Madame Satã, a própria ...
Kay Johnson em imagem promocional de "Madam Satan" (Cecil B. DeMille, 1930)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Kay Johnson em imagem promocional de "Madam Satan" (Cecil B. DeMille, 1930)
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Werner Herzog abdica da sua tão célebre (e satirizada até à exaustão) narração naquele que é possivelmente um dos seus filmes mais espirituosos e ternos dos últimos anos.
Partindo em viagem para às metrópoles japonesas, Tóquio como destino assumido, o cineasta alemão vai ao encontro de algo bizarro segundo a percepção ocidental: uma empresa onde é possível alugar um “familiar”, um “amigo” ou qualquer outra forma de afeição. Isto, num país onde a solidão é mais que tudo, uma parte íntegra da rotina, da existência e do individualismo silenciado. Todavia, nem todos desejam viver sob esses sacrifícios coletivos em prol da nação e, como tal, a “Family Romance, LLC” foi criada para responder às necessidades de alguns.
Ideia inconcebível para quem, como é o caso de muitas realidades da ala ocidentalizada do mundo, a noção de família ou de intimidade são territórios sagrados e indissociáveis à natureza do indivíduo. Herzog vem para alimentar os mitos de exotismo e estranheza quase nos antípodas da sociedade japonesa, e através disso busca a alma do negócio e – por sua vez – o abalo sísmico para com o mesmo. No epicentro desse mesmo estudo está Yuichi Ishii, presidente executivo da empresa que é requisitado para uma das mais árduas tarefas da instituição (contratado por uma mulher solitária para pretender ser o pai da sua filha adolescente).
Por mais bizarro e incómodo que este filme aborde, durante a sua investigação, os efeitos desse isolamento afetivo apenas resolvido pela farsa, manifestam-se as consequências existenciais de Ishii, que questiona constantemente a sua posição enquanto ser humano e a verdadeira essência da sua alma, contagiada pelas diversas vidas de passagem (o próprio compara-se com um camaleão e procura na ideia fixada da morte a resposta para os seus males). O profissionalismo e rigor pelo qual os japoneses são mundialmente encarados são ingredientes que valham para a cedência do ator improvisado em relação ao seu bem-estar. Mas nem sempre essa camada supostamente fria é impenetrável. Herzog, que começa por interessar-se pelo negócio e o seu processo de execução, abdica (mais uma cedência!) do seu caso de estudo para acompanhar esta crise identitária e as necessidades que vão sendo descobertas em Ishii.
A partir daí, o filme encena-se em prol de um teatro de crueldade e de martirologia, pois para consolidar almas inquietas e quebradas pela distância sentimental, o nosso protagonista imola a sua felicidade, o conforto de um lar, os afetos genuínos, e não somente dramatizados.
Um dos melhores filmes de Werner Herzog nos últimos 10 anos.
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Após Kenneth Branagh ficar preso na plasticização da adaptação do romance crucial de Agatha Christie (“Murder on the Orient Express”), a grande mais valia de "Knives Out: Todos São Suspeitos" é a revitalização do chamado "whoddunit", a cadência de "thriller" que se apoia principalmente na revelação do assassino. O realizador Rian Johnson é o cabecilha deste misterioso crime - a morte de um romancista milionário e a suspeita de um homicida entre a afortunada e vil família - ingredientes perfeitos para fazer esquecer os fãs irados com a sua odisseia no espaço infinito (“Star Wars: The Last Jedi”) e investir numa nova saga detectivesca.
Por entre as luxuosas assoalhadas da mansão Thrombey, como um jogo Cluedo, “Knives Out: Todos São Suspeitos” joga-o com a segurança de nunca transgredir da sua linha, minando a trama com reviravoltas atrás de reviravoltas com o objetivo de surpreender o poder de dedução do espectador. Com um elenco de luxo: Daniel Craig, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette e Christopher Plummer. Trata-se de um exercício de entretenimento passageiro e perspicazmente virtuoso, ainda que este divertimento não seja sinónimo de cinema e ao filme de Rian Johnson falte sobretudo a ousadia de cometer o crime e não ser apanhado em pleno delito. É tudo correto, formalmente previsível (não confundir com o argumento que tantas voltas dá) e demasiado acanhado e acalcado nos seus “rodriguinhos”. Ou seja, é aquilo que esperávamos numa produção deste calibre e natureza.
