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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Come and See: quando os "sussurros" dos caídos perseguem

Hugo Gomes, 29.08.19

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E quando ele abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal dizer: Vem e vê. E olhei, e contemplei um cavalo amarelo: e o nome dele que estava em cima dele era a Morte, e o Inferno seguia com ele. E foi-lhes dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar à espada e com fome, e com a morte e com os animais da terra.

Livro das Revelações, Capítulo 6

Chega em cópia restaurada a obra de 1985 que é descrita como um dos “maiores filmes de guerra de sempre”.

“Era humano, agora sou alemão

Encarna a criança, aliada ao jovem Fyora (Aleksey Kravchenko), que será o nosso guia perante um cerco de horrores no último filme de Elem Klimov. Mas já lá vamos! É nesta exclamação, com o intuito de afugentar o velho louco que adverte a estes “enfants” o perigo de vasculhar aquelas terras. Não poderia estar mais certo, o nosso protagonista encontra o brinde que tanto ansiava, sem saber que esse mesmo se convertia no seu mais íntimo pesadelo: uma espingarda. Com essa mesma arma, quase seguindo as cantigas de teor militar popularizadas no universo yankee: “This is my rifle, there are many like it but this one is mine. My rifle is my best friend. It is my life. I must master it as i master my life. Without me it is useless, without my rifle i am useless” (parafraseando “Full Metal Jacket”, de Stanley Kubrick), este fraudulento coming-to-age dá-se como iniciado.

Fyora viu neste seu achado a sua entrada em grande para a resistência bielorrussa contra os invasores nazis, os alemães, os não-humanos que as crianças invocam como autênticos papões. O mundo do jovem instala-se numa fantasia concretizada quando dois “camaradas” entram pela sua casa adentro preparando-a para a sua partida para o acampamento clandestino. A felicidade de Fyora é cortada pelas lágrimas desesperantes da sua mãe, como se fosse esta a última imagem do filho.

Tudo parece correr como planeado. Fyora integra a resistência com dedicação e sobretudo motivação pela causa, mas apercebe-se do que o rodeia no preciso momento que se perde do resto do pelotão. O choro é transposto para a gargalhada, e vice-versa, a negação que o mantém na perseverança de um sonho, uma ingenuidade no alvo de uma violação de consciências. O nosso “herói”, como é descrito nas enésimas sinopses, não é mais uma personagem de consequências, é um espectro que paira num cenário dantesco da banalização do mal e a sua superlativa devoção.

"Come and See" perde-se do rasto dos outros retratos da Segunda Guerra Mundial por se “reduzir” à sua pequenez humana. Ou seja, não explora o heroísmo, nem sequer invoca o esplendor do bélico. Aliás, renuncia ao belicismo, despindo o seu "encanto" e apostando contra a sua doutrinação. Possivelmente é dos filmes de guerra mais adversos à sua essência, o verdadeiro "antiguerra", não o oposto que muitos desejam proclamar de peito aberto. Obviamente que toda esta boleia pela barca de Caronte se faz pelo grau dimensional de psicologia imposta por Klimov, seja através da impotência do seu protagonista, quase reduzido a uma somente perspetiva, seja pelos constantes foras-de-campo (os "travellings" "tarkovskianos" que perseguem Fyora, condicionando diversas vezes o ângulo do espectador) ou os ecos de trevor que se assumem como sonoplastia, como se transportasse a personagem para fora do seu corpo (porque esta sua carne já não lhe pertence). Eis um mero farrapo humano condenado a deambular nas cada vez mais escassas réstias de existência, citando "tintim por tintim" o negativismo extraído de Primo Levi.

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Já o escritor concentrava esse pensamento lúcido durante a sua “estadia” no campo de concentração de Auschwitz, experienciando os seus homólogos convertidos em farrapos humanos, despidos das características que o sempre tornaram “homens civilizados”. Essa redução ao estatuto animal é uma das armas do regime nazi, a fim de redefinir uma “raça superior” embutida num cenário darwinista (assim como é pronunciado o militar nazi no requiem, sem mostrar nenhum apontamento de remorso). Esse mesmo discurso, que consequências trará, joga em contacto com o prólogo, a dita criança que fantasia o “bicho-mau” alemão.

