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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Clint Eastwood, a nossa "mula" ...

Hugo Gomes, 31.01.19

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Antes de avançar para este regresso de Clint Eastwood à sua díptica tarefa (direção e representação), queria-me deslocar a uma das teses de Slavoj Zizek, que também integrou o documentário “The Pervert’s Guide to Ideology” (Sophie Fiennes, 2012). Aí, o filósofo exemplifica a ideologia por detrás da franquia Starbucks. O que ele indica é que ao comprar café nestes balcões, estamos também a comprar a sua ideologia, isto porque estes produtos mais caros que os dos concorrentes vêm com a promessa de solidariedade. Por exemplo, uma percentagem desse valor reverte a uma causa (seja ela qual for, desde a alimentação de crianças africanas a salvar uma floresta tropical). Essa engenhosidade torna a que um ato de puro consumismo (da nossa parte) não ostenta qualquer indício de culpa, porque o consumidor é abrangido na ideologia de que na aquisição destes cafés está a contribuir para a ajuda de algo – abstraindo-se com isto do pensamento consumista no ato que pratica.

Voltando a “The Mule” (“Correio da Droga”), a história de um florista nonagenário, Earl Stone, que aceita trabalhar para um cartel de droga como transportador (aquilo que nos EUA é designado  de “mule”), é possivelmente uma derivação dessa tal teoria do branqueamento consumista, porque em certo caso, a obra de Clint Eastwood joga com a ambiguidade moral. Ou seja, o bem gerado por ilícito. Aqui o protagonista contribui para a comunidade em que se insere (seja por exemplo, a associação de veteranos), ou na rendição dos seus pecados passados (redimir o tempo perdido com a sua família), tudo isto com o dinheiro conquistado através destas transações ilegais. Earl tem o conhecimento dos seus atos e é nisso que o pensamento de Zizek encaixa na perfeição, só que longe das demandas de expansão capitalista, o que está em causa é a ética, a sua natureza e compostura.

"The Mule" entra nesse mundo em que a personagem principal cai no “goto” do espectador sem nunca ceder aos caminhos da martirologia pura, o final é um exemplo perfeito desse engodo, onde a culpa de todo este jogo de enfoques morais encontra a sua pátria (cedendo depois a um belíssimo travelling enquanto os créditos tomam posição no ecrã). Contudo, antes disso, não é só a droga que faz jus a essa teia de valores, alguns que até desafiam a intenção algo “Trumpista” que a América vive e das últimas glorificações aos “heróis” americanos de Eastwood. Earl convive com os seus traficantes, come, bebe e interage com estes de um jeito quase castiço, o que drena toda uma composição a um território de terceira-idade amistosa. E por momentos, até os antagonistas demonstram essa sensibilidade humanista, cedendo também às complexidades dos tons cinzentos.

Pois, é que Eastwood como “espião duplo” (atrás e à frente das câmaras) comporta-se como um cineasta diferente, pregando os bons valores da família ao mesmo tempo que procura uma redenção ao seu conservacionismo, quer ideológico, quer até cinematográfico (o realizador é um grandes herdeiros e sobreviventes do classicismo hollywoodiano). “The Mule” enviusa diretamente com os anteriores “Gran Torino” (a redenção), “Absolute Power” (a família), “The Bridges of Madison County” (a validade do romance) e até com o infame “Space Cowboys” (pós-envelhecimento), no sentido em que quebra o formalismo desse academismo genético tão próprio de Eastwood e procura uma sensibilidade doutrinal nos, e fora, dos seus planos.

Sim, é um cinema de velhos (no cinema protagonizado por Eastwood existe também uma autorreflexão que acompanha o estado do Mundo, neste caso a tecnologia e a sua dependência como perpétua menção), diversas vezes direcionado aos cinéfilos de outrora, mas na realidade encontramos aqui a jovialidade que muitos não possuem. Para isso, aproprio-me de uma das frases, saídas da terna Dianne Wiest, para representar a relação deste veterano com a cinefilia, e vice-versa:  “You are the love of my life, and the pain of my life.”

Daniel Barosa: "A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer!"

Hugo Gomes, 28.01.19

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Boni Bonita é um canção, uma melodia que remete a sentimentos, desejos, juramentos e até mesmo desilusões. É a união e ao mesmo tempo desunião destes foragidos do destino. Beatriz, uma argentina radicada em São Paulo, que após a trágica morte da sua mãe submete-se à deriva da estrada até se cruzar com Rogério, músico que aguarda o seu momento de reafirmação na indústria. Dois fracassados, cujas falhas, de cada um, resultam numa relação tempestuosa.

