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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um coração "Iluminado" ...

Hugo Gomes, 31.10.19

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Agradeço ao Shining por me ter iniciado no género do terror! Foi o meu primeiro filme desse universo longo e duradouro, tinha 11 anos e o deparei por acaso na televisão. Estava sozinho em casa nesse dia … coisas que não se esquecem (até hoje tenho dificuldades em falar do filme).

Por isso o meu afeto pelo filme é demasiado grande, mas mesmo assim esse amor transpassou da mera recordação. Afirmo de “boca cheia”, e apesar do backlash que Kubrick tem em certos circuitos, é uma obra-prima, possivelmente só igualada com Eyes Wide Shut na carreira kubrickiana.

Longa vida ao Danny e Jack Torrance, ao Redrum, às gémeas, ao quarto 237 e porque não ao “Here’s Johnny!”.

 

Caro Pedro Costa,

Hugo Gomes, 29.10.19

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Um avião vindo de Cabo Verde chega ao Aeroporto Humberto Delgado (Lisboa). Uma pista de aterragem fantasmagórica, vazia de mortais. O aeroporto não é mais identificável, é uma peça dentro de uma Lisboa engolida pela escuridão, pelas trevas que povoam o coração dos Homens. A porta abre, de lá um vulto aguarda pelo acesso ao solo português: uma mulher, entregue ao negro do luto (e não é por menos). Ela chegou à terra com 25 anos de atraso. Agora é tarde, a sua vinda é um encontro com a morte e com as forças que a própria desconhece. À sua espera, mulheres aguardam para dar-lhe umas nefastas palavras de boas-vindas: “A casa dele não é a tua casa. Volta para a tua terra.“. Um aviso que a nossa protagonista recém-chegada, Vitalina Varela, ouvirá constantemente: “Volta para a tua terra“, “não há nada aqui para ti“.

Talvez esses mesmos alertas, recambiamentos para Cabo Verde que nunca deveria ter deixado, sejam a verdade santa num cemitério extenso que se chama Lisboa. Varela tem o propósito de reencontrar o seu marido, só que este não é mais um ser vivente, mas uma recordação, e não daquelas recordadas com agrado. A nossa protagonista instala-se na casa do falecido, habitação essa em plena fase de desmoronamento. Ao seu redor, uma comunidade restringida à sua subsistência, aos cavernícolos depósitos a que chamam lar. Até mesmo a igreja, gerida por uma cara conhecida de Varela e do público que acompanha estas jornadas – Ventura –, é um espaço de comunhão com os mortos e não com os vivos. “Os espíritos falam português“, refere Ventura, decifrando a Varela a chave para o contacto com os do além, onde até mesmo os fantasmas se venderam à língua colonial. A mulher, fustigada pela sombria mágoa e erguida com o senso de perdão, comete o esforço de criar um laço com estas entidades. Os espíritos coexistem com o comum dos mortais. Não existe nada de sobrenatural nisto, é somente o “estado das coisas”.

Não choro por nenhum cobarde“, declara Varela, que mais tarde terá resposta do “homem de Deus” – “Bem-amado é aquele que chora” – para depois ceder ao peso de uma vida em vão, constituída somente pela morte sem pré-aviso. Se bem que o filme de Pedro Costa não é mais do que um diálogo entre dois seres, enfaixados num rigor que só o realizador parece ter adquirido nos seus anos de carreira, “Vitalina Varela” [título do filme] é um degrau numa escadaria que vai dar, sabe-se lá onde. Pedro Costa é o autor em Portugal por direito (e no resto do Mundo também), mas dos poucos que se pavoneia com uma constante inovação na sua arte, ao invés de muitos que se restringem ao seu “cinema confortável”.

Vivemos em tempos, um espírito rebelde que tentava configurar “a maior invenção do Homem” em “O Sangue'' (1989), a obra inaugural de um cineasta em busca de uma voz, mas com a perfeita noção do seu estado, do querer deixar uma marca, de preferência profunda no panorama português. Partiu para a Ilha do Fogo, Cabo Verde, com a promessa de exorcizar fantasmas de um passado colonialista em “A Casa de Lava” (1994). Veio de lá com uma nova noção de cinema, uma busca pelo exotismo degradante das sombras portuguesas (os marginalizados). Assim, avançou sorrateiramente por um dito cinema etnográfico e calcificado com emergência social em “Ossos” (curiosamente, Catherine Deneuve revelou que era um dos filmes prediletos), porém, Costa sentiu-se defraudado por este seu retrato aos habitantes do (agora extinto) Bairro das Fontainhas e é com o filme seguinte que o reconhecimento global é atingido.