Contudo, é no território que outros antes dele cruzaram que “Knives Out: Todos São Suspeitos” se vinga oportunamente como um disciplinado cidadão exemplar e, frisando mais uma vez, é no guião que encontramos o toque de matador. Isso e na desconstrução de James Bond levada a cabo por Daniel Craig (a despedir-se a todo o custo da personagem que o tornou na estrela que é hoje em dia) que se dá pelo nome de Benoit Blanc… e com um sotaque sulista a condizer.
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“I Heard You Paint Houses”
Martin Scorsese coloca o último prego no subgénero "filme da máfia" que tem sido um dos estandartes da carreira. Incontornável com os seus “Mean Streets” (1973), “Goodfellas” (1990) e “Casino” (1995), o realizador, que atualmente anda nas bocas do Mundo pelas críticas ao domínio da Marvel na indústria, faz aquilo que poderemos apelidar do seu filme culminar. Aqui, acima da sua narrativa e todos os requisitos cinematográficos, está uma espécie de introspeção de um legado e de um círculo de “amigos” que o acompanhou nas suas aventuras.
Ostentando o orçamento equivalente ao de qualquer "blockbuster", maioritariamente dirigido à tecnologia "de-aging", “The Irishman” encara esse gasto não como um capricho mas uma atitude de aproximação do criador ao seu mais emblemático cúmplice do crime, Robert De Niro. Desde 1995 e “Casino” que não víamos novamente esta dupla e mesmo com o passar de anos, Scorsese não quis prescindir do seu Travis Bickle ou manobrá-lo perante as limitações da idade, sendo que a necessidade de integrar os flashbacks era, sobretudo, uma forma de honrar um percurso coletivo.
É por essas e por outras que De Niro é o nosso guia pelo seio de um mundo tão "scorseseano" e, verdade seja dita, o ano 2019 foi dos mais "scorseseanos" possíveis. Com as equívocas interpretações do seu “chico-espertismo” em “Vice”, de Adam McKay, no golpe das strippers de “Hustlers”, de Lorene Scafaria, ou na sensação da referência assumida com “Joker”, de Todd Phillips, chegamos finalmente ao genuíno toque de um homem que deseja, sobretudo, por um fim à sua corrente. O resultado é uma cerimónia fúnebre com toda (quase toda) gente deste universo reunida (em papéis secundários surgem Joe Pesci, Harvey Keitel, Bobby Cannavale) e até mesmo convidados de honra (a alegria de ver Al Pacino no seu glorioso "overacting"), cada um deles contribuindo para uma memória cinéfila.
“The Irishman” é um filme sobre o seu autor, que extorque da América criminal para manifestar a sua visão do mundo que o rodeia e se transforma a olhos vistos, mas nunca abandonando a essência desse jogo de sombras. Scorsese é novamente o realizador sem fôlego no seu turbilhão de histórias, nos detalhes e na mestria como opera um "travelling" (o filme tem como convite um desses episódios à lá “Goodfellas”, mas sem grandiloquência). Como este também é um Scorsese diferente porque, como bem sabemos, o tempo altera-nos, já não encontramos o homem encantado e em pleno estado de "ecstasy" em relação ao seu mundo. Em vez disso, saboreamos a serenidade do realizador que desbrava terreno confortável através da paciência e da economia dos gestos, sem dar rasgos à austeridade.
O regresso de Joe Pesci, o dito “furacão” "scorseseano", aqui sob vestes de extrema imperturbabilidade (mas nem por isso menos ameaçador) é onde encontramos a analogia dessa mudança. É um "underacting" que contrasta com a chama intensa ainda existente em Al Pacino, que histericamente se repete - “It’s my Union!” [É o meu sindicato] – para que a frase silenciosa e igualmente impactante de Pesci faça todo o sentido – “It is what it is” [É o que é].