Boni Bonita” é também o título da segunda longa-metragem de Daniel Barosa, realizador que se aventura nesta coprodução com a Argentina para encontrar a luz da ribalta na arte de narrar. Filmado a 16 mm sob um potencial de intimismo quase caseiro, “Boni Bonita” integra a Competição de Slamdance, festival de cinema independente e de baixo-orçamento nos EUA.

Falei com o realizador sobre este projeto e os seus próximos, assim como a cada vez mais difícil arte de fazer Cinema no Brasil.

Como surgiu a ideia para este filme e como foi avançar para uma longa-metragem de ficção?

A ideia surgiu com a personagem da Beatriz, que espelha muitas experiências vividas por mim e do produtor, Nikolas Maciel, na cena de música independente de São Paulo no começo dos anos 2000. O guião começou a ser desenvolvido em 2011 e a ideia era fazer uma longa-metragem de baixo orçamento, já que seria o meu primeiro.

Claro que tivemos dezenas de obstáculos. Filmar ao longo de 3 anos acho que acrescentou bastante à narrativa, mas foi o equivalente fazer três longas em 3 anos, pois sempre implicava renovar toda a nossa estrutura de produção. Trabalhar com película no Brasil foi um desafio à parte, já que durante a filmagem, o único laboratório que revelava no Brasil fechou! Tivemos que levar o filme para revelar no México e depois escanear na Argentina. Deu bastante trabalho, mas valeu a pena! As imagens em película no filme ficaram lindas e acrescentam muito ao seu proposto clima nostálgico.

Queria que me falasse sobre a escolha de Ailín Salas como coprotagonista? E se isso foi algum requisito da coprodução?

Desde as primeiras versões do argumento, sabia que o filme só funcionaria se achasse a atriz perfeita para o papel de Beatriz. E é muito difícil achar alguém jovem com experiência, ainda mais no Brasil onde esse perfil de atores tende a trabalhar mais na televisão. Enquanto escrevia Boni, vi a Ailín no filme “La Mirada Invisible”. Ela tinha um papel pequeno, mas na altura vi que seria perfeita para Beatriz! A Ailín tem um olhar e presença muito forte. Ela fala muito sem dizer uma palavra! Quando descobri que tinha nascido no Brasil, pensei na hora que tinha que conseguir ela para o meu filme! Conheci a Ailín no Festival de Mar del Plata, o qual estava presente com a minha curta “A Tenista”, e ela se interessou pelo projeto, apesar do desafio de atuar em português (algo que ela nunca tinha feito). A coprodução surgiu a partir daí; foi o resultado de ter a Ailín no projeto.

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Sobre o enredo, é curioso este retrocesso na atualidade e ao mesmo tempo encontrar uma época onde se inveja décadas passadas, até como Ney Matogrosso menciona “viver como os 80”. Acha que o Brasil, tendo em conta os eventos da atualidade, este regressar é uma solução (algo fantasioso) para as incertezas do futuro?

Não sei se esse regresso seria uma solução, mas o caminho que estamos a seguir é perigoso e assustador. Há uma nova mentalidade extremista a crescer no Brasil, e no mundo, que já existiu no passado e vimos que foram momentos tristes da nossa História. Acho muito importante revermos sempre o passado para não repetir os mesmos erros, mas infelizmente, não está acontecendo isso.

Em relação à coprodução, tendo em conta a extinção do Ministério da Cultura Brasileira e as crescentes dificuldades de fazer cinema no Brasil, qual é a solução para sustentar a produção audiovisual e cinematográfica do país?

Acredito que sim. A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer! Sempre achei o modelo de coprodução no cinema, especialmente entre países latinos, uma ótima oportunidade, pois estamos unindo forças para sobreviver num meio dominado por Hollywood. A coprodução, além de ajudar os projetos financeiramente, possibilita uma troca cultural importante. Todos os projetos ganham com isso.

Fale-nos da composição e significado da canção homónima criada para “Boni Bonita”.

A música foi composta por Jair Naves, um músico o qual admiro muito. Conversamos bastante sobre o que seria essa canção e ele teve a ideia de criar algo que remetesse a uma espécie de cruzamento entre samba e bolero, com uma atmosfera das gravações dos anos 50. Ele contou com a ajuda do Renato Ribeiro, que criou a linda base de violão. A letra foi feita traçando um paralelo com o argumento do filme e praticamente reconta a história da Beatriz num tom poético, inspirado na MPB

Novos projetos? Ambições para o futuro?