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Ao filmar a demolição de um biótopo em “O Quarto da Vanda” (2000), o realizador prescreve uma encruzilhada de novas histórias e rumos. O caminho decidido encontrou paralelo com a inicial intenção de “A Casa da Lava”, a coexistência de fantasmas com os peregrinos vivos, e assim nasceu “Juventude em Marcha” (2006), onde fomos introduzidos a Ventura e por sua vez um regresso ao “cinema de estúdio” com “Cavalo Dinheiro” (2014). Como o leitor já deve ter percebido, o cinema de Pedro Costa (não contando com os exercícios paralelos como “Onde Jaz o Teu Sorriso?” ou “Ne Change Rien”) é contínuo. Nenhum filme é uma ilha e todos compõem um continente à parte.

Vitalina Varela” prolonga esses passos de Costa e deixa em aberto novas abordagens, histórias, pessoas e locais, e o final é digno disso; um comité para um dito universo partilhado, por sua vez autoral, observacional e rígido na forma. Esta obra culmina os trilhos que caminhamos juntos, onde a fotografia (excecional) de Leonardo Simões encharca os planos, conspirando para os metamorfosear a quadros vivos, algo velasqueanos tendo em conta a sua saliência para com o nosso olhar em fuga; a profundidade, a mise-en-scène que se enquadra num só corpo. Possivelmente, um dos melhores trabalhos de realização do cinema português que há memória (e quiçá, além fronteiras).

Pedro Costa conseguiu o seu filme mais calculado e como tal o mais belo e apaixonado. A partir daqui é só aguardar impacientemente pelas novas oferendas que o realizador tem para nos entregar.

Falando com Fernando Alle, o homem por detrás da orgia atómica de "Mutant Blast"

Hugo Gomes, 24.10.19

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“Mutant Blast” marca a sua passagem para o formato da longa-metragem, sempre seguindo os passos percorridos nos seus anteriores e curtos trabalhos (“Papa Wrestling”, “Banana Motherfucker”). Aqui, uma experiência de laboratório e um exército de salvação cruzaram-se com o destino de um mero ressacado, Pedro (Pedro Barão Dias). Pelo caminho encontrará mortos-vivos, ratos mutantes e lagostas eruditas que impunham as suas pinças contra um “tenebroso” adversário.

Tudo isto numa produção da lendária Troma, produtora fundada por Lloyd Kaufman e Michael Herz, especialista em obras de série B (ou Z) de baixo custo, um feito num cinema português ainda tímido em explorar o terror e o fantástico, mas que em Mutant Blast sai finalmente do armário … e de forma mais extravagante.

Falei com o Fernando Alle, realizador e argumentista sobre o filme, o género, os efeitos práticos e o reconhecimento.

Gostaria de começar com a típica pergunta de arranque.  Como surgiu a ideia deste projeto e o seu fascínio por este tipo de cinema?

Atenção, eu gosto de todo o tipo de filmes apesar das minhas curtas e esta longa serem inseridas no género da comédia gore. Tenho paixão por musicais, dramas, ação, variadíssimos estilos e géneros.

Em relação a este tipo de filmes, o meu dito fascínio começou quando vi o “The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring”, cerca de cinco vezes no cinema. Deve ser até hoje o filme que mais vi na minha vida numa sala. Fiquei apaixonado e comecei a explorar a carreira do Peter Jackson. Tinha eu 12 anos e não estava preparado para “Brain Dead”, “Bad Taste”, etc, que eram filmes completamente inadequados para uma criança dessa idade, e isso levou-me a outros filmes, entre os quais o “The Toxic Avenger”, o qual nem sonhava que iria ter um filme produzido pelo mesmo realizador [Lloyd Kaufman].

A acrescentar a isso, o meu amor pelos filmes de zombies, principalmente a vaga que foi suscitada por “Shaun of the Dead”, o remake de “Dawn of the Dead”, “21 Days Later” e até mesmo o Romero que começou nessa altura a fazer mais filmes dessa temática. E ao escrever o argumento de “Mutant Blast” pensei no que realmente poderia acrescentar no universo de zombies. Foi então que nasceu algo completamente diferente.

E na altura [durante a escrita do argumento] já imaginava um filme do estilo da Troma?

Não, até porque sinto que este filme não partilha muito o estilo da Troma. Pode parecer, visto ser um filme de ficção científica de série B um pouco ao seu jeito, mas em termos de estilo revejo-o mais num Terry Gilliam, Sam Raimi e até no Peter Jackson, que são realizadores que começaram na série B passando pelo mainstream e que sempre mantiveram um cunho pessoal. Consideramos este tipo de filmes como arte menor e por isso gosto de pensar que injetaram um pouco de arte nos seus trabalhos de série B. “Mutant Blast” é um filme de autor. O que acontece é que é um filme de autor para as massas. Acima de tudo, quis satisfazer-me a mim próprio e as minhas ambições artísticas.

Visto que referiu “arte menor”, acredito que esteja a sublinhar um estigma que existe em relação a este género de cinema. Acha que o seu filme é uma lufada de ar fresco que possa quebrar o tal preconceito muito mais dentro da produção nacional?

