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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O cidadão do Mundo e o B.I. prescrito

Hugo Gomes, 27.05.19

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No caso de Elia Suleiman e a sua relação com o seu próprio cinema, é impossível não fugir às comparações (óbvias) com um certo slapstick autoral movido pela câmara e corpo de um Charlie Chaplin, Buster Keaton e até mesmo Jacques Tati, uma espécie de diluição da figura num heterónimo plausível em Virgil por entre os cantos e recantos dos seus devaneios. A esse lote, porém, mais palavroso, porque não juntar João César Monteiro nas suas comédias divinas pelo quotidiano da perversão. O palestino Elia Suleiman segue por outra via, uma colheita memorialista que se conjuga numa narrativa cinematográfica. O resto é prosa sob ares politizados, com a sátira no ponto alto do seu tom, mas nunca envergando pelo seu distinto exagero.

Com “It Must Be Heaven” (Paraíso, Provavelmente), centramo-nos, até à data, no seu filme mais frustrado, aquele que parece perder todas as esperanças por qualquer intervenção divina, até porque, segundo Suleiman, num encontro em Cannes, a possibilidade de uma utopia entre os dois estados é a mais longínqua fantasia; uma luta para sonhadores que renega o passado tumultuoso da sua coexistência. Assim, partindo no óbvio que nada pode mudar, resta reencontrar o seu espaço no Mundo. O que resta ao palestino nesta geografia? E é então, que o silêncio ativista de duas décadas rompe perante uma resposta, um “statment” que Suleiman não quer deixar emudecido. Há que dizer a tudo e a todos que é o palestiniano antes que a sua identidade se desvaneça em anexos.

Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).

Sim, joga-se por um cinema falso-mudo, estático e planificando, como se o biótopo deste Elia Suleiman quisesse estagnar. Todavia, é a sua constante e radical mudança, aliás, metamorfose, que preocupa o realizador-personagem. A sua existência, quer cultural ou identitária, está ameaçada pelo Futuro, por isso, só resta encontrar o Paraíso.

Falando com Corneliu Porumboiu, a vanguarda romena nas ilhas Canárias

Hugo Gomes, 21.05.19

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Corneliu Porumboiu dirige os atores Vlad Ivanov e Rodica Lazar em "The Whistlers" (2019)

Corneliu Porumboiu é um dos nomes reatores do chamado Novo Cinema Romeno, donde surgiram cineastas como Cristian Mungiu, Radu Muntean, Cristi Puiu ou Cãlin Peter Netzer, que perpetuaram uma vaga de filmes formalmente realistas, desencantados e ambíguos para coa vangm as diversas questões políticas e sociais que assombram a Roménia. Ao longo dos anos, esse dispositivo narrativo e estético começou a dar os seus sinais de desgaste, sendo Porumboiu um dos primeiros a abandonar esse percursoc e afastar-se dos  conterrâneos ao requisitar um cinema mais próximo dos códigos hollywoodescos. Já o havia tentado em “O Tesouro” (“Comoara” / “The Treasure”) e agora fê-lo com maior plenitude com “A Ilha dos Silvos” (“La Gomera" / “The Whistlers"), um thriller noir minado de humor e ironia, onde um polícia corrupto (interpretado por Vlad Ivanov) terá que aprender uma linguagem à base de assobios para executar um elaborado golpe.

Um filme de traições, cumplicidades e muitos assobios que fizeram Corneliu Porumboiu regressar à Riviera Francesa, ao mais mediático festival de cinema do mundo, Cannes, e desta vez na Competição Oficial. Conversamos com o realizador sobre os seus métodos e processos e sobre este seu projeto que é encarado como um atalho para uma nova veia artística e criativa. 

Deixe-me iniciar esta conversa para informá-lo que desde a estreia de ontem à noite [première no Festival de Cannes], começaram a chover artigos sobre o seu filme “pedir uma versão americana”.

Sinceramente, acho que isso é bom [risos].

Porventura, aceitaria realizar um remake deste seu filme?

Não sei não, não me sentiria à vontade para contar a mesma história novamente.

Em A Ilha dos Silvos evidenciamos uma constante desconstrução dos códigos de cinema americanos. Talvez seja isso que fez com que o seu filme seja apetecível para esta “suposta versão americana”.

