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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Todo Comenzó por el Fin: um adeus a Luís Ospina

Hugo Gomes, 28.09.19

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Luís Ospina na Cinemateca, durante o Doclisboa 2018

Há uma honestidade intelectual em Luís Ospina.” Era a frase feita que nos vendiam quando da sua vinda à Cinemateca de Lisboa, no período correspondente ao que Doclisboa lhe dedicava numa retrospectiva integral em 2018.

Nesse mesmo ano notava-se na sua figura uma certa fragilidade. O tempo não lhe estava a ser generoso (foi-lhe diagnosticado cancro alguns anos antes), porém, era identificável a sua resistência. O cineasta e cinéfilo de “boa raça” colombiano manteve-se incansável, presenciando todas as sessões e inclusivamente indo ao encontro com os espectadores. Como uma espécie de “teaser”, antes da projeção, ele falava sobre as respectivas produções, os pós e contras, as suas percepções, confirmando aí a sua honestidade para com o seu legado.

Era um realizador que caiu no erro de explorar o miserabilismo naquilo que apelidava de “porno miséria”, até por fim encontrar o conforto na busca pela dignidade dos mais pobres, tendo concretizado “Agarrando Pueblo” com Carlos Mayolo, como um “antídoto (…) para abrir os olhos dos espectadores quanto à exploração por detrás do ‘cinema de miséria’ que converte pessoas em objetos“, segundo o seu manifesto de 1978. Apesar de ter estado presente em todas as sessões, o colombiano não conseguiu estar presente no nosso marcado encontro. No dia seguinte, a curadora da retrospectiva (Agnès Wildenstein) veio desculpar-se da ausência e, em jeito de confissão, disse-nos que o estado de saúde de Ospina piorava a olhos vistos e que nessa altura encontrava-se demasiado fatigado para se encontrar com a imprensa.

Confesso que não guardei rancor por ele ter faltado ao seu compromisso, pois notava-se a léguas que Luís Ospina mantinha em segredo, apesar de em vão, as suas fraquezas, neste caso o tempo que lhe restava, e que o próprio pretendia transformar numa eternidade.

Se o seu objetivo foi ou não foi cumprido, só o tempo dirá, mas até lá há que sentir o pesar. O Mundo perdeu um dos seus grandes autores marginalizados, que mesmo sob o registo de duas longas-metragens de ficção que operaram como experiências de género, foi no seu trabalho documental que costurava questões sociais e culturais do seu país, imortalizando os seus amigos artistas e do “povo” que até à sua chegada não tinham voz, que deparamos com um incalculável legado.

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Agarrando Pueblo"

Nascido na cidade de Cali, em 1949, Ospina estudou cinema na UCLA (EUA) e concretizou o seu primeiro aperitivo cinematográfico ao adaptar o conto de Eróstrato de Sartre numa abordagem livre em Acto de fé. A sua paixão pelo cinema norte-americano levou-o diversas vezes a revisitar, quer no documentário sobre os filmes mudos de Hollywood (“Slapstick: La Comedia Muda Norte Americana”, 1989), quer na influência nas suas tentativas de enriquecer a arte de contar histórias no cinema colombiano (“Pura Sangre” em 1982 e “Soplo de Vida” em 1998, terror e noir com crítica social injetada).

Contudo, foi com isso mesmo, a vénia ao cinema colombiano, oculto por esse mundo fora, que Ospina consultava constantemente como sua fonte inspiracional. Procurou o primeiro filme mudo do seu país em “En Busca de “Maria”” (1985), percorreu o seu cinema em “De La Ilusión al Desconcierto: Cine Colombiano 1979 – 1995” (2007), e prestou homenagem ao seu amigo crítico Andrés Caicedo, “Unos Pocos Buenos Amigos” (1986), com o qual fundou a revista “Ojos del Cine”. Quanto às suas amizades, com o cineasta chileno Raoul Ruiz filmou uma curta em modo “cadáver esquisito” denominada de “Capítulo 66”.