Temos três projetos, os quais estamos a desenvolver em paralelo. Desta vez nada de filmar ao longo de três anos! Acho que o meu coração não sobrevive ao stress e à ansiedade! Tenho um argumento de uma comédia romântica que estou a escrever com Sílvia Antunes, um drama estilo coming-of-age, sobre a comunidade de brasileiros em Miami e “Oferendas”, um filme de terror que estou a desenvolver na produtora com o Nikolas Maciel [“Nimbo’s Film”]. Oferendas entram bastante no mundo da Umbanda e Candomblé e acredito que tem um potencial comercial maior. E vai ser uma coprodução também!

"Lost Holiday": a jornada da inconsequência e do caos

Hugo Gomes, 27.01.19

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Lost Holiday” é descrito como uma comédia negra de contornos dramáticos que indicia becos existenciais para nos levar a uma autodestruição positiva, a necessidade de um indivíduo encontrar um novo significado para a sua vivência, nem que para isso renegue todo um “rasto” deixado. Por entre um forçado hedonismo, Margaret (Kate Lyn Sheil) e o seu amigo de longa-data Henry (Thomas Matthews), convencem-se estarem prontos para decifrar um rapto que decorrera na sua vizinhança, partindo assim numa caótica investigação por meios recreativos. Através dessa missão de última hora, Margaret espera esquecer as suas desilusões amorosas e a vida desamparada pelo qual está passivamente aprisionada.

Num registo a cair no mumblecore, esta primeira realização incentiva um constante olhar para com o passado, de forma a que este, sob um jeito flashback, adquira uma relevância fantasmagórica para o enredo que se desenrola. Tudo isso, joga em favor da trabalhada psicologia de Margaret, cujo corpo é guiado pelas forças do escapismo citadino e a mente que constantemente invoca um momento-chave da sua persona. É uma viagem existencial que deixa toda a ação conduzida num policial à paisana para segundo plano, um macguffin para sermos mais exatos quanto aos seus propósitos.

"Lost Holiday” é um filme sobre uma personagem só, endurecendo essa jornada e atentando um guia para o espectador conhecer o caminho e o caminhante num só combo. Contudo, é essa a sua grande fraqueza, esse afunilamento para com a protagonista atribui pouca interação com o resto do “gangue”, tornando-se numa obra míope e cujo défice força-a a uma deambulação oscilante que providencia algumas decisões duvidosas a nível de resolução de guião.

Mas a dupla Matthews evidencia aqui algum esforço em seguir as tendências do cinema indie norte-americano com um teor algo anárquico. Possivelmente, o futuro será mais que risonho para esta equipa, nem que seja uma “vingança” em circuitos mais modestos como a própria comunidade de cinema independente norte-americana. A ver vamos!

Nos trópicos da memória ...

Hugo Gomes, 27.01.19

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"Boni Bonita", a segunda longa-metragem de Daniel Barosa [a primeira ficção em tal formato], é um episódio de (des)união que remete a um hedonismo fabulista, uma fantasia que desvanece perante a necessidade de compromisso e que encontra lugar num Brasil que sonha com oásis remotos. Beatriz e Rogério são dois seres sem nada em comum para além das suas vidas fracassadas, o veio no qual se submetem a uma relação supostamente livre, refém dos acordes de “Boni Bonita”, dos calores da luxúria e do tropicalismo das suas pretensões. Mas até mesmo essa simbiose não sobrevive perante a ambição de ambos; ele, músico de 30 anos que espera pela sua oportunidade de fama, e ela, argentina radicada que tenta afastar-se do mundo que sempre conhecera e que desmorona perante a tragédia.

Filmado em 16mm de forma a condensar uma atmosfera igualmente misteriosa e íntima, “Boni Bonita” é acima do seu drama algo existencialista, um desejo de reconciliação com um país de outrora, imaculado perante os seus imperativos desejos, uns anos 80 refletidos num novo milénio assim como indica o artista Ney Matogrosso (aqui sob um especial cameo). Hoje, perante as atuais manchetes, deparamos com um pedido de retrocesso, um voltar atrás com um claro receio pelo futuro. Porém, este simbolismo encartado é somente fruto de um timing subversivo (o mesmo se aplica à coprodução de forma a devolver uma arte moribunda o seu grau subsistência).

Sentimos o grão anacrónico da imagem, o invocar de espectros de um cinema underground, intuitivo e sobretudo carnal, uma atitude que realça a derivação existencial pelo qual Daniel Barosa se perde. E nessa perdição, os seus atores principais, Ailín Salas e Caco Ciocler, tentam rasgar os seus peões do destino e emanar um química diversas vezes castrada por este olhar demasiado horizontal, força inversa à proposta de um filme, voluntariamente, limitado ao seu cerco.

