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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As belas trazem a morte consigo

Hugo Gomes, 30.03.19

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Michel Poiccard (À Bout de Souffle, 1960) assim como a “oitava maravilha do Mundo” King Kong são “criaturas” fora do seu habitat natural que deambulavam numa selva de asfalto em busca de uma salvação possível, sob a conveniência de salvaguardar o seu projectivo romance. Ambos foram traídos pelo que mais amavam, consequentemente fuzilados à queima-roupa, sendo o alcatrão, o seu improvisado túmulo. A multidão cerca-os de igual forma nos dois casos.

Os diálogos finais e últimos atos pouco diferem, mas cujas divergências poderiam ser trocadas que mesmo assim preservariam o exacto simbolismo. Enquanto que na leva de Poiccard facilmente ouvir-se-ia “It was beauty killed the beast”, e no caso do símio “Qu'est-ce que c'est, "dégueulasse"?”.

Mas a cerimónia fúnebre está longe da convergência. Num deparamos com a morte da besta, enquanto que o outro é a morte do cinema clássico e a longa vida para o cinema moderno.

O Cinema também se faz debaixo de uma pereira ...

Hugo Gomes, 26.03.19

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O Cinema do turco Nuri Bilge Ceylan condensa-se, resumidamente, como reflexões sobre o peso do legado e da forma como as gerações mais jovens encaram esse incontornável "status", por vezes diluindo na viciada cadeia. Foi assim que começou com a sua primeira longa - “Kasaba” (apresentado no Festival de Berlim em 1997) - até se expandir e adquirir diferentes aspetos, numa carreira que tem sido celebrada e premiada um pouco por todo o lado.

O cineasta toma assim de assalto um legado seu, embebendo o seu ambiente para aguçar as diferentes dogmas do Cinema tradicional. Para ser exato, foi a partir de um quarteto que “subiu escadarias” até chegar à tão cobiçada Palma de Ouro de Cannes - “Climates” (2006), “Three Monkeys” (2008), “Once Upon a Time in Anatolia” (2011) e o referido galardoado “The Winter Sleep” (2014) - que o turco se tornou num dos mais venerados autores do cinema contemporâneo. Com a chegada deste “The Wild Pear Tree” (“A Pereira Brava”), que, numa exceção, saiu de Cannes sem qualquer prémio, testemunhamos uma repetição do material que Ceylan assumiu como o seu manifesto, novamente explorando a juventude em confronto com as complexidades da sua recém-maturidade e do mundo envolto, assim como as prisões invisíveis impostas pela hereditariedade.

Nesse sentido, vamos ao encontro de Sinan Karamasu (Dogu Demirkol) que, após finalizar a licenciatura, regressa à aldeia natal com o intuito de terminar o seu projetado livro. Nessa sua estadia, terá que lidar com memórias passadas, desde os amores de juventude até às amizades esquecidas, e o destruidor vício do jogo do seu pai. Essa jornada, em cadência derrotista e uma cedência ao bucolismo, encaminha-nos para as enésimas encruzilhadas da atualidade sob o ponto de vista de Ceylan, com as interpretações do Corão como um dos momentos (positivamente) mais caricatos ou a discussão para apurar e legitimar o centro literário. Coincidentemente, em ambos os debates, as personagens deslocam-se … e deslocam-se em rumo a um destino certo. É o movimento destas figuras que, em consolidação com uma montagem invariável, expõe uma noção própria (sem nunca deslargar os ensinamentos deleuzeanos) sobre imagem-tempo e imagem-ação.

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Nuri Bilge Ceylan prova ser capaz com a simplicidade da ação inerente, mas com a hiperatividade da manipulação extrínseca cinematográfica, distorcer uma duração de três horas para um aliviante sentimento de hora e meia. Até porque o tempo [duração] é algo relativo e facilmente manipulável. Digamos que esta anarquia perante os códigos hollywoodianos, e de certa forma académicos, o torna mais próximo das tendências atuais das séries televisivas, onde o diálogo importa… aliás, muito … sobrepondo-se à ação e esta, por sua vez, subjugando ao dito e sabido. Pode parecer quase hipocrisia colocar TV (seja convencional ou plataformas de "streaming") no mesmo barco do Cinema de longo fôlego de Ceylan, mas a verdade é que não se trata herança adquirida em nenhuma das partes: trata-se de um paralelismo que nos revela uma ascendente forma de ver o audiovisual, com isto repescando os ensinamentos do "arco-da-velha" de um dos mais importantes teóricos da imagética, Gilles Deleuze.

Longe das doutrinas sobre a natureza e manifestação das imagens categorizadas, “A Pereira Brava” continua a arrebatar-nos com momentos de puro Cinema, e sem o uso maleável da montagem. Simplesmente, o autor aproveita todos os recursos que dispõe, principalmente do meio rural, ao qual dedica grande parte do tempo. O onipresente vento, que chocalha os ramos da titular pereira em sincronia com o cabelo indomável da paixão de Sinan, o Sol, a água e o seu reluzente inconstante e até mesmo a terra/solo. Elementos naturais (um pouco primitivismo aqui), mas que são mais-valias para o olhar do realizador. E sem cair na banal corrente do adjetivo, são imagens belas por sinal. Obviamente que a verborreia e o prolixo são identificáveis marcas autorais de Ceylan: “A Pereira Brava” é como um filho bastardo que tenta seguir as pisadas dos seus “brilhantes” antecessores, por vezes tropeçando por caminhos mais duvidosos. É um filme que nega a sua orgânica narrativa, que pausa para deambulações filosóficas ou simplesmente quotidianas, uma desaprovação dos códigos impostos pela indústria... mesmo que seja a do cinema de autor.