Sim, penso que possa ser uma lufada de ar fresco e espero mesmo que os portugueses deem uma oportunidade ao filme, o qual teve excelentes críticas lá fora, passou por mais de 25 festivais e vai agora estrear no Leeds, onde também estará o último filme do Martin Scorsese e o do Terrence Malick.

É um filme comprovadamente bom, e não sou eu a o dizer, é o que se fala lá fora. Por um lado, compreendo que possa existir preconceito e um certo medo, mas “Mutant Blast” já vem com aceitação lá fora e na sua correria pelos festivais. E se também virmos que o ICA, que tem fama de só apoiar filmes dito artísticos e nunca projetos mais comerciais, financiou-nos … é uma porção improvável, esta, de juntar Troma e ICA no mesmo grupo. Mas só o facto do ICA apoiar-nos é sinal de que eles próprios consideraram o argumento bom.

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Mas é verdade que do MOTELx para cá, o seu filme teve algumas alterações?

O filme estreou [no MOTELx] e nós tínhamos terminado no próprio dia. Nem sequer tivemos tempo de olhar para o filme, apesar deste ter conseguido o feito de meter a sala inteira do São Jorge a rir. Cortamos dois minutos de filme e posso dizer que se não tivéssemos uma data de estreia, eu estaria a dar uma de George Lucas em constante edições e teriam que levar-me num colete de forças, para longe do computador [risos].

E hoje? Sente que poderia ter mudado ou cortado mais alguma coisa?

O filme está acabado. Obviamente que está acabado. Eu sinto isso. Mas, perdi demasiado tempo, por exemplo, a apagar digitalmente “coisas que ninguém vê” e que só eu via [risos]. Isso é de obsessivo louco! Lembro-me de dizerem que “só tu vês isso, por isso deixa estar” Eu diria que é o meu perfecionismo, e tal fez com que o filme demorasse tanto tempo para ser feito, aliás, esteve 5 anos em pré-produção. Mas digo que é um perfeccionismo absurdo.

Curiosamente, tendo em conta a primeira apresentação na edição de 2018 do MOTELx, o seu filme vem estrear nos cinemas portugueses num ano que se apelida de “ano de ouro do cinema português” …

Mas quanto ao “ano de ouro“, esperemos que seja sempre a subir, e acabar o ano em grande com o “Mutant Blast”. [risos]

Falamos de um ano em que temos êxitos de bilheteira que reconciliam a expectativa do grande público, prémios máximos em festivais de grande categoria e até a variedade de temáticas e personalidades. Acredita que o seu filme vem contribuir para a riqueza deste ano?

Acho que essa conquista já está feita, se não for por bilheteira, o filme já provou o que tinha que provar, nos festivais que entrou, nas críticas que recebeu … Lógico que para o cinema português melhorar, é preciso o apoio do público, é preciso que eles venham vê-lo ao cinema. Não me interessa se as pessoas dizem que querem vê-lo na Netflix ou em Torrent, eles tem que vê-lo em sala, e é na primeira semana, não na segunda. O filme demorou sete anos a ser feito e eu tenho quatro dias para provar o que ele vale. Sei perfeitamente que o filme é bom, teve em imensos festivais, mas isso não importa aos Cinemas que vão contar os números no final da semana e decidir se o “Mutant Blast” aguenta mais uma semana ou não.

Então o Fernando é da opinião que o cinema tem que ser visto em sala. Qual é a sua posição quanto ao debate de Cinema vs Streaming?

É complicado, porque já fui a algumas salas de cinema que se revelaram em experiências stressantes. Para mim, o barulho tem que ser zero, nem a luz dos telemóveis consigo suportar e o público está cada vez mais mal comportado. Por vezes penso: “ir para uma sala para quê?“. Mas penso que é uma luta que vale a pena ter e talvez ter esperança que o público possa ser mais bem-educado. Por outro, se as salas se transformarem em cantos de nichos e que levará-nos a uma audiência mais respeitosa, então, tudo muito bem.

Contudo, acho que o streaming é uma oportunidade incrível, porque é melhor ter um filme que sai diretamente lá, do que ter um filme que não sai em lado nenhum. Se falarmos de um “Mutant Blast” numa plataforma como a Netflix é o melhor cenário possível, porque tem a oportunidade de chegar a todos os cantos do Mundo. Eu não tenho nada contra o streaming … o que me faz confusão é de não podermos ver o Martin Scorsese nos cinemas.

Apesar de ser um filme série B, encontramos em “Mutant Blast” um certo brio, principalmente nos desempenhos. Se não estou em erro, os seus atores foram premiados.