E foi através desses vai e vem pelo património cinematográfico que Luís Ospina revelou pela primeira vez os seus problemas de saúde, mais concretamente em 2015, num olhar ao chamado Caliwood, grupo cinematográfico de Cali (também fundado em conjunto com Andrés Caicedo no anos 70), em “Todo Comenzó por el Fin” (2015). Como premonição, a morte por fim visitou-o a 27 de setembro de 2019, em Bogotá, onde estava radicado.

Antes disso, esteve presente no FidLab em Marselha, em junho deste ano, em busca de financiamento para um novo projeto: o de pegar em doze filmes mudos colombianos e montá-los como uma obra imaginária. Mesmo não concretizado, é um final digno de um cineasta. Luís Ospina morreu aos 70 anos, mas morreu na paixão daquilo que tanto amou: o Cinema.

Vagabundos do mundo capitalista

Hugo Gomes, 27.09.19

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Realizado, escrito e protagonizado por Nadège Trebal, colaboradora de muito do cinema de Claire Simon, “Douze Mille” apresenta-nos Franck (Arieh Worthalter, “Girl”), um desempregado que é demitido do seu “trabalho ilegal”, mas que consegue uma nova oportunidade de “sustentar” a sua família num cargo distante. Por entre discussões com a sua mulher (interpretada por Trebla), eles chegam a acordo sobre o valor que motivará o seu retorno a casa: doze mil. Mas o dito “emprego” não é bem aquilo que Franck imaginava e por entre algumas aventuras e desventuras, vê-se emaranhado em esquemas e biscates ocultos. 

Como mencionado, Trebal nunca abdica do realismo encenado, e contamina este ambiente pastiche com uma instintividade musical sem receios de plasticidade. Nesses encargos, um filme como “Jessica Forever”, da jovem dupla Caroline Poggi e Jonathan Vinel (assim como outros integrados no manifesto ‘Flamme’), assumia facilmente esse lado de renegado do Mundo, enquanto “Douze Mille” debate-se constantemente pelo tom a ceder, ao mesmo tempo que paira em demasia nas fantasias masculinas, dando o ar de dúvida quanto à fidelidade da figura patriarcal. É certo que Nadège Trebal costura uma crítica a essa visão dita masculina quanto à missão de sustento familiar. 

Contudo, as mesmas nuances são deslocadas da jornada deste “herói”, onde uma lavagem obscura, diversas vezes pseudo-alarmista, desvia a nossa atenção das questões da precariedade ou do território do proletariado. Para além disso, o sexo, que como sabemos é de uma imperativa social a ser discutida, revela-se num impasse narrativo em todo este jogo de compromissos e cumplicidades.

Conhece o teu Cavalo de Tróia

Hugo Gomes, 25.09.19

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Se vamos encarar este “Parasite” como a enésima lengalenga da guerra entre classes, então, segundo a sagrada sabedoria popular, mais vale tirar o “cavalinho da chuva”. Esta menção de aguaceiro não é de todo fruto do acaso: com esta obra de Bong Joon-Ho é a "água vai e água vem" a encarregar-se de “limpar” da vista dos mais afortunados os “insetos humanos” que se empoleiram para “parasitar” as suas tão cobiçadas vidas. Uma "higienização" que leva a um isolamento das classes de topo.

Em "Parasite, somos encaminhados para uma família subsídio-dependente, os Kim, que sobrevivem através de esquemas e de puro oportunismo. Como todos os indivíduos deste grupo social, fantasiam com uma vida de luxos necessários e de segurança financeira futura. E é então que, quando a oportunidade lhes bate à porta, os Kim se infiltram no seio da família dos abonados Park e o que seria uma operação de subsistência com prazo incerto converte-se num manual de reviravoltas num mundo onde vale tudo.