Talvez seja por isso que este filho "não querido" encontre a compaixão dos seus congéneres junto destes. Mais que um filme, a prolongação da obra e do homem por detrás. Quanto o Cinema consegue ser belo e desengonçado, artístico e sobretudo Humano.

“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”: com João Salaviza e Renée Nader Messora, uma conversa pela dignidade do indígena

Hugo Gomes, 24.03.19

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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018)

Hoje, mais que tudo, existe uma urgência na defesa do indígena em território brasileiro. O novo Governo legitima um desejo antigo: a transformação destas reservas em zonas de exploração mineira e outros afins, que os irão levar a um iminente extermínio. Os “índios” resistem há 500 anos, mas a resistência não é tudo nesta cada vez mais negra atualidade.

Com “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, a dupla Renée Nader Messora e João Salaviza concentra num filme uma pequena parte dessa luta. Uma obra que tenta instrumentalizar-se como denúncia a uma discriminação estruturada, mas acima de tudo uma aproximação à tribo krahô, que aqui serve de exemplo para novas abordagens representativas do ameríndio, fora do conceito de “bom selvagem” da romantização ocidental.

Falei com os cineastas sobre esta experiência, passando pelas preocupações de um Brasil da “nova era” e do racismo entranhado, não só no “país irmão”, mas também em Portugal. “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” é um grito para despertar consciências. 

Como nasceu a ideia para este projeto? Foi algo premeditadamente planeado ou foi gerado através da experiência?

Renée Nader Messora – Na verdade, fui assistente de realização de “Montanha” e nós acabamos por virar um casal. Já nos conhecemos há imenso tempo, aliás, estudamos juntos Cinema em Buenos Aires. No meu caso, já trabalhava na Aldeia Branca desde 2009 e durante o tempo em Lisboa falávamos sempre dela, e sobretudo vendo imagens. 

Quando acabamos de filmar a “Montanha”, ambos cansados, fomos para a Aldeia com o intuito de descansar e assim começamos a instalar-nos lá e a iniciar as filmagens. Foram várias viagens, de 3 a 4 meses, e a partir daí a história do ‘Chuva’ foi se desenhando. Mas acima de tudo a nossa decisão foi de estarmos naquele lugar e dividir o nosso tempo com aquelas pessoas e com isso fazer um filme, que se tornou a nossa maneira de aproximar o nosso trabalho.

Mas nós não fomos para lá para fazer um filme. O filme acabou por ser um pretexto para nós vivermos lá de forma estruturada e abordar as questões da nossa vida. Foi uma maneira de juntar a vida e o cinema que é um sistema oposto quando se faz um filme. Quando se faz um filme, por vezes chegamos a ter 2 a 3 meses que são parênteses na nossa existência. Nesse período somos incapazes de conviver com aquele amigo ou simplesmente ir ao dentista, tudo porque entras em processo de rodagem. 

E neste caso é um processo oposto – tudo acontecia antes do filme. Possivelmente o filme era o que tínhamos de menos importante na nossa rotina e na nossa relação com aquela comunidade. O Ihjãc, o nosso protagonista, é que determinava o que podíamos ou não filmar e por quanto tempo poderíamos filmar. Com um modelo tão minúsculo, os dois e uma comunidade, foi um processo vagaroso. 

[para João Salaviza] Encontrou  nesta aldeia uma oportunidade para incutir um novo tipo de Cinema na sua carreira?

João Salaviza – Do meu lado, houve uma sensação de esgotamento de um certo modelo de fazer Cinema o qual ia replicando filme após filme. A verdade é que em nenhum dos meus filmes fiquei plenamente satisfeito com os modelos de produção, e nada disso teve a ver com o produtor. Sempre senti que precisava de mais tempo.

Com o “Montanha”, de certa forma, senti um encontro com uma produção maior e invulgarmente com mais tempo de rodagem para uma longa-metragem. Levamos seis meses. De alguma forma, o filme dava por encerrado o interesse, ou uma pesquisa, a qual vinha a desenvolver nas minhas curtas – uma relação da adolescência com a cidade – que se foi construindo até chegar ao “Montanha”.

Renée estava ciente deste meu plano de fuga e foi a partir daí (o final da rodagem da “Montanha”) que conheci os krahôs e concretizei o meu desejo de mudar radicalmente de vida (tentar viver de outra forma e em outro tempo). Uma coisa que aprendemos com eles foi este modelo numa sociedade, que não é pós-capitalista como a nossa, mas ultra-capitalista onde o centro é a ideia do trabalho. No Cinema também acontece isso, paramos 14 horas da nossa vida para fazer um filme e muitas vezes entre o fazer e o viver criamos uma ruptura nas questões vitais que o próprio Cinema esteriliza, o que distancia o que o modelo de produções propõe.

