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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Para Fellini todo o Amor é pouco

Hugo Gomes, 30.06.19

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Porque Fellini é uma das figuras mais importantes da minha cinefilia, foi com total agrado que revejo La Voce della Luna (A Voz Da Lua), desta vez em grande ecrã na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. O filme continua, após estes anos todos, a apresentar aquela aura melancolizada, um adeus a um cineasta distinto e tão próprio. Não me interpretem mal, mas foi melhor assim, o panorama do audiovisual italiano estava a mudar drasticamente, a televisão adquiria a sua dominância frente a Sétima Arte, e esta cada vez mais despida pelas constantes “despedidas” dos maestros. Fellini era uma espécie de fóssil vivo, não se adaptava, apenas lutava para manter o seu imaginário livre, e simultaneamente fechado. O Cinema era o seu refúgio, a sua mentira prolongada, as suas memórias enfeitiçadas pelo brilho da Lua.

Que saudades tenho de Fellini!

Na cama com "Sibila" em batalhas em Solferino. Uma conversa com Justine Triet

Hugo Gomes, 29.06.19

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Virginie Efira em "Sibyl" (2019)

Em 2013, Justine Triet deu nas vistas num enredo de sarilhos parentais num dia crucial das presidenciais francesas. A rua de Solférino tornou-se  num verdadeiro campo de batalha, revelando ao Mundo uma das mais vibrantes captações de multidão no cinema desde as guerras ideológicas de Serge M. Eisenstein. “La bataille de Solférino” proclamou um novo nome da cinematografia francesa.

Mas o que aconteceu em Solférino ficou em Solférino e Triet apostaria em filmes mais contidos e visualmente menos caóticos, pedindo auxílio à atriz Virginie Efira para a conduzir em retalhos da feminilidade no seu esplendor. Com o sucesso de “Victoria” (“Na Cama com Victoria”), realizadora e atriz regressam ao divã com “Sibyl”, filme que relata os dramas existenciais de uma psiquiatra aprisionada pelo passado que parte para a rodagem de um filme (a atriz principal é uma das suas clientes) para se reencontrar com ela própria e completar o seu livro.

Integrado na Competição do Festival de Cannes, falei com Triet num momento em que o filme é visto como estandarte da representação feminina em diversos festivais mundiais, não conseguindo evitar as questões que dominam o corrupio dos press junkets e conferências de imprensa.

Como surgiu a ideia para este filme?

A minha ideia era ter esta personagem cuja profissão consiste em ajudar os outros, mas que não pode ajudar-se a si. Uma espécie de contradição que a levará a uma vida constantemente repartida e caótica.

Devo dizer que existem muitos meios que apressaram-se em apelidar o seu filme de “denúncia à masculinidade tóxica que condiciona a personalidade das mulheres nos mais diferentes estados da sua vida”. Concorda com estas reflexões?

Não vejo o filme dessa forma, nem completo, nem durante o processo de produção. O que vejo é a história de uma mulher que é confrontada pelo passado, e como tenta lidar com estas suas decisões. Aliás, como consegue superar o peso dessa sua história? Neste caso, decide escrever um livro, o que é uma boa forma de reconciliar-se com os seus “demónios”.

A segunda parte de "Sibyl", a Triet passa a ação para a ilha de Stromboli. Para os cinéfilos, o local é incontornável. De alguma forma é uma referência ao clássico de Rossellini? Será a nossa Sibyl uma espécie de Ingrid Bergman?

Não tentei com isto replicar os passos de Rosselini, nem sequer fazer uma referência direta ao clássico. Stromboli tem aqui um papel quase emocional para com a protagonista, a qual acompanhamos numa primeira parte totalmente focada na prisão da sua mente. Ela tenta buscar inspiração para o seu livro, mas é constantemente cercada pelas sombras do seu passado, o que faz com que a ilha se torne numa inspiração, num regresso à realidade, mesmo sendo um ambiente completamente novo para Sibyl. Stromboli é um lugar saturado de uma sensação de ficção e como cenário é absolutamente cinematográfico, irreal para aquela parte do Mundo. Quando a protagonista embate nesse lugar, entra em ação, numa suposta realidade que a deixa confusa com esta dita ficção do real, desta exceção. Por isso, sim, mais do que referenciar, a ilha tem um propósito de psicanálise.