Eu via imensos filmes quando era criança, desde os filmes de Bruce Lee até aos clássicos canónicos: Hitchcocks, Chaplins e Buster Keatons. A razão foi mais porque vi imensos filmes na minha vida .., não só americanos. Aprecio também o Melville, nomeadamente o jogo de gato-e-rato criado em “Le Cercle Rouge”.

Como surgiu a ideia para este filme?

Este filme estava pensado já há imenso tempo, esta história de um polícia que segue para uma ilha para executar um golpe, aprende uma língua à base dos assobios e essa mesma linguagem torna-se muito mais pessoal que um mero estratagema, tudo foi calculado e trabalhado pacientemente. Desde os capítulos até ao seu ritmo, foi todo um processo que demorou o seu tempo.

Quando trabalhava no Politist, adjectiv, há 10 anos, vi uma série televisiva onde demonstrava esta linguagem, e foi então que me interessei pelo tema e iniciei uma investigação. Escrevi um rascunho, porém, avancei no “When Evening Falls on Bucharest or Metabolism” (…) julgo que depois de “O Tesouro” lancei-me num segundo rascunho, ou seja, regressei a este universo com um guião tão diferente do primeiro.

Foi um processo longo e quando senti que a estrutura estava, por fim, completada, comecei a refletir o tipo de personagens e que atores poderiam encená-las. Para isso, regressei ao noir, um subgénero que não assistia há bastante tempo, e de lá tirei algumas ideias do que poderia ou não reutilizar neste meu projeto.

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Catrinel Marlon em "The Whistlers" (2019)

Esta ambiguidade apresentada em todas as formas no seu filme, reflete um pouco o estado social e político do seu país [Roménia]?

Quando faço um filme obviamente que reflito no meu carácter e a natureza ao meu redor, até porque vivemos num mundo em que tudo motiva uma história. O facto de eu vir de um país ex-comunista e que ainda hoje encontra-se assombrado, gere este tipo de filme de ambiguidades rodeado de personagens ambíguas e sobretudo envoltos na temática da corrupção.

Fale-me do seu trabalho com o ator Vlad Ivanov e o porquê da sua escolha no elenco?

É a segunda vez que trabalho com ele. Este filme nasceu envolto dele, construi a personagem com base nele e o resto do elenco foi também baseado, o qual demorei cerca de um ano a formá-lo. Para mim é um excelente e dedicado ator. Por exemplo, neste papel, o Vlad teve que perder “coisa” como 14 quilos em um mês e meio.

Gostaria que me falasse sobre a seleção de músicas que escolheu para formar a banda-sonora deste filme. É que temos aqui uma coletânea bastante diversificada!

A banda-sonora, em certa maneira, é a representação de uma personagem, de um estado de espírito, um cúmplice emocional destas personagens e da narrativa. Porém, o meu maior objetivo neste filme foi materializar a ilha de “La Gomera” através da música. Era importante para mim transformá-la numa espécie de personagem. Adicionei a música enquanto editava as cenas, desta forma pude encontrar o ritmo pretendido. Por exemplo, o Passengers do Iggy Pop que toca no início transmite-me um certo surrealismo e travessia, visto que a cena que a acompanha é a passagem num túnel.

O facto de “A Ilha dos Silvos” ser um thriller noir definido foi também uma forma de apelar a um público mais vasto?

A questão de género surgiu depois do processo de criação. Nasceu da maneira como estava a tratar da temática, aliás, partindo do princípio que chamava a este sistema de assobios de linguagem teria que procurar uma linguagem para este filme. É óbvio que as audiências se identificarão mais com o género, e isso garantirá um filme mais aberto para um grande leque de público.

Faço filmes de 10.000 euros ou 15.000 euros como o “Infinity Football”, por exemplo, mas quando dirigimos filmes de maior escala como este, devemos ter sempre uma noção de marketing, porque o cinema para além de uma arte é uma indústria. Claro que a atitude de entranhar no cinema de género não foi meramente comercial, eu gosto de experimentar ‘coisas’ novas, de me desafiar e explorar novos horizontes. Por isso, encontrei no noir esse novo olhar.

E foi através dele, aliás, os seus últimos filmes têm seguido essa direção, de demarcar sobre o sigilo formal da nova vaga do cinema romeno? Ou seja, afastar-se do estilo que os seus colegas, como o caso de Cristian Mungiu, ainda persistem?

