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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

E os Óscares?

Hugo Gomes, 25.02.19

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A convite do Cinetendinha e do caro amigo crítico e jornalista de cinema Rui Tendinha, estive presente (indiretamente) na noite de entrega das estatuetas douradas para mandar uns quantos bitaites sob o gosto dos comes e bebes e do cansaço sempre habitual desta espera pelo hipoteticamente Melhor do Ano. E sempre bem acompanhado por Paulo Portugal (da Insider) a mostrar novamente aqui o seu encanto. Muito grato pelo convite e pela oportunidade.

PS: a nossa intervenção surge a partir das 4:50:00

Enquanto isso, e após a “surpresa” do Green Book, expressei numa crónica corrida no C7nema. “Poderia ter sido o ano da mudança nos Oscars, mas não o foi. Preferiram ficar à sombra da bananeira.” Ler crónica completa aqui.

"Gueule d'ange", de anjo só de cara!

Hugo Gomes, 19.02.19

A facilidade com que ficamos horrorizados com retratos de pais negligentes, e muito mais com mulheres sem aptidão maternais, torna-se num dos trunfos choque de “Gueule d'ange'', a primeira longa-metragem da luso-descendente Vanessa Filho. Todavia, é esse julgamento instantâneo da nossa parte que esconde um certo sentido patriarcal, como se todas as mulheres dessem boas mães ou como se todas mulheres sonharam ser mães. Não estou com isto a perdoar as irresponsabilidades da personagem de Marion Cotillard, que nos apresenta um agravado estereótipo da mãe ausente, que só pensa em folia e não tem disposição para compromissos maternais – comportamentos que irão refletir-se no seu rebento, que sustém numa distorcida estrutura familiar.

No arranque deste filme percebemos o que nos espera: uma mãe embriagada que cai como peso morto na sua própria cama, pedindo à sua criança uma canção de embalar. São os papéis invertidos representados naquilo que parece um pedaço de ternura marginalizada, mas de ternuras também está o inferno cheio. “Gueule d'ange'' é uma coletânea de infâncias traídas e maturidades forçadas frente a imaturidades voluntárias. Caímos que “nem uns patinhos” nas referências e influências entranhadas desse mesmo Cinema, desde Little Fugitive, de Ray Ashley e Morris Engel (a promessa de Coney Island trocada pela promessa do Carnaval), até “400 Coups”, de Truffaut (a mentira, “a minha mãe morreu”), passando por “Nana”, de Valérie Massadian (a emancipação imediata da criança) e porque não, o recente “The Florida Project” (a criação de uma realidade em separado para a distância do mundo adulto).

Vanessa Filho prova ser conhecedora desses mesmos códigos e estranhando no universo Lolita tece uma “naperon” por uma existência deslocada, emitida por um crescimento anti-natura. “Gueule d’ange” atesta-se em planos fechados, um cerco claustrofóbico que rodeia estas personagens atípicas, que dispersa-se por aberturas cénicas após o crucial desaparecimento maternal. Com isto, a realizadora distancia a mãe e filha simbolizando esse afastamento através de uma planificação mais ampla. Há sim, uma linguagem que as une (as personagens e Vanessa Filho), uma espécie de código morse para mantê-las a sãs e salvas dos julgamentos reacionários dos espectadores, um trilho seguro para que as distorções afetivas e familiares deparam-se com o seu pathos.

Elli, as “fuças de anjo”, interpretada pela jovem Ayline Aksoy-Etaix, a menina-adulta sem conhecer as razões da sua instantânea emancipação, projeta a sua carência em estranhos, em lugares-comuns captados pelo seu olhar em plena aprendizagem e, por fim, pela influência dos Medias e da exaustiva informação jogada por esses meios. A distorção faz parte, não apenas do mundo de Elli e da sua mãe, mas do mundo em geral, ideia repensada pela inocência e não-inocência das crianças.

Gueule d'ange'' pode ser um filme incumprido pelo síndrome de “primeira longa-metragem”, mas é um projeto dotado de iniciativa, ideias e sobretudo uma motivação para criar o seu próprio simbolismo. Não tem pinta de ser “amado”, convenhamos salientar, nem as suas personagens.

