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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Family Romance, LLC": alugam-se memórias, afetos e … identidades

Hugo Gomes, 29.11.19

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Werner Herzog abdica da sua tão célebre (e satirizada até à exaustão) narração naquele que é possivelmente um dos seus filmes mais espirituosos e ternos dos últimos anos.

Partindo em viagem para às metrópoles japonesas, Tóquio como destino assumido, o cineasta alemão vai ao encontro de algo bizarro segundo a percepção ocidental: uma empresa onde é possível alugar um “familiar”, um “amigo” ou qualquer outra forma de afeição. Isto, num país onde a solidão é mais que tudo, uma parte íntegra da rotina, da existência e do individualismo silenciado. Todavia, nem todos desejam viver sob esses sacrifícios coletivos em prol da nação e, como tal, a “Family Romance, LLC” foi criada para responder às necessidades de alguns.

Ideia inconcebível para quem, como é o caso de muitas realidades da ala ocidentalizada do mundo, a noção de família ou de intimidade são territórios sagrados e indissociáveis à natureza do indivíduo. Herzog vem para alimentar os mitos de exotismo e estranheza quase nos antípodas da sociedade japonesa, e através disso busca a alma do negócio e – por sua vez – o abalo sísmico para com o mesmo. No epicentro desse mesmo estudo está Yuichi Ishii, presidente executivo da empresa que é requisitado para uma das mais árduas tarefas da instituição (contratado por uma mulher solitária para pretender ser o pai da sua filha adolescente).

Por mais bizarro e incómodo que este filme aborde, durante a sua investigação, os efeitos desse isolamento afetivo apenas resolvido pela farsa, manifestam-se as consequências existenciais de Ishii, que questiona constantemente a sua posição enquanto ser humano e a verdadeira essência da sua alma, contagiada pelas diversas vidas de passagem (o próprio compara-se com um camaleão e procura na ideia fixada da morte a resposta para os seus males). O profissionalismo e rigor pelo qual os japoneses são mundialmente encarados são ingredientes que valham para a cedência do ator improvisado em relação ao seu bem-estar. Mas nem sempre essa camada supostamente fria é impenetrável. Herzog, que começa por interessar-se pelo negócio e o seu processo de execução, abdica (mais uma cedência!) do seu caso de estudo para acompanhar esta crise identitária e as necessidades que vão sendo descobertas em Ishii.

A partir daí, o filme encena-se em prol de um teatro de crueldade e de martirologia, pois para consolidar almas inquietas e quebradas pela distância sentimental, o nosso protagonista imola a sua felicidade, o conforto de um lar, os afetos genuínos, e não somente dramatizados.

Um dos melhores filmes de Werner Herzog nos últimos 10 anos.

No fio da navalha ...

Hugo Gomes, 27.11.19

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Após Kenneth Branagh ficar preso na plasticização da adaptação do romance crucial de Agatha Christie (“Murder on the Orient Express”), a grande mais valia de "Knives Out: Todos São Suspeitos" é a revitalização do chamado "whoddunit", a cadência de "thriller" que se apoia principalmente na revelação do assassino. O realizador Rian Johnson é o cabecilha deste misterioso crime - a morte de um romancista milionário e a suspeita de um homicida entre a afortunada e vil família - ingredientes perfeitos para fazer esquecer os fãs irados com a sua odisseia no espaço infinito (“Star Wars: The Last Jedi”) e investir numa nova saga detectivesca.

Por entre as luxuosas assoalhadas da mansão Thrombey, como um jogo Cluedo, “Knives Out: Todos São Suspeitos” joga-o com a segurança de nunca transgredir da sua linha, minando a trama com reviravoltas atrás de reviravoltas com o objetivo de surpreender o poder de dedução do espectador. Com um elenco de luxo: Daniel Craig, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette e Christopher Plummer. Trata-se de um exercício de entretenimento passageiro e perspicazmente virtuoso, ainda que este divertimento não seja sinónimo de cinema e ao filme de Rian Johnson falte sobretudo a ousadia de cometer o crime e não ser apanhado em pleno delito. É tudo correto, formalmente previsível (não confundir com o argumento que tantas voltas dá) e demasiado acanhado e acalcado nos seus “rodriguinhos”. Ou seja, é aquilo que esperávamos numa produção deste calibre e natureza.

