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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O que precisa ser ditp sobre a "pegada" deixada por "Avengers: Endgame"

Hugo Gomes, 29.04.19

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Não se fala de outra coisa, os média estão contaminados pela febre de “Avengers: Endgame” e o público também. Após 11 anos de existência, o cuidadoso universo partilhado da Marvel/Disney chega a um culminar, uma frase que já por si é um cliché como uma daquelas propagandas que cai de fosso no nosso senso comum. Mas a verdade é que o filme que se despede de muitas das personagens principais é um evento por si só, nem que seja pela energia emitida nos visionamentos, onde os fãs se emocionam com cada revelação (tal notou-se na projeção de imprensa com a “enchente” de bloggers e de outros oriundos de veículos de cultura geek que transformaram um compromisso formal numa festa), e uma experiência nem que seja pelo case study que sugere.

Porém, nem tudo são “rosas”, há alguns perigos que esta produção poderá gerar, e nem é algo de agora, mas que tem vindo a ser tendência muito mais numa indústria constantemente monopolizada, e aqueles que se dizem críticos para lá das Terras do Tio Sam, que negam o pensamento sobre o filme em prol de uma cultura de consenso e afinidade para com os fãs à imagem do Rotten Tomatoes.

Falo obviamente do pensamento único e nessa imperatividade do consenso. Na primeira, a qual é fácil de identificar, a MCU definiu moldes de sucesso industrial, o qual tem sido seguido por inúmeros outros estúdios com a eventualidade de repetir fórmulas. Assim sendo, é natural apontar esta categoria de filmes como esteticamente anónimos, sem diferenciação de tons e estranguladores de qualquer criatividade artística. No franchise da Marvel são poucos aqueles que conseguem prevalecer o seu estilo face à ditadura desta narrativa entrelaçada (James Gunn, Taika Waititi são alguns dos casos excepcionais).

E continuando nesse mesmo pensamento, gostaria de dar o exemplo do que está a acontecer no Brasil, onde a fragilidade das leis audiovisuais que asseguravam a estreia de produtos independentes ou nacionais, levou a que mais de 80% das suas salas de cinema apenas apresentassem “Avengers: Endgame” como a única escolha de visionamento. Um absurdo encontrar um multiplex de 6 salas, todas preenchidas com o mesmo filme. Em Portugal, houve também esse “exagero”, mas nunca saindo da anormalidade que acontece no “nosso país irmão”.

E essa homogeneidade de conversa instala-se em todo o lado, desde os médias especializados na Sétima Arte, que disparam por minutos artigos sobre artigos, notícias ou meros detalhes sobre o filme, compondo ou desconstruindo por teorias, ou simplesmente o vendendo como a grande obra-prima. E aí chegamos ao segundo ponto, a totalitarismo do consenso.

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Confesso que entendo a origem do fascínio de “Endgame”, e do público que assiste e acaba por experienciar uma reação saudosa e emocional. Tal, deriva do afecto que se tem pelas personagens e pelas histórias que seguiram durante uma década (fora as do circuito paralelo do comics e afins) e que os convidaram para fazer parte do seu quotidiano. Nada contra aos adeptos que encontram aqui a sua gloriosa carta de amor. Mas em relação à crítica de cinema, existe sobretudo uma tentativa de cumplicidade com o marketing do filme ou simplesmente uma proteção às multidões furiosas de fãs (grande parte deles são intolerantes a perspetivas contrárias). Como resposta a isso, são oferecidos textos básicos sem qualquer fundamento, isento de reflexão ou de contexto fílmico. Existe aqui mais uma preocupação em vender um filme que à partida já está vendido, do que pensar sobre ele. E isso também funciona para muitas das críticas negativas que partem para vender o negativismo barato (como foi o caso de um texto mal emaranhado que saiu na Folha de S. Paulo).

E o porquê deste ataque a muitos dos meus colegas? Simples, porque quer queiramos, quer não, “Endgame” é uma parte da História da Indústria Cinematográfica e como tal deve ser visto à lupa da mesma. Se será esquecido ou recordado no futuro, isso por enquanto é relativo, mas atualmente há que existir um esforço e um trabalho em dissecá-lo nas mais diferentes fontes: a importância da cultura pop nos dias de hoje; os moldes industriais; o simbolismo destas personagens na cultura moderna; a linguagem cinematográfica (ou televisiva) nela emanada; as previsões de futuro do universo do entretenimento;  a política e sociologia por detrás e etc.

Isto tudo para afirmar que o Cinema não é só “Avengers”, nem “Avengers” é o “elefante na sala” que ninguém quer abordar. Mas por enquanto e face ao histerismo envolto, daqui a uns anos seria bom rever e reavaliar o que sobra deste fenómeno MCU. Até lá, contamos com o regresso à “normalidade”.