Maria Leite recebeu uma menção honrosa e o Pedro Barão Dias ganhou um prémio no Fantaspoa. Mas aí é que está, não devemos descurar, quer nos desempenhos, no argumento, na realização ou nos efeitos, só porque o filme é uma comédia. E é um pouco isso, este é um filme com coração e tive muita sorte no elenco, penso que escolhi os atores perfeitos. E o filme é completamente absurdo e por vezes questionava enquanto escrevia o argumento se seria credível, até porque tudo aqui é sério, a música é séria o qual não está ali para acentuar a comédia e os atores estão sim, sérios também, mesmo dentro daquelas situações disparatadas.

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Algo curioso neste tipo de filmes, e em contextualização com o dito panorama português, é o uso dos efeitos práticos. Acha que existe futuro ou mercado para este tipo de efeitos visuais?

Não creio que exista mercado possível em Portugal, até porque nós não temos “indústria”. Mas mesmo assim seria impensável ter sangue CGI, assim como criaturas digitais porque não teríamos orçamento para isso. De qualquer das formas, é isso que vende o filme. Já nas minhas curtas tinha explosões de cabeças ou muito sangue e neste há um passo evolutivo enorme. Aqui trabalhei com o João Rapaz, que fez a maquilhagem dos zombies. Coisa que sempre frisei foi que os nossos mortos-vivos fossem comparados com os do “The Walking Dead”, não pretendia que os espectadores olhassem para eles e pensassem que poupamos dinheiro quanto à sua caracterização. Era mesmo necessário que público tivesse zombies que não ficassem nada atrás daqueles que surgem nos filmes de Hollywood.

Quanto a desmembramentos, as ditas explosões de cabeças, decapitações, tudo foi realizado graças aos efeitos práticos, mas devo dizer que houve alguns retoques digitais no sangue para assemelhar-se com sangue real.

Saliento novamente a importância dos efeitos práticos, porque este tipo de efeitos encontra-se em rápido desaparecimento e sem lugar na indústria fílmica atual. Há uns meses, ouvi Alec Gillis [responsável pelos efeitos de “Starship Troopers” e “Tremors” e que atualmente possui uma empresa de criação de efeitos práticos, Studio ADI] a reclamar de estar a sobreviver através de migalhas em Hollywood.

É uma tragédia, acredito que realmente, havendo dinheiro, que seja tentador recorrer aos efeitos digitais. No meu caso, eu tive criaturas complexas como uma ratazana gigante, uma lagosta gigante, e eram fatos que pesavam quilos e quilos com um ator lá dentro a suar devido ao calor intenso do Verão. Por isso, reconheço esse atalho de seguir pelos efeitos digitais. Não tenho nada contra o CGI, só acho que hoje em dia utiliza-se em demasia e é triste vermos blockbusters gigantescos a apresentar efeitos não tão bons como os do “Jurassic Park” original ou “Starship Troopers”, que faziam uma mistura de efeitos digitais com maquetas, e isso, sim, eu acho uma pena.

Voltando à dita “arte menor”. Apesar de hoje falar-se e tentar-se revisionar a obra de António Macedo, durante anos os seus filmes foram fracassos que serviram de aviso para outros cineastas não tocarem no cinema de género. Nas escolas, por exemplo, tais realizadores são ofuscados em prol de uma certa ideia de cinema português. Acha que devia-se implantar mais artesãos deste universo na educação cinematográfica?

Para ser sincero, não faço distinção de géneros. Não faz sentido distinguir se existe um género maior e outro menor, o que acontece é que numas escolas um realizador como John Carpenter é respeitado, mas até que ponto um cineasta de género contemporâneo que não possui o catálogo do Carpenter é? Quando estamos a falar de realizadores que fazem filmes de ação ou de comédia, sentimos que eles demoram a ganhar o seu reconhecimento como autores.

E quanto a novos projetos?

Só quero realmente pensar num próximo projeto quando o “Mutant Blast” sair de todas as salas do país, aí sim, vou descansar e pensar seriamente em que passo darei a seguir. Gostaria muito de fazer um filme de artes marciais com um orçamento mais generoso, na onda de “Only God Forgives” ou “Oldboy”, mas não tenho argumento escrito.

Se o “Mutant Blast” tivesse sucesso gostaria de produzir um filme de um amigo meu, Francisco Lacerda, um pós-apocalíptico com dinossauros chamado “Dentes e Garras 2097”.

Nuno Lopes: "o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade"

Hugo Gomes, 22.10.19

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Nuno Lopes em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Nuno Lopes passa do Bairro da Jamaica em “São Jorge” diretamente para os ecrãs internacionais em projetos como “Chamboultout” [“Sem Filtro”, de Eric Lavaine] e “Une fille facile” [“Uma Rapariga Fácil”], o mais recente trabalho de Rebecca Zlotowski, onde contracena com a polémica Zahia Dehar.

O filme estreou na Quinzena de Realizadores em Cannes e, desde cedo, tem captado as atenções do Mundo, não apenas pela estreia da “acompanhante de luxo” na atuação, mas pelas temáticas da luxúria, descoberta sexual e os jogos de poder. Nuno Lopes é o amante da personagem de Zahia, um homem que exibe as suas posses para restringir-se a um mundo sexual.