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“Crítica é a arte de amar. É fruto de uma paixão que não pode ser devorada por si mesma, mas aspira o controle de uma lucidez vigilante.“
Jean Douchet, Cahiers du Cinéma em 1961
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A adaptação da homónima peça de teatro de Tiago Gomes Rodrigues, que já conta com oito anos, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” estreia como algo datado no frenesim das estreias no circuito comercial de cinema. É um filme sobre um país nos ares da troika, onde a austeridade estabeleceu um certo abstrato a um Portugal em plena fuga (ninguém sabe para onde). E é através desse surrealismo que nos fiamos na figura da girafa, animal esse que, segundo a nossa protagonista, seria uma criação mitológica se não existisse na realidade. A girafa é então a representação dessa disfuncionalidade que opera como um organismo único, e como tal Tiago Guedes, que antes de embarcar na grande produção de Paulo Branco – “A Herdade” – materializa a encenação e a enquadra visualmente numa alegoria universal e mesmo assim reconhecível.
Contra as vozes que querem transmitir o desespero da nossa subjugação à Europa e aos seus fundos e mais fundos para os dias de hoje, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” encontra apoio na sua protagonista (Maria Abreu), pré-adolescente inadaptada à realidade que a espera, e cuja jornada vai ser traduzida como um "comig-to-age"… ao lado do seu brejeiro ursinho de pelúcia, Judy Garland (Tónan Quito)… como uma alusão à nossa ingenuidade política e social. Aqui a imaginação e as desventuras de um “regresso a casa” diluem-se como aquarelas na narrativa do filme, que se prolonga no seu intenso “faz-de-conta”, respeitando a natureza da peça e, acima de tudo, o regulamento funcional do teatro enquanto arte de contar histórias.
Em tempos em que o público português pede ao seu cinema o realismo que a aura autoral nega, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” vem desafiar essa “necessidade” com uma absurda parábola que nos coloca em cheque quanto ao “estado das coisas”, desde as ruas afirmadas como tais até às ilusões que cada cidadão detém como motivação nas suas mundanas vidas. Infelizmente, chega às nossas salas depois de “A Herdade” e em oposição de um filme à moda de Paulo Branco, temos aqui um trabalho assumidamente Tiago Guedes (mesmo que seja tecnicamente descuidado face ao anterior/posterior).
O final violento e trágico marca essa passagem na vida. Por vezes somos obrigados a abandonar as nossas convicções de longa data para nos integrarmos nos conformes socialmente aceites deste quotidiano. Acima de tudo, o que o filme nos diz é que este Portugal da troika ainda vive em nós, quer para a alegria ou para a tristeza, como uma dualidade, daquelas falsamente impostas pela versatilidade do desempenho de Miguel Borges.
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Um segundo filme de Edward Norton na realização, que em todo o seu percurso parece desmoronar, porém, o trabalho do ator em “segurá-lo” merece mais que somente o nosso desprezo. Desconstruindo o filme noir sem nunca assumir-se como um derivado neo à equação, é inevitável não cairmos na comparação deste “Motherless Brooklyn” com o cada vez mais citado “L.A. Confidential”, de Curtis Hanson. Ambos interpelam os elementos do subgénero consolidado de uma Hollywood que viveu as suas épocas de ouro (anos 30 e 40) nas vestes negras desse policial arraçado, mesmo quase geograficamente nas antípodas do berço americano (Los Angeles e Nova Iorque).
Voltando a esta adaptação do best-seller de Jonathan Lethem, “Motherless Brooklyn” joga-se na indústria como a segunda tentativa de Edward Norton, ator que ultimamente tem resistido ao esquecimento, envergando – 19 anos após “Keeping the Faith” – a realização. Esta “Big Apple” entristecida arrasta-se pela modernidade pós-Segunda Guerra, negando as batalhas interiores que merecem ser travadas, neste caso a ebulição racial. É aqui que conhecemos o invulgar Lionel Essrog, ou como “Freakshow” (como é mais conhecido entre os colegas), uma mente brilhante abalada pela síndrome de Tourette que se manifesta sempre que se enerva. Após a trágica morte do seu “patrão” e companheiro, Frank Minna (Bruce Willis), baleado a sangue frio durante um “importante” caso, Lionel encarna parcialmente a sua identidade graças à posse do chapéu e gabardina melvilleana do falecido, partindo para a investigação.
