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Debbie Reynolds
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Debbie Reynolds
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Antes de começar com a previsível justificação da minha seleção, queria mencionar um filme que apesar de se encontrar ausente desta listagem, foi importante e reflexivo para com a virada da década, e quiçá, desenhando aquele que diríamos ser o cinema das próximas gerações.
Essa obra é nada mais, nada menos, que a “The Social Network” (A Rede Social), de David Fincher, que acertou contas com um dos possíveis vórtices da nossa identidade do século XXI, enquanto individual, enquanto coletiva. Não poderemos negar que os nossos dias são demasiado dependentes desse dispositivo - o de trabalhar a nossa imagem para o exterior e moderar a exposição do nosso (não) íntimo. Digamos, que foi através desses pensamentos perante tal “futilidade”, do qual se tornariam o espelho narcisista da nossa modernidade, que Aaron Sorkin inspirou-se para escrever esta fictícia trama (na altura apontada como “cedo demais”) que operaria como pontapé de saída para os filme que reúno aqui – intimidade expositiva e a imagem fabricada da nossa existência.
Por isso, passeamos pelo último gesto de cineastas incompreendidos (The Other Side of the Wind, The Turin Horse) até à possível previsão do futuro do cinema (Holy Motors, The Congress), a nossa exposição sentimental como instalação artística (Elena, Before We Go, L’ Vie d’ Adèle), a identidade ou existência como demanda de natureza várias (La Grande Bellezza, La Piel que Habito, Django Unchained). Mas no seu todo é uma “mixórdia”, como muitos deverão salientar, de velhos autores em reunião com outros nomes sonantes e promissores que aguardam pelo seu tempo. Porque o cinema tem destas coisas - o de esperar para ver.
1 -The Other Side of the Wind (Orson Welles, 2018)
2 – Holy Motors (Leo Carax, 2012)
3 – Elena (Petra Costa, 2012)
4 – La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)
5 – The Turin Horse (Béla Tarr & Ágnes Hranitzky, 2011)
6 – Before We Go (Jorge Léon, 2014)
7 – The Congress (Ari Folman, 2013)
8- La Grande Bellezza (Paolo Sorrentino, 2013)
9 - Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012)
10 - La piel que habito (Pedro Almodóvar, 2011)
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Os videoclubes morreram, o mercado deixado por eles também e os poucos sobreviventes encontraram paraíso nos serviços de streaming. Depois temos as sagas exaustas que resistem à própria sepultura, procurando em “novos rumos” o folego ressuscitador. The Grudge é isso mesmo, um filme condenado à nascença de uma maldição que teimam em não deixar morrer.
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Rebecca Zlotowski / Foto.: Marie Rouge - Unifrance
A rapariga pode ser “fácil” como o título indica, mas o filme não o é. A francesa Rebecca Zlotowski demonstrou nos últimos tempos ser capaz de entregar um cinema diversificado inserido no universo feminino.
Depois da fantasia de “Planetarium”, onde trabalhou com estrelas do cinema (Natalie Portman e Lily-Rose Depp), a realizadora parte agora de uma figura controversa da nossa “realidade”: Zahia Dehar – antiga prostituta envolvida no famoso escândalo com alguns jogadores da seleção de futebol francesa – para instalar-se numa abordagem libidinosa, mas sobretudo reflexiva quanto aos desejo de uma mulher.
É a “Rapariga Fácil” (“Une Fille Facile”), um filme que para além do tema nos remete ao imaginário erotizado dos anos 60 e 70, encontrando o espectador na imagem da própria Dehar, os “fantasmas” de Brigitte Bardot e Sophia Loren.
O Cinematograficamente Falando … teve o privilégio de conversar com a realizadora sobre o seu novo filme e o trabalho com os atores que preenchem este coming-of-age da Riviera Francesa, incluindo o português Nuno Lopes.
Na sua carreira, todos os seus filmes têm sido extremamente diferentes….
Obrigado… [risos]. Sou apaixonada por cineastas que mantêm uma filmografia diversificada. Penso por exemplo em Sidney Lumet. Nunca fez o mesmo filme. O Elia Kazan, igual.
Como nasceu este projeto?