O cinema e os seus loops ...

Hugo Gomes, 17.02.19

52153211_10213359283273439_3289079375386902528_o.jCom Ghost Stories, de Jeremy Dyson e Andy Nyman, prestes a chegar aos nossos cinemas gostaria de recordar uma das mais impressionantes antologias do género de terror (e possivelmente das pioneiras no grande ecrã), que parece atualmente ganhar pó perante as memórias efémeras dos cinéfilos de “nowadays”.

Tendo as antologias de género uma “moda” que tenta colar-se nas industrias atuais, em 1945 surgia Dead of Night, um conjunto de cinco episódios e mais uma narrativa de ligação concebido a oito mãos, destacando obviamente Alberto Cavalcanti que emana um pesadelo psicológico e psicadélico tendo um boneco ventríloquo ("don’t call it dummy") como estrela. Por vezes esquecido face a muitos dos seus “filhos e bastardos”, como a série The Twilight Zone ou até mesmo o "cultuado" Groundhog’s Day e o agora fenómeno da Netflix, Russian Doll. Dead of Night é mais que antologia, é um corrente de temores da noite materializado no derradeiro ano da Segunda Grande Guerra.

Vale a pena espreitar, antes de dar atenção aos seus promíscuos influenciados.

Era uma vez … um anjo que cobiçava os Homens.

Hugo Gomes, 16.02.19

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Ele olhava de cima para estes minúsculos pontos em vanglória intensa, enquanto desperdiçavam a sua existência com futilidades. Mas o anjo não quis saber de morais, apenas desejava aquele (des)encanto, e acima de tudo a liberdade destes, a negação das asas, as mesmas que o mantinham preso ao seu céu. Tanto pediu que acabou por se tornar num eles; colorido, pecaminoso e efémero de desejos. Num ápice essas imperfeições converteram-se em qualidades. O anjo caiu, coexistiu com a gente mortal para depois, após ter experienciado todos os sabores da vida, voltar ao seu Reino. Se viveu feliz para sempre? Não sei, mas a eternidade foi lhe devolvida e agora é o “fruto” que mais lhe convém.

Para sempre nos nossos corações cinéfilos – Bruno Ganz

 

Falando com Dídio Pestana: Um pouco sobre tudo, um pouco sobre nada.

Hugo Gomes, 13.02.19

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Dídio Pestana / Foto.: Hugo Gomes

Mesmo sendo “Sobre Tudo Sobre Nada” a sua primeira longa-metragem como realizador, Dídio Pestana já povoava neste universo cinematográfico há bastante tempo. Habitual colaborador e companheiro de Gonçalo Tocha (para além do sound design, ambos integram uma banda musical denominada TochaPestana), o agora realizador decide aventurar-se sozinho no Cinema pessoal, algo caseiro, o qual, através de 8 anos de filmagens, percorre toda uma jornada íntima e profissional da sua persona.

São as rodagens, os festivais, as amizades e os romances que não vingaram, temas e muitos, abordados e simultaneamente deixados no vazio. É por isso que entramos num mundo partilhável “Sobre Tudo Sobre Nada”. Aliás, será mesmo isso a essência dicotómica do Cinema.

Falei com este homem de mil ofícios (vencedor da primeira edição do Prémio do Público da KINO 2019 – Mostra de Cinema de Expressão Alemã), da sua suposta emancipação, até ao cinema caseiro pelo qual inspirou e sobretudo, sobre a definição exata (se é que existe) do Cinema com “C” grande.

Antes de começar, gostaria de perguntar se este projeto nasceu de uma intenção, ou a ideia do filme surgiu a meio do processo?

Sim, houve uma intenção inicial de fazer um filme, daí pegar na minha câmara e no Super 8 e começar a filmar. Foram escolhas iniciais conscientes. Já a duração, a de oito anos, não foi controlada por mim, lá está, por não ter um lado diarístico, o que implica que estive à espera de um momento em que me indicasse que não precisava mais de filmar este filme. E isso aconteceu em 2016, numa viagem ao Chile, na qual me apercebi de estar a filmar menos.