Na aldeia começamos a pensar numa outra forma de vida e isso gerou um novo método de filmar. O facto é que o Cinema e a vida estão muito diluídos, uma na outra. A maior parte do dia, o filme não era o assunto fulcral do nosso quotidiano, muito menos para os krahôs. O que estava a ser incorporado no filme era sobretudo o que estava a ser vivido por nós. Não era possível pensar no Cinema da mesma forma naquele contexto, ou seja, replicar esses modelos convencionais numa aldeia que tem uma organização social, política e económica bem diferentes da nossa. 

É a realidade a impor nos sistemas de produção e, em última instância, a própria mise-en-scéne a ser imposta pelas questões vitais que se experienciou.

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João Salaviza e Renée Nader Messora no Festival de Cannes

Confesso que assisti ao vosso filme na sua estreia em Cannes e naquela altura o eventual extermínio era uma ameaça, hoje uma realidade devido a este novo Governo brasileiro. 

RNM – Sempre foi uma realidade.

JS – Mas julgo que hoje concretizou-se.

RNM – Não acho. Obviamente que hoje tem uma fase mais violenta e mais óbvia até. Os índios estão resistindo há mais de 500 anos e sempre estiveram ameaçados. Não existe coexistência com o branco que não seja a ameaça. Claro que o Governo veio legitimar o que todo o Mundo queria fazer, mas para o qual não tinha “autorização”. 

A verdade é que depois da democratização, nenhum governo foi politicamente atuante nas questões e políticas indígenas. Aliás, nem estavam incluídos nesses pacotes de pobres.

Pois, de um certo ponto de vista, os indígenas não são bem “brasileiros”, nem sequer “pobres”. 

JS – São os brasileiros originários.

RNM – Uma coisa que eles não são é nem brasileiros, nem pobres.

JS – Hoje tudo se tornou mais descarado, deliberado e propagado. Existia na altura uma “autocensura” na política brasileira nas questões de visibilidade internacional. Mesmo na época da Ditadura, houve uma maquilhagem com as políticas de defesa do indígena no discurso público, que não eram verdade. 

Sei que saiu uma notícia há pouco tempo de que este governo vai mesmo avançar com uma lei que permite extração de minérios em territórios indígenas.

Quando saímos da aldeia e partimos para o vilarejo, o nosso krahô fica exposto a toda uma metáfora sonora da atualidade brasileira. Falo de uma masculinidade tóxica sobretudo na música sertaneja e da cultura do rodeo, da religião e o seu empoderamento. Neste aspeto, o pastor que prega em cada esquina, mas apenas ouvimos. Isto é obviamente um mundo que não lhe pertence e que o ameaça?

JS- Essa ameaça sempre esteve muito presente. No caso dos krahôs, o contacto com os brancos já conta com 200 anos, não tão recentes como alguns povos da Amazónia que tentaram ao máximo retardar esse contacto. Este cerco foi apertando mais e mais e esta hostilidade sempre esteve lá. Eu e a Renée fomos para essa cidade e deparamos com a existência de uma espécie de Santa Trindade Brasileira, que é anti-indígena. A Política, a Igreja e o Capital, com todas as facetas, que vão desde os fazendeiros, passando pela bancada da bala e os evangélicos, que são muito mais tenebrosos do que a igreja católica foi no passado.

Foste um dos primeiros a reparar na questão do som que mesmo uma ideia que tentamos transparecer. Uma ideia de cerco, onde ouvimos esta santíssima trindade a apropriar-se da cidade. Principalmente porque estávamos na época de eleições, que no Brasil começam um ano antes.

Na cidade era possível ouvir os altifalantes dos dois únicos supermercados da região, ambos pertencentes a dois “manda-chuvas” do sítio. Tudo aquilo é uma micro-representação de toda a sujidade institucional e da corrupção do poder político.

Tentamos que este cerco estivesse presente no som. O apelo ao consumo, a propaganda política e o pastor, que não se vê, mas está presente. Aliás, eles não se veem fora da igreja. Eles não circulam, normalmente estes pastores vêm de fora, chegam à cidade e fundem a própria igreja, estão 2 a 3 anos a “sugar” o que podem e depois seguem para outra.

Esta hostilidade de diferentes instituições públicas que propagam imensas ideias antagónicas ao modo de vida dos krahôs. Até mesmo as bem intencionadas, como a política de saúde, muitas delas partes de planos sociais do PT, são completamente desfasados da realidade indígena. 

Sempre quisemos que este choque cultural e ontologias estivessem presentes no filme, ao mesmo tempo sem querer idiotizar a imagem dos krahôs.

Que desafios tiveram na abordagem e representação do dito indígena?

RNM – Uma questão de ponto de vista. O mais importante é tentar filmar uma subjetividade. Aproveitar que estamos dentro daquela comunidade, daquelas pessoas (essa condição é anterior ao filme e não nasceu dele) e dessas relações que nos permitem aproximar dessa mesma subjetividade, que o Cinema não está acostumado a mostrar.

No cinema, normalmente, o indígena é sempre mostrado a partir desse embate, desse conflito e, por isso, é habitual vermos o indígena militante. Mas eles trazem questões muito anteriores a esse contacto, mas tal nunca vemos, e sempre pensamos nisso com o “Chuva’”. Por exemplo, naquelas meninas que se encontram e começam a falar dos namorados. Essa aldeia inserida nesse contexto brasileiro, essas questões [a da discriminação] têm que estar presentes no filme, mas não com tanto peso. Não vamos fazer um filme sobre os problemas que os brancos trazem para os indígenas. 