Quando começamos um projeto, este tem sempre várias origens. Tens uma origem sentimental, outra política, e depois existe o desejo de ficção e o acaso. No desejo de ficção, posso dizer que há muito tempo que tenho esta história – duas mulheres a namoriscar com tipos ricos – em mente. Gosto desta história, mas não sabia o que fazer com ela. Depois o caso Weinstein aconteceu e todas aquelas questões sobre dominação, desejos, personagens subversivas, e abuso de poder levantaram-se e isso fez-me questionar.
Depois, estava a chorar a morte de alguém próximo e queria desesperadamente fazer um filme com sexualidade, prazer, paixão e barcos [risos]. Pensei: vamos a isso. Foi lá que conheci a Zahia Dehar. Estava a pensar nesta mulher, que fez parte de um caso famoso de prostituição [com jogadores de futebol]. E como toda a gente em França ouviu falar desse caso, tive uma empatia imediata. Gosto de defender pessoas que os outros odeiam. Homens e mulheres. E estava interessada no facto das pessoas a odiarem. Por sua vez, ela era uma mulher extremamente sexy, árabe. Isso imediatamente atraiu-me.
Depois, ela fez um pedido para me seguir no Instagram. E gostei do facto dela não ter publicista. Não sou muito famosa, por isso certamente esta pessoa devia ser uma cinéfila. Depois investiguei, talvez ela quisesse ser amiga de toda a gente no cinema, mas não. Nada disso. Ela selecionou apenas algumas pessoas. Posteriormente vi os vídeos que ela publicava e fiquei maravilhada com a sua forma de falar. Nunca a tinha ouvido falar. Há tantas mulheres que vemos constantemente e nunca ouvimos a sua voz. Gostei de a ouvir e gostei mais ainda porque ela falava como uma personagem dos anos 60. Super elegante, super misteriosa, completamente diferente das pessoas que os reality shows nos trouxeram nos últimos anos, que são normalmente grosseiras e vulgares.
Gosto do kitsch e da vulgaridade, mas ela não fazia parte disso. Ela tinha uma interessante justaposição de elementos que me fizeram projetar alguém no universo rohmeriano. E claro, Itália fazia parte desse imaginário, os anos 60, a estrela de Cannes, todos os filmes que amo, etc. E nisso nasceu o projeto.
E sempre quis situar o filme em Cannes?
Não. O aspecto mítico de Cannes não fez parte do processo, embora se o filme não tivesse sido selecionado para o festival eu estaria bem lixada. [risos].
Eu precisava do imaginário da Côte D’Azur, a Riviera, onde os iates podem estar junto aos restaurantes. Onde encontramos os ricos, nos seus barcos, a jantarem junto aos turistas. E eu via muito isso quando passava férias com uma tia em Nice. Queria uma imagem de obscenidade, exibicionismo e indecência que é o questionado por este filme. Quem é na verdade o mais exibicionista no filme? Quem é o indecente? Talvez todos. Talvez o prazer esteja nos que chegam de iate, mas também nos que assistem a isso. Sucede o mesmo com uma mulher subversiva como a Zahia. Ela é parte do seu próprio prazer e parte do prazer de quem está à frente dela. Por isso, o filme precisava ser feito.
Mas o filme é também um coming-of-age?
Sim, porque sentia-me mais próxima à Nayma. Eu sou muito inofensiva. A minha emancipação veio através dos estudos. Estudei até aos 25 em França e é tradicionalmente assim. Por isso senti-me mais próxima dela, de uma personagem não muito sexualizada que faz o seu caminho normalmente e que assume a famosa frase do Pascal [que surge nos créditos iniciais do filme]: que o mais importante nas nossas vidas é a escolha da profissão. E no final ela decide. E decide porque foi confrontada com a exaustiva liberdade da Sofia, com o comportamento indecente daqueles homens, da mentoria de um tipo – que a aconselha a ser mais brava do que é, porque se sente um escravo – , o desprezo da sua própria turma. Ou seja, é um verão.
É muito terna com todas as personagens do filme, não só com as raparigas…
Sou uma pessoa terna… [risos]
E pode explicar então essa ternura por aqueles homens?