Para ser sincero, não sei responder a isso. Cada um com o seu cinema. Aliás, o cinema é tão grande que cada um pode ir para um trilho diferente. Gosto do Cristian Mungiu, do seu tipo de cinema, das suas personagens, do estudo que faz com elas, dos propósitos com que as retrata. Não vejo porque tem que ser diferente, ou querer ser diferente. Possivelmente, tentei procurar novas formas narrativas, novas estruturas, mas de certa forma sou eu que estou a ir ao encontro das formas clássicas.

Aqui, a minha concentração foi a história acima de tudo, na ação e o mínimo que precisamos para representá-la. São trabalhos diferentes quando temos personagens que se escondem nos seus gestos e que não aguentam close-ups, é uma outra estrutura que nos puxa para uma direção completamente diferente.

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Vlad Ivanov em "The Whistlers" (2019)

Mas mesmo andando pelos géneros distintos, a sua filosofia se mantém. Continuamos a evidenciar a corrupção moral das personagens.

O meu interesse é o de fazer filmes, não filosofia. A minha preocupação é tornar possíveis mecanismos que funcionam. Por exemplo, quando escrevo, até mesmo nos documentários, improviso imenso e com isso recuo diversas vezes até ao ponto de partida para perceber o que funciona ou não. Se sigo por um caminho que deparo com algo que não funciona no argumento, volto atrás e percorro outra direção.

E um dos caminhos que seguiu foi o humor. “A Ilha dos Silvos” é rico nisso.

O humor é instintivo, além disso tive que cortar muito no filme e muitas dessas cenas continham diálogos realmente cómicos, mas que sentia que não operavam com o ritmo e atenuavam a tensão. Mas é algo que gosto e que surge naturalmente.

É difícil escrever diálogos de conotação humorística?

Quando escrevo diálogos sou bastante preciso e quanto às situações aqui do filme pesquisei e trabalhei o mais possível. Neste tipo de filme, o da jornada e do protagonista que julga ter tudo controlado mas que há sempre alguém que destrói os seus planos, fez-me requisitar um certo tipo de humor. O quanto a vida pode ser absurda até certo ponto, quando imaginamos ter algo e no dia seguinte não está lá mais, tentei com este mesmo esquema na última parte do Tesouro. Aliás, esse filme foi uma espécie de experiência àquilo que iria tentar com A Ilha dos Silvos.

Diga-me, aprendeu a assobiar após este filme? [risos]

Tentei, mas não consegui. [risos] Devido à minha pesquisa, tenho a teoria mas falta-me a prática.

Quanto a novos projetos?

Não gosto de pensar em novos projetos após terminar um. De momento, não tenho nada planeado.

Nada é sagrado nas parábolas de Bruno Dumond

Hugo Gomes, 19.05.19

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Depois de desconstruir o género musical com a infância de Joana D’Arc, Bruno Dumont sob o gosto das sequelas (anteriormente concebeu a continuação de “P’tit Quinquin”) prossegue na história da criança abençoada que desafia um exército, para no final cair nas mãos daqueles a quem jurou defender.

"Jeanne" vem apimentar o rol de variações da mítica história da canonizada jovem que mudou o rumo da História da França. Dumont persiste na ainda pequena Lise Leplat Prudhomme, de volta no papel da heroína, o que atribuirá uma outra interpretação na luta de Joana D’Arc (aqui transmitida como uma “birra de uma criança”). Diríamos que é através desta persistência na incoerência [a escolha de uma atriz de 11 anos para interpretar um papel com os seus 19 anos] é somente o esboço do sentido de falsidade que Dumont quer submeter a este “Jeanne”, num regresso da teatralidade e de todo o artifício imaginário que o anexa. Depois do musical, é o épico a ser vítima dessa desconstrução; é a distorção das leis fixas da arte ficcional cinematográfica que o cineasta explicita a sua jornada pelo “faz-de-conta” sintetizado.

É o apontar a um amontoado de pinheiros e ver Paris, é o julgamento sob o efeito “dramático” de um Monty Python (cada juiz tem o seu irrisório maneirismo) e a inexpressividade da sua protagonista a fazer frente a (sobr)expressividade de Maria Falconetti na mais famosa incursão cinematográfica da figura histórica – “La passion de Jeanne d'Arc”, do dinamarquês Carl Theodor DreyerMas se em “Jeannette”, Dumont tomou os seus devidos riscos, nesta previsível sequela agarra o dispositivo como algo garantido. O filme já não avança e apenas contempla a sua postura passiva de um “amadorismo” voluntário, assim como a “pequena” Joana olha para o céu, ouvindo atentamente os monólogos cantados de Deus.