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Justine Triet

Já deve ter percebido que no festival a questão das mulheres no cinema é tema para durar. Visto o seu filme estar presente na Competição, surge uma espécie de “responsabilidade” da sua parte. Como realizadora sente não conseguir atingir os seus maiores objetivos por ser mulher’

No meu caso, sinto-me bastante livre. Sempre pude abordar aquilo que quero e trabalhar com quem quero, mas talvez seja eu, uma privilegiada. Mas nunca me senti presa a nada pelo facto de ser mulher. Contudo, tenho conhecimento de que muito tem que ser feito nesse aspecto, sei que ainda existem diferenças abismais salariais em vários casos, sem falar do acesso à indústria, que sempre foi dificultado consoante o género. Em França, tal cenário não é dos piores, mas ainda existe. Ainda há muito para fazer.

Não só em relação às mulheres, mas também às minorias …

Sobre as questões de cinema feito por mulheres e minorias, só o facto de discutir sobre isso deixa-me infeliz. Eu assinei a petição 50-50 e o que vejo, tendo em conta os números, não é muito confortável. Não consigo dar uma solução para isso, mas faço o que posso, tentando atingir a paridade na minha equipa, porque quando falamos de igualdade não devemos restringir-nos aos cargos de realizador, mas a todo o sistema. Penso que devemos questionar o facto de nas escolas de cinema, principalmente La Fémis, termos este 50-50 e depois o resultado não se vê na indústria. O que realmente se passa? O que aconteceu a estas estudantes? Porque é que não vemos este número de mulheres a chegar à indústria e aos grandes cargos no cinema? Isso devemos, mais que tudo, questionar.

A igualdade não se emprega apenas às mulheres; a indústria francesa ainda tem muito que fazer quanto às minorias. Não temos uma representação justa, dentro ou fora do ecrã. São questões que debatemos constantemente e temos o conhecimento que o percurso ainda é longo.

Mas no seu filme não vemos essa representação.

Sim, tens absolutamente razão, friso, estas questões são importantes e ainda mais temos de lutar por elencos diversificados. O que acontece neste caso é que não houve muita diversidade no casting e nas escolhas dos diretores de castings. Não estou a culpá-los, eu também tenho culpa no cartório, aliás, temos todos culpa de alguma forma. O sistema precisa mudar, é claro.

Por exemplo, eu vi muitos possíveis maridos de Sibyl e até a certa pensei em preencher a lacuna da minoria com este papel. Mas isso é também uma forma de racismo, concentrar as minorias a papéis secundários, como fosse uma espécie de preenchimento de quotas. Não cedi por isso mesmo, eles merecem melhor e a escolha não seria de todo natural.

Os seus dois últimos filmes abordam uma feminilidade longe da farsa vendida pela sociedade. Obviamente, como homem, não sou a melhor a pessoa para fazer estes apontamentos, mas nos seus filmes o sexo nem sempre é bonito e uma noite de copos é da maior parte das vezes caótico. Este desencantamento é uma aproximação do real, do dia-a-dia das mulheres?

Sinto-me livre nesse sentido, o que me garante a possibilidade de representar aquilo que penso. É um ato constante e possivelmente egocêntrico, mas nos meus filmes eu inspiro-me diversas vezes na minha pessoa. Com isto, submeto-me aquilo que gostaria de ver no grande ecrã. Obviamente, como mulher, gostaria – acima de tudo – de ver personagens femininas da forma mais real possível e penso que as espectadoras também o desejam. Quanto às cenas de sexo, tentei replicar o mais credível possível, não só visualmente, mas emocionalmente.

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La bataille de Solférino(2013)

Gostaria de referir “La bataille de Solférino” ("A Batalha de Solferino"), um filme visualmente de grande escala em comparação com estes seus dois últimos trabalhos, mais contidos e intimistas …

Mas Solférino foi feito sem dinheiro algum.

Sim, não estava a referir ao orçamento, mas na sua conceção. Foi um filme mais trabalhoso?

Ah sim … foi. Entendi mal … peço desculpa.

No caso de Solférino, como eu vim do universo do documentário usei essas mesmas habilidades para conduzir o filme. Filmamos quase sem dinheiro e utilizei a multidão que estava nas ruas durante as eleições presidenciais desse dia. Ou seja, através do documentário entrei na ficção. Em certa parte, Solférino foi uma espécie de conflito dessas duas dimensões. Atualmente, os meus filmes são mais ficcionais, o que lhes garante uma maior liberdade na sua criação.