Sinto desejo por eles. Levou-me anos – com o Ken Loach e os Dardenne como mentores. Queria ver no cinema a vida de gente rica. Queria que o cinema trouxesse a vida hollywoodesca. O cinema americano fez parte do meu processo, o cinema italiano também. Queria mostrar a vida dos bonitos e famosos. Claro que tive outros desejos, mas respondendo de uma forma franca, creio que a minha responsabilidade como cineasta é construir personagens de uma forma muito justa. E se olhar para as mulheres de uma forma justa, olho para os homens também de uma forma justa. Às vezes vejo construções de virilidade que de forma alguma reconheço. A minha responsabilidade era mostrar aqueles homens, não como os grandes produtores, de cigarro na boca, a serem abusivos com estas mulheres. Não. Eles também são muito sedutores e sensíveis. E entendo completamente que a Zahia queira ter sexo com o Nuno Lopes.
Pode desenvolver um pouco a forma como lida e mostra a sexualidade no filme, até porque é fabulosa?
A parte mais engraçada é que este filme usa o humor também como uma arma. Por exemplo, a Catherine Breillat que é uma grande inspiração no cinema francês, mas não o é para mim de forma direta. E não é, porque não usa muito humor. É outra geração, outro projeto de cinema que admiro muito.
Eu decidi usar um tom mais terno. E se reparar, nas cenas de sexo, nós vemos o rabo do homem, assistimos a ser ele a dizer “eu sou teu“, e não ela. Ele é que diz: “faz o queres de mim” e abandona-se ele próprio desse prazer. Ou ele ter um dedo no rabo. Desculpem dizer isto [risos], mas é algo muito comum e não se vê nunca isso no cinema. A um certo momento, precisas que a tua realidade seja mostrada pela representação.
Pode comentar a escolha do Benoît Magimel para o papel?
Ele é fantástico. Não faço ideia porque não trabalhei com ele antes. Ele transmite e carrega uma certa melancolia. Nós conseguimos perceber que ele adora o sucesso, que ama a literatura. É uma combinação de várias dimensões. Entendo completamente porque o cinema francês o usa tantas vezes como alguém generoso. Alguém que transforma as outras pessoas em alguém melhor.
E a escolha de Nuno Lopes?
Tenho uma relação forte com Portugal, por causa da minha mãe – que morreu quando eu era pequena. Ela era professora de Espanhol e de Português e traduzia livros. Por acaso, eu abria livros e estava lá o nome dela. Ela colaborou como tradutora. Queria ter a certeza que a dimensão da colonização não estava no filme. Como a Zahia era uma mulher árabe, aqueles tipos no iate tinham de ser mediterrâneos. Se não fossem, iria adicionar uma camada suplementar social que não desejava.
E porquê o título “Une Fille Facile”, um foco mais na rapariga?
Escolhi “Une Fille Facile” porque não existe [a expressão] “Un Garçon Facile”. Mas os homens são fáceis. É muito fácil ser convidada para ir para estes iates. Era uma forma de comentar, questionar, o que é uma rapariga fácil? O que é uma vida fácil? O que é uma mulher difícil? Foi apenas uma escolha sem qualquer hipocrisia. Olhar para o primeiro cliché que esta mulher transmite e partir daí para acabar com ele.
A erotização da personagem, acha que seria possível se escolhesse alguém que não fosse já famosa por isso?
Acho que sim, mas era mais interessante com estas camadas logo definidas. Acho que é por isso que adoro trabalhar com atores e atrizes profissionais. Ela é uma estreante, mas a sua vida passada era como uma coleção de papeis. Quando se trabalha com a Catherine Deneuve, Isabelle Adjani ou o Benoît Magimel usamos os papeis que eles tiveram no passado. Gosto de jogar com isso. Não quero apagar o seu passado. Era mais interessante ter este filme com o imaginário da prostituição do passado, mesmo que esse não seja o tema de todo.
Não existe um elemento de risco na objetificação do corpo da personagem?
Sinto-me muito corajosa. Acho que temos de ser ousados para fazer declarações firmes. Este tema é interessante de discutir com a audiência. Como sabe, sou uma feminista declarada e muito ativa, faço parte da 50/50, que fundamos com a Céline Sciamma. Sinto que não tenho de sentir aprovação nas atividades neste campo, mas sinto que tenho de trazer algumas nuances e um certo libido, um maior erotismo e clarividência nesta luta em França. Isto talvez seja estranho no seu país: “isto é esquisito, porque ela é um objeto, mas não é uma prostituta”. Acho que esta é uma boa maneira de fazer um tributo a estas personagens.