Mas durante este processo de registo, e tendo agora o produto final nas mãos, não se sente exposto? Aliás, é uma parte da sua vida que vemos no grande ecrã, incluindo as desilusões amorosas.

Não sinto isso. É óbvio que houve uma exposição, mas essa apenas deixei acontecer. O que está ali apenas não tive controlo, não selecionei o que deveria ou não deveria filmar. Parece estranho dizer isto, a verdade é que nunca experienciei a exposição, até porque no preciso momento em que começas a editar o filme – aquelas imagens, o meu íntimo, as pessoas envoltas, os amores (óbvio que tenho relações amorosas muito fortes ali) – tudo isso transforma-se em personagens na transcrição para a obra. E o hiato que houve ali, essa paragem ou abrandamento, serviram como distância necessária para com as imagens da edição, visto que eu próprio a fiz em conjunto com Rui Ribeiro. E na sala de edição, houve uma pré-seleção feita por mim e isso contribuiu para o afastamento. E está à vista de todos que todas aquelas imagens têm uma ligação afetiva para comigo. Então, o ato de cortar não foi um processo fácil.

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A decisão de filmar em Super 8 garantiu ao espectador esse sentimento de invasão a algo íntimo, a algo seu? Explique como surgiu esta ideia de filmar em tal formato.

A ideia de fazer um filme, apesar de à partida querer fazer algo intimista e próximo, que se aproximasse a esse cinema pessoal de Jonas Mekas ou de Ross McElwee. Depois é todo esse universo amador que o Super 8 proporciona. Aliás, o seu aparecimento permitiu que toda a gente pudesse pegar numa câmara, numa massificação das filmagens. Até porque foi a primeira vez que surgiram os ditos filmes caseiros.

À medida que ia filmando “Sobre Tudo Sobre Nada”, ia colecionando muito material caseiro vindo de outras famílias que deparava em diferentes esferas ou em leilões como o Ebay. É um universo muito interessante e cinematográfico, visto que nos inserimos num espaço muito íntimo. E para dizer a verdade, pegando na tua questão da exposição, foi através desses vídeos caseiros provenientes de outros que senti que estava a invadir qualquer coisa (há uma frase no filme que refiro a isso, “invadir privacidades”). Mas tinha que ter consciência de que estes filmes deveriam ser vistos, porque as famílias os libertaram para o Mundo.

Em “Sobre Tudo Sobre Nada” pretendia pegar em imagens pessoais e transformá-las num filme narrativo, uma história, neste caso diria 100% real, mas foi um processo em que permitiu. Como falei, interessa-me esse lado pessoal do cinema, assim como o cinema que se expõe, aquele em que vemos o realizador do filme ou o técnico de som, ou simplesmente a câmara cai acidentalmente. Para isso, diversas vezes dava a câmara a outros para que pudessem filmar-me, porque no fundo o Cinema é isso, uma partilha.

De certa forma, e visto que foi um colaborador assíduo do realizador Gonçalo Tocha, este “Sobre Tudo Sobre Nada” é uma espécie de emancipação?

Não há necessidade de emancipação. Quanto ao Gonçalo, já me dou com ele há vários anos, temos uma relação de amizade de 20 anos, conhecemo-nos no 1º ano de Faculdade e desde então trabalhamos juntos na música e no cinema. Na verdade, ele não me incentivou para o filme, mas sim nos últimos estados do filme, em que me aconselhava a despachar a montagem e arriscar a minha sorte no envio para Locarno. É normal que exista neste tipo de relações uma interajuda, uma troca de energias. Por isso, essa ideia de emancipação não faz sentido, porque na verdade é que depois disto continuarei a colaborar com ele, não me tornei realizador e não será agora. Voltarei aos meus trabalhos na área do som e do sound design.

… e  à TochaPestana, a vossa banda.