Contudo, é no território que outros antes dele cruzaram que “Knives Out: Todos São Suspeitos” se vinga oportunamente como um disciplinado cidadão exemplar e, frisando mais uma vez, é no guião que encontramos o toque de matador.  Isso e na desconstrução de James Bond levada a cabo por Daniel Craig (a despedir-se a todo o custo da personagem que o tornou na estrela que é hoje em dia) que se dá pelo nome de Benoit Blanc… e com um sotaque sulista a condizer.

Don't Call me Angel

Hugo Gomes, 26.11.19

Não há céu para estes ‘Anjos’, nem boas intenções que o valham! Elizabeth Banks direciona um reinício / reboot desatento às necessidades de uma indústria estancada na (não)criatividade. O que ficou nas nossas mãos é um projeto insonso aos mais diferentes níveis cinematográficos, seja na edição extremamente decoupada sem noção de espaço nas sequências de ação, seja nas “falinhas mansas” de um guião visto e revisto. No final das contas, Kristen Stewart sobrevive em jeito de graça.

De bons rapazes a maus velhotes ...

Hugo Gomes, 25.11.19

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“I Heard You Paint Houses”

Martin Scorsese coloca o último prego no subgénero "filme da máfia" que tem sido um dos estandartes da carreira. Incontornável com os seus “Mean Streets” (1973), “Goodfellas” (1990) e “Casino” (1995), o realizador, que atualmente anda nas bocas do Mundo pelas críticas ao domínio da Marvel na indústria, faz aquilo que poderemos apelidar do seu filme culminar. Aqui, acima da sua narrativa e todos os requisitos cinematográficos, está uma espécie de introspeção de um legado e de um círculo de “amigos” que o acompanhou nas suas aventuras.

Ostentando o orçamento equivalente ao de qualquer "blockbuster", maioritariamente dirigido à tecnologia "de-aging", “The Irishman” encara esse gasto não como um capricho mas uma atitude de aproximação do criador ao seu mais emblemático cúmplice do crime, Robert De Niro. Desde 1995 e “Casino” que não víamos novamente esta dupla e mesmo com o passar de anos, Scorsese não quis prescindir do seu Travis Bickle ou manobrá-lo perante as limitações da idade, sendo que a necessidade de integrar os flashbacks era, sobretudo, uma forma de honrar um percurso coletivo.

É por essas e por outras que De Niro é o nosso guia pelo seio de um mundo tão "scorseseano" e, verdade seja dita, o ano 2019 foi dos mais "scorseseanos" possíveis. Com as equívocas interpretações do seu “chico-espertismo” em “Vice”, de Adam McKay, no golpe das strippers de “Hustlers”, de Lorene Scafaria, ou na sensação da referência assumida com “Joker”, de Todd Phillips, chegamos finalmente ao genuíno toque de um homem que deseja, sobretudo, por um fim à sua corrente. O resultado é uma cerimónia fúnebre com toda (quase toda) gente deste universo reunida (em papéis secundários surgem Joe Pesci, Harvey Keitel, Bobby Cannavale) e até mesmo convidados de honra (a alegria de ver Al Pacino no seu glorioso "overacting"), cada um deles contribuindo para uma memória cinéfila.

The Irishman” é um filme sobre o seu autor, que extorque da América criminal para manifestar a sua visão do mundo que o rodeia e se transforma a olhos vistos, mas nunca abandonando a essência desse jogo de sombras. Scorsese é novamente o realizador sem fôlego no seu turbilhão de histórias, nos detalhes e na mestria como opera um "travelling" (o filme tem como convite um desses episódios à lá “Goodfellas”, mas sem grandiloquência). Como este também é um Scorsese diferente porque, como bem sabemos, o tempo altera-nos, já não encontramos o homem encantado e em pleno estado de "ecstasy" em relação ao seu mundo. Em vez disso, saboreamos a serenidade do realizador que desbrava terreno confortável através da paciência e da economia dos gestos, sem dar rasgos à austeridade.