Novamente recorrendo à melodia fúnebre do contraste, o assombro gemido que alustre como uma atmosfera sonora, partilha o seu espaço com Mozart, pontuando a sua “civilizada” barbárie – no fim de contas, como é dito num discurso seminal do militar das SS, toda a violência emanada é inibida de sentimento e remorso, uma limpeza étnica, um embate entre castas humanas e a produção de uma civilização superiorizada tendo em conta uma “gloriosa” História. A desumanidade contamina qualquer imagem: “Come and See” é, em toda a sua inglória, um filme produzido com um tenebroso gesto de revolta, pesar e repudia ideológica. Mas Klimov tece-o sem acórdãos descarados da propaganda, ruminando uma reprimida emoção, um "fardo" que pretende carregar colocando em risco a sua narrativa e o seu protagonista, o inocente que se metamorfoseia [envelhece] em frente aos nossos olhos.

A obra ficou-se como o último trabalho de Elem Klimov, um retrato obscuro que suga vampiricamente qualquer otimismo e alegria residida no espectador, que se vê (verbo adequado em toda esta jornada) par a par com o seu protagonista impotente e debilitado. O realizador declarou que depois de “Come and See”, consagrada no Festival de Moscovo, “perdeu o interesse em “fazer filmes”. Tudo o que era possível fazer, já o fizera.“.

Os judeus criaram uma palavra para caracterizar o genocídio do seu povo – Shoah (Holocausto). Para os bielorrussos, possivelmente “Idi i Smotri'' [título original do filme] seja a expressão perfeita.

Um duelo ao som da melodia

Hugo Gomes, 23.08.19

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Podemos apelidá-lo de “tearjerker” de segunda categoria, um melodrama que se empoleira de bico de pés perante o selo qualitativo oriundo dos grandes estúdios, orquestrado (melhor palavra aqui) pelo mais “lacrimejante” dos realizadores da Hollywood clássica, Frank Borzage, mas existe nele um momento perfeitamente divinal.

Falo de I’Ve Always Loved You (1946), um à primeira vista romance entre mestre e discípula orientado no mundo da música clássica, porém, o filme é mais que isso, é um conto de superação profissional e de género (mesmo que nesta questão haja nele um lençol de conservadorismo) em que as personagens se relacionam com a música como uma linguagem emocional distinta.

A genialidade encontra-se no confronto entre Myra (Catherine McLeod), a aprendiz, e o “grande” maestro Goronoff (Philip Dorn), ocorrido no Carnegie Hall, Nova Iorque. Aqui sob o olhar atento de um público que reconhece a rivalidade descortinada na performance musical, Myra tenta brilhar através das suas proezas no piano enquanto Goronoff a sabota perante uma orquestra submissa à sua enfurecida batuta. O momento prolonga-se, a música ecoa pela grande sala de espéctaculos oscilando entre a doce melodia até ao rompante uníssono, os olhares entre os dois competidores cruzam-se de lés-a-lés, os pensamentos de Myrra sufocam a cadência enquanto os gestos agressivos e assertivos de Goronoff solicitam por mais um round.

É como um combate de boxe, aliás, nunca se vira o glamoroso Carnage Hall transformado num ringue entre dois pugilistas - o underdog promissor contra o convicto campeão - o entretenimento de aristocratas assumindo-se no “desporto de brutos”. Não vira tal transladação semiótica desta maneira, não até surgir entre nós Whiplash de Chazelle, também ele o embate entre mestre/aluno, maestro e “trovador”.

Estar além da criatividade para revelar António ao Mundo

Hugo Gomes, 18.08.19

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E quem é que te disse que quero adaptar-me a Lisboa? Lisboa é que tem que se adaptar a mim”. Longe de ser uma figura do seu tempo, António Ribeiro, ou como é conhecido entre nós, António Variações, provocou um país ainda desconfortável com as próprias mudanças e fê-lo através da música, com a união entre um certo tradicionalismo (Amália era a sua principal influência) e uma vontade nova de cantar. Assim nasceu o artista, ainda hoje relembrado como uma das principais inspirações para as gerações que se seguiram, cantautor de temas de êxito como “Estou Além”, É P'ra Amanhã”, “O Corpo é que Paga” e obviamente “A Canção de Engate” (música que já integrou alguns dos momentos mais belo do nosso cinema), que “vê” por fim nos cinemas a sua primeira cinebiografia, 35 anos depois da sua morte.