Sim, iremos [risos]. E na faculdade tínhamos uma banda que se chamava Malina, depois veio o Lupanar e agora o TochaPestana. Nós dizemos que essa banda será para sempre [risos]. Sim, a nossa relação de amizade extraviou para o lado profissional, o que é bom, porque nem sempre é fácil trabalhar com amigos, mas no nosso caso resulta.

Visto que referiu Jonas Mekas e tendo em conta que o cineasta recentemente nos deixou, gostaria de falar sobre a sua influência no seu trabalho.

No fundo, não foi o Jonas Mekas a pessoa que me fez abrir os olhos a este cinema pessoal, mas sim, o Ross McKewie, do qual vi quase todos os seus filmes numa retrospetiva no Doclisboa. Na altura fiquei fascinado com o Sherman 's March, aquela ideia de um filme de História transformar-se num diário pessoal e numa viagem pelo sul dos EUA. Por isso é que afirmo que foi o McKewie o responsável por esse despertar para este cinema.

Quanto a Mekas, o filme que mais me tocou, curiosamente, vi há pouco tempo, na altura em que começava a filmar em Super 8, e foi “As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”. Encontrei naquele caos todo, naquela ausência de cronologia / narrativa, uma história: a sua e da sua família.

Quando vejo filmes em Super 8, deparo-me com algo mais além do universo caseiro, e sim com o uso da montagem. E apesar de Mekas referir que não a utilizou, existe no filme uma ideia desta, um discurso sobre e acima de tudo existe música. É uma montagem através de datas que se vai montando como um puzzle na cabeça do espectador. É simplesmente um filme muito bonito.

É um cliché dizer isto, mas Mekas foi uma grande perda. O que ficou foi muito bom cinema para vermos e, acima de tudo, essa ideia de pegar no amador e transformar em cinema para além das quatro paredes de casa.

Queria questionar sobre o título – “Sobre Tudo Sobre Nada” – que acaba por ser bastante honesto e adequado ao tom do seu filme.

Foi na altura quando procurava por um título mas não sabia qual. Enquanto filmava, coloquei como provisório este e só percebi que era o mais correto quando comecei a montar. Através desse processo, apercebi-me que estava a querer abordar muitos tópicos. Na altura não entendi e fazia-me confusão, mas descobri que a essência do filme era mesmo essa, abordar tudo e mais alguma coisa e ao mesmo tempo não processar muito sobre elas. Até porque as coisas continuavam a andar e a vida continuava. No final, foi o título que me fez mais sentido.

O título é também uma referência a um diálogo que teve com a sua mãe.

Sim, há uma parte do filme que corresponde a um processo que não está lá, que foi o da memória familiar. Gravei algumas conversas que tive com a minha mãe e com outros membros da família de forma a criar um arquivo histórico. Algo que me interessava a mim, mas não só.

Mas é a pensar num filme que lançamos ideias e daí surge a construção do que acontece no final. Neste caso tentei aflorar conversas que não tinha no meu dia-a-dia, mas que foram possíveis através do processo de criação deste filme. Dei por mim a ter quatro horas de conversa com a minha mãe, algo que não aconteceria num dia normal.

Quanto a novos projetos?

Vou continuar a trabalhar no que me dá prazer. A colaborar com realizadores dos quais gosto, gravar som em rodagem, sound design. Aliás, é isso que eu gosto de fazer.

A mera “natureza morta” de Rita Azevedo Gomes

Hugo Gomes, 13.02.19

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“Gosto do nevoeiro. É uma espécie de medo, o qual esqueci. Por vezes, o que esquecemos é o mais importante”

João Bénard da Costa disse-o de um jeito sereno e envelhecido, enquanto olhava o horizonte desconhecido através da janela da sua casa. É uma das muitas cenas de “Frágil Como o Mundo” (2001), a possível obra máxima da realizadora Rita Azevedo Gomes, em que o antigo e mítico diretor da Cinemateca Portuguesa, em modo ator, fazia prevalecer a sua presença como o último dos pensantes e o eterno amante do misticismo. Mas a personagem encarregue de Bénard da Costa pouco saía da sua casa, e nesse seu abrigo entre quatro paredes, relatava diversas vezes o temor pelo desconhecido à sua espirituosa neta.