O ator português, que conquistou o prémio de ator da secção Horizontes na obra de Marco Martins, falou sobre a sua experiência no filme de Zlotowski, o seu trabalho além fronteiras, a política e as suas motivações.

Só este ano encontrámo-lo em duas produções internacionais. Foi o prémio de Veneza que o motivou a romper as fronteiras?   

O facto de ter feito o "São Jorge", aliás, o facto de ter vencido o prémio em Veneza, abriu de certa maneira uma porta que abre tudo, porque altera drasticamente a abordagem do meu agente aos produtores. Existe uma diferença na persuasão entre o “ator português que é bom” e o “ator português que é bom e que tem um prémio de Veneza“. Obviamente, que os produtores irão ouvir melhor a última frase [risos].   

Mas acima de tudo, este ano e meio foi também graças à minha ideia de apostar numa carreira internacional, possivelmente motivado pelo prémio. Não com isto insinuar que pretendo ser um ator internacional, mas como filmo muito e em Portugal são produzidos poucos filmes, tenho que procurar lá fora. Um ator de cinema no nosso país tem pouco trabalho, porque não existe uma indústria, mesmo nós tendo filmes maravilhosos. Não posso ficar à espera que surja uma produção com uma personagem que se adequa à minha idade, por mais que ame o cinema português.

A idade é um problema na carreira de um ator? Em 2018, numa conversa com Luís Miguel Cintra, ele referiu essa escassez. 

Para os homens não, para as mulheres sim, infelizmente. Para a minha idade isso ainda não acontece, mas é óbvio que com mais idade os papéis serão cada vez mais escassos. Há uma realidade em que, qualquer filme que tenha visto nos últimos tempos, tem jovens, protagonistas entre os 20 e 30  anos e raramente existem personagens com mais de 60. Mas isto não é um problema exclusivamente português, mas mundial. E acrescento ainda que é sobretudo no mundo ocidental, porque olhamos para as pessoas velhas de uma maneira adversa que, por exemplo, não existe no Japão. Tal, nota-se na cinematografia nipónica.

Mas no Ocidente, a tendência de produção é sempre direcionada aos mais novos.

Exatamente! Nesse caso, as culpas devem também ser atribuídas ao público. No outro dia estava a ter uma conversa em relação ao drama Martin Scorsese e os filmes da Marvel, e disse que a culpa desta enchente de super-heróis é da nossa geração, porque simplesmente deixamos de ir ao cinema e ficamos em casa a ver séries ou filmes no computador. E aí pensamos, quem são os maiores consumidores de cinema nas salas atualmente? Os adolescentes. E é por isso que os estúdios produzem quase somente estes filmes. Por isso é natural que os cinemas sejam invadidos por histórias de teor adolescente sem grande profundidade. Mas volto a frisar, a culpa não é de quem produz, é nossa, e temos que mudar isso. Temos que voltar aos cinemas e demonstrar aos produtores que há público para filmes sem ser de adolescentes.

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Nuno Lopes e Zahia Dehar em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Enquanto isso, num catálogo da Netflix temos propostas bem mais adultas.

Aí está, as pessoas ficaram em casa. E é pena, porque acho que não se deve perder esta indústria cinematográfica. Bem, até me custa referir o cinema como indústria … mas não se deve perder esta ideia de sala, de Cinema para ser visto no grande ecrã, porque existe uma experiência para além da do filme, que é o ritual de sair de casa, comprar o bilhete para aquela mesma sessão e marcares ou não para veres aquele exato filme. É toda uma experiência. Eu, por exemplo, sei exatamente os filmes que vi no Cinema e nem sequer me lembro daqueles que vi em casa. Depois temos a consideração de que um realizador faz um filme para ser visto em sala. Tu nunca ouves alguém afirmar que fez um filme para ser visto numa Netflix.

Fale-me da sua experiência com Zahia Dehar. Como foi contracenar com uma não-atriz?

Estou muito acostumado a contracenar com pessoas que à partida não são atores. Por exemplo, no “São Jorge” partilhava o ecrã com amadores. Quanto tu usas não-atores no teu filme, é porque pretendes que a “personagem” dela seja muito próxima da pessoa que ela é. Isso é a grande diferença entre atores amadores e profissionais. Os amadores podem ser tão ou mais profissionais que os profissionais, mas estes só se restringem àquela persona quase documental. E isso aconteceu com este filme, que aliás, foi escrito pela Zahia. Ela sabia exatamente o que pretendia da sua personagem.

Na questão desta relação entre ator profissional e não-profissional, era a Zahia que me dava conselhos [risos]. Ela é que virava-se para mim: “se vais falar com uma mulher assim, então nada vai acontecer” [risos]. “Por isso tens que falar de outra maneira“. Ou seja, ela é que me dirigia a mim, e eu teria de aproveitar a experiência visto que a Zahia entende mais deste mundo do que eu. Ela é que discutiu e concebeu o filme com a realizadora. Portanto, fiquei mais a ganhar com esta parceria que ela.