Voltando ao ponto inicial do texto - o do confronto entre as diferentes classes - não é nada que Joon-Ho não tivesse já feito de forma quase "orwelliana" no distópico “Snowpiercer”. Só que, em “Parasite”, tudo é corrido a símbolos. O título é, isso mesmo, simbólico e quase analógico para com este embate social e os maneirismos e a ostentação da cultura ocidental por parte dos “ricos” aqui inseridos espelham uma ideia de uma classe alta formatada pelos parâmetros euro-americanos (quase como o desejo da burguesia pelo exotismo). O realizador desconstroi e reconstroi vezes sem conta, sem nunca seguir tratados de sociologia.

Parasite” é cinema astuto pontuado pelos códigos do mais entusiástico “storytelling” (a capacidade de contar uma história e por sua vez torná-la perceptível a todo os olhares) que o cinema sul-coreano nos ofereceu desde o início deste século, como resposta à deterioração narrativa do sistema de Hollywood. Bong Joon-Ho fez parte dessa vaga, ao lado de nomes como Chan-wook Park (“Oldboy”, 2003) e Kim Jee-woon (“A Tale of the Two Sisters”, 2003), que colocaram a Coreia do Sul no mapa do espectáculo cinematográfico (e obviamente encheram Hollywood com “novas ideias”). Contudo, tentou separar-se da vaga, instalando-se como um homem de mil ofícios e de mil produções (a colaboração com a Netflix que gerou o conto moral vegetariano “Okja”, é um dos exemplos dessa versatilidade).

De regresso ao seu território natural, o realizador demonstra a sua determinação em dissecar o seu tema-base – a classe social do ponto de vista de um eterno contador de histórias. Nada de novo, é certo, mas “Parasite” remexe em diferentes tons, apresentando-se como uma salada russa fresca. A sensação de novidade é aquela que obtemos perante esta mistela de ritmos e sabores. "Parasite" é o poder da arte de contar uma história de Joon-ho e por isso estamos mais do que agradecidos.

A última continência a Rambo

Hugo Gomes, 24.09.19

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Podemos obrigar um "Rambo" a reformar-se? Será possível, após tanto investimento para produzir a mais perfeita arma de guerra para, solicitar no final o seu afastamento, como uma peça descartável num mundo que já não lhe pertence?

Em 1982 e pegando nos ecos da Guerra do Vietname e nas feridas ainda por sarar numa nação orgulhosa, surgiu um improvável símbolo antissistema e sobretudo anti-bélico - John Rambo - interpretado por um Sylvester Stallone já consagrado como Rocky Balboa: um estranho à deriva num país que já não reconhece e, pior de tudo, não o reconhece. Dirigido por Ted Kotcheff e inspirado no livro David Morrell, “The First Blood” constituiu num improvável sucesso que o encaminhou por trilhos que não era suposto ter seguido. Stallone, durante um colóquio especial na 72ª edição do Festival de Cannes, referiu que a personagem não se integrava concretamente em nenhum lado político, apenas representava as repercussões que o conflito do Vietname tivera nos EUA, sentindo-se por isso embaraçado pela declaração assertiva do então presidente Ronald Reagan de que John Rambo era republicano.

É através desse equívoco que o sucesso do primeiro filme se transformou numa trilogia em que a personagem foi imposta como um protótipo heroico que reúne as melhores qualidades norte-americanas (vale a pena referir que até foi produzida mesmo uma série de animação dirigida aos mais novos). Passados 20 anos desde a última missão (aquela em que John Rambo defendia os talibans perante as forças soviéticas!) e após a ressurreição de outra das suas icónicas "personas" - Rocky Balboa - num homónimo filme que fazia jus ao seu legado, Stallone regressou ao veterano com "John Rambo" (foi esse o título oficial), que, apesar do seu agressivo maniqueísmo, se aproximava da fonte original, apresentando um envelhecido ex-militar na esfera dos conflitos armados na Birmânia (Myanmar).