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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018)

JS – Há algo de contraditório neste tipo de representação, no qual identificamos duas formas de representar o índio no imaginário ocidental. Primeiro como uma figura cristalizada do século XVI. Como se estes anos o contacto não tivesse provocado qualquer tipo de alteração. Como fósseis vivos se tratassem. 

E isso acontece em muito Cinema. Por exemplo, mais recentemente em “Lost City of Z” de James Gray. A enésima aventura do homem branco na selva e quando aparece o índio, este descola da paisagem para ajudar o branco a dizer duas ou três frases proféticas, e logo depois auto-exclui-se da narrativa e regressa para o século XVI.

Existe muito desta romantização do índio como figura profética e de conhecimento de coisas inquestionáveis. São figuras sem subjetividade, são estereótipos. São oráculos com pernas [risos]. É uma ideia muito século XIX, eurocêntrica, oriunda dos primeiros aventureiros, que é o bom selvagem.

Depois existem outros filmes que nos interessam mais, mas que só filmam o índio (ou ameríndio) em conflito com o branco, ou seja, para o definir é preciso usar os nossos padrões de existência como barômetro. Daí existirem muitos filmes de índios contra brancos. 

O contacto dos brancos existe e isso reflete o que os krahôs são hoje ou como eram há 200 anos atrás. Há uma série de questões que são anteriores a esse contacto que ainda persistem nos krahôs (como também naquelas que não são exclusivas deles).

Uma das imagens marcantes do filme é uma das primeiras cenas, a do protagonista que dialoga com um espírito ao pé de uma cascata. Gostaria que me falassem dos momentos míticos do filme, esse mundo espiritual que encontra uma certa naturalidade com a vida dos krahôs

RNM – Esses encontros com o espiritual fazem parte do quotidiano. Os krahôs são muito minimalistas, os espíritos de todas as coisas interagem entre si, uma sociedade paralela, onde muitas delas atuam no mundo material. Sempre quisemos que essa relação com o quotidiano estivesse presente no filme. Nunca foi nossa intenção abordá-los como encontros sobrenaturais, oníricos ou fantásticos.

JS – Já nos perguntaram como filmamos esses ditos encontros sobrenaturais, mas a realidade para os krahôs é que são coisas que ocorrem em paralelo com o quotidiano. É muito comum num almoço, enquanto se discute se a comida está salgada ou não, alguém dizer que viu o espírito do avô ou da criança que faleceu recentemente. Não são fenómenos sobrenaturais. Pelo contrário, são naturais. Esses mundos encontram-se diluídos um no outro. 

O mesmo em relação aos sonhos. Essa divisão freudiana entre o consciente e o subconsciente para os krahôs simplesmente não existe. O que acontece é que o nosso espirito sai do corpo e deambula. O espírito é isso mesmo, uma entidade dupla do corpo.

Quando eles relatam sonhos, que é muito comum no seu dia a dia, são encarados como acontecimentos na vida dos espíritos das florestas. Por isso, pensamos em filmar essas sequências não tão diferentes das outras do filme. Na cena da cascata, por exemplo, filmamos em day for night (noite americana) que nos remete ao cinema clássico, mas aquilo é uma “normal” conversa de um miúdo com um espírito. Ou até o encontro com a arara, que é na realidade um conjunto de campos e contracampos entre o miúdo e o animal. 

Isso prova como o Cinema consegue ser um mediador entre mundos, e como estabelecer ligações e ontologias diferentes.

Novos projetos? Continuarão a filmar os krahôs?

JS – Continuar a viver e mantê-los por perto. A guerra continua, até porque eles são nossos amigos … são família. Ganhamos nome na aldeia, logo temos uma família.

RNM – Fazer um filme implica muito de nós, do nosso tempo. Primeiro queremos viver e por isso vamos continuar a filmar os krahôs.

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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018)

A sequência que mais recordo deste filme é quando o Ihjãc vai ao centro de saúde e uma enfermeira, a fim de preencher o formulário, questiona o nome, pelo que o “índio” responde “krahô”. A resposta da enfermeira é imediata: “Krahô? O seu nome de branco“. Neste caso, diria que é uma discriminação entranhada.

Agora se nos virarmos para a realidade portuguesa, encontramos um racismo tão inerente que é difícil de combater. Temos casos como os do Bairro Jamaica, no qual o Salaviza integrou a manifestação, mas também na polémica da escola de Matosinhos que decidiu criar uma temática carnavalesca com o blackface

JS – O que testemunhamos em Portugal é um racismo estruturado. Tenhos muitos amigos negros que dizem que Portugal é um dos países mais difíceis de combater o racismo, porque este está tão entranhado. Quando um negro se insurge de forma a denunciar um ato racista, todo o país se revolta para desmentir isso como uma criança que fez uma asneira e que jura a pés juntos que nada fez. 

Em pleno 2019, ainda temos uma escola que decide celebrar o conceito de “raça”, categoria obsoleta onde até mesmo o mais racista dos racistas deixou de usar. Nessa escola, onde a temática do africano é motivo de festa, estas crianças serão futuros racistas porque são assim ensinadas a normalizar estes atos. Agora a questão é: como podemos desconstruir isto?