Por exemplo, como fã do Shyamalan, reconheço que “The Visit” tenha sido um filme mais complicado de concretizar que as outras suas produções, tudo porque o realizador trabalhou sem dinheiro e teve que usar a criatividade para superar essas dificuldades. Contudo, não percebo como é que alguém pode afirmar que “sem dinheiro, não se pode fazer filmes“. Essas dificuldades só servem para desafiar-nos enquanto realizadores e procurar alternativas quanto à sua produção.

Personalidade monetária em Spider-Man: Far From Home

Hugo Gomes, 28.06.19

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É simplesmente frustrante, que depois do circulo encerrado de Endgame, a Marvel / Disney aposte na irrelevância dramática que as suas personagens parecem extrair. Em Far from Home, para além da fotocópia técnica e narrativa que estes filmes ostentam, é o deslumbre pelo militarismo ou high-tech injetado para conduzir a trajetória do seu merchandising.

Ai, Sam Raimi … que saudades tenho da tua dinastia e o carinho que havia por estas personagens.

Rita Nunes em "Linhas Tortas": "Sou uma realizadora como sugere a terminologia americana"

Hugo Gomes, 27.06.19

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Deus escreve direito por linhas tortas”, já Rita Nunes concebe Linhas Tortas por uma escrita direita e sem engodos para além da sua mensagem. Mas não pensem que com isto esteja a reduzir o filme a uma temática que seja - há um óbvio tratado sobre as nossas relações e as identidades nesta era digital agravada com a dominância das redes sociais, esse romance tímido prendido a desejos e telas enquanto barreiras entre Américo Silva e Joana Ribeiro - mas existe uma sobriedade narrativa sem nunca vergar pelos códigos televisivos ou a linguagem imaturada enquanto colheradas de “papas para bebé”. 

Produzido por Paulo Branco, “Linhas Tortas” estreia nas nossas salas com um sabor de zeitgeist, um filme português que anseia falar do nosso tempo com a modernidade mas nunca com a sua imediatismo nem pop(ismo). O Cinematograficamente Falando … falou com a realizadora numa breve conversa sobre este seu novo projeto. 

Queria que me falasse sobre a génese deste "Linhas Tortas"? Da sua ideia até ao seu processo de escrita.

O projeto começou em 2014, foi precisamente na altura em que falei com o Paulo [Branco], o qual queria que escrevesse com outra pessoa. Aliás, eu não assino como argumentista, mas Carmo Afonso sim.

Sou uma realizadora como sugere a terminologia americana – director – ou seja, dirijo todo o processo, do início ao fim. Executo, para ser mais exata, e esse processo foi o desenvolvimento da escrita que remota a 2014.

O projeto, então, evoluiu durante um ano, até ser submetido ao concurso do ICA, acabando por ganhar o de Longas-Metragens de Baixo Orçamento … um valor ridículo! Para quem não tem noção dos valores dos apoios de produção no cinema, neste caso foram cedidos 250 mil euros, muito baixo, de facto… mas pronto, iria ser um filme muito simples, com poucos décors e o Paulo decidiu arriscar nesses concursos … o qual ganhamos.

Avançou-se então para a pré-produção. As rodagens estavam marcadas para 2016, mas só foi possível iniciá-las no ano seguinte devido a certas razões. Bem, o que quero dizer é que tudo começou com a vontade de fazer um filme, uma longa, visto que há 22 anos, concretizei uma curta que acabou por me lançar. Mas desse episódio até 2019, muito aconteceu, desde projetos e claro, a minha vida. Tentei arrancar outros projetos do qual não consegui financiamento, por isso tive que abandoná-los. Obviamente, que fazer longas sem subsídio é possível, porém, o tipo de projetos que pretendia fazer neste hiato requeria mais do que austeridade. 

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Depois decidi baixar a fasquia e desistir de outro projeto que tinha, e iniciei a escrita com a Carmo. Ela esteve sempre disponível para explorar uma ideia que teve como base um episódio na vida real dela. Depois foi-se transformando, transformando, até se tornar na escrita de 2017 que é completamente distinta do material que tínhamos em 2016. É um processo de contínua escrita e realização, possivelmente se começasse a filmar daqui a uma semana o filme sairia completamente diferente. Ter um projeto escrito e estagna-lo no momento é praticamente impossível.  

Quais foram os maiores desafios durante a pré-produção e produção de "Linhas Tortas"?

Muita resistência, persistência, perseverança, quase todas essas palavras que significam a mesma coisa. É um processo de luta contínua, até mesmo quando já se tem o subsídio, é preciso lutar contra os produtores, às adversidades, até ao fim.