É um filme complicado sobre uma mulher complicada, subestimada. O que não está no filme são questões de classe. Pode falar um pouco disso?
Sim, claro. Na própria erotização existem logo várias questões de classes. Em todo o lado há questões de classes, questões de corpo, questões sociais, questões monetárias. Em todo o lado, a toda a hora. No filme temos de interiorizar o alcance da sociedade nela. Se não acontecer, o filme está incompleto. Eu não posso fingir que trago esta personagem e a construo, sem trazer gente silenciosa que simplesmente a observa. Mas a violência social que acho mais importante é a violência social que vem de dentro da tua própria classe.
Acha que as mulheres conseguem por vezes ser mais agressivas com as mulheres que os próprios homens?
Sim, sinto isso. É como quando és pobre e depois não és e não queres de todo voltar a ser. Os eleitores de Bolsonaro e Trump são os mais pobres. Por isso, quando sobes um bocadinho tens um tal medo de descer que te tornas mais agressivo com aqueles que te ameaçam. Sim, definitivamente as mulheres podem ser as piores para outras mulheres. Mas, no meu caso, nunca experienciei nada para além de solidariedade e sororidade vindas delas. Mas também, nunca ninguém foi violento comigo. Talvez seja abençoada por isso.
O racismo social foi algo que gostei de jogar no filme, mesmo que de uma forma ligeira.
Houve algum desafio particular em termos técnicos para este filme?
Sim, no som. Nós filmamos num mês porque tive de filmar algo logo a seguir, uma série que será exibida no Canal+. Por isso sabia que teria de me apressar devido a agenda. O som foi difícil, porque quando estamos na Côte D’Azur, no período do verão, é uma explosão de gente. Mas o meu engenheiro de som foi um génio, ele trabalha com o Bertrand Bonello, Olivier Assayas, Arnaud Desplechin. O som foi um problema, as locações foram outro.
Pode falar da tal série de TV que filmou, “Les Sauvages”?
“Les Sauvages” é uma adaptação de uma obra de Sabri Louatah, é um trabalho político que aborda o primeiro presidente de origem árabe de França, interpretado por Roschdy Zem, que sofre um ataque. Este é o primeiro episódio, que vai para o ar em setembro.
Voltando ao filme, a Sophia Loren é mencionada e você falou da influência dos anos 60 nele…
Sim, ela chama-se Sofia, como a Sophia Loren. A música, que ela canta, é de um filme da Loren. A ligação que temos com a Zahia Dehar é definitivamente no mesmo imaginário cinematográfico do erotismo. Nós partilhamos isso. Não é uma coincidência. Gosto dela e ela gosta das mesmas coisas que gosto. Ela brota um imaginário do cinema italiano dos anos 60 neste filme. E esse é um imaginário que carrego também há muito tempo.
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Marcello Mastroianni e Claudia Cardinale / Foto.: Luce Cinecitta
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No início de 2020, mais precisamente no a 5 de janeiro, dá-se início à Retrospectiva Integral e à carta branca de um dos grandes devotos da cultura portuguesa, Eugène Green. Nascido em Nova Iorque e radicado em Paris, o realizador celebrizado em filmes “A Religiosa Portuguesa” e “La Sapienza” sempre renegou o inglês, chegando mesmo a recusar dialogar com alguém nesse “bárbaro” dialeto, como o considera. E não se trata de um mero capricho, o realizador é um ávido devorador da palavra, a verdadeira energia das suas personagens, das suas ficções e realidades. Green é um homem literal e com isso preza a sua liberdade na escrita e no processo de produção dos seus filmes.
“A Imagem da Palavra“, o cabeçalho desta exposição exaustiva sobre a sua obra, é um atalho para entender o seu cinema e a última palavra aos universos criados pela sua prosa. Essa profunda análise ao seu cerne encontra uma extensão: os filmes que acompanham a sua figura, sejam eles da sua autoria ou de outros mas que fazem parte do seu paladar cinéfilo. Eugène conversou comigo sobre esta proposta, sobre a “sua palavra”, mundo e sapiência.
Na sua carreira, o que representa uma exposição como esta?