Jordan Peele do outro lado do espelho

Hugo Gomes, 21.03.19

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Tal como no anterior “Get Out”, “Us" é um filme sobre o medo incutido na sociedade que vivemos atualmente. As claras alusões aos eventos mediáticos no nosso tempo parecem ser acolhidos num produto que desesperadamente tenta ser série B, mas a confiança de Jordan Peele após o sucesso da sua primeira longa-metragem leva-nos a um objeto dependente da indústria onde se insere.

Prometiam ser umas férias em família num paraíso qualquer, mas torna-se automaticamente num pesadelo com a chegada de um estranho grupo que lhes invade a casa. Por mais estranho que pareça, estes invasores são versões sádicas deles próprios, sujeitos que se autoproclamam como “Nós“ (“Us”). As evidências são claras, Peele cede ao seu intelecto cinéfilo que recita todo um contingente de obras à mão. Nada contra às referências, mas ao incuti-las como brindes perante a inaptidão de um enredo que se desenrola nos jumpscares “limpinhos” e nos plot twists (sendo que o ‘final” já se adivinhava a léguas e não faz qualquer sentido para a narrativa).

Encontramos “Funny Games” salteados por aqui, um Romero e os treinos básicos para o seu “Twilight Zone”, a estrear brevemente na TV. “Us” é, fora esses exercícios contidos, um filme que se pavoneia perante a sua “astúcia” ou a carência desta, no preciso momento em que se explica totalmente não dando ao espectador a vontade de interpretar as próprias imagens, como havia sucedido com “Get Out”. Claramente que apontamos aqui, neste díptico, um renascimento do cinema de terror negro, que anteriormente era visto como negligenciado e marginalizado na nossa indústria. Tendo como impulso a era do blackexplotation nos 70, que curiosamente garantiu-nos versões negras de Frankenstein ou Drácula (ou Blackula), a personagem do negro no cinema de terror ganhou sobretudo legitimidade com o protagonismo em “The Night of Living Dead”, de George A. Romero, isto após anos e anos de secundarização. Contudo, essas personagens raramente vingaram numa indústria dominada maioritariamente por brancos, sendo que as escassas invocações no cinema de género nunca concretizaram o sucesso comercial [(re)descubram “Tales from the Hood”, de Rusty Cundieff, de 1995].

Jordan Peele, em conjunto com o produtor em ascensão Jason Blum, conseguiu tal feito com “Get Out” e “Us” segue o mesmo caminho. Mas as boas intenções não fazem filmes e esta segunda obra, mais pretensiosa que a anterior, apenas quer ser o mesmo filme que tanto critica: um objeto fácil, quer na planificação, quer nos elementos inseridos, ou no medo de sujar as mãos, que vinga apenas pela dualidade de Lupita Nyong’o (o seu melhor papel) e pelo eterno conflito de Peele em tornar-se um autor de género, nem que para isso replique, como é possível ver aqui, alguns gestos de Hitchcock.

O pão de cada dia obriga a um esforço constante

Hugo Gomes, 20.03.19

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O pão de cada dia obriga a um esforço constante, de que o homem sai significado.

Faltava pouco para Manoel de Oliveira fazer o seu grande salto, não com isto afirmando que o cineasta não era ainda, isso mesmo, um cineasta. “Douro, Faina Fluvial” (1931) é, como todos sabem, a sua entrada pela porta grande, no qual deparamos com um realizador experimental quanto à construção da lógica do Tempo. Um tempo fabricado que Oliveira teceu através do quotidiano que testemunharia nas margens do seu Douro, porém, foi também o tempo que encarregou de o valorizar. Mas Oliveira continuou, persistindo em filmes de encomenda (uma forma de subsistência) até conseguir o seu feito ficcional com “Aniki Bóbó”, em 1942, uma pausa pelo qual depois retornaria a outros projetos documentais / propagandísticos como “O Pintor e a Cidade” e “O Pão”.

Produzido pela FNIM (Federação Nacional de Industriais de Moagem) de forma a celebrar o seu vigésimo quinto aniversário, o filme foi concebido, segundo as palavras do próprio Oliveira, como a materialização da “ideia de que o pão é um rio que passa por vários lugares“. Mas a corrente idealizada levou a um trabalho de quase uma hora que não agradou, nem ao realizador, nem sequer aos encomendantes presentes na projeção especial que decorreu no salão de festas da Feira das Indústrias Portuguesas, a 28 de novembro de 1959. Para estes, foram as imagens de “pequenos ditadores” que o filme transparecia acerca deles. Para Oliveira, foi a sua abrangência que não ostentou a fluidez pelo qual trabalhara. 

“O Pão” segue a jornada de fabrico de tal suplemento “divino”, e simultaneamente em paralelo com todos os quais o destino se cruza nesta manufaturação, desde os jovens camponeses que proclamam os votos matrimoniais até ao trabalho árduo no campo, passando pela sua distribuição e os diferentes destinatários, sejam eles o guloso da pastelaria, ou a criança de rua pronta a saciar a fome. O pão de cada dia, assim como é lembrado no início do filme, o divino e a divindade juntos para reforçar a vida de uma Pátria. Claramente, a obra de Oliveira apresenta-se como um objeto de fascínio do regime da época, carregando nas vontades leccionadas por Salazar: a Família acima de tudo, Deus acima de nós e o Pão como elo que interliga os imortais e mortais. É um imagem sacra, do trabalho exaustivo e ininterrupto para a concepção de tal herança. O português a ser escravo do Pão, ao invés do oposto.