Mas para chegar até aqui muito foi batalhado, e que o diga João Maia, realizador e argumentista, que em 2009 viu o seu guião ser alterado sem o seu conhecimento, o que gerou um confronto pelos direitos com a então produtora Utopia Filmes (responsável por “coisas” como “Second Life” e “Corrupção”). O projeto manteve-se no limbo desde então, até que, graças à persuasão de Maia, “Variações” sai do seu coma induzido com a bênção do produtor Fernando Vendrell e da sua David & Golias, e transforma-se finalmente… num filme concretizado. “Variações” tem essa luz de irreverência no nosso panorama cinematográfico, muito mais pela espera em ver este projeto realizado e por preencher um corpo que faz jus à figura transposta. O ator Sérgio Praia, que já havia interpretado o cantor numa peça de teatro de Vicente Alves do Ó, é o motor desta obra que visa a busca do homem por detrás do artista e não o inverso.

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A sua incorporação arrasta o filme para patamares acima de anteriores protótipos de cinebiografias já produzidas entre nós (a relembrar dois vergonhosos casos como “Salazar – A Vida Privada” e “Amália - O Filme”), que são de puro mimetismo primário e que em certos casos reduzem as personalidades a caricaturas de si próprias. Em “Variações”, Praia estabelece um vínculo emocional com a figura, resgata-a do “papel de cartão”, do objeto da memória coletiva, e transporta-a para o holofote como um ser inteiro nas suas dúvidas existenciais, artísticas, térreas e amorosas.

Por força do ator, o filme de João Maia encontra um propósito para a sua concepção, ainda para mais alicerçado na construção do seu ecossistema por um trabalho afincado de direção artística e guarda-roupa que exalta a extravagância da figura titular. Infelizmente, apenas isso resta dos desígnios fílmicos do cantor. O resto, mesmo não jogando inteiramente no conceito televisivo como as duas cinebiografias acima mencionadas, é de um academismo rigoroso quanto à sua estética, planificação e até mesmo narrativa, guiada por modelos “americanizados” ou simplesmente de fácil reconhecimento por via dos protótipos "mainstream".

Variações” não se presta a romper fronteiras como o seu homenageado o fizera no final da década de 70 e inícios de 80, ficando, ao invés disso, pela sombra do modelo e do retalho biográfico como “fact check”. Vale pelo seu ator, mas o resto é como diz a canção: “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. E se paga!

Beatas deixadas pela Fox com atenção à Disney

Hugo Gomes, 16.08.19

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Com as notícias de desmatamento por parte da Disney no catálogo da Fox, entre os quais a aplicação da política “no smoking”, é gratificante ver um dos sobreviventes dessa remessa apresentar uma protagonista que fume casualmente. Um simples pormenor, uma pequena rebeldia contra a doutrinação “disnesca” (obviamente não estou incentivando o tabaco, assim como ver filmes sobre batalhas campais em mansões milionárias não apele à violência mórbida) que é por sua vez uma hipocrisia moral.

Quanto ao Ready or Not que tem vindo a ser apreciado como “surpresa do final de verão”, é uma filme que reúne algumas e curiosas ideias sobre a higienização dos “ricos “ com a normalização da violência na nossa sociedade, tudo emaranhado num formato The Most Dangerous Game (1932) com a gravidade de um Battle Royale (2000). Há ainda laivos para uma certa satirização do género, só pena que a realização seja pobre.

Os Filhos de Isadora: dançando com a dor do mundo

Hugo Gomes, 15.08.19

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A sincronização do passado com um presente em movimento define este “Les enfants d'Isadora” (“Os Filhos da Isadora”) como uma espécie de “anti-biopic”, uma expressão contra o tradicionalismo da narrativa ponto sobre ponto. Para percebermos a veia central, o espírito estruturado deste objeto híbrido entre a ficção desencantada e destilada com os contornos performativos, devemos encarar um dos importantes capítulos na vida da dançarina e coreógrafa Isadora Duncan (1877 – 1927), considerada a percursora da dança moderna, que após a tragédia que a atingiu (um acidente de viação que vitimou os seus dois únicos filhos) tentou reunir os “cacos” e, não superando, mas incorporando a sua dor, criou assim a peça A Mãe (1923).