Em Edward Norton, que para além da realização assume o protagonismo, não identificamos traços de genialidade nem criatividade fora das nossas alas nesse seu gesto; tudo amontoa-se como referência de um jogo jogado por outros e da compostura de objeto de requinte. Porém, não devemos abandonar o barco perante essa falta de ousadia ou progresso; no ator, que o grande público reconhece de “Fight Club” e “American History X”, encontramos um esforço hercúleo em erguer um produto algo antiquado, mas não conservador, garantindo um certo diálogo com o nosso tempo. Obviamente, nesse aspeto, a proeza é mais da novela do que propriamente da esquadria de Norton e do seu argumento, mas a sua vontade em costurar um autêntico Frankenstein, com peças e peças sem lógica aparente, eletrifica e dá-lhe uma vida que torna “Motherless Brooklyn” num filme sob o encantamento da sua fragilidade.
A juntar a isso, o enfurecido jazz de Daniel Pemberton (com participação especial de Thom York) garante ao filme uma sensação de fervor, uma alusão à mente “desarrumada” de Lionel. Infelizmente, Edward Norton deposita nesta personagem demasiado de si, tornando os seus maneirismos em artificialidades. Aquilo que funcionava em papel, quase um exercício literário, é matéria quebradiça e de certa forma amputada, relembrando demasiadas vezes as “anomalias” do seu herói.
Contudo, temos um elenco secundário que empoleira-se para servir de apoio ao polivalente protagonista, solidificando o seu universo, atribuindo a credibilidade a uma personagem demasiado marginal. Mesmo Alec Baldwin, novamente como político corrupto, é uma mais valia, esforçando-se para se evadir à imagem satírica de Donald Trump, que parece estar agora associada a si pelo grande público.
Motherless Brooklyn é um espécie de “geringonça” fílmica construída com amor por um dos protagonistas de Hollywood em eterno conflito com a sua afirmação. Possivelmente, merecerá uma segunda oportunidade nos próximos anos.
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Journal d'un Curé de Campagne (1951)
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Impedido de participar numa crucial corrida, Ken Milles (Christian Bale) faz horas extras nas oficinas da Ford, numa noite silenciosa se não fosse o relato transmitido na rádio. Cada palavra proferida pelo radialista é como telepatia deste mecânico com o carro, o GT40, que ajudou a construir e que estava a “emancipar-se” no mundo fora. Perto do local, um avião segue sorrateiramente na pista de aterragem, as luzes vindas do aparelho a incidir nas viaturas paradas no interior da oficina.Neste momento, Milles é recortado num falso plano americano: por detrás dele, um jogo de sombras onde os contornos dos automóveis com o clarão vindo do avião em passagem formam um pequeno teatro. Os carros passam pelos olhos e há mais aqui do que apenas uma cena imposta por uma narrativa convencional: uma alusão visual que nos remete a uma mente distante da oficina e próxima da pista onde o seu Ford corre e o corpo é deixado à automatização.
Este excerto descritivo serve para referir que ainda existe em Hollywood um sistema industrializado herdado dos tempos clássicos, onde os produtores se conjugavam com a visão dos realizadores e estes com a dos argumentistas e assim sucessivamente, compondo uma espécie de triângulo criativo que equilibrava duas visões possíveis, artista e comercial. Por cada "autor" como David Fincher, Paul Thomas Anderson ou Quentin Tarantino, há sempre um tarefeiro, um realizador sem cunho autoral ao serviço dos projetos para agradar ao paladar de milhões. Mas há os "bons” e os “maus”, aqueles que cumprem com uma exigência exemplar e os que funcionam pela automatização e se limitam a transpor as palavras do guião para freguês ver. Na cadeira dos “bons tarefeiros”, podemos mencionar Matt Reeves que tem suscitado paixões, até das mais elitistas, com as suas versões do “Planet of the Apes” (prepara agora "The Batman" com Robert Pattinson) ou James Mangold, o realizador deste "Ford V Ferrari", que volta a trazer um cinema muito masculino assente nas tradições narrativas do classicismo.