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O Pão” é isso mesmo, um rio fabricado sedento de ribeiras e afluentes, ligadas a uma só trajetória, o plebeu satisfeito com a vivência de mais um dia, somente mais um. Mas o rio planeado encontra os seus problemas de forma, até porque a foz deságua na mesma nascente. Voltamos aos campos, às mãos calosas e gastas, regressamos aos jovens ignorantes que piamente acreditam nas forças desmesuradas para além da mortalidade e o pão como carne do Messias que certo dia prometeu retornar. Mas é uma linda foz … diga-se de passagem …  os campos de trigo que ondulam ao sabor do vento como um mar agitado e igualmente sereno e as searas que chocalham perante estes; um som tão equivalente ao horizonte longínquo do Oceano. Sim, o mar que Oliveira queria chegar, mesmo que por vias não desejadas. Foi uma tentativa de recriar a desfragmentação de montagem que “Douro, Faina Fluvial”, e quem sabe guiar-se por essas mesmas linhas para reencontrar tempos outrora gloriosos. A correnteza do Douro replicada na gestação do Pão.  

Dito isto, a resposta de Oliveira surgiu quatro anos depois com uma versão curta a fim de restaurar essa ideia de fluidez. A sua primeira projeção aconteceu por ocasião da sua própria homenagem na Casa da Imprensa em Lisboa (27 de setembro de 1963). Altura perfeita para essa remodelação, porque foi aí nesse ano que Oliveira reinventou-se. Tal, à sombra da imagem do divino, “O Ato da Primavera”, hoje peça fundamental da nossa história antropológica, o registo do nosso temor a Deus que nos leva a lançar teatralmente um tributo às suas mortes. 

Nunca mais foi o mesmo. Oliveira encontrou nessa encenação, algo que valeu a pena lutar. Uma nova ideia de Cinema, um novo Rio.

A matemática de Jordan Peele resulta em génio?

Hugo Gomes, 19.03.19

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Jordan Peele banha-se no sucesso de Get Out e joga-se de cabeça a uma mescla de referências e jump scares fáceis. Aliás, é isso mesmo, Us é um filme fácil em todo o seu registo. Um Funny Games com cruzamentos de Twilight Zone e Crazies de Romero. Uma equação que parece apetitosa? Olha que não. De tudo isto, ao menos, viva a Lupita Nyong'o.

"Gabriel": um inesperado “uppercut” no chamado cinema português

Hugo Gomes, 18.03.19

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Conhecido como produtor prolífero (representando a BeActive, produtora dedicada a inúmeros conteúdos em diferentes plataformas), Nuno Bernardo aposta na direção da sua primeira longa-metragem com fins ao grande ecrã, citando um dos maiores desportos romantizados no Cinema – o Boxe.

Com “Gabriel”, a história de um jovem cabo-verdiano que chega a Portugal para encontrar o paradeiro do pai, é um enredo que liga a longa tradição da cumplicidade do pugilismo com a Sétima Arte e ainda a tendência de inclusão social tão presente no nosso Cinema. Cabo Verde é novamente representado como a terra distante dos filhos sem pais que se lançam nestas jornadas identitárias, mas com Gabriel o percurso recorre às cadências de rounds com claras incitações ao storytelling romantizado de Hollywood e um cinema social tão presente na obra dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne.

Obviamente que integrado no nosso próprio contexto, há aqui ares de Belarmino (Fernando Lopes, 1964), o derrotismo tão português que se apodera por completo do filme mesmo quando os momentos de glória parecem se insurgir contra este ambiente de pessimismo. Nisto, Gabriel difere dos enésimos Rockys e as motivações do “underdog”, porque o nosso protagonista será sempre isso, um marginalizado no seu ambiente. Nuno Bernardo surpreende ao encontrar uma força intermédia nos diferentes registos, consolidando um filme pastiche, mas ao mesmo tempo construindo um retrato da nossa atualidade tendo como vista um bairro dos Olivais (Lisboa) desfigurado e convertido num “não-lugar”.

A sua narrativa presta perante esse serviço. Todavia, é a serventia do jovem Igor Regalla que torna todo este combate de segunda linha num acontecimento no nosso panorama. O nosso Gabriel lidera um elenco capaz, tendo como vista Sérgio Praia (que veremos como António Variações este ano) como uma personagem que força a sair da sua aparente capa de arquétipo antagónico. Depois é o júbilo de testemunhar os dinâmicos combates de boxe, com a dramaturgia (não tão histérica) de um conto de pugilismo americano e ao mesmo tempo a ferocidade de cada golpe como num filme de ação (será que Nuno Bernardo criou o primeiro deste género na nossa “indústria”).

Gabriel” é um pequeno achado, assim por dizer, é boxe sem aventuras para fora do seu território, mas sem querer encaixar no conhecido deste subgénero. Até porque a essência tão portuguesa está lá, onde a derrota é sobretudo uma omnipresença. Uma pequena surpresa.