Mas a história do veterano, afinal, não acabou ali: John Rambo mudou-se da Tailândia para o rancho da família em plena terra natal, a poucos quilómetros da fronteira mexicana. E os fantasmas das guerras passadas continuam a assombrá-lo, acabando por vir ao de cima após a tragédia chegar ao seu território. É fácil encontrar em “Rambo: The Last Blood”, a aplicação do dilema de uma máquina de matar que nunca descansa perante um “caldeirão em ebulição”. E tal como o quarto filme, é o festim macabro e direto como aditivo da ação que se sobrepõe ao enredo anorético. Apenas o olhar descontroladamente raivoso de Stallone nos leva aos esperados picos de loucura pós-Vietname.

Infelizmente, John Rambo continua vítima do equívoco perpetuado por Reagan: as suas cicatrizes são confundidas com atos patrióticos e a semiótica faz das suas quando o vemos “massacrar” mexicanos de cartéis (os “bad hombres” que Trump cita constantemente). Isto não quer dizer que o quinto filme seja uma declaração pró-Trump, mas é um maniqueísmo sem esforço que entra em confronto com os tempos que correm, numa altura em que, por exemplo, “Sicario”, não nos sai da cabeça. O final é exemplo disso, traindo-se a si mesmo, depositando o coração na literalidade dos mortíferos gestos, que não são mais do que epifanias de uma nação em perfeita luta contra o resto do mundo.

A tudo isto junta-se a realização desinspirada de Adrian Grunberg (“Get me the Gringo”), que converte esta produção em algo desajeitado e demasiado fechado (há algo de claustrofóbico neste México filmado quase inteiramente em planos fechados). “Rambo: A Última Batalha” é costurado em tecidos da década de 80, numa ação sem pretensões e longe das reflexões inerentes ao patriotismo. Tendo em conta o cinema de hoje, é pena que tenhamos que nos contentar com tão pouco. Ver Rambo a ser somente a aniquilação fabricada pelo Estado norte-americano é reduzir todo um legado a nada. Fica a continência... seguida pela retirada.

Sexys, astutas, ousadas e golpistas

Hugo Gomes, 23.09.19

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"Doesn't money make you horny?"

As comparações são inevitáveis com “The Wolf of Wall Street”. Não só porque ambas as obras retratam a crise imobiliária de 2008 como viragens na jornada das nossas protagonistas, mas porque também “Hustlers” deve muito aos tiques do chamado “chico-espertismo”, no qual Martin Scorsese concentra e muito ao longo da sua carreira. Trata-se de um fulgor derivado das portas escancaradas deixadas pela Nova Hollywood, um vaivém sarcástico com a indulgência das suas personagens que não deixa de ostentar um certo fascínio pela ilegalidade. Scorsese deixou há muito de ser um cineasta a solo com a sua marca para tornar-se numa instituição, e não é por menos que esta obra de Lorene Scafaria (com produção de Adam McKay, que também tem demonstrado alguns truques desse mesmo “circo”) nos apresenta como um ensaio distante da mera referência scorseseana, ao contrário, de por exemplo, Todd Phillips, prestes a estrear o seu “Joker”, que não esconde as suas fontes de alimentação nem a vénia ao seu mestre.

Com base num artigo da New York Magazine, da autoria de Jessica Pressler, “Hustlers” centra nos enredos e engenhos de um grupo de strippers que drogavam os seus clientes para depois extorquir todo o dinheiro que podiam. Eram tempos difíceis, como o filme faz questão de relembrar, e mesmo assim somos presenteados com o mais vulgar dos moralismos da mesma forma que esta história de sedução e extração é sob uma lente grossa uma espécie de “Goodfellas” no feminino. Obviamente que ao utilizar estas afirmações / comparações soa quase como um desprezo ao que “Hustlers” tem de mais formidável, a planificação de Scafaria em conjunto com a montagem de Kayla Emter (que já havia trabalhado com a realizadora em “The Meddler”, para além com James Gray em “The Immigrant”) que emergem uma espécie de saudação a este universo.