A Morte em vários estados no Festival de Cannes

Hugo Gomes, 18.05.19

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Être vivant et le savoir (Alain Cavalier, 2019)

A morte manifesta-se de diferentes maneiras aqui em Cannes, a começar pela simulação de Alain Cavalier que em “Être vivant et le savoir” [Fora de Competição] experiencia o fim, mesmo indiretamente, através da resistência de uma velha amiga sua perante o cancro. Luta que acabará em tragédia e nisso, Alain Cavalier, sem medos de utilizar o seu modelo de cinema-manual, expõe o intimismo, os pensamentos e uma dor controlada com a perda de outros (o seu mundo desaba perante os seus olhos).  A morte anda de lado com este novo trabalho do realizador de “Thérèse” e “Irène”, não só pelos fatídicos eventos filmados por Cavalier, como também a sua reimaginação para com o seu próprio fim. O realizador passa para o outro lado da câmara e, após a finalização do seu monólogo, suspende a respiração. Por breves minutos, os espectadores assistiram à queda do cineasta, o seu abraço correspondido com a morte que o cerca. É um filme-testamento, sentimos isso.

Após uma breve introdução de Thierry Fremaux, o poeta (tal como o diretor artístico de Cannes o apelida) entra em palco e emociona-se com a calorosa recepção com que a Sala Bunuel o recebe. Discurso feito e sai inesperadamente da sala. Só depois do filme é que percebemos a sua atitude. A morte aproxima-se cada vez mais e não vale a pena invocá-lo desnecessariamente.

E a morte persiste em outras propostas do festival. Ken Loach procurou no seu cinema característico responder indiretamente a indiferença das sociedades modernas com este tópico. Depois do vencedor da Palma de Ouro, “I, Daniel Blake”, Loach regressa à Competição com “Sorry We Missed You”, onde analisa através de uma família nas suas plenas dificuldades financeiras e sociais, um novo tipo de trabalho precário. O surgimento da “economia gig“, segundo o realizador nas suas notas de imprensa, que veio originar uma nova e disfarçada forma de “escravatura”. O que é que isto tem de relacionado com a morte? Simples, é um filme que ataca uma certa ideia persistente nas sociedades ultra-capitalistas: “temos que trabalhar até morrer”. E que vida é essa, se passamos grande parte dos dias a trabalhar, a gerir horas, a conseguir subsistir através de contratos cada vez mais apertados e sempre monitorizados pela tecnologia. 

“Sorry We Missed You” usa essas questões e oferece-nos um filme-exemplo que facilmente poderia entrar em território panfletário, não fossem os seus atores, meros desconhecidos que vêm para a Croisette provar através de uma intensa carga dramática, que merecem um lugar neste universo chamado Cinema

Mas também a morte é o inexplicável, o sobrenatural e o fantasioso. “Atlantique”, uma das obras que aguardávamos com mais expectativa na Competição Oficial, trabalha com o prenunciado fim como o recomeço. Numa cidade costeira do Senegal, a tragédia também faz parte dos romances proibidos, quase shakespearianos, e os fantasmas deambulam na noite como gatos pardos oriundos do mar que se encarregam de guardar os corpos. Dirigido pela atriz Mati Diop (“35 Shots de Rum”), “Atlantique” é um novo exemplo do dispositivo Apichatpong Weerasethakul: a naturalidade com a sobrenaturalidade existente. Mas fora isso, estamos perante um belo filme que oscila pela terra e pelo longínquo e desconhecido oceano, para mais uma vez “tocar na ferida” da questão dos refugiados. Esse vai-e-vem ao improvisado cemitério marítimo para chegar a terra firme, como espíritos de assuntos pendentes, é feito com graciosidade.

O truque é apreciar os detalhes ...

Hugo Gomes, 15.05.19

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RZA expressa que «O Mundo é perfeito. Há que apreciar os detalhes». Dentro dessa norma, há de facto, “preciosidades” espalhadas em The Dead Don’t Die, o pós-modernismo zombie de Jim Jarmusch que comete um erro fatal, não é engenhoso o suficiente para combater a saturação deste universo tão saturado. No final, só nos resta uma valente anedota.