Julien Faraut: "Não acredito que o tema desportivo condicione a minha criatividade"

Hugo Gomes, 17.03.19

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Julien Faraut

Foi através da lente de Chris Marker que Julien Faraut aventurou-se no Cinema concebido pelo Desporto. A sua primeira longa-metragem, “Un Regard neuf sur Olympia 52” (2013), invoca os ecos de Olympia 52, retrato dos Jogos Olímpicos de Helsínquia que automaticamente instala-se como um retrato moral do atleta Emile Zatopek.

Seguindo essa partida, na sua segunda obra, Faraut procura a perfeição através da imperfeição de um dos grandes homens do ténis, John McEnroe, interligando-o com a paixão cinematográfica do crítico Serge Daney, que proclamou certo dia a fidelidade do desporto ao Cinema.

“L’Empire de la Perfection” é essa mixórdia que resolve ser umas das profundas análises psicológicas de uma personalidade no Cinema. Tive o privilégio de conversar com Julien Faraut sobre a sua busca da criatividade num historial desportivo e o fascínio pelo perfeccionismo de McEnroe.

Começo pelo início, como surgiu esta ideia de fazer um filme sobre Ténis?

Primeiro de tudo, devo mencionar que trabalho no French Sports Institution. Estou encarregado da sua coleção de filmes por mais de 15 anos. Nunca contei, nem nunca tive a intenção de fazer um filme em torno de John McEnroe. A verdade é que tudo começou quando olhava para as amostras de um filme institucional da French Tennis Federation, que tinha o propósito de “educar” os jogadores. Fiquei surpreendido com a qualidade destas, tudo filmado em 16mm.

Tivemos que lidar com as “quebras” porque o laboratório onde este material residia tinha por hábito destruir as amostras para possuírem mais espaço para arrumação. Existiram várias amostras que nunca tive oportunidade de ver, mas senti a necessidade de preservar a película desses mesmos filmes. É um tesouro patrimonial.

Esse filme institucional refere sobretudo a perfeição dos movimentos, de seguida passamos para um jogador que não corresponde a essas mesmas pedagogias – John McEnroe – o qual aborda a sua imperfeição como a verdadeira perfeição no desporto.

Eu gosto de John McEnroe, é uma “personagem” complexa. Falas de imperfeição, o que reparo é que houve nele uma inconstante incompreensão e hoje existe uma espécie de remorsos. É um tipo de jogador que não existe mais e não está morto.

Penso que ele marca uma era, a Era McEnroe, na qual o seu fim deu entrada a um novo tipo de jogadores, mais semelhantes com robôs. Eles trabalham com os seus patrocinadores, são bem-comportados, seguem à risca a nutrição, são “perfeitos”. Elementos que faltavam em McEnroe, que estava sempre chateado, enraivecido sem razão e isso tornava-o em alguém bastante humano. Tudo porque evidenciamos nele sentimentos: frustrações e tensão são características bastante humanas. Queremos reagir, logo temos emoções, e não somente escondê-las de forma a defender uma imagem pública, e apenas reagir na sua intimidade. Temos fortes sentimentos enquanto humanos.

Olho para o McEnroe como um super-herói com uma fraqueza. No caso de Ivan Lendl, o jogador que o venceu, encontro uma “personagem” diferente. Aliás, foi um dos primeiros tenistas contemporâneos, um dos primeiros a apresentar as características dos “robôs” que referi. Sim, tenho a percepção da imperfeição que é a humanidade em McEnroe, que procura um lugar na sua constante raiva.

No seu filme, ao tentar criar um constante elo do Cinema com o Ténis, cai na comparação de McEnroe com um realizador. Como chegou a essa conclusão?

Era algo que queria clarificar, porque muitos o encaravam como um ator e não um realizador. Para mim, ele era um realizador.

Deixamos de considerá-lo um ator no devido momento em que aprofundamos a sua história, percebendo que ele não atuava nem fingia. Não tive intenção de criar algo teatral, ele era mesmo assim. Era um realizador, porque acima de tudo era um perfeccionista.

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L’Empire de la Perfection (2018)

Trabalhei com um psicólogo no Instituto e, quando o conheci, falamos sobre isso. Descrevi o seu perfeccionismo e logo acabei por sair desapontado com a sua conclusão. Julgava que o perfeccionismo era algo comum, mas o psicólogo descreveu que neste caso o perfeccionismo pode ser uma patologia. Porque um perfeccionista vive num mundo imperfeito e imprevisível – o nosso mundo, a nossa realidade. E devido a isso, ele vive numa constante frustração, coloca-se numa posição que não cumpre, algo que não se consegue resolver e ele debate-se nisso. Obsessivamente nisso. Não existe maneira de tornar o Mundo como ele quer. Faz lembrar a declaração de Serge Daney.

Continuando nessas ligações entre a Sétima Arte e o Desporto, que é a questão e criação de tempo no Ténis, apesar de focar nos escritos de Serge Daney para o Libération, essa temática levou-me também ao “Esculpindo o Tempo” de Tarkovsky. O tempo é aqui o conceito de liberdade, quer no Cinema, quer no Ténis?

Sim, certamente. Mais preciso que o tempo, é a questão da duração. O tempo é consoante através da dramaturgia. A duração por outro lado é diferente. São perspectivas diferentes.