Esse canalizar da perda, o luto onipresente absorvido por um espírito morto é constantemente relembrado nesta nova obra de Damien Manivel, que segue o destino de quatro mulheres tocadas, cada uma à sua maneira, pelos gestos coreograficamente idealizados por Isadora 96 anos antes. Diríamos nós que em “Os Filhos da Isadora'' há um requer da emoção que quebra a estética fria de tendências documentais. Esse sentimento é aliado na performance, no processo de criação e no ecletismo com que o filme se desenvolve para emanar o seu mais triunfante ato.

Deste lado chega-nos à memória um dos grandes filmes da década passada, “Before We Go”, de Jorge Leon: o poder do “bailado” que aufere um certo tipo de exorcismo reparador, físico e espiritual, para com os corpos decadentes. Porém, se um falava de velhice e decadência, o fim dos dias que se avizinha, em “Os Filhos da Isadora” é o cerne que determina a maternidade e que as conecta perante um ato apenas.

Em quatro mulheres, só uma capta realmente o fardo com que Isadora catalisou a construção do seu monumento. Para a experienciarmos, há que esperar. A belíssima compensação (convém realçar) chega-nos no breu da noite, sob as luzes sem pujança e na silhueta disforme para quem o tempo não foi amigável. Sim, o tempo não é cordial nem simpatizante com a nossa dor e, por isso mesmo, este desfecho transmite uma mágoa avassaladora.

Uma estrofe de um singelo poema embarcado na dança interior, sobre os sentimentos alicerçados e de como a arte não é propriedade de nenhuma vivalma; apenas é vivida e degustada pelo tempo.

"Once Upon a Time ... in Hollywood": Tarantino celebra a memória do cinema com sangue, suor e ilusão

Hugo Gomes, 14.08.19

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Um cineasta a trabalhar em Hollywood como Quentin Tarantino é, nos dias que decorrem, uma espécie de dádiva. Mas convém não afirmarmos tal como uma tendência de seguidismo cego, mas como uma compensação do que está a acontecer no mais famoso “campo” industrial cinematográfico do mundo, aquele que é retratado no novo filme do realizador e o da nossa realidade atual. Ambos são tempos de mudança e essas mesmas transformações geram uma secura da autoralidade no ofício, e a reboque o esquecimento de artesãos passados.

Hoje deparamo-nos com o domínio completo dos franchises, remakes, reboots, por palavras mais diretas com a falta de ideias e criatividade em função dessas mesmas. Em Tarantino, foi a televisão que encaminhou o universo do audiovisual para o alcance de qualquer um sem ter que sair da sua sala de estar, levando a um decréscimo do "star system" e por sua vez das anteriores fórmulas narrativas. Porém, é nessa camada que encontramos Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator que encontrou o seu sucesso no pequeno ecrã em plena década de 50, e que no prenúncio dos 70’s se converte numa personalidade necrófaga dos restos deixados pela moribunda indústria que o acolhera. Como sua sombra encontramos Cliff Booth (Brad Pitt), o duplo que o acompanhou na sua ascensão, que é na altura desta narrativa um “faz tudo” como gesto de subsistência.

Quentin Tarantino reúne dois dos atores mais prestigiados de Hollywood, eventualmente os que restaram do chamado “sistema de estrelas”, e nesse efeito aproveita-os como guias de um cenário emoldurado. DiCaprio, por entre os bastidores povoados por novas promessas do ramo, tenta ligar-se às suas velhas relações mas acima de tudo reencontrar a sua natureza: o ator que acredita ser fora da imagem impostora que sempre concebera. Sob a persuasão de Marvin Schwarz (Al Pacino), que promete um reinício da sua carreira eclipsada por via da ascendente indústria italiana, a personagem de DiCaprio resiste em deambular pelos espectros desse seu mundo inexistente. Enquanto isso, Pitt conduz-nos pela Cidade dos Anjos, por entre as Boulevards e Drives para inserir o espectador num tremendo zeitgeist temporal. Com o rádio constantemente ligado e sob a proeza de uma construção minuciosa, desde o som ao visual, e uma fotografia que presta serviço a essa memorabilia (de Robert Richardson), Tarantino utiliza a personagem do duplo como um avesso contrastado com a jornada de redenção levada a cabo pelo Rick de DiCaprio.