Em relação às cenas de sexo, a Zahia tem uma disponibilidade que não se encontra em quase nenhuma atriz, infelizmente.

E sentiu-se desconfortável em relação às cenas de sexo?

Não. Para dizer a verdade, sou tímido por natureza. Não é uma coisa que desejo, assim como não desejo estar num ringue a levar socos, mas se isso ajuda o filme, farei. Neste caso,  se as cenas de sexo eram importantes para o filme, então fazia.

Considera-se um ator de método?

Não, porque os atores de método constroem as suas personagens através do seu próprio passado e das suas emoções pessoais. Eu, por outro lado, recorro mais à imaginação para criação das minhas personagens. Agora, considero-me um ator metódico, e utilizo algumas ‘coisas’ que muitos consideram de método, como o de viver experiências relacionadas com as personagens. Por exemplo, se vou fazer filme sobre boxe, obviamente vou praticar pugilismo. Contudo, não sei se é método ou uma deficiência minha [risos], porque se pudesse evitar isso, na construção das minhas personagens, evitaria. Mas esta é a minha maneira de trabalhar e aquilo que penso funciona.

Na nossa atualidade, um filme com a exposição e temática do “Uma Rapariga Fácil'' seria mais difícil se o realizador fosse um homem?

Acho que nos tempos de hoje, um filme destes não poderia ser feito por um homem. Porém, o filme coloca questões, sendo isso que o torna bastante divisivo. Conheço pessoas que adoram o filme, assim como outras que o odeiam. No outro dia estava a falar com uma pessoa que o odiou, e disse-lhe que é bom sinal um filme ter suscitado essa reação. Hoje em dia, o politicamente correto – não sou contra a ideia, sou contra a forma como muitas vezes se aplica, por vezes sem o bom senso – tem implicado que a diferença entre um filme bom ou mau é consoante o facto se concordas ou não com o que é dito. Acredito que um filme possa ser maravilhoso só pelo princípio de não concordares com o que ele diz e com isso provocar uma discussão. A arte, em última análise, serve para provocar uma discussão. E é essa mesma discussão que fará mover a sociedade. Mais do que um filme que termine e que tu digas: “olha, esta pessoa pensa exatamente como eu“. E vais para casa e não pensas mais sobre isso.

Este “Uma Rapariga Fácil” faz exatamente isso. Provoca questões e coloca o espectador perante os seus próprios preconceitos, a tua própria ideia do que é uma “rapariga fácil”, e de quem é a Zahia Dehar. Por exemplo, olhas para o escândalo da Zahia e tens isso em mente sempre que vês o filme. Este coloca a câmara no ponto-de-vista destas personagens, ou seja, ele joga perante os nossos preconceitos, desafia-os, assim como afronta a maneira como olhamos para mulheres que de certa maneira são estigmatizadas como um corpo sem voz.

A Rebecca constantemente dava-me o exemplo de que ninguém sabe como fala a Kate Moss, porque essa pessoa é uma imagem. Uma imagem mundialmente conhecida, mas que ninguém teve a atenção de ouvi-la. Acho que o filme é feminista nesse sentido, porque pega na dita objetivação da mulher, que é reduzida a uma vaidade, a um símbolo de sex appeal, e resolve abordar isso como uma outra espécie de emancipação, uma maneira de poder. Obviamente, com isto entramos no território do que é mais exibicionista: a mulher que dança seminua numa coluna de discoteca ou o homem que coloca a chave do Porsche na mesa do restaurante? Qual é o nível de exibição? E qual é o primeiro que a sociedade julga?

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Nuno Lopes em "São Jorge" (Marco Martins, 2016)

Há uma certa ideia de que a luxúria, o sexo explicito e todas essas consoantes são próprias do universo masculino, e nunca do feminino… 

É curioso essa questão das cenas de sexo, porque é muito mais difícil filmar uma cena dessas sob o ponto de vista feminino. Por isso não me importo da minha exposição aqui. Isto é uma maneira da realizadora declarar que também quer olhar para o corpo masculino, que também quer admirá-lo. Não me fez confusão, pois acima de tudo senti que estava a trabalhar por um bem maior.

É sabido que está a rodar com a atriz Beatriz Batarda um novo filme de Marco Martins. O que podes dizer sobre ele?

O filme passa-se em Great Yarmouth [Reino Unido] e irá anexar os temas do Brexit, crise e imigração. Irei contracenar com não-atores, quer portugueses e ingleses, muitos deles trabalhadores daquela região. Sobretudo, será um filme sobre a violência com que os imigrantes são expostos. E irá desafiar-nos a questionar a maneira com que olhamos para os estrangeiros e como eles olham para nós. Sim, focará essa crescente vaga de imigrantes na Europa e na sua crise.

