão, este passo é um dos mais previsíveis, digamos assim, mas surgiu de uma forma concreta através de uma proposta de O Som e a Fúria.
Isso quer dizer que o filme tem um pouco de “baseado em factos verídicos”. [risos]
JM: O filme acaba por refletir a natureza dessa mesma proposta. Foi um pouco “queremos fazer um filme sobre o Bruno Aleixo, por isso deixo ao vosso critério.”. Não havia nenhuma diretriz de como o filme deveria ser feito ou o que deveria conter. Não. Foi um “façam o que vocês quiserem”. Ou seja, tivemos o mesmo dilema que o Bruno Aleixo tem neste filme. Podia ser qualquer coisa, basta ser do Aleixo. Agora, a questão é como iríamos trabalhar esse “qualquer coisa”.
E como trabalharam no argumento, aliás, nesse “qualquer coisa”?
JM: Neste caso, acabamos por ter outra versão, mas a versão que usamos era precisamente colocar a estas personagens o mesmo dilema que nos foi colocado. Como é que elas iriam desenvolver um filme? Obviamente que o nosso Aleixo iria fazer as “coisas” em cima do joelho, ter péssimas e absurdas ideias e roubar as sugestões dos outros, tornando-as dele. Como seria de esperar.
PS: O Aleixo não é uma “pessoa” do meio, logo, era assim que imaginaríamos como iria reagir a esta situação, da mesma forma como na sua passagem na televisão.
JM: Sim, aqueles programas todos mal executados…
AS: Mais a falta de respeito pelos telespectadores, pelo colega, aquelas rubricas estranhíssimas. Era um sujeito que sabia por alto como funcionava um talk show, mas a execução era péssima. No cinema, é a mesma ‘coisa’; ideias básicas e comprometedoras, depois com um desenrolar que é ainda mais básico. É praticamente isto: “pessoas” que não são do meio, que lá sabem como fazem as coisas, e dão sugestões para um filme com base naquilo que já conhecem e o que querem ver.
Pedro Santo e João Moreira no Festival do Rio
Em certa parte, este “salta-pocinhas” entre géneros resume-se ao audiovisual que vocês conhecem?
PS: Sim, é muito do cinema com que crescemos. Porém, devemos salientar que estas personagens não correspondem à nossa idade, são mais velhas, são de uma geração anterior à nossa, da idade dos nossos pais. Os nossos pais viam os mesmos filmes que nós, por isso, não existe muita diferença. Tentamos resumir essas preferências na versão fílmica do Bussaco: um buddie cop movie com ninjas, mexican standoff, tem os zooms à lá Leone. Ou seja, era uma mistura de ‘coisas’ que iam apanhando, sem ter a capacidade de interpretar aquilo, um pouco como nós enquanto jovens: víamos mas não percebíamos o alcance daquilo e as suas dinâmicas.
Devido ao facto de desde sempre terem a liberdade nas aventuras e desventuras desta personagem, quer na internet, quer na televisão, e agora, como vocês confirmam, no cinema, podemos considerar “O Filme do Bruno Aleixo cinema” de autor? E quando falo de autor, refiro toda a sua conotação criativa…
PS: Não diria autor com a carga com que normalmente associamos, mas autor porque nós somos os autores e permanecemos autores desta passagem.
JM: O cinema de autor tem uma conotação de que é mais arte que os outros filmes.
PS: À partida é mais artístico, não segue uma linguagem tão convencional / mainstream…
JM: Neste caso, diria que não.
PS: Quer dizer, tem uma marca autoral. A dinâmica e a linguagem do filme não são propriamente usuais no cinema. Há ali uma desconstrução constante, uma falta de respeito para com a magia do cinema.
De alguma maneira, esta oscilação de géneros e a desconstrução não são, no fundo, uma forma de fomentar uma crítica quanto à nossa indústria cinematográfica e televisiva?
JM: Não diria “criticar”. Como dizemos, a nossa intenção era pegar no mainstream de ideias e sintetizar o conhecimento geral daquelas personagens, assim como pessoas fora do meio, pelo audiovisual.
Quanto à escolha dos atores, gostaria que me falassem sobre o vosso leque, que vai desde Rogério Samora e Adriano Luz até ao nosso zeitgeist do cinema português, Manuel Mozos.
PS: Muitos deles pensamos desde início…
JM: Alguns até já estavam no guião...
PS:… Ou por causa da figura…
JM: Ou das conotações sociais que têm. O filme falha um pouco no Brasil exatamente por isso, porque tu olhas para o Rogério Samora e automaticamente o associas à sua figura. Assim como o Fernando Alvim, que é uma personalidade pop.
PS: Lembro-me perfeitamente de virar-me para o João e dizer que para o Aleixo tem que ser o Adriano Luz [risos]. Aquela expressão de desprezo, neutro, sem estar entusiasmado com alguma coisa. E para além disso tudo, o carisma. Alguns desses atores, com quem desejávamos trabalhar, eram fáceis de chegar, visto que trabalhavam com O Som e a Fúria. Já o Manuel Mozos foi sugestão da produtora. Ele interpreta uma personagem muito em aberto, o Aires. Até brincamos no genérico, que ao invés de Mozo era o Aires.
E como é que o filme está a sair-se no Brasil, visto que é de um “chico-espertismo” muito português, um humor muito nosso, muito profundo da nossa cultura?