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É o companheirismo, a cumplicidade, que transcreve estes dois sujeitos e tende a sair da ficção do ecrã, com o espectador a tornar-se aliado de Tarantino pela revisitação de uma iminente tragédia (aliás, é a ameaça constante que nos levará a certas e agradáveis surpresas em relação à obliteração de elementos fixos do seu tempo, como o realizador fizera anteriormente com o massacre a nazis em “Inglorious Basterds”), mas para além disso, é a entrada directa de um júbilo em nome da cinefilia. Talvez seja essa a condenação a fazer neste novo Tarantino, as referências amontoadas em prol de um set, ao invés dos dispositivos narrativos que o realizador revelou nas suas “saladas de fruta” como o irrecusável “Pulp Fiction” ou no díptico “Kill Bill” (um aparte, ambos os filmes envelheceram muito bem). Esse efeito leva-nos a uma sensação de visita turística a uma espécie de feira anacrónica, uma réplica de memórias, saudades e “pitadas” de Cinema que por sua vez não devemos de todo desprezar.

Obviamente que muito será escrito sobre este “Era uma vez … em Hollywood” (“Once Upon a Time… in Hollywood”), principalmente na promoção de um amor cinéfilo para cinéfilos ou quem o supõe ser, com meia dúzia de atalhos pela História cinematográfica. É uma produção erguida com esse encanto, com a invocação de um tempo inexistente, hoje preservado pela força da Sétima Arte, dos filmes que vivem e (esperemos nós…) que sobrevivem aos eventuais revisionismos.

Quentin Tarantino não desiludiu nesta sua (re)entrada pelo seu universo e, voltando ao ponto inicial do texto, temos que dar-nos por sortudos por ainda existirem vultos tarantinescos nesta Hollywood em decadência.

«Prazer, Camaradas!» Sou a revolução!

Hugo Gomes, 10.08.19

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Contradizendo a ideia romantizada envolto do 25 de Abril, o dia que assinalou a Revolução ainda hoje celebrada, não foi um dito “tampão” da ditadura e do pensamento patriarcal e algo arcaico que se vivia (e que se vive) neste país. O 25 de Abril foi uma ideia suscitada por um evento que se prolongou e o qual se debateu durante décadas, onde ainda hoje inteiramos os seus ecos e por vezes questionamos as suas ações como uma espécie de “negacionismo”.

Contudo, dentro dessa miraculosa insurreição, o fenómeno foi visto de perto pela imprensa estrangeira e outros curiosos que encaravam a “revolução dos cravos” como uma manifestação política-sociológica digna dos trilhos desbravados por Che Guevara na sua “libertação” da América Latina. E dentro desses mesmos curiosos eis que surgem quem deseja implantar uma ideologia política, que poucos anos antes era vista como uma convocação diabólica do comunismo. Pregando a igualdade e fraternidade entre o Povo e a abolição do território privado como ideais primários, a estafeta do comunismo por terras lusas, mais concretamente na zona alentejana, revelou-se mais fantasiosa que o próprio mito fabricado em volta do 25 de Abril. O audiovisual captou isso, por entre as matérias de jornais e propagandistas até ao Cinema.

Dentro desse território cinematográfico, encontramos deliciosamente a mais perfeita das analogias do quanto o Comunismo é somente um edifício de estrutura visível à beira da sua desmoronação, sentido que evidencia uma sátira terrível ao seu conceito, se não fosse o culpado da destruição dessa utopia, uma enxada. Thomas Harlan acompanhou a doutrinação alentejana em “Torre Bela” (1975) e foi o episódio de uma enxada, não o único, que iniciou uma cruzada à fragmentação de um oásis social prometido. Os gritos do camponês perante a corporativa que tenta arrancar-lhe o instrumento com promessas de partilha pela comunidade, demonstraram a despreparação de um povo desinformado e entranhado num conceito primário e oscilante de igualdade social. Esse foi o “fim”, no qual a fantasia dissipa-se e deixa todo aquele cenário a uma mera experiência social.

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E é através dessa experiência que José Filipe Costa cita a sua “Linha Vermelha” (2012), que por sua vez deixa ecos neste “Prazer, Camaradas!”, onde ensaia o registo documental com uma ficção embuste, pedindo aos protagonistas dessa doutrina rodeada de chaparros que repliquem os gestos de uma juventude inquieta e cedida a desejos longínquos politizados. Este não é mais um no território da docuficção lusitana, é uma possessão, uma invocação temporal que joga com dois formatos em prol de um objetivo definido. A reflexão de uma “inocência”, uma política ao domicílio que não desgrudou por estas bandas devido à já inteiramente consciência das suas “cobaias”. As causas são fáceis de apurar: o patriarcado enraizado, a submissão religiosa e dos costumes do arco-da-velha, elementos presentes nesta transposição que inibiram qualquer ideia anexada de outros territórios. No fim de contas, o otimismo dá lugar a uma perfeita geringonça operada por descrentes.