A Rita Nunes termina a sua primeira longa-metragem depois de 22 anos ter se iniciado neste meio, se não estou em erro …

Para cinema sim …

E como acabou de me dizer foi uma curta que a lançou, “Meno Nove”, estreado em 1997 …

Exato!

Mas gostaria que me falasse sobre um outro dos seus primeiros projetos, uma curta que esteve associada à Expo’98, “Amália por Nós”?

É uma coisa muito curta, quase um videoclipe. O que acontece é que em ‘98, na Expo, havia uma praça chamada Praça Sony que possuía um grande ecrã, onde ocorriam concertos e passavam certos filmes sob a programação do cineasta Rui Simões. Nessa curadoria decidiram passar diversos vídeos sobre diversos temas e eu fiquei encarregue de trabalhar algo sobre a Amália Rodrigues. Foi um dos dois vídeos que fiz para a Praça Sony. 

E qual foi essa sua abordagem? É que não é fácil aceder a esses trabalhos …

Pois, o que acontece é que foi algo que ficou perdido no tempo. O outro trabalho para a Praça Sony foi um documentário, com 10 minutos de duração sobre o lixo, a recolha e o processo de tratamento. Enquanto que o da Amália, esse projeto foi de uma proposta vaga para homenagear diversos artistas. Esse trabalho contou com diferentes realizadores e eu acabei por ficar com a Amália, até porque sempre gostei do seu trabalho. É apenas um clip, algo pequeno, um playback do “Barco Negro”, cantado pela própria fadista, em que diversas pessoas integravam essa mesmo playback. Desde desconhecidos de Alfama até amigos que apanhei durante o processo, levei-os ao meu local de trabalho e pus-os a cantar, e pronto, a edição simboliza toda uma diversidade que por sua vez representam Portugal sob os acordes de Amália. Possivelmente é algo sem relevância cinematográfica. 

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Rita Nunes

Você já considerou voltar a fazer curtas-metragens?

Nunca mais. [risos]

Como surgiu a ideia de incluir a música "Not For Me" de Bobby Darin no filme "Linhas Tortas"?

É o acontece em ter grandes amigos ligados à música e outras artes, neste caso foi um amigo meu do Porto que também está acreditado no genérico, que é o Paulo Vinhas, que de vez em quando partilha umas playlists pelos amigos. Então, por vezes venho sempre carregada com músicas para ouvir. Há vários anos uma das músicas dessa playlist me fascinou, que foi a tal de Bobby Darin, “Not For Me”. Tinha vontade de colocá-la num filme, não sabia o como, quando ou o contexto, só sabia que aquele tema era tão cinematográfico. Dada a altura na escrita do guião apercebi que havia uma forma de inseri-la no filme, usufrui então do mecanismo diegese, onde a música teria que encaixar na narrativa. Vejamos, eu não queria uma música qualquer, portanto utilizei esta que tanto pretendia. 

O que aconteceu foi um encaixe de vontade, porém, esta “Not For Me” adequa-se ao enredo; as letras, o som, tudo interagiu na perfeição. Fazia sentido aquele tema.

Nesta realidade alternativa The Beatles vão, mas Ed Sheeran fica!

Hugo Gomes, 26.06.19

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Imaginem que, de um momento para o outro, nenhuma vivalma se lembra dos The Beatles, exceto vocês … o que fariam?

Para o músico falhado Jack Malik (Himesh Patel, em estreia absoluta no cinema após anos na televisão), esta anomalia é a oportunidade de conquistar a carreira que tanto ambicionava e muito mais que isso. "Yesterday" mexe em lapsos temporais e poderia suscitar um debate sobre a importância da mítica banda britânica na herança musical e na contemporaneidade da cultura pop.

Poderia? Danny Boyle, ao serviço de Richard Curtis (um dos mentores da comédia romântica dos anos 90 e na viragem do século, com “Notting Hill” ou “Love Actually”), apenas entrega o açúcar pretendido por uma audiência esquecida do fenómeno "beatlemania". O que acontece é que toda esta jornada de ascensão no mundo da música sempre resultaria num filme marcado pela devoção ao legado da banda. Mas não é isso que está em causa.

