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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os gatos de Calcutá

Hugo Gomes, 06.02.19

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À noite todos os gatos são pardos e nas ruas de Calcutá são testemunhas dos vagabundos deambulantes que procuram satisfazer a sua tremenda agonia, com isto integrando uma criminalidade sem rodeios. Eis um relato da droga e o seu respetivo Universo, as consequências de tais atos que se disfarçam de Noite numa cumplicidade para com a belíssima fotografia de Shreya Dev Dube e os enquadramentos perfeccionistas do estreante Ronny Sen.

Indiciamos aqui uma “sopa” de Trainspotting com toques e tiques de Tarkovsky. Sim, para primeiro filme, “Cat Sticks” é uma pequena pepita, um banho de técnica e destreza, filmado com punho de quem se quer afirmar num exausto panorama. Porque essa saturação vai ao encontro da realidade indiana, o senso comum que só dispara Bollywood, a exuberância desse mundo de excessos, esquecendo a vaga marginalizada do seu cinema autoral. O filme prevalece como esse herdeiro, talvez não da vanguarda da década de 60 (o círculo de Satyajit Ray ou de Ritwik Ghatak), onde a cinematografia indiana virou-se para temáticas sociais, mas sim a fasquia de autor em constante sobrevivência na penumbra da megalómana indústria (assim como as personagens de “Cat Sticks” que se escondem no oculto para terminar o vicioso arrasto que tornou as suas vidas).

Sob uma narrativa mosaico, Sen espelha um quadro de miserabilismo estético, quase encontrando um fascínio pela decadência destas figuras representativas que apelida de personagens, e das suas tramas em ebulição. Enfim, é uma acusação ingrata visto que muito cinema de Hollywood bebe de iguais desgraças, convertendo-as em artifícios circenses, enquanto “Cat Sticks” remete-nos para um olhar de uma certa sensibilidade, mesmo que distante para fins quase “higiénicos” com a sua cinematografia.

É um filme de algumas arestas a serem limadas, porém, é uma revelação quanto ao apreço pelo visual. Será Ronny Sen um nome a ter em conta no futuro?

Há barafunda por debaixo das saias da Rainha

Hugo Gomes, 05.02.19

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Tendo a atenção da monarca como grande prémio, duas primas confrontam-se intelectualmente dando origem a uma rivalidade que atingirá patamares de mirabolante loucura. Esta é a premissa do novo filme de Yorgo Lanthimos, realizador grego que assinou algumas das obras mais atípicas desse território cinematográfico que nesta nova aventura por Hollywood procura o seu momento de emancipação.

A liberdade segue a passos lentos. Depois de “Alps” (2011) e “Canino” (2009), terem conquistado a atenção de uma comunidade cinéfila vasta - convém sublinhar a nomeação ao Óscar do último, possivelmente o mais doutrinariamente corajoso dos nomeados de Filme Estrangeiro pela Academia - Lanthimos em conjunto com o seu argumentista-cúmplice (Efthymios Filippou) partem para território norte-americano. Aí, a colaboração de ambos gera a distopia amorosa “The Lobster” (vencedor do Prémio de Júri no Festival de Cannes em 2015) e o não tão consensual “The Killing of the Sacred Deer” (2017). Ambas as obras detinham, não só, a incapacidade comunicacional entre as personagens, como também uma reinvenção dos códigos sociais. Por outras palavras, eram filmes “estranhos” para o público mais “mainstream”.

A cerne desta dupla poderia apanhar Hollywood por entre os dedos, enquanto depositam neste legado toda uma bizarrice metafórica dos nossos comportamentos mais animalescos. Enfim, depois do “Sacred”, realizador e argumentista rompem-se e cada um segue para o seu lado. Filippou é “recambiado” de volta para a Grécia e expõe o seu talento no drama “Pitty” (2018), já Lanthimos a jornada por este cinema ainda é uma partida.“The Favourite” não é só a quebra de uma criativa colaboração, é um Cinema cada vez mais longe das raízes demonstradas por Lanthimos e o eventual encontro para com uma herança hollywoodesca.