A cena descrita é um exemplo de como um realizador, além de cumprir o que lhe pedem, aprofunda as suas imagens mesmo sem nunca conseguir atingir uma aura autoral. Poderei estar equivocado acerca da sua figura (esperemos que sim), mas James Mangold já tinha mostrado esse esforço com resultados mais que favoráveis em “Walk the Line”, “Logan” e porque não, o remake de “3:10 to Yuma”. Sentimos uma proximidade do realizador ao material, ao trabalho hercúleo de fazer um filme para lá do palco para atores se candidatarem aos Óscares, e apresentar uma obra convencional mas igualmente alusiva, onde cada cena parece dialogar com a outra, mas nunca ceder a um universo próprio. Isto é, por um lado, o espírito de uma Hollywood clássica, pelo menos nas costuras narrativas e na forma como condensa os elos afetivos dignos de uma ilusória virilidade.
Em “Ford v Ferrari”, este trabalho de Mangold revela-se ao abordar as corridas de carros num prisma mais pessoal, possivelmente graças ao duo Matt Damon e Christian Bale (este último no limiar da ‘canastrice’ e da genialidade com aquele sotaque "overacting") como homens de morais conflituosas e em reflexões sobre as suas próprias "personas" no cinema. Digamos que é um "buddie movie” nascido de um projeto designado para Michael Mann (um autor, aliás) sobre Enzo Ferrari que se metamorfoseou em mais um estandarte ao enredo "underdog" à americana.
O resultado é um filme competente e dinâmico, na narrativa e na interação entre personagens, que revela o pulso de James Mangold para imputar seriedade a esta indústria cada vez mais “disneificada”. O que não deixa de ser uma ironia: esta é uma das últimas produções da Fox concluídas antes da fusão com... a Disney.
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As figuras alinham-se perante o horizonte paisagístico da aldeia de Bostofrio. O céu recorta o relevo montanhoso despido de qualquer indício de Humanidade; as vozes vindas deste mesmo coletivo amontoam-se; um eco intruja-se nessa sonoridade até se desvanecer no tempo. Tempo esse que Paulo Carneiro, que até então tinha exercido o cargo de assistente de realização e a estreia a solo numa curta / making of de uma das suas colaborações com João Viana (“A Batalha de Tabatô”), vasculha por todo o território deste pequeno ponto no mapa transmontano.
O pretexto é simples: a procura de uma identidade de um dos desconhecidos da sua sina – o avô. Mas sob esse trabalho de campo, uma investigação por entre narrativas e mais que narrativas, existe a clara afirmação de um realizador emancipado, que aproveita o jogo deixado por muitos para implementar as suas próprias regras. Como já parece ser hábito, ou quase praxe dos formandos cinematográficos, o meio rural tem sido uma peregrinação bucólica e plebeia na sua imagética.
Paulo Carneiro através de um território comum provoca uma insurreição alicerçada no seu rigor técnico, isto enquanto joga-se pela exposição, quer a nível de “know-how“, quer a nível sentimental. Sem medo de desvendar a sua face sensível, assumindo-se como um “infiltrado” na ilusão do seu Cinema, o realizador e protagonista identifica-se como um “one-man-show“; o investigador como o caso de estudo, descortinando preconceitos e explorando o secretismo de uma comunidade propícia a tal.
Em Paulo Carneiro encontramos ares de António Reis e Margarida Cordeiro, previsivelmente as suas demandas pelas terras transmontanas e ao mesmo tempo pelo documentário intimista com rasgos para cometer as suas ilusões. Mas dentro dessas mesmas sugestões, que funcionam como uma aura que espreita e pressente e da exposição que o realizador não possui problemas de “exibir”, o filme encerra-se na sua própria dignidade, até porque Carneiro faz um Cinema seu, a ser partilhado por todos, mas sobretudo a ser abraçado e acarinhado pelo próprio.
Obviamente, encontramos aqui razões para sorrir perante a simplicidade do registo, e não devemos com isso menosprezar o gesto. Dentro do dito documentário luso, a sua contenção, o seu foco no tema e o sentimento, valorizam-no perante muitos desta mesma colheita. Como escreveu certa vez Jacques Rancière, e o qual não canso em citar: “o cinema é arte do sensível“. E há sensibilidade nos cantos remotos de Bostofrio.
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