Para explicar este anti-fenómeno, destacam-se duas cenas que se conjugam, quer simbolicamente, quer sequencialmente: a primeira, a reunião entre os não “olvidados” e um “submarino amarelo” à mistura e a segunda, um reencontro inesperado pronto a fazer explodir corações "beatlemaníacos". São momentos que rasgam ocasionalmente o filme da sua capa estereotipada e declaram o pouco amor que tem pelo espólio que usufrui. Mas algo está mal aqui. Aliás, no final da segunda sequência, um abraço apertado é automaticamente cortado (como ferimento certeiro, mas doloroso) pelo novo single de Ed Sheeran. Um autêntico balde de gelo para quem procura um filme em total órbita com essas temáticas e não lisonjeando o contemporâneo ruivo cantautor e toda a cultura pop adjacente.

Soará a implicância, mas só a referida atitude, de usar o “moderno” como transcrição entre atos, é uma representação de que este “Yesterday” deseja falar para os mais nostálgicos, aqueles amantes desses filmes de mel e purpurinas que ajudaram a estabelecer um género. E para isso, em certo tom niilista, converter tudo a uma miopia cultural. Para o “manda-chuva” Richard Curtis, The Beatles é somente o impasse das escolhas românticas dos protagonistas ou da generalização infantilizada dos males capitalistas. Como um “Stop in the name of the money” [“Parem em nome do dinheiro”] que grita desesperadamente Kate McKinnon, a agente sem compaixão, após a epifania que sublinha a negrito o moralismo cristão-sedentário do qual chamamos de final.

É como queimar livros, ou neste caso, queimar discos para erguer o produto ingénuo e imaturo trazido vezes sem conta por esta indústria viciada. A juntar a isto, este é um dos trabalhos mais fracos de Danny Boyle no que requer à montagem, fazendo uso de uma estética desengonçada e de planos na diagonal sem provas de existência, um olhar tão “Trainspotting” que não funciona perante o brinde de estúdio e de corações amolecidos deste “Yesterday”. Um verdadeiro engodo.

"Linhas Tortas": porque jamais se endireitam …

Hugo Gomes, 23.06.19

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Por linhas tortas, Deus escreve direito! Os desígnios do destino transmitem a natureza deste “encontro” entre duas almas conturbadas numa cidade que cada vez mais se associa ao universo das redes sociais; aqui ninguém se toca, apenas deseja-se.

Os afetos são distanciados em lugar térreo enquanto as personas virtuais se aproximam num espaço não-físico, tendo como consequência a deterioração das relações “concretas” e a sobrevalorização dessa presença espectral no digital e tecnológico. Linhas Tortas, sim, assim intitulado este filme de Rita Nunes, realizadora experiente da televisão, mas que antes revelou-se na sua curta de final de curso (“Menos Nove”, que foi premiado em Locarno), vem beber dessa (desi)interação da mesma forma que Fernando Lopes ficcionou o seu penúltimo filme: “Os Sorrisos do Destino” (2009).

Uma salada simples de elementos que graficam um espaço urbano pelas rotinas deturpadas das suas personagens, com Joana Ribeiro e Américo Silva, desafiando o antagonismo anexado ao chamado “ageismo” num romance de quarentena onde a questão de trocas de identidades vai acelerando a intriga para um iminente choque. Contudo, a procrastinação é cúmplice da passividade e esses atributos acompanham o júbilo destas identidades tecnológicas. Aqui, as redes sociais são apenas desculpas para o bovarismo das personagens, presas de um lado ao seu cinzentismo, e do outro ao pessimismo de um futuro incerto. É o tema de “Linhas Tortas” que nos leva a esmiuçar o nosso quotidiano, e sobretudo a cedência deste para com a nossa dependência virtual. A sugestão não é levada para filosofias. Mais do que poucos recursos, existe no argumento desenvolvido por Rita Nunes e Carmo Afonso uma vontade de simplificar.

Até porque é a simplicidade que dita os costumes, e é nela que encontramos a mais sincera das suas virtudes. Nunca indo além do visto, sentido e possuído, por vezes é esse mesmo simplismo que falta no seio do cinema português. E não falo do chavão de “somente contar uma história”, mas restringir-se aos básicos códigos da narração em prol de uma interpretação clara.

Há algo de fresco e revitalizado por estas bandas, e não é somente a energia trazida por «Not for me» de Bobby Darin.

Um 'papão' chamado Mitchum

Hugo Gomes, 22.06.19

No documentário de Bruce Weber - Nice Girls Don't Stay for Breakfast – apresentado no Indielisboa, o ator Benício Del Toro confessou e revelou os dois “monstros” que o apavoravam-no enquanto criança, Drácula e Robert Mitchum. Parecem díspares … mas não tanto assim.