Basta olhar para duas sequências em particular: a chegada de Usher ao “cabaret”, onde o filme automaticamente se transforma num animado quadro onírico e o na da parelha formada por Jennifer Lopez e Constance Wu sob os tons escarlates da sala privada, em jeito de grandes planos e planos-detalhe (uma libertina lavagem de “Une Femme Mariée”, de Jean-Luc Godard). Dois exemplos que explicitam a versatilidade de Scafaria neste registo criminal, mas infelizmente é nas passagens pelo conto e reconto à Scorsese que a película não chega atingir a superfície do Sol. Ao invés disso é um Icarus que se conforma com o seu ambiente terra-a-terra, planando numa altitude confortável e segura. Passando então para o lado mais subversivo, o facto de ser uma realizadora por detrás dos devaneios e desventuras deste bando de raparigas, colocam a obra em condições para dissecar a rés-rés impunidade das protagonistas graças (em certa parte) à masculinidade tóxica existente na sociedade moderna (a vergonha de admitir a “burla” e cair no estatuto de vítima, fez com que muitas das “presas” da gangue não denunciasse o ocorrido).

Hustlers” é o resultado da diversificação das vozes nesta indústria, porém incentivadas pelas mesmas fábulas. E é pena (também) que mesmo a astúcia de Scafaria esteja no palco, à vista de todos, balanceando no varão, o filme se confunda com a sua estrela / produtora, Jennifer Lopez, naquele que é um dos papéis mais trabalhados da sua carreira (atenção, não deveremos cair nos exageros dos elogios replicados da imprensa norte-americana), e acima, dos mais físicos. Mas até nesse aspeto, Constance Wu sai a ganhar até porque ao contrário de Lopez consegue arrancar a sua personagem do seu previsível arquétipo.

A tragédia é uma comédia em Joker

Hugo Gomes, 23.09.19

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É dos exercícios mais maduros do universo dos super-heróis desde Logan … mas que neste caso inseri-lo no contexto desse subgénero é quase como uma ofensa. Convenhamos que toda esta emancipação serviu para incentivar uma experiência de cinema longe dos círculos dos cânones das tendências industriais, o resultado é uma subversiva e perversa analogia do nosso mundo, completamente inspirado pelo código binário social. Mas essa lógica funciona somente como uma capa, Joker, do cada vez mais “scorseseano” Todd Phillips (já começo a ver The Hangover como um delirante After Hours) remexe nas fontes das nossas anomalias, culpando a sociedade envolto, mas nunca vitimizando a “cobaia”.

Pois … já me ia esquecendo … Joaquin Phoenix é esmagador

De gospel nas veias, ouçamos a voz do Divino

Hugo Gomes, 16.09.19

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Um belo edifício surge perante nós. Numa das suas fachadas é possível termos a perceção da sua futura estética, uma magnífica e trabalhada construção que se erguerá na cidade em todo o seu apogeu, mas do outro lado, ainda inacabado, a estrutura de ferro e betão carece da sua capa. Duas metades fazem-nos anteceder o antes e depois, e no seu todo, a imperfeição resultante desse calculado caminho à perfeição.

Amazing Grace” é essa arquitetura projetada, mas não idealizada, o documentário que abraça o seu processo de criação e que através do “acidente” de percurso, que é a sua existência, se converte num divinal making-of do concerto de duas noites na Igreja do Reverendo James Cleveland, em Los Angeles, 1972, da grande rainha do soul Aretha Franklin. Incorporada para prestar um serviço religioso, a pujante voz por detrás de “(Sweet, Sweet Baby) Since You’ve Been Gone” abraçou um outro género musical, vivido na sua infância (vista ser filha de um reverendo) o qual acompanhou o seu crescimento profissional – o gospel. Perante um público curioso, devoto e convidado (no qual se integram algumas estrelas como Charlie Watts e Mick Jagger), Franklyn ascendeu aos céus numa omnipresente melodia, suor e lágrimas, como se estivesse envolvida num intenso estado de transe.