Em jeito de curiosidade, quando aconteceu a polémica do Bairro da Jamaica, o nosso primeiro-ministro António Costa afirmou publicamente que só começou a conhecer a situação dos habitantes desse mesmo bairro através do “São Jorge”. Acredita que com o novo filme de Marco Martins, ele estará ciente dos problemas dos imigrantes portugueses?

[risos] Acho que o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade. É por isso que nunca me associei a nenhum partido. Não é que eu não tenha nenhum partido ou visão política, mas apenas porque a arte é contrapoder, o oposto do poder. A arte serve para provocar questões, enquanto o poder serve para resolver essas mesmas questões. São duas faces da mesma moeda, mas são completamente distintas.

Mas então o que pensa das associações e procura das facções artísticas em campanhas eleitorais?

Eu percebo o ponto vista deles, não percebo é do ponto vista dos artistas na maior parte das vezes. Também entendo que um artista preocupado, e cidadão, possa não ter a mesma ideia que eu tenho e que deseje o melhor para o país, e que apoie aquela ou outra pessoa. Tem todo o direito.

Em “Sem Filtro”, assim como “Uma Rapariga Fácil”, o Nuno é visto como um galã lusitano [risos]… 

Acho que essa imagem pode mudar [risos]. Entretanto fiz de assassino também num filme francês que ainda não chegou ao nosso mercado.

Marco Bellocchio força o seu lugar entre os “maestros”

Hugo Gomes, 21.10.19

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Se começarmos por dizer que “Il Traditore” é o melhor Marco Bellocchio em anos, estamos a reduzir a potencialidade do atual cinema italiano que sofre com a queda dos antigos maestros e que persiste em estafetas do legado. Talvez seja por questões naturais, a cedência para com a morte tenha levado Bellocchio a ser considerado numa espécie de novo “veterano”, conquistando o título há muito tempo cobiçado de “mestre”.

Com esta história baseada na vida real de Tommaso Buscetta, membro da Cosa Nostra que se tornou no primeiro informador de Sicília, o realizador segue por dentro do universo do cinema da Máfia, e com autocensura de nunca reduzir-se aos lugares-comuns, hoje partilháveis no território da caricatura, consegue gerar um filme energético e consistente na sua simplicidade de “storytelling“. É uma obra de um claro esforço de nunca sobressair do formalismo no qual está inserido, e diríamos mesmo sob um efeito de fórmula, sendo por vezes nisso que reside o seu maior trunfo: uma aura de cinema semi-político conscientizado na universalidade da narrativa.

Partimos então na envolvência de Pierfrancesco Favino, que sob as suas vestes de cordeiro/lobo carrega “Il Traditore” para terreno afável, um filme que ama a sua personagem e esse amor é vivido, não só pelo realizador, como também pelo seu ator. O seu carisma é frutífero para a construção de um protagonista que facilmente poderia ser condenado a cumprir sentença no esquematismo. Com Bellocchio, os seus ensinamentos na arte de embelezar o enredo para um foco moral servem como armas para que o “traidor” cumpra a sua missão como um ato de subsistência e misericórdia. Depois, são as pequenas pérolas deixadas pela experiência de um homem que conquista por fim o seu trono no panorama cinematográfico italiano.

Dentro dessas “preciosidades”, encontramos cenas como aquelas que decorrem em tribunal. O hall da justiça funciona como um cenário caótico que explicita a ebulição política e de agenda oculta da época, simbolizando o fim da romantização à Máfia (“palavra inventada pela imprensa“), ou melhor, da Cosa Nostra. A metáfora do apocalipse moral dentro dos réus. São essas mesmas cenas que "Il Traditore" encontra a sua essência de vida, afastando-se do simples biopic criminal, através de uma biografia à criminalidade. E mesmo que Bellocchio embarque no fim premeditado desse amor de grande ecrã pelo universo da máfia siciliana, o filme tende em procurar um teor de encanto (descrito principalmente na fábula episódica que acompanha a cruzada de Buscetta) a esse desencanto que o atual cinema italiano parece estabelecer no mesmo território. É através desse termo que o realizador mostra a nossa alternativa de nostalgia, mas através dele é o mesmo que olhar pelo buraco de uma agulha.

É o legado a pesar. Porém, “Il Traditore” emancipa-se como um reciclado refresco do género.

Nem tudo são rosas ...

Hugo Gomes, 19.10.19

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Na Netflix, nem tudo é originalidade e primor! Numa só semana contamos com o lançamento de dois graus de “obras falhadas”, de um lado Wounds, da suposta revelação Babak Anvari, terror sob contornos lovecraftianos que produz um clima de mistério para depois lançar-se “às urtigas” e com ele levando Armie Hammer e Dakota Johnson (possivelmente das piores atrizes da atualidade) ao abismo. Do outro canto, possivelmente a mais alarmante, The Laundromat, o prolifero Steven Soderbergh na denúncia dos Panamá Papers, num objeto sabichão ou diria antes “chico-esperto”, a replicar as tendências da economia para totós de Adam McKay e apresentar a pior das Meryl Streeps. Armado em Robin dos Bosques versão caviar.