O regresso de Joe Pesci, o dito “furacão” "scorseseano", aqui sob vestes de extrema imperturbabilidade (mas nem por isso menos ameaçador) é onde encontramos a analogia dessa mudança. É um "underacting" que contrasta com a chama intensa ainda existente em Al Pacino, que histericamente se repete - “It’s my Union!” [É o meu sindicato] – para que a frase silenciosa e igualmente impactante de Pesci faça todo o sentido – “It is what it is” [É o que é].

Crónicas de uma juventude abstrata

Hugo Gomes, 21.11.19

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A adaptação da homónima peça de teatro de Tiago Gomes Rodrigues, que já conta com oito anos, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” estreia como algo datado no frenesim das estreias no circuito comercial de cinema. É um filme sobre um país nos ares da troika, onde a austeridade estabeleceu um certo abstrato a um Portugal em plena fuga (ninguém sabe para onde). E é através desse surrealismo que nos fiamos na figura da girafa, animal esse que, segundo a nossa protagonista, seria uma criação mitológica se não existisse na realidade. A girafa é então a representação dessa disfuncionalidade que opera como um organismo único, e como tal Tiago Guedes, que antes de embarcar na grande produção de Paulo Branco – “A Herdade” – materializa a encenação e a enquadra visualmente numa alegoria universal e mesmo assim reconhecível.

Contra as vozes que querem transmitir o desespero da nossa subjugação à Europa e aos seus fundos e mais fundos para os dias de hoje, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” encontra apoio na sua protagonista (Maria Abreu), pré-adolescente inadaptada à realidade que a espera, e cuja jornada vai ser traduzida como um "comig-to-age"… ao lado do seu brejeiro ursinho de pelúcia, Judy Garland (Tónan Quito)… como uma alusão à nossa ingenuidade política e social. Aqui a imaginação e as desventuras de um “regresso a casa” diluem-se como aquarelas na narrativa do filme, que se prolonga no seu intenso “faz-de-conta”, respeitando a natureza da peça e, acima de tudo, o regulamento funcional do teatro enquanto arte de contar histórias.

Em tempos em que o público português pede ao seu cinema o realismo que a aura autoral nega, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” vem desafiar essa “necessidade” com uma absurda parábola que nos coloca em cheque quanto ao “estado das coisas”, desde as ruas afirmadas como tais até às ilusões que cada cidadão detém como motivação nas suas mundanas vidas. Infelizmente, chega às nossas salas depois de “A Herdade” e em oposição de um filme à moda de Paulo Branco, temos aqui um trabalho assumidamente Tiago Guedes (mesmo que seja tecnicamente descuidado face ao anterior/posterior).

O final violento e trágico marca essa passagem na vida. Por vezes somos obrigados a abandonar as nossas convicções de longa data para nos integrarmos nos conformes socialmente aceites deste quotidiano. Acima de tudo, o que o filme nos diz é que este Portugal da troika ainda vive em nós, quer para a alegria ou para a tristeza, como uma dualidade, daquelas falsamente impostas pela versatilidade do desempenho de Miguel Borges.

Porque o êxito de 2013 "Já Passou"

Hugo Gomes, 20.11.19

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Hans Christian Andersen mantêm-se como uma importante influência no legado animado Disney ou não tivesse uma das suas histórias mais queridas salvo o estúdio dos seus tempos negros com “The Little Mermaid” (1989) e, mais tarde, fomentado um dos grandes êxitos de sempre na animação com “Frozen: O Reino de Gelo” (2013). 

Baseado no conto da “Rainha do Gelo”, o primeiro “Frozen” jogou-se de cabeça numa tentativa de reviravoltear o modelo da historieta de fadas "disnesca". E essa mudança de jogo tornou-o num símbolo de emancipação feminina e pontapeou-se como o primeiro de uma nova era. Foi aqui que se notou claramente uma Disney mais preocupada com os calores de urgência social instigados pelas redes sociais e a necessidade de responder às minorias, fossem elas quais fossem, que trespassou para os diversos ramos do estúdio, inclusive a tão "infame" conversão "live-action" inspirada nas animações.