 

A genialidade do absurdo em "John Wick"

Hugo Gomes, 14.05.19

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Durante a sua conceção, a primeira imagem revelada pela produção de "John Wick: Chapter 3 - Parabellum" mostrava a homónima personagem de Keanu Reeves montada num cavalo a ser perseguida por motoqueiros. Esta determinada cena repesca a memória do hoje pouco mencionado "Adaptation" (2002), obra da autoria de Charlie Kaufman e com direção de Spike Jonze, onde uma das personagens de Nicolas Cage (que interpretava gémeos) entrava para o universo dos argumentistas esboçando um guião aparentemente ridículo, mas que postumamente é aclamado como matéria de génio. Nesse trabalho fictício, a figura referia uma perseguição entre equinos e motas, como alusão a uma disputa entre carne e máquina. Era uma absurdidade, até mesmo para os parâmetros da megalómana indústria norte-americana, mas agora podemos afirmar estarmos gratos por simplesmente testemunhar esse pedaço materializado.

"John Wick: Chapter 3 - Parabellum" é, de forma a apropriar da linguagem cibernética, um “upgrade” de um franchise iniciado em 2014, que na altura era visto como um ligeiro filme de série B sem pretensões para continuações nem universos partilháveis. Era a história de um assassino contratado, reformado, que regressava ao jogo numa demanda de vingança aos mafiosos que mataram o seu cão, num projeto que vinha preencher um vazio deixado pelas ações cada vez mais decoupadas nos EUA. Não existia aqui nada de novo pois a ação “one-shot” já era algo tão presente no cinema asiático e muito mais no dito "made in Hong Kong". Contudo, esta reciclagem resultou numa brisa fresca numa uma linha americana de montagem bafienta, compensando o enredo fácil e os hinos à masculinidade tóxica (sim, porque para os responsáveis era mais fácil vingar a memória de uma mulher do que nutrir sentimentos por um animal). Mas também não devemos esquecer outro factor de sucesso - Keanu Reeves - que se prestava a uma personagem tão própria que se chegava a confundir com a sua "persona".

Depois de feita a jornada sedenta de revolta, chegou um segundo filme que expandia o enredo, continuando a salientar o universo onde Wick se insere. O resultado era mais estético, ousado em comparação com a sua singela crisálida, e acima de tudo, perdendo, pouco a pouco, as amarras do dramalhão justificável. “John Wick 2” usufruía do ecossistema burocrático sugerido no filme inaugural de 2014, o dos códigos de honra entre assassinos e as transações de favores como moeda de troca, e ao seu jeito, assumiu-se como um herdeiro do conceito de “Matrix” das irmãs Wachowski. E o filme parecia reconhecer esse feito, brincando por entre referências e relações meta entre as personagens. A tal ponto que Laurence “Morpheus” Fishburne voltava aqui a trabalhar com Keanu “Neo” Reeves.

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Chegando ao terceiro tomo, a fim de fechar o "cliffhanger" que o bem-sucedido segundo filme deixou (John Wick "excomungado" pela irmandade dos assassinos e com a cabeça a prémio), e deparamo-nos com um paradoxo entre a genialidade e o absurdismo. Não só pela referida sequência entre cavalos e motos, mas pelo cuidado visual e coreográfica das cenas de ação, tão minimalistas e ao mesmo tempo tão excessivas. O expoente máximo desta fuga de John Wick é uma equação de elementos oriundos do cinema "trash" e do outrora “diretos para VHS” da dinastia Cannon. Está aqui tudo: ninjas, artes marciais, tiroteio com fartura, tudo orientando em prol de diálogos breves e carrascões, num ensaio de sucessões sobre sucessões de todo um imaginário da ação cinematográfica.

Não é que aqui o proposto seja um culminar do género: "John Wick 3" é, acima de tudo, a reivindicação de um tipo de cinema que caiu no registo da seriedade e coerência física e emocional, perdendo a megalomania dos seus esforços e assim, obtendo senso de um "camp" disfarçado. Há algo quase autoral na conceção destes aglomerados de ideias absurdas tidas como peças de algo operático. Não esperem os dramalhões do costume, ou saudosismos mercantis, este é somente um exercício estético e de uso da força no grande ecrã.

Minimal e destrutivo, ao terceiro filme, o "John Wick" supera-se a si próprio. Longa vida a Keanu Reeves e ao seu simplismo tão verídico.

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