Por vezes, um filme de uma hora consegue ser para nós uma eternidade, enquanto que outros de três horas equivalem a menos. O senso de duração vem em intermédio do drama. Quando lia os escritos de Serge Daney sobre o Ténis, refletia na questão do tempo e da duração dos filmes. Julgava que era o ponto que ligava o Cinema e o Desporto.

Quanto ao Ténis, não existe um tempo limitado, por isso mesmo, nós enquanto espectadores, não sabemos quanto tempo desenrolará nem como se desenrolará, porque até a previsibilidade pode tornar-se em imprevisibilidade. É uma grande liberdade e cria algo surpreendente. Serge Daney admirava esta questão no Ténis.

Visto falar de dramaturgia, Julien aborda este “documentário” de uma maneira tão ficional. O seu final recorre diversas vezes ao trágico quase shakesperiano. A queda de um ídolo, de um herói.

No meu filme, pelo menos em uma hora, segue sem saber onde quer realmente ir. Mas isso respeita o trajeto que eu próprio fiz enquanto trabalhava nele. Mas depois isso, deparei-me com uma ausência, faltava-me algo. Possivelmente, o elo entre Cinema e Ténis. O drama.

Então trabalhei na narração de um só jogo. No meu filme, como reparaste, não existe a descrição de nenhum evento, nem jogo, nem torneios, nem datas, simplesmente nada. Nos últimos 30 minutos foquei-me num jogo só. No mais famoso, por assim dizer, o qual foi considerado o ponto de transição entre o Ténis dito moderno e o Ténis contemporâneo. Para tal, submeti-me a uma terceira via de como observar uma partida de ténis.

Digo terceira porque existem duas bastantes comuns. A primeira é comprar o bilhete e seguir ao estádio e ver o jogo ao vivo a partir daí. A segunda é obviamente ver o jogo no televisor, com uma transmissão bastante rudimentar, sob o mesmo ângulo e os mesmos comentadores.

Tendo estas duas opções, pensei numa terceira maneira de ver ténis, pensá-lo como um espetáculo de Cinema. Quis criar algo cinematográfico. E fiz com aquilo que tive acesso. Não podia ir aos arquivos do jogo, por isso construí através de excertos. Não sabia qual o momento em que começava a partida. Era como um puzzle, por isso trabalhei para criar uma narrativa linear.

Peguei naquele jogo e tratei-o de maneira operática, queria transformá-lo numa Ópera, o que me ajudou acima de tudo a narrar a história. Toda essa fazia lembrar-me o destino fatídico de McEnroe, ou como vocês chamam aqui, o seu Fado.

Um herói para ser um herói tem que ter a sua queda ao cair do pano?

Sim, necessita de “cair”, mas a última imagem do filme não se resume à queda de McEnroe e sim à tabela de pontuação dessa temporada. Queria que esta fosse a última impressão a dar à audiência. De como seria ser o melhor jogador e os custos que teria para ser o número um. Podes jogar muito durante toda a temporada, mas não conseguir ganhar o jogo crucial da final e devido a isso não conquistares o cobiçado troféu. Para McEnroe foi depressivo, uma cicatriz que ficou.

John McEnroe viu o seu filme?

Sim, mas não foi fácil. Tentei contactar diversas vezes o agente, curioso que ele trabalha com o mesmo desde sempre. O meu pedido era diferente dos habituais que ele recebia.

Demorou um ano até ele perceber o que realmente queria fazer. Mas o filme foi distribuído nos EUA em agosto e teve o privilégio de contar com uma excelente crítica no New York Times. Dois dias depois, McEnroe pediu ao meu produtor um link para poder partilhar com os seus familiares e amigos. Porque realmente gostou do filme.

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L’Empire de la Perfection (2018)

Quanto a novos projetos? Continuará no desporto?

Sim, continuarei. Eu trabalho na Cinemateque e julgo ser o único a fazer este tipo de filmes em França. Acho que sou o único realizador de lá interessado nesta área. Assim é mais fácil ser identificado por estes filmes. Não acredito que o tema desportivo condicione a minha criatividade.

O meu próximo filme será sobre uma equipa feminina de voleibol no Japão, na década de 60. É sobre o desporto em si, mas abordará a condição feminina e as vidas industriais até porque estas mulheres trabalhavam e viviam numa fábrica de têxteis.

Quero mostrar através destas condições que estas atletas eram muito mais resistentes do que as atuais, contrariando a ideia de que hoje se treina mais e mais de forma a atingir a perfeição. Estas mulheres vão demonstrar o contrário.

Não quero fugir do desporto porque sei que é mais que um tema. O desporto não é apenas boletins televisivos que informam quem venceu ou perdeu na partida. O desporto também é criatividade, da mesma maneira que os outros filmes e outras artes. É um planeta à parte, e nós, enquanto realizadores, não sabemos aonde chegar. Sou fascinado pelo gesto e pela performance em si.

Os patetas do costume

Hugo Gomes, 16.03.19

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"Linhas de Sangue" (Sérgio Graciano & Manuel Pureza, 2018)

"A verdade é que nenhum dos filmes portugueses de entretenimento interessa a qualquer um dos meus três filhos, que são espectadores normais de cinema. Porque, patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes." João Botelho (O Cinema da Não-Ilusão: Histórias para o Cinema Português, de João Mário Grilo)

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