O episódio é concebido como um retrato pseudo-antropológico, enviesado num voluntário e fingido anacronismo. É uma atualidade em contramão com o passado retalhado, refém das memórias e da necessidade de rebelar com a nossa contemporaneidade tendo como justificação o fatal saudosismo. Perante tal observatório, José Filipe Costa orienta-se por entre um tom satírico, por vezes trocista para com esta gente empenhada, ou a tentativa de fintar os formatos estabelecidos pelo cocktail de formatos (a dita docuficção). Nesse último aspeto, o onirismo é por vezes convocado para implementar as suas armas (e salientar ainda mais o efeito de miragem quanto ao projeto de doutrinação), e a cinefilia de citação, como a colagem da mítica núpcia de “Une Femme Mariée” de Jean-Luc Godard (1964).

Mas no fim de contas, apesar do exercício implícito e do reforço à ideologia sem vingança, José Filipe Costa elabora um filme desafiante no nosso panorama. Não somente a nível cinematográfico, mas uma provocação de dois gumes aos revisionismos que tendem a persistir nos nossos debates políticos.

Emoldurar Mumbai ...

Hugo Gomes, 10.08.19

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Há cinco anos, o sucesso de “A Lancheira” (“The Lunchbox”) demonstrou a uma grande maioria, por vezes preconceituosa, que existia mais cinema indiano para além da fórmula de "Bollywood" ou das visões de gringos "à lá Dev Patel" e "Slumdog Billionaire". Quem conseguiu esse feito foi o realizador Ritesh Batra, ao conservar em âmbar um panorama cultural que era fundido numa narrativa tão convencional e nem por isso menos apaixonada. Obviamente, que o cinema indiano não se resume, ou se resumiu, às tendências atrás referidas, mas foi com a história da involuntária troca de uma lancheira que despoletou um romance fantasioso que colocou estas novas audiências no trilho da sensibilidade hindi.

Após “A Lancheira”, Batra iniciou uma digressão pelo mundo fora, com paragens obrigatórias no Reino Unido (“The Sense of an Ending”, em 2017) e nos EUA (“Our Souls at Night”, em 2018, que reuniu Robert Redford e Jane Fonda) até regressar a Mumbai com um outro romance de achados. Uma fotografia é agora o objeto catalisador de uma nova fantasia amorosa, com ligações terrenas a questões de castas, divergências religiosas e discriminação na sociedade indiana onde os tons de pele são indicadores de um estatuto social trabalhado desde os primórdios do indivíduo.

Infelizmente, “Fotografia” (“Photograph”) perde-se por essa denúncia, mesmo estando subtilmente endereçada aos gestos e diálogos das suas personagens. É nas relações entre esses novos peões das teias romantizadas de Batra que descobrimos mais o fascínio de quem está a regressar à sua cidade após anos na estrada e menos propriamente dedicado a elaborar o seu enredo e, acima de tudo, a sua mensagem. Talvez seja essa familiaridade, em que as audiências ocidentais perdem-se nos pequenos pormenores, elucidadas em desvendar os pontos-chaves do argumento. Um engano consequencial derivado da narrativa convencional e por vezes anglo-americanizada, que serve de disfarce perante o reconto da história de um homem completamente envidraçado em Mumbai.

Apesar disto, os elementos de um espetáculo ao coração são de um cuidadoso rigor, da fotografia de cores salientes que emana um exotismo onipresente (para uma obra intitulada de “Fotografia”, o visual teria que ser uma referência) ao um som envolvente que somente é interrompido com uma banda sonora melosa (de Peter Raeburn). Mas o que há para se fazer sob estes termos? A resposta está numa das cenas principais, quando o casal protagonista, após uma ida ao cinema local, refere, em jeito de filosofia barata, que "os filmes de hoje são todos iguais". Talvez tenham razão, porque conforme seja a geografia, a fórmula volta sempre a repetir.

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