JM: Lá é “mais” nicho. Acabou por estrear em 18 salas, o mesmo que aqui. Só que o Brasil é um território enorme, e percentualmente terá mais gente.
Gonçalo Waddington, Fernando Alvim, Manuel Mozos, João Lagarto e José Raposo em "O Filme do Bruno Aleixo" (2019)
Para onde irá o Aleixo depois do filme?
JM: Ainda não temos nada pensado. Para já continuamos com o Aleixo.FM até ao final do ano
PS: Mas lá está, nunca pensamos nas coisas a médio prazo. Não é terreno novo.
JM: A recibos verdes, um tipo tem que aproveitar até quando der. Temos tido algumas reuniões para se tentar apurar o futuro, mas de momento não temos nada pensado.
PS: Também queremos esperar pela aceitação do público, de como sairá o filme nas salas de cinema.
E existe uma possibilidade de streaming? Não falo da Netflix, porque o nosso mercado é demasiado pequeno, mas de outras plataformas.
JM: Nós temos parceria com a SIC, por isso não sabemos. O que sabemos por agora é que vai existir uma versão em modo série do filme…
PS: Mas isso só será daqui a um ano.
JM: E não serão versões iguais…
PS: Atenção, o filme foi escrito e feito como se fosse um filme. Não pensamos inicialmente na série. São ‘coisas’ distintas.
Fora do Aleixo, há novos projetos?
JM: Nós fomos tendo projetos, mas não em nome próprio.
AS: Empreitadas…
JM: Fiz programação cultural em Coimbra, por isso a nível de cinema ou a nível de televisão, é muito raro fazer algo que saia do território do Aleixo.
AS: Também é o que nos pedem…
JM: Sim, e o que pedem é sempre dentro deste universo.
O Filme do Bruno Aleixo (2019)
Mas nunca vos passou pela ideia, meter as “botas” do Aleixo de lado e seguir por novos rumos?
JM: Para já é mais fácil explorar o final que existe, por causa do mercado e por quem trabalha connosco. Nunca tivemos a hipótese de ponderar dar um fim ao Aleixo. Quando trabalhávamos em televisão, nunca havia abertura para trabalharmos em outra “coisa”. Aliás, chegou a haver a intenção de trabalhar noutras “coisas”, mas fecharam-nos as portas.
AS: Eles só querem o Aleixo.
JM: Ou seja, o Aleixo ainda tem potencial.
Quando não houver mais potencial, será a hora de matar o Aleixo?
AS: Logo se vê. [risos] Aquelas personagens para nós existem, têm vida própria, têm as suas próprias biografias, não seria fácil. Seria o mesmo que pedir ao Bruno Nogueira para deixar de ser o Bruno Nogueira. Apesar de tudo, ainda acreditamos que o Aleixo tem um leque de coisas ainda por explorar. Assumindo que aquilo é uma persona, sim. Ainda existem cantos que devemos explorar.
E deixar o Aleixo como testemunho para outra “equipa”?
JM: Nunca foi uma ideia. Não nos interessa. Vender o franchise? Não.
AS: Não me parece que venha a acontecer.
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A grande força deste “Sanzaru” situa-se no que não é dito e no que é invisível aos nossos olhos. Xia Magnus estreia-se nas longas-metragens com um híbrido dramático no dito cinema de género: um terror psicológico que intersecta na artificialidade com que aborda o sobrenatural, da mesma forma que Reygadas executou no seu delirante “Post Tenebras Lux”, sem receio em contornar a credibilidade.
O enredo centra-se numa “anciã” (Jayne Taini) que resiste em vão à demência numa casa isolada algures no Texas. O filho (Justin Arnold) desta refugia-se numa caravana nesse mesmo terreno, tentando exorcizar o stress pós-traumático de uma guerra no Médio Oriente. A casa, esse esconderijo para os segredos mais obscuros, pelas entidades misteriosas que são tudo menos passageiras e pelos fantasmas que assombram as ‘vivalmas’, é “guardada” por Evelyn (Aina Dumlao) e o seu irmão Amos (Jon Viktor Corpuz), dois filipinos, cada um com segredos, os quais tentam manter seguros nas sombras.
Como se pode verificar, num prisma generalizado, este é um filme que retrata um meio caminho para a regressão, personagens sob o selo dos traumas que se confrontam perante o iminente desvendar deles. Um pouco ao sabor do título, “Sanzaru”, que segundo Xia Magnus refere-se à designação japonesa do provérbio dos três sábios macacos (não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal), um símbolo de uma passividade harmonizada do budismo. E é sobre essa “cantiga” que percebemos a essência e a construção desta obra que foge sobretudo do óbvio modelo das “casas assombradas” ou das permanências do terror fácil e didático. A “Sanzaru” apenas falta-lhe uma expressividade quanto ao seu terceiro ato, que surge algo apressado perante um desenvolvimento em lume brando que tenta sintetizar os dramas pessoais e com isso entregar-nos figuras que correspondem ao ente trágico de toda esta variação de género.
Como primeira longa-metragem, Xia Magnus vai num bom caminho. O aprumo, isso, é algo que poderá surgir em próximas jornadas. Por enquanto, eis uma proposta de alguma forma exótica num certo tipo de terror norte-americano, aquele que não “lambe” as feridas de uma nação, mas que “escarafuncha o dedo” nelas, de uma América, mais que tudo, traumatizada.
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