Já se falava de Kubrick na sua obra anterior - aquela Nicole Kidman em modo "rigor mortis" despojada na cama tinha refluências a “Eyes Wide Shut” - em “The Favourite” é “Barry Lyndon" como decoração e uma subsistência autoral no coração. E assim faz o que pode, usufruindo da escrita de Deborah Davis e Tony McNamara para transportar para o ecrã este arrojado filme de época sobre as aventuras e desventuras na corte da Rainha Anne da Grã-Bretanha (em pleno século XVIII), numa sátira que adquire contornos de violência emocional trazida por um trio de mulheres oriunda de diferentes graus hierárquicos. São elas que fazem a diferença. As atrizes - Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone – estabelecem um triângulo de relações acutilantes, que se laminam constantemente no decorrer da intriga.

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Porventura, é uma batalha de classes empregando os termos projetados do livro dentro do livro de 1984 de George Orwell. Em três classes diferentes, apenas duas se orientam posicionalmente de forma a garantir a preservação do ponto máximo da hierarquia. Ao jeito pingado, Lanthimos joga uma vez com políticas e as metaforiza nas imagens. Desta feita, essa representação é aplicada no trabalho conjunto deste elenco feminino … salienta-se … portento. Aliás, a questão dos atores insere-se como uma amarra rompida no cinema trazido desde então por Lanthimos. Os desempenhos mecanizados a que estávamos habituados em “The Lobster” e o “‘Sacred” são substituídos pela orgânica estratégia destas estrelas: o grego revela-se num exímio diretor de atores, o que compensa uma técnica que constantemente questionamos.

Preenchendo com diversos planos angulares e movimentos semicirculares por entre o eixo cénico de forma a captar a dimensão dos espaços confinados do palácio, este “The Favourite” é atualmente o seu filme mais desengonçado a nível visual. Falta-lhe a fluidez, aliás, dispensa-se essa atitude em prol de um desconforto voluntário. Mas este incómodo para com o olhar do espectador garante-lhe uma tendência de caos. Um vórtice caótico que nos oferece uma recompensa como solução final da metáfora. Um plano de constante transposição que serve de embate para todo este empregar de classes, com Lanthimos mais uma vez a utilizar os animais (neste caso os coelhos) para fabular o nosso foro sociológico.

É uma tentativa de emancipação a tudo o resto. Yorgos Lanthimos tenta reconstruir uma nova linguagem autoral dando frutos ao seu filme mais convencional, porém, diga-se de passagem, entusiasmante dentro do panorama atual de Hollywood.

"Casa de Vidro": simplesmente nada a esconder

Hugo Gomes, 01.02.19

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Há aqui um gesto amorável por parte do realizador Filipe Martins: a utilização do Cinema como veículo de preservação da memória, seja ela afetiva ou, como neste caso, um fruto do quotidiano. Segundo este, Carlos, um sem-abrigo toxicodependente, que mendiga nos parques de estacionamento de um supermercado, era uma imagem presente nos seus dias. Junto à margem do Douro, muitos habitantes demonstravam a sua empatia a este constante “forasteiro” que dormitava num antigo expositor de automóveis, a sua “casa de vidro” que iria converter-se no signo imposto pelo título – “Casa de Vidro”.

A curta de Filipe Martins joga pelas regras do docudrama português, encenando uma realidade próxima a dos envolvidos, e através dessa, emana um subtil simbolismo apresentado na jornada deste homem e no recolher ao seu “aquário” pessoal. A projeção de um refúgio erguido pela fragilidade (quebradiça) das suas paredes, a casa de vidro foi um “lar” improvisado, para mais tarde cair no esquecimento, na mesma altura que Carlos faleceu (durante a pós-produção). A demolição destes quatro cantos representa não só um novo começo para aquela comunidade (a queda de um símbolo arquitetónico), mas o fim de um homem que deixará saudades aos poucos que o tinham como certo nas suas rotinas diárias. Existe uma atitude de admiração e ao mesmo tempo de condescendência para com esta trágica figura. O filme apoia-se no seu carácter e rodopia na construção do seu ecossistema.

Não será certamente a curta que irá desbravar as limitações hoje associadas a anos e anos de prática docudramática no nosso panorama, mas é certo que deparamos aqui um modesto exercício que cresceu para um filme pessoal e demarcado pela subtil humanização.

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