Um "ménage" na Alemanha Zero

Hugo Gomes, 18.04.19

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Em 1945, logo após o fim da guerra, as tropas inglesas depararam-se com um cenário de horror. Não foram concretamente as ruínas das antigas metrópoles alemãs, bombardeadas sem dó nem piedade pelas forças aliadas, mas sim algo ainda mais sombrio e avassalador que fez com que o filósofo Theodor W. Adorno declarasse o “fim da poesia” na era da Humanidade. Essas imagens mudariam para sempre o rumo da nossa civilização, uma consciência que foi gerada após as aberturas das portas do campo de concentração de Bergen-Belsen. Aí, de câmara em punho, foram registadas as primeiras imagens do interior destes terrenos de um só propósito. Falo de “Memória dos Campos” (“German Concentration Camps Factual Survey”), um documentário devidamente “verité”, que seria direcionado para fins propagandísticos por parte do Reino Unido. Porém, o próprio Alfred Hitchcock, contratado para a montagem de tais filmagens, recusou a sua divulgação por acreditar que o mundo não estaria preparado para lidar com aqueles horrores. Durante tempos, o “filme” ficou engavetado, até à sua recuperação e restauro em 2014, pelo Imperial War Museum, sucedido por uma digressão em festivais e outros eventos cinematográficos.

As “carcaças” humanas amontoadas umas nas outras em valas comuns, os farrapos nos quais os sobreviventes se converteram e as condições miseráveis e inimagináveis, são os elementos que fazem parte desta coletânea das atrocidades cometidas nas sombras de uma guerra de seis anos de duração. Mas por entre esse mesmo conceito, o de conscientizar através do choque, era possível ver os guardas alemães alinhados em frente dos “cemitérios sem nome”, de olhar vazio para as “montanhas” de cadáveres, enquanto que uma voz vinda do contingente britânico pregava-lhes o sermão “Vejam o que fizeram. Digam, isto é de um ser humano?”. Todavia, há que referir uma curiosidade mórbida nesta dita sequência. Muitos dos aliados que auxiliaram na pregação da sua moral frente à banalidade do mal sentida por estes, agora, prisioneiros nazis (visto que muitos deles justificaram os atos cometidos com um “apenas cumpri ordens”), encontravam-se no cimo de uma colina em separado dos restantes (quer os inimigos vivos, quer dos danos colaterais). Tal é a imagética perfeita do chamado “high moral ground”, um termo muito britânico de quem possui a exclusividade da ética moral na sua própria ideologia.

Antes de qualquer má interpretação que possa suscitar daqui, a indicação deste estrangeirismo não procura defender o nazismo ou qualquer ideologia do género. Apenas procura explicitar essa tendência que embateu nas crenças de uma Alemanha guiada para um “oásis nacionalista”, tendo consequências macabras, cujos ecos ainda são sentidos por este mundo fora. É esse “high moral ground” que esta adaptação do romance de Rhidian Brook parece inicialmente embarcar. O Dia a Seguir” ("The Aftermath"), literalmente e alusivamente, arranca com o primeiro momento pós-guerra. A Alemanha perdeu e várias cidades são transformadas num jardim de escombros após o intenso bombardeamento dos aliados (“A Alemanha foi mais bombardeada num fim de semana do que Londres em todo o período de guerra”, ouve-se a certa altura). As tropas inglesas estabelecem-se na cidade de Hamburgo para garantir a erradicação da ideologia nazi através de uma intensa doutrinação dos sobreviventes e a caça furtiva aos inimigos restantes.

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Neste período, muitos dos militares, de variados postos, tomavam os edifícios intactos da cidade como as suas provisórias residências, como é o caso do Coronel Lewis Morgan (Jason Clarke) e a sua mulher (Keira Knightley), que são instalados na casa de um arquiteto alemão (Alexander Skarsgård). Porém, nesta intriga, os proprietários originais  não são expulsos das suas habitações para os campos, apenas confinados ao sótão e condenados a partilhar o seu antigo lar com o inimigo. E através desta situação nasce um previsível trio amoroso. Talvez fosse a expectativa de sairmos daqui com um filme-reflexo sobre a Alemanha Ano Zero, seguindo, e ao mesmo tempo traindo a estrutura da homónima obra de Roberto Rossellini, como se adivinhava no seu início. Mas a nova longa-metragem de James Kent engana-nos através da sua verdadeira natureza. Não é uma obra inteligente o suficiente para requisitar esse panorama político-social, apenas é um tarefeiro que cumpre a folha de encargos de qualquer romance de época, com cliché atrás de cliché, por entre beijos, juras de amor e muita melosidade na banda sonora.