Apesar de eu já ter tido retrospectivas (quando a minha filmografia era um pouco mais curta, em festivais como o de Turim, Gijón, Riga, Paris-Cinéma, e recentemente na Cinemateca de Toulouse e no Arsenal em Berlim), esta é a primeira vez, tendo em conta a retrospectiva, no qual sou fruto de uma exposição num prestigiado museu de arte contemporânea. Como é óbvio, a sua representação é para mim importante.
Podemos esperar uma abordagem “íntima” da sua visão cinematográfica e poética nesta exposição? Não tem medo de expor o essencial, o íntimo, do seu trabalho?
Este é, de facto, um olhar externo ao meu trabalho – neste caso, o de António Preto [diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira] – e representa isso mesmo, sob outra forma, um artigo de análise crítica. Não é “íntimo”, pois não sou eu que me exponho aqui, mas alguém que, de forma contemporânea, observa atentamente e disseca o meu trabalho. Encaro isso como uma abordagem muito interessante e simultaneamente acredito que pode ajudar as pessoas a gostarem do meu cinema.
Visto tratarmos aqui de retrospectivas e análises ao seu trabalho, existe algum arrependimento na sua carreira? Por oposição, de que obras é que mais se orgulha?
Lamento especialmente ter perdido tanto tempo. Enquanto escrevo guiões com facilidade, lancei-me em muitos projetos, mas para que eles tenham sucesso, com algumas raras exceções, o tempo de espera é entre os quatro a cinco anos. Também lamento muito ter sido forçado a filmar “La Sapienza” e “Faire la parole” em digital, embora tenha sido acordado que os filmaria, tal como os outros filmes, em película. Os meus filmes são como se fossem os meus filhos, amo todos eles. Mas tenho uma ternura particular pela “A Religiosa Portuguesa”, porque foi aí, segundo a minha perceção, que fui mais longe em direção àquilo que procuro.
Em relação a Portugal, pode explicar este seu apego pela nossa cultura e pelas nossas pessoas?
É algo natural e espontâneo, que não procuro analisar intelectualmente. Portugal, o seu povo, a sua cultura e a sua língua tocam-me e despertam em mim uma memória que, sem dúvida, é mais antiga que o meu próprio nascimento.
La Sapienza (2014)
O que pode nos dizer sobre o projeto “Lisboa Revisitada”?
Era “uma encomenda”, não no sentido em que me ditaram o tema, mas simplesmente porque me pediram para criar algo novo para a exposição, e o orçamento modesto do filme era financiado pela Serralves – o que significou que não houve a necessidade de esperar cinco anos para a sua realização. Também foi interessante enquanto experiência, pois é o meu primeiro filme de “montagem” – justapondo imagens de “A Religiosa Portuguesa” com imagens dos mesmos lugares, em Lisboa, filmadas em abril de 2019. É, portanto, um filme sobre os danos do turismo em massa e como este destrói a vida e a civilização. Mas espero desenvolver esse tema de maneira mais profunda, bem como o da violência no mundo contemporâneo, através de uma ficção que quero filmar em Portugal e em português … isto se pudermos encontrar o financiamento antes que o mundo acabe.
O que pode-nos dizer sobre o seu novo filme – "Atarrabi & Mikelats"?
É uma longa-metragem inspirada nos principais relatos da mitologia basca, sobre os dois filhos de Mari, a grande deusa basca, que adaptei para expressar alguns temas importantes para mim. E é inteiramente falado em basco. É um filme do qual me orgulho e espero que seja lançado em Portugal.
A temática desta exposição é a Palavra. No seu cinema, são as palavras que controlam a vida e não os gestos…
O tema realmente é – como o título diz – “A Imagem da Palavra“, que é a minha definição de Cinema, pois para mim o plano cinematográfico funciona como o discurso que existia na civilização europeia antes do triunfo, no século XVIII, da cultura racionalista e materialista. Existem muitas palavras nos meus filmes, mas elas visam tornar perceptível a vida interior daqueles que as falam. E tudo isso faz parte do plano cinematográfico. As minhas personagens podem não fazer muitos gestos, mas todo o processo do filme constitui uma ação.
Com exceção de “Tout Le Nuits” – baseado na obra ‘A Primeira Educação Sentimental‘ de Gustave Flaubert – os seus projetos foram inteiramente escritos com as suas palavras. Acha que com isso consegue controlar melhor um filme?