É certo que entre Frágil’ e a nova obra, “A Portuguesa”, passaram-se 17 anos. Pelo meio surgiam curtas, médias e longas documentais e um drama inspirado no conto de Jules-Amédée Barbey d’Aurevilly (“A Vingança de uma Mulher”), mas olhando para esta carreira não muito rica, encontramos um medo … um constante pavor. Não existe um risco no seu Cinema. Aliás, é na sua zona de conforto que Azevedo Gomes se refugia. A comodidade da sua cultura-disponível, dos livros às citações palavrosas, ou dos artistas e cineastas com que se relacionou, referindo e ditando esses mesmo sábios, são elementos que tornam os seus filmes em camadas de saudosismo alternativo.

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Por mais pictórico que “A Portuguesa” (adaptação de Agustina Bessa-Luís de uma história de Robert Musil) seja, as suas imagens estão despidas de qualquer simbolismo e profundidade para além do estético, não existindo, sobretudo, uma ousadia de transpassar a frieza destas. São ilustrações, bonitas ilustrações, cuidadosamente coreografadas, onde destaco o plano-conjunto como a sua língua materna, abordando tudo como gravuras, não vivas, mas dotadas da essência de natureza morta.

Pois … morta! Pois nada aqui vive; os atores são meros bonecos que respiram em prol de um júbilo não-partilhável, alvos a abater para que o cinema dos outros viva. Rita Azevedo Gomes faz um “filme para amigos”, porque nele encontramos as pisadas que os seus “amigos” fizeram e melhor, tendo especial atenção aos ecos deixados por João César Monteiro nos seus tempos de Silvestre ou da memória sempre invocada do épico à Manoel de Oliveira (os despojos de batalha a requisitar os quadrantes de “‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar”). São interpretações suas que não saem das ciências aplicadas e em "A Portuguesa" somos conduzidos sobretudo a uma alternativa a essa inexistência.

Sim, é pena que Azevedo Gomes não dê o passo em frente desse círculo de confianças, não avance em direção ao nevoeiro e que enfrente, por fim, os seus profundos medos. A sua visão estética metódica serviria de arma para uma nova vaga do Cinema Português. Ao invés disso, ficou-se pela pintura materializada, sem a existência necessária para brotar.

O cinema português tem contas a ajustar com o seu “novo sangue”

Hugo Gomes, 11.02.19

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Jovem, mas de um espírito terreno para com a tradição estética deste mesmo universo, comentando a fantasia em prol dos prazeres da carne (a revisitar a sua trilogia de curtas, “Carne”, “Boa Noite Cinderela” e “Coelho Mau”) e do visual eclético, mas enriquecido por uma câmara que acompanha o olhar das personagens e não do espectador, Conceição preparava a sua “cama” para uma estreia em “grande” no formato das longas metragens. "Serpentário'' assume como a sua estreia no elucidado “universo para crescidinhos“, porém, os prometidos atos sebastianos desvanecem perante um desnorteio. A bússola aponta para Norte, mas o realizador e também argumentista está determinado a seguir para Sul, erradamente conquistando o Oeste.

Ora, seguindo a lógica, aquela “cantigazinha” da experiência, Conceição demonstra neste novo palanque alguns dos grandes problemas da transição de curta para a longa – a logística, ou diria antes, a economia do seu tempo, ritmo, teor e sobretudo forma. O seu ecletismo é mais presente, vincado nesta sua (re)requisição de um anterior protagonista, João Arrais de “Coelho Mau”, aqui como o serpentiano que parte em busca do que resta da sua mãe num futuro pós-apocalíptico. Essa dizimação do mundo que conhecemos é parte de um segredos de deuses o qual não cabe ao espectador conhecer. Aliás, como a sua intenção de sublinhar a perspetiva da personagem e nunca a do público, algo deixado pela sua experiência nas curtas é indiciando nesta hipotética viagem pelo desejo.