Desta performance nasceu um dos discos mais importantes do género, o dito "Amazing Grace” … e não só, mas foi um dos marcos da música norte-americana. A gravação do álbum levou à conceção de um concerto filmado com destino à televisão, por detrás dessa tentativa encontrava-se um “verdinhoSydney Pollack (“Yakuza”, “Tootsie”, “The Firm”), visível a dar instruções aos membros da equipa que cercavam a diva e as suas constantes e transcendentes canções. Contudo, algo aconteceu, por motivos técnicos o projeto foi inconcebível, seguido por questões de direitos que impediram o concerto ser divulgado até à sua estreia no festival DOC NYC em 2018, num trabalho continuado por Alan Elliot (visto que Pollack faleceu em 2008).

Só que Elliot não se dignou a revestir as filmagens num embrulho de intocável brilhantismo. “Amazing Grace” abre com um aviso, um contexto histórico para depois seguir, sem medos, pelas suas fissuras – os closes ups fracassados e desengonçados, as falhas de som, os enganos, o rosto “inundado” de Aretha, os reprises, o inesperado e as emoções incontroláveis e não programadas. São estas imperfeições que nos fazem antever a sua perfeição, que infelizmente não iremos presenciar em imagem, mas que reside no áudio deste “Amazing Grace”.

É através desses erros, desses bloopers e imprevistos que o documentário transforma-se numa oportunidade de aproximação do público para com a cantora, um intimismo raro que posiciona Aretha no devido lugar dos mortais, fora dos contornos divinos atribuídos enquanto ícone. “Amazing Grace” é essa estrutura de aço em pré-construção, inacabada, mas que preenche a paisagem com uma presença altiva.

Que "cinema português" habita na "A Herdade"?

Hugo Gomes, 15.09.19

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As vozes mais otimistas mencionam “A Herdade” como um culminar de décadas de um cinema que sempre se distanciou do seu público, quer pelo (seguindo o senso-comum) panorama autoral algo umbiguista, quer pelas tentativas de aproximação, que resultaram numa espécie de amadorismo, não apenas no sentido técnico e estético, mas também semiótico. Não tentaremos aqui reduzir todo o cinema nacional a uma “barriga de aluguer” para esta produção certeira de Paulo Branco, nem indicar o filme-encomenda de Tiago Guedes como o exemplar seminal: "A Herdade" é um filme litoral, nem tanto à terra (pelos traços do facilitismo e comercialidade tendenciosa), nem tanto ao mar (dando a liberdade total ao seu autor).

Joga pelo seguro de uma forma confiante e, acima de tudo, não menosprezando a sua natureza – a de estar inserido no cinema português. Talvez seja por isso que esta história que atravessa gerações ostenta um trabalho invejável quer na "mise-en-scène" por vezes idílica, quer nas cartilhas político-sociais que enriquecem o ambiente envolto deste conto moralista e metafórico no qual o seu protagonista, João (um Albano Jerónimo de garra) se insere com estranheza. Tiago Guedes, realizador que tem desafiado o estigma com o culto de “Coisa Ruim” (co-realizado com Frederico Serra, 2005) ou do atípico (e não para todos os paladares) “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019, com estreia futura nas nossas salas), incorpora essa segurança, planificando esta trama, que facilmente cairia em contornos novelescos, através de um acordo com o memorialístico da cinefilia profunda.

O "travelling" que não quebra na boda, como o duelo de recordações e saudosismos enterrados no salão de baile de “Il Gattopardo" de Luchino Visconti, ou o jantar de família onde o fervor patriarcal será embatido, espelham em certas ocasiões um classicismo digno dos padrões cénicos de uma Hollywood hoje preservada nas nossas raízes (destaque para a fotografia de João Lança Morais).  Tiago Guedes configura toda uma obra ditada pela excelência e perversão do seu guião, ao mesmo que se concentra em distribuí-las por uma narrativa igualmente visual e virtuosa para o olhar.

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A única “erva-daninha” em toda esta colheita encontra-se em departamentos limitados que não se conseguiu contornar, nomeadamente o sector da caracterização e maquilhagem, que evidencia anomalias para envelhecer as personagens. Ou no dispositivo entranhado "à lá Eça Queiroz", que atrasa mais o ritmo do que o dinamiza. Seja como for, apesar das semelhanças, a nível estrutural e na convergência do argumento, “A Herdade” supera o seu afastado primo e pastelão “The House of the Spirits” / “A Casa dos Espíritos” (a Argentina filmada no Alentejo por Billie August) graças à familiaridade com os elementos que joga e pela regulamentação da sua pomposidade para os nossos devidos encaixes.