Keira Knightley ainda dá um jeito de transpor para esta sua nova personagem a experiência que tem adquirido no género (identificamos outro romance de época como parâmetro de comparação - “Atonement”, de Joe Wright), mas o constante déjà vu em conformidade com um academismo formal limpinho, que chega a anular a ênfase dramática do seu climax, tornam toda esta experiência de "O Dia a Seguir" num produto de qualidade "à lá BBC". Porém, o “high moral ground” está lá, numa maneira desconstrutiva, bastante leviana. Possivelmente, o espectro desse embate moral atinge o seu apogeu quando a personagem de Alexander Skarsgård é confrontada com os “demónios” do seu povo em pleno interrogatório militar. As imagens dos prisioneiros dos campos de concentração, a serem inquisidores de um olhar denunciador por parte dos “nossos inimigos”.

"Noites Mágicas" em que o cinema italiano seguia à boleia dos “maestros”

Hugo Gomes, 16.04.19

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Aquele que foi em tempos uma das maiores e mais respeitadas indústrias de cinema a nível global, é hoje convertida num espectro que tenta a sobreviver às custas de niilistas ou recicladores. Não é novidade que o cinema italiano está a sofrer uma verdadeira crise identitária e tendo em conta as suas já produzidas 14 películas (apenas longa-metragens), não será Paolo Virzi a salvá-lo. Porém, o grande júbilo deparado neste seu “Notti Magiche” (Noites Mágicas), é uma tendência de autojustificação e ao mesmo tempo um olhar de dentro para fora para tentar apurar a sua própria decadência.

Estamos em 1990, Fellini acaba de filmar a sua última obra (“La Voce della Luna”, com Roberto Benigni) e os outrora grandes produtores italianos parecem depender do pequeno ecrã. Mas o Cinema não é mais assunto aqui e ninguém quer saber, até mesmo os da própria indústria. O Mundial decorre e a seleção italiana tem as suas hipóteses de conquistar o troféu. O seu obstáculo é a Argentina de Maradona e todos nós sabemos como acabou. E é durante esse crucial jogo que Soponaro (Giancarlo Giannini), um dos importantes produtores, mas ultimamente reduzido a um mendigo, é encontrado sem vida no Tibre. A polícia começa a investigação de um suposto homicídio, tendo como principais suspeitos três jovens argumentistas que se encontravam há poucos dias em Roma.

Um testemunho, ménage-à-trois ao jeito da clássica tradição cinematográfica, que vai colmatando os factos através de um piscar de olhos a um Cinema de postal. As referências são diversas (não vamos aqui enumerá-las), contraindo uma narrativa algo meta que indicia a saturação dos seus elementos como compensações de um mero whodunit. Virzi é em simultâneo; um fanfarrão que se coloca em bicos de pés para aprofundar a sua tese em forma ficcional e um engenhoso ocasional na sua própria narração. Até porque não existe ciência aqui, tudo ocorre como planeado na jornada dos três jovens, cada um deles formando a sua própria caricatura – prodígios na demanda de “triunfar” numa Roma em modo embuste que nega a passagem do seu tempo.

Pontuado com um humor calculista e de situações caricatas que despertam um ar escapista no espectador, uma brisa tão anos 90, assim em contexto com o cinema italiano da época, meloso e profundamente saudosista. A nostalgia está ao rubro em conjunto com as mistelas visuais no qual Sorrentino reina nesta atualidade. Será que o realizador de “La Grande Bellezza” e “Loro” é o modelo a seguir na difusão deste cinema? Contudo, são estes os códigos estéticos e expressivos que endossam a espinha dorsal deste projeto. 

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Mas pelos vistos, o grande problema em “Notti Magiche'' não é isolado, é uma anomalia que se habitua como um deserto. Por outras palavras, a sua falta de marca autoral. Não é Paolo Virzi o melhor ou o pior cineasta italiano no ativo, é somente um anónimo ser que respira o cinema dos outros com um certo rigor. Nesta sua obra, essa experiência advém da sua condição enquanto narrador e, por sua vez, vigilante dessa narração. “Vocês veem como argumentistas, ao invés de espectadores“, diz o inspector da polícia seguido por um travelling afora que nos vai revelar o “culpado”, como uma das mais criativas (formalmente) revelações de um plot twist. Em certa parte, esta declaração é como uma mea culpa a Virzi, que se aprofunda nas suas demandas pelo centro/caos da equação ao invés de se afirmar como um simples contador de histórias (o resultado é um filme que agradará mais quem está dentro deste universo do que ao público). 