Contudo, esta dita “nova era” ficou-se pelo nome: a "Disney Animation" recorre novamente às “sequelites”, enquanto uma das suas assoalhadas, a Pixar, anuncia o abandono das continuações após "Toy Story 4" e aposta no conteúdo original. Mas sem Pixar, caça-se com Disney e o que obtivemos com este "Frozen II: O Reino do Gelo" é tudo menos sofisticação. Para sermos sinceros, destaca-se uma espécie de preguiça nos mais diferentes campos, desde o desenvolvimento das personagens até à formulação das suas "gags", passando pela falta de conflito e de foco emocional. Conclusão: sentimos mesmo estar perante uma sequela "direta para vídeo", daquelas que eram feitas há uns valentes anos, não fosse o grafismo, que mantém o habitual profissionalismo.

Depois é a interminável busca pelo novo “Let it Go”, o "single" que rompeu fronteiras da simples cantoria de desenho animado, tornando-se num hino para a afirmação pessoal: “Frozen II: O Reino de Gelo” é uma "barulheira" do início até ao fim, sem uma música que fique realmente no ouvido. Nem sequer consegue estabelecer uma autoparódia, como é o caso do momento musical de Kristoff (com a voz de Jonathan Groff), concebido como uma suposta sátira aos vídeos musicais romântico-populachos dos anos 90, que porventura bate de frente num espectador já vacinado contra estes escapismos melódicos.

É assim que se fazem sucessos e este "Reino do Gelo" está pronto para aquecer as bilheteiras: em equipa vencedora raramente se mexe, mesmo que o resultado desejado seja o enésimo produto estampado com a silhueta do Mickey.

"Existe uma espécie de 'cão raivoso' em mim", falando com Kris Hitchen, o ator de "Sorry We Missed You"

Hugo Gomes, 18.11.19

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Mais uma vez, a dupla Ken Loach (realizador) e Paul Laverty (argumentista) atribuem a voz ao operário que sob a cadência da modernização trespassa de um sistema para outro, o “trabalhador independente” na era das novas tecnologias e aplicações. Uma ilusão ao qual Ricky acede, condenado a “trabalhar até morrer” para conseguir retirar a sua família do sufoco financeiro, isto sem saber que cai na armadilha viciosa destes novos dialetos de exploração.

“Sorry We Missed You” (“Passámos por Cá”) é o típico filme na arte de Loach, com toda aquela ode ao proletariado e à tão proclamada classe trabalhadora, só que desta vez reajustada a ameaças de “cara lavada”, que de uma maneira ou outra dialogam com o Brexit e as suas repercussões. E no centro dessa denúncia enfaixada na dramaturgia, encontramos um ator explosivo - Kris Hitchen – que gerou uma personagem através da sua experiência no ramo, não da atuação, mas da resistência para com a “selvajaria” do trabalho precário.

Falei com o ator durante a sua passagem em Cannes, onde o filme integrou a Competição Oficial. Na altura desta conversa, Kris Hitchen era visto como um dos preferidos à estatueta de interpretação, um homem que percorreu um longo caminho para estrear-se em grande no Cinema.

Como é que não ouvimos falar de si? [risos] Onde é que você esteve?

Basta olhar para o meu diálogo inicial, tudo aquilo é verdadeiro, não é apenas da minha personagem. Tive vários trabalhos ao longo dos anos. Trabalhei para sobreviver. Não sou ator, mas sim um canalizador e sei muito bem o que é ganhar para pagar uma renda. Sofri com complexidade e transmiti isso à minha personagem.

Mas não vim de uma família desinformada. O meu pai era diplomado e mesmo assim confinou-se a trabalhos de poucas pretensões. Uma pessoa faz o que faz para sobreviver. O que aconteceu, no meu caso, foi que tive aulas de atuação e um par de semanas depois já tinha um agente que me garantiu pequenos papéis na televisão. Até chegar aqui, obviamente.

Mas sempre foi apaixonado pela atuação?

Sabe, sempre fui conhecido como o “palhaço de turma”, sempre a fazer piadas, brincava e era extrovertido. Sempre fui o melhor bailarino, essas coisas, estão a ver. Ria-me na cara das pessoas de uma maneira particular. Isto pode soar algo infame, mas quando temos a capacidade de manipular à nossa volta, temos aptidão para a atuação. Talvez seja essa minha experiência que me abriu portas como ator.

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Mas este seu desempenho é tudo menos sorridente.