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The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955)

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Dracula (Tod Browning, 1931)

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The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955)

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Dracula (Tod Browning, 1931)

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The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955)

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Dracula (Tod Browning, 1931)

Zombies de fantochada

Hugo Gomes, 20.06.19

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Começaremos pelo início: a pacata cidadela de Centerville encontra-se ameaçada por forças sobrenaturais e os mortos que não querem se manter mortos. E com o homónimo single de Sturgill Simpson a contaminar as rádios locais, Adam Driver fica a temer o pior: “isto vai acabar mal”.

Jim Jarmusch é um dos grandes e reconhecíveis nomes do cinema independente norte-americano (“Ghost Dog”, “Dead Man”), que aqui  abandona a poesia mundana do magnífico "Paterson" e aventura-se na assumida série B, seis anos depois dos vampiros boémios de “Only Lovers Left Alive”. Como efeito de uma certa igualdade, os espectadores estão sincronizados com as personagens quanto ao conhecimento dos factos, até mesmo pela denominação das criaturas nefastas: "zombies".

Tudo isto nos coloca a par de um filme-meta que se joga constantemente com a sua meta-informação, e a brincadeira, evidente ao longo do trabalho de Jarmusch, é puxada aos limites da sua linguagem (ou não-linguagem). Era difícil cometer algum rasgo de criatividade nesta temática excessivamente explorada desde que George A. Romero reinventou o morto-vivo, extraído das fantasias vudus de “White Zombie” (1932). Entretanto, o apocalipse putrefato revelou diversas facetas, desde a comédia tresloucado ao terror moderno de cariz social.

Em relação aos “The Dead Don't Die”, este tratamento de distorção não é por si novo, já o Rei dos Mortos-Vivos [Romero] incentivou tais criaturas na sua variação found footage em “Diary of the Dead” (2007). E quanto à integração do "zombie" enquanto elemento cultural da trama, já fora o pioneiro o subvalorizado “The Return of the Living Dead” de Dan O'Bannon (1985).

O que resta a Jarmusch? A anedota, a satirização de um subgénero em perfeita cumplicidade com a natureza B. E isso, tendo o “grandioso” elenco de amigos (Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, RZA, Tilda Swinton, Tom Waits, Danny Glover, Caleb Landry Jones, Rosie Perez, Carol Kane, Selena Gomez, Iggy Pop, que apostamos que se divertiram mais neste filme do que que o espectador alguma vez irá), sabe a pouco.

Se a vida dá-te imagens, constrói um filme

Hugo Gomes, 19.06.19

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Depois de “Cordão Verde” e o “Sabor a Leite Creme”, a dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres iniciam nova atividade nas proximidades do rio Guadiana, em pleno Alentejo, através de um exercício de montagem que valoriza o enfoque da narrativa visual. Eis um ensaio contemplativo, onde a simplicidade leva-nos ao efeito moldura, um objeto paisagista que se insere num ciclo natural. 

Terra” é isso mesmo, um filme-calendário onde dois fornos de carvão vão alterando o relevo na cadência de um ano. O documentário é composto unicamente pelo uso de uma edição selectiva e sobretudo minimalista, ao ponto de condensar tudo numa duração de 60 minutos. Para sermos sinceros, não existe muito para dizer, este vencedor da Competição Nacional do Doclisboa 2018 é exclusivamente aquilo que nos promete e qualquer esboço metafórico em relação a essas imagens é de pura pretensão umbiguista. E se o trabalho de “Terra” é no campo visual e na sonoridade que nos transporta efetivamente ao momento vivido, é também verdade que todo este esforço empregue atribui-lhe uma sensação de preguiça, quer a nível de corpus de estudo, quer na concepção de uma metragem que supere os lugares-comuns do puro documentário português que parece ter encontrado em muitas das programações de festivais uma doutrina do menor esforço.

O que salva “Terra” de não ser o próximo “Campo de Flamingos sem Flamingos, por exemplo, é o facto de ser perfeitamente percetível. Porém, esperávamos mais do que uma linha de costura imagética.

"Dance to me to the end of love"!

Hugo Gomes, 13.06.19

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8 1/2 (Federico Fellini, 1963)

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Scent of a Women (Martin Brest, 1992)

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Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)

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Mia Madre (Nanni Moretti, 2015)

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 The Lobster (Yorgos Lanthimos, 2015)

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Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963)

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Le Notti Bianche (Luchino Visconti, 1953)

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