Nunca fiz essa pergunta, mas como acho que a ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade, em toda a sua complexidade, gosto de criar ficção. Acredito que a “adaptação” de uma obra literária ao cinema, como geralmente a consideramos, é prejudicial e, sim, gosto de ser completamente livre para desenvolver as minhas ficções e determinar as palavras que dizem as personagens.
No “Le Monde Vivant”, existe aquilo que podemos considerar uma (re)alfabetização do real. No mundo em que vivemos, esta nova alfabetização do real é realmente necessária?
Não sei se entendi bem a pergunta. Você evoca as poucas referências como “Jules Ferry” e “bruxa lacaniana”? Não precisa conhecê-los para apreciar o filme. A prova é que, na França, está no catálogo de uma associação chamada “Infância e Cinema”, que organiza exibições de filmes para grupos escolares. Já foi visto e geralmente apreciado por cerca de 70.000 crianças entre oito e dez anos, as quais duvido que saibam o nome de Jules Ferry e das quais espero que nenhuma tenha sido colocada nas suas mãos de uma bruxa lacaniana.
Ana Moreira em "A Religiosa Portuguesa" (2009)
Gostaria que me falasse sobre as suas escolhas cinematográficas na carta branca, em particular na indicação de “Mimosas”, de Oliver Laxe.
Por razões alheias ao meu controlo, a seleção final não reflete totalmente a minha ideia inicial, que era programar três clássicos representativos da minha cinefilia e três jovens realizadores que fazem parte da minha “família” cinematográfica. Dos três clássicos, um filme de Ozu não estava disponível (e o segundo filme de Ozu, que propus, também não estava disponível). Entre os três jovens, queria programar o último projeto do Oliver Laxe, “O Que Arde”, mas o distribuidor português não autorizou a exibição. Então programei o seu penúltimo filme, “Mimosas”, o qual também gosto muito, mas que pode ser considerado mais difícil para alguns espectadores.
Todos esses cineastas, mortos ou vivos, têm em comum uma ideia elevada do cinema como arte, uma linguagem pessoal e, sob diferentes formas, os respetivos trabalhos têm uma dimensão espiritual. Obviamente, entre os clássicos, também poderia ter escolhido uma obra de Bresson, Oliveira ou Fellini, cineastas que admiro muito, e entre os vivos, [um trabalho de] Bruno Dumont, Miguel Gomes, Pedro Costa, Apichatpong ou Eloy Enciso. Programar uma carta branca é como decidir que amigos vamos convidar para uma festa.
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“La Belle Époque” pode muito bem ser o novo "crowd pleaser" de Nicolas Bedos (“Monsieur & Madame Adelman”), mas o filme que é descrito nas tão apetecíveis equações da crítica americana como um cruzamento de “The Truman Show” com “Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, é-nos apresentado como uma subliminar analogia da chamada "nostalgia mercantil".
Poderá ser equívoco, mas vivemos em tempos ultra-capitalistas onde as memórias adquirem um certo valor monetário, um saudosismo ao serviço do empreendedorismo. Basta ver a atual governação da Disney nas bilheteiras com a maioria dos seus sucessos e ainda o mais recente “Star Wars”, com J.J. Abrams como o "rei" da “nostalgia a saldos”.
“La Belle Époque” assenta nesta ideia de saudosismo, neste caso para um reencontro de “amantes” quando um velho cartunista (Daniel Auteuil) requisita um serviço de réplica de memórias (dirigido por um paranoico Guillaume Canet) como escapismo da sua fracassada vida matrimonial. Esta comédia romântica parte desse princípio do valor sentimental que as recordações possuem, capitalizando-as descaradamente para, no final, nos entregar o que muitos filmes entregaram, a lamechice proveniente dos encantos do romance cinematográfico para as massas.
Nada contra, nada a favor, visto que Bedos tem uma realização segura e uma aposta estética confortavelmente atmosférica. E, acima disto tudo, o elenco possui a capacidade de transformar os modelos em seres empáticos (está aqui o papel mais relevante de Fanny Ardant em anos) e os momentos assumidamente “lelouchianos” [relativo ao cinema romântico e caloroso de Claude Lelouch] compensam as mundanas escolhas que o filme fará.