Quando temos uma vida cheia, podemos canalizar qualquer experiência e distribuí-la em alguns momentos na vida de Ricky. Por isso, é fácil de manobrar.

Pegando no ínicio da nossa conversa, para criar o Ricky usou o seu passado?

Usei o meu passado sim, a minha experiência, a minha resistência pelo que passei em vida para chegar onde cheguei. Este papel requeria uma espécie de regresso às minhas “cicatrizes”, uma investigação à minha alma e às minhas emoções ocultas. Para fazer de Rick tinha que invocar as minhas lutas, aquela resistência que vos falei. De onde vim, não é costume erguemo-nos do chão, mas sim continuar a pontapear mesmo quando estamos estendidos. Como tal é necessário gerar esta motivação, a energia para fazer-voltar a estar de pé. E é essa energia que usei no Rick. Talvez seja por isso que fui escolhido para este papel. Existe uma espécie de “cão raivoso” em mim.

E foi fácil usar esse método com Ken Loach? O de vincular a sua experiência?

É curioso quando um realizador dá-nos as ferramentas necessárias para aprofundarmos a nossa personagem. Filmamos em seis semanas e o Ken e o Paul eram hábeis em criar situações que nos levam aos extremos das nossas emoções. Pode não parecer, mas por vezes tínhamos aquelas cenas onde nada acontecia, mas elas serviam de arranque para algo maior. E nesse percurso trabalhávamos emocionalmente a nossa personagem, porque tínhamos que estar preparados para o embate que a dupla nos preparava. Eram engenhosos nesta composição.

De certa forma, Ricky fala por toda uma classe trabalhadora que está a passar por mudanças na sua precariedade. Utilizou apenas a sua experiência ou fez investigação para que fosse possível elaborar uma personagem universal?

Bem, eu sou da classe trabalhadora, mas enquanto atores temos que fazer um trabalho de investigação. No caso desta personagem era necessário aceder a estatísticas e os relatórios políticos e sociais sobre o seu “ambiente”. Porém, não precisei nada disso. Eu conheço este dito “ambiente” e temos que ter conta que o Ricky está marcado para trabalhar até morrer. Isso deve-se a um sistema que falha com ele. Como tal, o Ricky tem que entrar neste mundo do trabalho por conta própria, que atualmente é de grande relevância económica e que dá uma falsa sensação de conforto. Pessoas como eu e como a minha personagem cedem a isto por causa de “falsas-sensações”. Existe esta independência, liberdade, emancipação, mas são apenas truques para nos afastar de um sistema fracassado. Este “trabalho por conta própria” é rodeado de mentiras que nos levarão a novos obstáculos. Tudo aquilo que vemos no filme é verdadeiro, isso, vos garanto.

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Em Portugal é costume dizer-se que “trabalhamos até morrer” e em certa parte foi esta a ideia que nos impuseram desde os primórdios da nossa existência. O filme de uma maneira ou de outra aborda essa questão. Sempre seremos escravos do trabalho?

No Reino Unido nós temos uma frase que é: “Nós trabalhamos para viver, não vivemos para trabalhar“. E continuando a brincar com as palavras, grande parte dos ingleses tem uma hipoteca [“mortgage“] para pagar, que tem a referência de morte no nome (“mort-gag“), que logo nos dá a ideia de uma prisão, só que essa prisão é a nossa casa. E quando temos casa própria, temos que pagar taxas e impostos para o resto da nossa vida. Portanto sim, estamos condenados a este ciclo. Mas não é só no Reino Unido, todo o Mundo está rendido a isto. Curiosamente, ouvi numa conferência que se retirarmos as 8 pessoas mais ricas do Mundo, estaríamos a retirar 20% das riquezas mundiais. Ou seja, imagina estes 20% retidos em apenas 8 pessoas? A riqueza está mal distribuída.

E em relação ao Brexit?

[risos nervoso] Acho que se tem que ter cuidado ao falar sobre esses assuntos. Em relação à decisão só digo apenas que: se as coisas estão bem, para quê mudar? Estão a perceber? Agora, toda a campanha do #Leave foi uma fraude em que muitos “caíram”. Um monte de mentiras, mas é tarde demais. A cruz já estava feita na caixa. Aliás, nós somos todos culpados pela situação.

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