Ico Costa foge, mas não vai longe

Hugo Gomes, 27.01.19

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Tudo estava indicado para que “Alva” fosse a emancipação de Ico Costa, realizador que tem captado algum interesse no circuito de festivais nacionais, demonstrando os valores da elite cinematográfica do nosso panorama e reforçando a existência do docudrama, mas ao invés disso somos presenteados com mais um impasse.

Nesta primeira longa-metragem deparamos novamente com esse gosto em recriar a realidade com uma ficção complementar que se confunde com toda esta encenação-captação. A obra, que segue um homem, Henrique, em fuga nas montanhas após ter cometido um duplo homicídio, era caminho e tanto para servir de mostra aos temores psicológicos e a regressão quase animalesca da sua personagem, ou por outros caminhos já percorridos (por exemplo com “Nana” de Valérie Massadian), um retrato naturalista da cedência da civilização ao selvagem como subsistência. Ao invés disso, passando por um primeiro ato morno que encaminha enganosamente o espectador pelo primeiro trilho aqui sugerido, o filme tende em ceder à derivação do registo de câmara invisível, sorrateira e sem noção alguma de interferência para com a ação (com tal matéria, Miguel Gomes concretizou com melhor afinco a jornada de Chico “Chapas” num dos episódios de “Mil e uma Noites”).

Como tal, o espectador é absorvido ao estado passivo, enquanto as imagens correm sem o auxílio psicológico por trás ou do simbolismo, aqui desfeito por dois fatores: o primeiro ponto, a crueza e frieza dos planos (corridos de desleixo formal que sabe tão bem aos paladares de um certo academismo português); e segundo, a sequência final que deixa a perder a hipótese de testemunhar o potencial de um realizador calculista (algo que faz falta no nosso Cinema).

Até porque o nosso fugitivo é encaminhado / auxiliado por uma câmara cúmplice que suavemente indica-lhe a direção a seguir (literalmente), quase obtendo uma interatividade de imagem com a personagem ao nível de Michelangelo Antonioni (a câmara que foge do seu próprio filme e adquire a vida pretendida). O plano dessa estrada a fora, a fuga possível de Henrique e o estabelecido momento meta-fílmico em que o real converte-se no simbólico, é laminado com um exibicionismo evidente. A câmara procura o protagonista e é nessa procura que indiciamos essa dita e falta de calculismo. Não com isto insinuar que um plano-sequência ditaria um filme, mas era de facto crucial para entendermos que tipo de realizador Ico Costa se tornará. Pelo que vemos, não será promissor, mas também espero estar enganado quanto a isso. Por enquanto, o resultado é a passividade do costume.

Um longo título para nada!

Hugo Gomes, 25.01.19

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Nicole Brending repesca as bonecas da sua curta-estreia “Operated by Invisible Hands” (2007) para nos trazer o que inicialmente poderia ser indicado como “um retrato do século XXI”. Em jeito de “Vox Lux” (ou talvez não!), este “Dollhouse: The Eradication of Female Subjectivity from American Popular Culture” foca-se na fictícia ascensão e queda de uma jovem estrela pop passando pelos lugares-comuns que tomam forma os tabloides e as tragédias VIP.

Uma criança convertida em astro precoce, pressionada por uma mãe autoritária e controladora, inserida em escândalos sobre escândalos e um turbilhão de decadência ao som das drogas, álcool e sexo desmesurado, elementos que à partida levam-nos à base de muitas das famas “fabricadas” por aí tidas na indústria musical e cinematográfica. Brending expõe esse relato sob a cadência de um mockumentary (falso-documentário), ou falsa-reportagem chique se quisermos especificar, que acompanha em “exclusivo” os tormentos dessa problemática child star.

E a realizadora faz isso através de bonecas, um utensílio artesanal que o afasta da logística comum da atuação e corrompe a ingenuidade de tais brinquedos. Enfim, idéias que em outras mãos e em outras mentes resultariam numa crítica ácida às espinhosas voltas e reviravoltas da celebridade. Ao invés disso, “Dollhouse” proclama-se como um imaturo júbilo por parte da artista que cede à piada fácil, derivativa e ofensiva no ponto de vista que ridiculariza a comunidade LGBT (com a comunidade trans em especial consideração) e às novas gerações, sempre atribuindo-as a indignidade do ofendido fácil. É que na máscara do seu politicamente incorreto, Brending é uma feminista "conservadora" que olha de cima para todos os novos movimentos e ideologias de género (está acima do termo TERF, o qual muitos querem-lhe atribuir).