No fim de contas, estamos perante um filme que quer transmitir prazer ao grande público. Para isso há que satisfazê-lo mostrando os lugares-comuns das suas memórias. Sim, porque o conforto das nossas recordações continua a ser um atrativo bem de mercado, mesmo se “La Belle Époque” gosta de jogar com os dois lados desta moeda.
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O que reter numa década de cinema português? Um desafio difícil e um pouco ingrato, esse de deixar de fora uma produção que tem lutado contra anos zeros, faltas de apoios, público e por vezes falta de ideias. Mas este é o cinema que amo com todos os seus defeitos e virtudes (alguns dos filmes mais belos são sem dúvidas portugueses). Como tal, eis os 10 selecionados para marcar 10 anos de arte à portuguesa.
A Batalha de Tabatô (João Viana, 2013)
Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)
A Fábrica do Nada (Pedro Pinho, 2018)
Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016)
Tabu (Miguel Gomes, 2012)
Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)
Mudar de Vida - José Mário Branco, a vida e a obra (Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, 2014)
Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)
O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, 2012)
As Mil e uma Noites (Miguel Gomes, 2015)
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O escritor William S. Burroughs e David Cronenberg entre os adereços de "Naked Lunch" (1991)
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Alerto o leitor que, mesmo sem spoilers, para fins de analogia e de crítica, poderão existir pormenores ou sugestões subliminares quanto ao enredo.
Em jeito de despedida, esta nova trilogia (canónica) de “Star Wars” chega ao fim com uma questão: será possível ainda contar novas histórias numa mitologia gasta e acorrentadas ao loop analítico dos seus fãs?
A resposta é sim, praticável, o problema é a capitalização, ou melhor, a forma como este universo encontra-se a ser explorado na sombra da Disney, a sua nova proprietária que colocou George Lucas num canto. Primeiro, há uma recorrência constante ao terreno familiar por este legado, a nostalgia mercantil espremida e abusada de forma a deixar cair as réstias do seu sumo. Depois é o senso comum entranhado nas “majors” em relação ao que definem de entretenimento para as massas. Por outras palavras, são os enredos minados de rodriguinhos que não deixam margem de surpresa ao espectador. Tudo se torna previsível, mesmo quando um franchise com 40 anos de longevidade deu muito os seus frutos.
O problema aqui, meus caros, não se trata de ser ou não ser adepto destas viagens interestelares, dos duelos de sabres de luz ou do grito característico de Chewbacca. A fraqueza deste registo é não ser esta a história que um fã pediria como desfecho (até “Avengers: Endgame” teve mais respeito pelos seus seguidores).
Deixemos então a competência dos desempenhos (Daisy Ridley e Adam Driver continuam como os lemes), a qualidade dos efeitos visuais (até mesmo dos efeitos práticos), ou os episódios diretamente vinculados aos originais (a reciclagem do elenco e as suas respectivas homenagens). Existe por aqui uma euforia em terminar um enredo que segue torto e dorido (“The Last Jedi” cometeu riscos que não trouxeram benefícios), tudo através de uma narrativa apressada que não dá espaço para desenvolver as personagens secundárias, com twists encaixados com pé-de-cabra e um clímax que – por si só – não mereceu a espera. Neste ponto, o culminar é da mais absoluta vulgaridade em termos criativos.
Na verdade, é a indústria a falar mais alto. Sim! Bem sabemos que isto já é uma cantiga velha e impotente, mas a dita industrialização gera uma preguiça artística, um vazio de ideias, tudo aproximado àquela noção de “fan fiction”. E não é preciso realçar que foi numa galáxia muito, mas muito distante (em 1977 para sermos exatos) que George Lucas, saído de dois filmes tão promissores que eram “THX 1138” e “American Graffiti”, criava uma obra mista de sci-fi e aventura com raízes nas jornadas feudais de Kurosawa e sem medo de cair no ridículo. O resultado disso foi a criação de uma mitologia fresca a caminho de se tornar num dos santos padroeiros da formatação das sagas e histórias milionárias até hoje.
Porém, a fábula já não é mais nova. Ao invés, esta é uma vaca leiteira pronta a ser ordenhada. Nada de novo e inspirador é sugado da sua glândula mamária. Tudo certinho, tudo formal, tudo inconsequentemente vazio.
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