Pode soar injusto estas inquisições à visão de Virzi, até porque o filme tende em lançar as suas certeiras ferroadas, com isso procurando a sua “salvação”, palavra que interliga este enredo de suspeitas e que é inserida nos mais diferentes contextos. Com isto, queremos salvar, por vezes até “abraçar” um cinema-fantasma que se desculpa pelas suas indulgências: “O que ‘matou’ o cinema italiano foi a vossa geração“. O sangue novo foi o culpado, diriam os velhos do Restelo, ou Pasolini, diria Gabriele Muccino, ou quem sabe o destino, a ordem natural das coisas … diria eu, sem querer reduzir-me a um mero pedestre do Cinema dos antigos maestros. 

"Shazam!": chegou um novo super-herói a gritar alto para todo o mundo ouvir

Hugo Gomes, 03.04.19

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Não é com “Shazam!” que o pós-modernismo no Universo Cinematográfico da DC é inaugurado. Para isso é preciso recuar até aos (não tão longínquos) “tempos negros” da marca, mais concretamente a 2016 com “Batman V Superman: Dawn of Justice”, onde Zack Snyder já colocara um dos seus heróis em constante contexto com o mundo que vivemos. Bastava olhar para os “falsos-noticiários” produzidos para fins dramáticos, as reflexões impostas por tais e os comentários que choviam como torrentes sobre a supremacia de uma das figuras de prestígio deste Universo – o Super-Homem.

Mas é com o infame Snyder e o alter-ego de Clark Kent que chegamos a este “Shazam!”, onde o seu construído ecossistema suporta todos os heróis até então apresentados, olhando para estes com uma distância própria de um espectador. Billy Batson (Asher Angel) é esse espectador, um órfão que por coincidência coexiste nesse universo povoado de heróis e vilões e que, sem prever, integrará parte desta mesma legião.

Criado em 1940, o anteriormente apelidado de Capitão Marvel (não é difícil perceber o porquê da sua mudança de nome), Shazam! surgiu numa época de ouro dos comics, espelhando esse fascínio de milhares que porventura sonhavam encarnar nos corpos dos seus ídolos fictícios. Não é por acaso que esta personagem detém similaridades evidentes com o super-herói mais popular dos quadrinhos, endereçando uma atitude algo meta para com o seu inserido panorama. O alter-ego de Batson faz a sua primeira aparição cinematográfica em 1941, num seriado à imagem de outros congéneres, que no entanto transponham essa fronteira, das páginas aos ecrãs. Nesse sentido, são 78 anos nos que separam dessa incursão protagonizada por Tom Tyler com esta aposta da DC / Warner, que em certo sentido traça um novo rumo para este espólio na indústria atual.

Com James Wan a assumir o controlo criativo do franchise (fez o estrondoso êxito com “Aquaman”), confia em David F. Sandberg, “saidinho” das produções de terror “Lights Out” e “Annabelle: Creation”, para prestar serviço neste episódio acima de tudo colorido e venturado em nostalgia mercantil. Não é por nada que as referências da sua estrutura narrativa são tomadas como óbvias e garantidas em determinadas cenas (“Big” é o seu vangloriado medalhão), o filme tende em não esconder isso, o que deixa a perder qualquer exercício para com o espectador.

Infelizmente, e repescando o dito pós-modernismo no primeiro parágrafo (aqui estamos nós a jogar com questões meta também), essa virtude é diversas vezes abandonada para se instalar na memória cinéfila das audiências, trazendo a nostalgia como cúmplice da demanda do entretenimento. É uma tendência que J.J. Abrams encontrou como sofisticação de marketing no seu “Super 8” e hoje se expande, quer no pequeno (“Stranger Things”) ou grande ecrã (“Star Wars: Force Awaken”, “Ready Player One”, “It”). “Shazam!” não foge a esses vícios, orquestrando uma narrativa e uma atmosfera de um produto PG-13 digno dos anos 80, onde os pequenos laivos de terror estão no limite da sua auto-censura (Sandberg tem alguns motivos de júbilo).

E essa imposição de um conforto referencial frente à vontade de transgredir o subgénero, é o que torna “Shazam!” num exemplar de pouco fôlego, por mea culpa e ao mesmo tempo por culpa da saturação que se vive neste tipo de produções. Por um lado, é uma fórmula vencedora que a DC, que diversas vezes “engole” pó da Marvel/Disney, encontrou como registo a seguir.

Dirão as más línguas que é o mais “Marvel” dos filmes da DC, pautando o seu humor e carregando nos seus tradicionais elementos de um produto de família (moralidades mil no nosso horizonte), sendo isso um sinónimo de sucesso entre o grande público. Contudo, convém afirmar que Zachary Levi, enquanto herói acidental, é uma aposta ganha.