Contudo, o desejo aqui é outro, não a luxúria que miramos nas blasfémias sacras (“Carne”), na literalidade da guerra entre classes (“Boa Noite Cinderela”) ou a perversidade de um incesto fantasiado (“Coelho Mau”), e sim o não condicionado reencontro, a esperança que funciona como fuel de uma jornada pelas ruínas do Velho Mundo. Pelo caminho, percebemos que este armagedão concretizado fracassou no seu expoente, a existência do outrora (a nossa atualidade) desapareceu, mas as imagens do que este Mundo era estão preservadas numa espécie de cápsula do tempo, os vídeos amontoam-se e formam uma constelação da nossa era (o cinema português parece estar consciente da extinção da sociedade e acumula as imagens como os seus tesouros memorativo, assim como fizera “Dia 32” de André Valentim Almeida).

Serpentário” é nesses preparos um filme sobre a memória, a coletiva que se torna na ressonância da individual. Conceição presta-se a esse “amarcord”, regressa ao continente africano, onde nasceu, que abraça a sua camada autobiográfica para se estender acima dessa chamada coletânea do Mundo. É aí, que de certa maneira, o filme se perde – a bússola já não aponta mais e João Arrais caminha por entre escombros improvisados, civilizações arrasadas, contemplando a destruição para procurar a criação. Atmosférico? Sim, o que ganha força com um inesperado encontro, contrariando uma alusão a Mil e uma Noites, as fábulas das Arábias que infiltram nos vento de areia e na voz doce e trocista de Isabel Abreu (sobressaindo uma das grandes qualidades de Conceição, o seu trabalho de som).

Ou seja, ideias existem, investimento sim, mas o nosso realizador comete um salto maior que a perna, até porque não sabe o que fazer com o tempo que dispõe, como o preenche e, acima de tudo, como o tornar útil. Todavia, ainda não perdemos a esperança na sua figura. Carlos Conceição tem virtudes suficientes para “abanar” o nosso mundo cinematográfico.

O caos é bailado para Diabo sentir

Hugo Gomes, 07.02.19

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Estrategicamente, os provocadores conseguem ser melhores publicistas que os próprios na indústria cinematográfica e a verdade é que, uma vez invocando a provocação, sempre se será refém de tal postura. Tal acontece a cineastas como Lars Von Trier, possivelmente o mais gratificante e mediático deste ramo, mas uns degraus abaixo surge outro “exemplar”: Gaspar Noé.

Indivíduo caricato, de um certo sorriso malicioso, Noé ficou célebre pela debandada de espectadores que saiam furiosamente da projeção oficial de “Irreversible” em Cannes. O momento encheu as manchetes e a imprensa esfregava as mãos quanto ao episódio. Assim, a sua fama como enfant terrible se construía. Foram precisos sete anos para regressar aos grandes ecrãs sob uma inventividade narrativa [“Enter the Void”] que não conheceu o mesmo histerismo, apesar de condensá-lo a um certo estatuto de culto. Com “Love”, em 2015, sob as promessas da pornografia ingressada num enredo semi-autobiográfico, o cineasta regressou às luzes da ribalta e, novamente em estreia no festival da Riviera Francesa, conquistou o “prémio” de mediatismo-choque.

Gaspar Noé retornou assim ao ambiente ao qual está familiarizado, mas ao invés da Seleção Oficial, encontrou lugar na 50ª edição da Quinzena de Realizadores, um sinal de que o seu estatuto autoral foi reafirmado e relançado para circuitos mais visíveis da cinefilia. Mesmo num evento paralelo, o realizador teve a proeza de “roubar” algum do público destinado ao glamour do Palais, incentivando a imprensa para mais uma provocação à lá Noé. “Tu desprezaste I Stand Alone. Tu odiaste Irreversível. Tu espezinhaste Enter the Void. Tu amaldiçoaste Love. Agora experimenta Climax.”. Foi este o recado deixado pelo realizador aos jornalistas e críticos na véspera da estreia oficial, um filme na altura ainda mantido em perpétuo mistério (apenas era conhecida a protagonista, Sofia Boutella), que gerou um hype que movimentou centenas de curiosos.

