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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Ad Astra: as estrelas contempladas por James Gray

Hugo Gomes, 13.09.19

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James Gray decidiu olhar para as estrelas e contemplar a vastidão do universo, possivelmente é através desse ato que se apercebe da sua pequenez enquanto mero mortal num já extenso legado. Ad Astra … para as estrelas, tradução literal … é um virtuosismo véu que cobre as falhas sempre ostentadas ao longo da sua carreira, mas ofuscadas pela veneração de outros. Aqui, Brad Pitt é o peregrino espacial num eterno conflito com a sua persona e aquilo que nós, espectadores, testemunhamos, ou seja, por palavras diretas, uma voz off em modo maliquice tenta vendar-nos dos eternos lugares-comuns e epifanias espaciais que este subgénero encontra-se exausto. Queríamos uma odisseia pelas galáxias e obtivemos uma quimera a cru.

Midsommar: podem estranhar, mas não devem desprezar!

Hugo Gomes, 06.09.19

69800286_10214643627221235_8688538773304115200_o.jÉ fácil desprezar o Midsommar … facílimo … até porque Ari Aster sai do “calabouço” de "Hereditary" e assume algum pretensiosismo na sua planificação (olha tão bem que filmo!). Contudo, deve-se salientar que o mesmo realizador que invocou entidades serventes na sua obra anterior cita sem nenhuma surpresa os degraus da escadaria do “folk horror”. Nesse sentido, Midsommar é uma prolongada referência que esconde um pequeno e valioso trunfo – a sua estranheza. Ao invés de apostar no terror-choque da sensação (ou sensações) do género, Aster concede toda uma máquina ritualista e confrontam-nos com um episódio xamânico e psicotrópico sobre a perda e o vitimismo anexado.

Dor e Glória, o mapa para a alma de Almodóvar

Hugo Gomes, 04.09.19

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Não eram maus ventos aqueles vindos de Pedro Almodóvar nos últimos anos, eram simplesmente justificações de um homem que ansiava não cair no esquecimento autoral devido a um estancamento criativo. Essa falta de transgressão do seu gesto narrativo levou-nos a duas obras de natureza caducada: “Los Amantes Pasajeros”, um retrocesso à faceta de comédia negra à prova do preconceito sexual e no seu anterior “Julieta”, o melodrama novelesco (ou melhor, como Caetano Veloso definiu, “o almodrama”) a tentar fazer jus a um legado.

Vamos por partes: se existe elemento que une a filmografia de Almodóvar é o passado, o seu peso que intromete-se como causa e efeito, assim como resolução dos seus conflitos. O cineasta espanhol apenas transgrediu essa essência de olhar para trás, retirando-a do universo dos filmes e posicionando-se ele próprio nesse efeito. Resultado: “Los Amantes Pasajeros” é de um humor decadente e arcaico que só demonstra como a sua comédia "almodovariana", dos tempos de “Kika” e “Entre tinieblas”, não consegue ser replicada na atualidade (e não há razão para tal). Já Julieta demonstra uma falta de sofisticação, um realizador a citar-se a si mesmo num intenso automatismo.

E é com isto que chegamos à contradição. “Dolor y Gloria” é um filme sobre o passado e ao mesmo tempo é um olhar para o passado, um jogo de camadas que a certo momento assume. Mas então, o porquê deste sobressair dos dois mencionados dessa jornada aos êxitos de outrora? Por uma simples razão: Pedro Almodóvar volta a preocupar-se com as personagens e isso sente-se num protagonista tão alter-ego como Salvador Mallo (nunca vimos um Antonio Banderas tão intimista como o daqui), um realizador na recusa em iniciar novos projetos devido a uma insegurança existencialista que bem poderia ser trocado pelo próprio cineasta.

O espectador segue de perto o seu quotidiano, as suas memórias, as suas eternas dores (físicas e emocionais) e ao mesmo tempo celebra a vida com ele. Almodóvar percebe assim a ligação entre a personagem e o público, elaborando-o no limiar da linguagem meta, tornando-o direto e franco nesta relação, fazendo do próprio espectador o seu cúmplice passional.

Se Mallo é o anfitrião deste retorno à infância e das etapas que o tornaram o adulto que é, incentivado por um desenho da mesma forma que a madalena incentivava Proust, “Dolor y Gloria” é também apoiado na cedência ao detalhe. Aliás, pormenores mínimos que conquistam o seu lugar no realismo comportamental, arestas limadas que na linguagem académica são frutos despachados para não “empapar” narrativas. Atos como o de Mallo, que fuma heroína pela primeira vez (demonstrando sempre um gesto de “novato”), ou toda a condução da cena entre Penélope Cruz e filho na estação, prolongam a sequência como uma réplica dos costumes geracionais.

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Depois segue a contradição número dois. Se Almodóvar está interessado em colocar as suas personagens a comportarem-se da forma mais real possível, então porquê deslocá-las para um ambiente plastificado? Este contraste de “sabores” guia-nos por entre as referidas camadas. A peça teatral de Mallo, por exemplo, é composta maioritariamente por um plano médio sob fundo vermelho berrante (um dos melhores trabalhos do diretor de fotografia, José Luis Alcaine) que cristaliza a silhueta do magnífico Asier Etxeandia em pleno monólogo. O efeito hipnótico causado por esta escolha de coloração é somente a fase um.

A segunda arranca após o vencimento do plano: uma sequência de campo/contracampo entre o ator ficcional e o público ficcional, que por sua vez, representam a ligação intimista que o nosso artesão tenta estabelecer entre Mallo e nós. Os olhares destes “figurantes”, em união com o olhar de Etxeandia, servem apenas de atalho para o reencontro de amantes (belíssimo momento que nunca cede o caminho fácil do melodrama). Isto tudo, para situar que as camadas (sempre presentes) operam como um verdadeiro tour-de-force da própria narração, alicerçado de uma edição veterana de quem conhece a semiótica dos planos e do desencadear destes.

E é aí que entramos na prova final. Conhecimento, maturidade e experiência, três elementos interligados e quase diluídos que formam uma obra culminante. Pedro Almodóvar teve que tropeçar para voltar ao carris e fá-lo sob um sabor de saudade. Um filme visualmente cativante que opera como um espelho emocional, sensível e confidente, onde encontramos mais que somente personagens, mas marcos que mapeiam a alma de um realizador que nos convida a percorrer o seu continente.

Tínhamos tantas saudades tuas!

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