Contudo, voltando a afirmar, Tiago Guedes constrói um filme de respeito na nossa cinematografia, que faz boa figura perante produções maiores da indústria internacional. Um conto que desmonta o patriarcado num tom de passividade crónica, detido por uma linguagem que venera o cinema universal.

Holocausto Festivaleiro

Hugo Gomes, 14.09.19

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A nossa contemporaneidade pede uma nova vaga no género de terror dentro do panorama norte-americano. Após as despedidas de Wes Craven, George A. Romero e um John Carpenter ausente, os aficionados viram-se para uma nova geração de assumidas responsabilidades de carregar o legado e através disso redefini-los para os nossos tempos. São eles Robert Eggers, Jordan Peele e por último Ari Aster, o trio que a imprensa apelidou de “elevate horror”, sangue fresco para as veias decadentes do Grande Cinema de Terror Norte-Americano. O primeiro afirmou-se com um slow-horror atmosférico (“The Witch”), o segundo com o díptico da ebulição social e racial que experienciamos (“Get Out”, “Us”) e o terceiro e possivelmente o mais interessante do grupo, distorce as estruturas familiares e descompõe a vitimização e o luto em prol da velha tradição do terror.

Não há muito tempo assistíamos à proeza de “Hereditary”, obra de assombrações espíritas que remetia ao “nojo” como um elo de ligação afetiva ou até o oposto, tendo a sua mercê uma explosiva Toni Collette (criminosamente ignorada nos Óscares) e um olhar atento pelo estético plano fixo. Atmosfera era com ele, Aster culminou o conservadorismo do terror centenário num eterno jogo de sugestão, sombras e de apuradas referências. 

Um ano separa o seu primeiro êxito com um este retornar às suas assinaladas temáticas embrulhadas. Garantem os espectadores mais obsessivos, que “Midsommar” decorre na mesma realidade de “Hereditary”, mas não é preciso recorrer a teorias de fãs, porque cinematograficamente ambos são o mesmo filme, só que em divergentes perspectivas. Desta maneira, recorrendo aos lugares familiarizados do “folk horror”, “Midsommar” é novamente um conto sobre o luto e as diferentes estratégias de superação, iludindo um efeito de estranheza, um show de horrores invisíveis e enraizados que desvia-nos do principal propósito desta segunda longa-metragem, a de um realizador que supera um luto emocional. 

Ari Aster revelou que “Midsommar” nasceu de um fim de relação, uma tentativa de superação estampada neste quotidiano fabricado, um folclore pagão que reúne a nossa já estabelecida imaginação (nunca saímos do campo proclamado por “Wicker Man” ou do mais recente “Kill List”) e o qual encara-se com uma repudia física ou sentimental. É um filme impressionista na sua sensibilidade, um intimismo que recolhe em prol de uma negação, essa, a do realizador em compor uma obra maior que a sua ambição. E talvez seja a sua falha que encontramos a sua “contraditória” virtude: “Midsommar” é pretensioso, unificando os seus maneirismos kubrickianos ou do cinema new-age e xamanismo de Jodorowsky, nunca trabalhando um plano da mesma maneira que o fizera em "Hereditary". Joga-se por travellings e mais travellings como um turista num mundo adverso. 

Uma espécie de “Cannibal Holocaust”, onde o “civilizado” entra em território “selvagem” nunca escondendo a sua “superioridade” cultural e ao mesmo tempo revelando a sua primitividade. Em “Midsommar”, os civilizados não são as vítimas, são as cobaias de uma experiência coletiva, o qual se denomina desconforto. Ari Aster incomoda muita gente na sua segunda longa-metragem e isso não é propriamente um mau sinal.

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