Após a visualização, a crítica yankee (não só) teceu alguns elogios ao novo trabalho de Noé, algo inesperado que levou o próprio realizador a comentar a sua admiração e, de certa maneira, uma deceção aos seus projetados objetivos. Até porque a dita provocação dissipou-se, já não existe mais repugna, o que restou foi cumplicidade. Mas afinal o que aconteceu? O que levou um dos enfants terribles a ser um homem em reavaliação pela crítica que outrora tanto o desprezara? Para responder a isso, temos que ter em conta que “Climax” apresenta-se numa nova etapa na carreira de Noé, a do “clímax” propriamente dito, só que ao invés da força dramática ou trágica contida nas lições dos três simples narrativos, é o vazio na criatividade do realizador, ou seja, o seu dom de “irritar”. E para esse dom, Noé precisava de arquitetar melhor a forma de chocar o seu público, mas o resultado embicou noutra direção. Mesmo com a provocação pensada ao milímetro, o seu mentor demonstrou uma falta contextualização para com as suscetibilidades das suas vítimas.

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Assim, caímos de paraquedas num filme de dança, breakdance e toda a cultura alicerçada. Um projeto recreativo que se torna num pesadelo após alguém (whoddunit) ter sabotado uma sangria destinada à celebração, colocando LSD. A festa preparada converte-se num tormento sincronizado, corpos imperativos que revelam  violência depositada em cada cápsula carnal, convivendo com uma (ir)realidade alucinogénia que se figuram como “monstros” nesta bad trip coletiva. Tudo isto agita-se num prolongado plano sequência que limita um suposto filme de cerco minado com as marcas pelo qual Gaspar Noé contaminou, chamando-o desde então de seu Cinema.

A estética néon que compromete-se com uma câmara em estado de ecstasy, que nos sugere um repugnante point–of–view emocional, os tais fade outs que esquartejam diálogos e planos de maneira a inserir-se em falsos-raccords. É um filme à Noé com certeza, não há dúvidas, porém, até nisso, nos deparamos no desleixo. Enquanto as personagens se introduzem, literalmente, sob um cenário vintage de uma televisão anacrónica, capas de VHS estão expostas para fins decorativos. Mas os títulos aí evidentes revelam as marcadas influências deste projeto. De “Querelle” e “O Direito do Mais Forte à Liberdade” (“Faustrecht der Freiheit”), ambos de Fassbinder, a “Possession “de Zulawski, passando por “Salò” de Pasolini e “Um Cão Andaluz” de Buñuel (nota-se ainda espectros do apogeu dos filmes de cerco, “O Anjo Exterminador”), são os passos pelo qual este longo bailado se dança. Estranhamente, perdemos o jogo das referências após esse início, até porque os truques foram todos exibidos em pós-stage.

O que restou aqui foi apenas o movimento, o gesto e os corpos que apontam para a saída. Basta Gaspar Noé segui-la, a provocação precisa de ser afinada ou redefinida. A sua câmara súplica por essas novas aventuras. O filme, por sua vez, só pede um clímax … somente um clímax

A Portuguesa não nos deixa respirar ... por outros motivos.

Hugo Gomes, 06.02.19

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Por entre o uso dos planos conjuntos que tornam cada cena num quadro vivo, devemos olhar para A Portuguesa e procurar uma luz de enfoque que nos tire dos traços de natureza morta aqui perpetuados.

Morta? Sim, porque nada disto acrescenta, avança, nem inova no panorama de cinema português dito autoral, até porque, dentro do universo de Rita Azevedo Gomes, já acontecera oportunidades que chegue de sair do dito circulo de amigos o qual influencia e se deixa influenciar. A fragilidade do Mundo e até as vinganças femininas transportaram-nos para outros ares (esperanças assim sublinhadas), mesmo respeitando um legado em cima (devidamente homenageado nos créditos), mas depois da quebra imagética que houvera com Correspondências (a passividade visual ao invés do transe), A Portuguesa é um limbo. Esse mesmo que impede Azevedo Gomes de ser algo mais do que uma condutora de referências. Assim sendo, temos uma ditadora do cinema confortável.

 

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