Que venham mas é esse Marriage Story e o tão badalado The Irishman, do “verdadeiro” Scorsese, porque a Netflix precisa urgentemente de Cinema nos seus cantos próprios.

 

"Bacurau": Se for, vá na paz

Hugo Gomes, 17.10.19

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Há três anos, em plena passadeira vermelha do Festival de Cannes, Kleber Mendonça Filho e o seu elenco protestavam contra o impeachment que decorria na sua terra natal contra a ex-presidente Dilma Rousseff. O filme apresentado – “Aquarius” – não foi concebido como uma declaração direta dos factos, mas usufruia de um timing perfeito – e adquiria contornos de insurreição – ao mostrar a história de uma crítica de música reformada que tenta resistir a um despejo ilegal.

Em pleno 2019, no mesmo festival, Kleber e Juliano Dornelles brindam-nos com “Bacurau”, numa altura em que do outro lado do Oceano, o Brasil sai à rua em protesto contra os cortes no sector educativo. Novamente é o timing a fazer das suas, até porque em Bacurau existe uma cena-chave onde um camião despeja um amontoado de livros velhos à porta de uma escola, confundindo tal ato como um contributo à educação do homónimo vilarejo. Contudo, o par de realizadores decidiu não apresentar nenhuma declaração política no tapete vermelho, contrariando as expetativas de muitos que aguardavam uma forma de denúncia das políticas com que Bolsonaro tem ultimamente "afogado" em diversos setores brasileiros, nomeadamente, como referimos, o sistema educativo. Para Kleber e a sua equipa, o “filme chega”. Inteiramente politizado, é um festim de cinema de género que repesca toda uma tradição de muito cinema norte-americano de culto, nomeadamente o de John Carpenter.

“Bacurau” é o nome de uma pequena cidadela de Pernambuco, que partilha o seu nome com um pássaro noturno que se alimenta de insetos. Ambos os significados [localidade e ave] são imensamente estranhos, quer estéticamente, quer pela sua natureza discreta. No caso do filme, preservando essa estranheza, indiciamos uma espécie de distopia possível minada de dupla interpretação política nas suas ações. Sónia Braga faz aqui a sua aparição como Dona Domingas, a médica da vila, respeitando assim o estatuto de heroína brasileira que tem vindo a adquirir desde que se redefiniu em “Aquarius”. Aliás, ela é a mulher da verdade sem medos (isto numa metáfora à cultura do medo que o filme utiliza como atalho para a contemporaneidade brasileira), das frases dolorosas mas certeiras, da anarquia que funciona como gancho de uma iminente organização e, acima de tudo, enfrentando as forças antagónicas num perfeito jogo psicológico, cuspindo na cara dos adversários. Mesmo reduzida a um segundo plano, o seu espectro está lá para nos confortar.

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A dupla Kleber-Juliano decide regressar a estetização de “O Som ao Redor”, deixando-se levar pelo subversivo da narrativa e pela violência novamente feita como catarse de um país. Pois, é nesse cuidado visual que se assume desde o início como parceiro de série B, que "Bacurau" veste a sua capa de produto jubilante, inofensivo, aliás, como é aparentemente visto pelos habitantes desta cidade-título, que são correspondidos pela inscrição no letreiro da sua fronteira: “Se for, vá na Paz“.

Quanto ao enredo, que nunca renega a cumplicidade para com a narrativa visual, saltando pelas referências genéricas que tanto compõem as propostas de cinema de género do momento – do filme de cerco até ao western violento a la Sam Peckinpah, passando pelas incursões mais fantasiosas de Carpenter, e nunca esquecendo a ficção científica apocalíptica. Pernambuco torna-se aqui a terra de ninguém, sem oportunidades e de água escassa (este estado também era uma distopia na produção “Reza a Lenda”), o último reduto de um país vendido ao mercado ultra-capitalista de “estrangeiros”, e marcado pelo “sangue na guelra” que se expõe sem reacionarismo.

Subversivo, "Bacurau" é o reflexo do estado de fúria num Cinema que tenta encontrar outros meios para ser político ao invés de recorrer aos rótulos do “cinema político”, e – com isso – torna-se num filme de género como não há memória no cinema brasileiro recente. Poderíamos dizer que estamos perante um OVNI, mas citando aqui o ator germânico Udo Kier, a desempenhar um papel igual a si mesmo: “se queres ofender alguém, não uses clichés“. Não era a nossa intenção denegrir “Bacurau”, pelo contrário, por isso peço que não validem a expressão OVNI.

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