Com isto salienta-se, deambulando pela sua perversidade fingida e sem noção crítica, e sem paladar a nível cinematográfico (quer narrativamente, como tecnicamente, é tudo uma “brincadeira de crianças”), “Dollhouse” é uma experiência que resulta em inocuidade. Pior, como primeira longa-metragem é um sinal de incompetência. Simplesmente medonho!

Morreu Jonas Mekas, o "Padrinho do Cinema Experimental"

Hugo Gomes, 23.01.19

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Photo.: Wei Gao

Morreu o cineasta e poeta Jonas Mekas, o "padrinho do cinema avant-garde norte-americano", uma das figuras mais importantes da história do cinema experimental. Tinha 96 anos.

De origem lituana, Jonas Mekas e o seu irmão, Adolfas Mekas, abandonaram o país em 1944. Prisioneiros de guerra e condenados a um campo de trabalhos forçados, ambos conseguiram fugir para Dinamarca, o que o levou, cinco anos depois, a emigrar para os EUA. Pouco tempo depois da chegada ao solo norte-americano, Mekas compra uma câmara Bolex 16mm e inicia a produção de pequenos e íntimos filmes. Foi o início de uma aventura que se inseria numa vaga artística que surgia lentamente (com mimetização numa anterior vanguarda arthouse, datada na década de 20).

Avançou-se na realização com “Guns of the Trees” em 1961, um drama experimental sobre uma mulher depressiva que tenta suicidar-se, ao mesmo tempo que estranhos tentam convence-la que a vida merece uma segunda oportunidade. Três anos depois, chega uma das obras mais célebres, “The Brig'', no qual Mekas tenta jogar com o ultrarrealismo num dos grandes dramas da História das forças armadas norte-americanas. Apesar do contexto diferir, “The Brig” é um filme com vários cordões intimistas e pessoais. Conquistou o Grande Prémio do Festival de VenezaJonas Mekas alia-se a Andy Warhol para conceber a curta Award Presentation to Andy Warhol (1964), que serviu de porta direta para outra colaboração entre os dois, o qual gerou o mítico Empire (1965), documentário de 8 horas tendo como estrutura um plano em tempo real do Empire State Building.

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“As I was Moving Ahead I saw Brief Glimpses of Beauty(2000)

Entre outras obras, contam-se “Diaries Notes and Sketches” (1969), “Birth of a Nation” (1997), “As I was Moving Ahead I saw Brief Glimpses of Beauty(2000), “Letter from Greenpoint” (2005), “Sleepless Nights Stories” (2011), “Out-takes from the Life of a Happy Man" (2012) e uma série de 365 curtas que disponibilizou na internet a partir de 2007. Em 1954, os irmãos Mekas criam a revista Film Culture, a qual tornou-se em tempos, uma das mais respeitadas publicações de cinema nos EUA. Em 1958, Mekas torna-se colunista na Village Voice, numa secção intitulada Movie Journal. Passados quatro anos, funde a Cooperativa de Cineastas (Film-Makers' Cooperative) e sucessivamente a Cinemateca de Cineastas (Film-Makers' Cinematheque).

Vencedor de vários prémios e presença assídua nos festivais de cinema, Mekas esteve em Lisboa em 2009 para uma masterclass e retrospetiva da sua obra no DocLisboa. Era também conhecido pelos seus trabalhos de poesia e por dar aulas de cinema em estabelecimentos como o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e a Universidade de Nova Iorque.

Esperem um momento …um obituário formal e esquemático? Para Jonas Mekas? Pois … na decisão de como iria abordar o trágico fim de uma figura tão crucial para o Cinema na metade do século XX e para alguém que dedicou a sua vida a experimentar e a alimentar o imprevisível,romper a previsibilidade deste espaço foi certamente a encontrada homenagem que lhe poderia dar. Contudo, mesmo assim, sinto que qualquer formato e qualquer gesto é insuficientemente resolvido como pesar a este incontornável artista. 

 

Jonas Mekas (1922 – 2019)

Glass: procurando um autor em M. Night Shyamalan

Hugo Gomes, 21.01.19

50849900_10213186891963764_7810904352880590848_o.jM. Night Shyamalan é um dos últimos autores norte-americanos do qual temos conhecimento … sim, autor (que venham então os enésimos artigos abaixo deste estatuto fora dos ditos “veteranos”, porque os sinais estão lá) … e Glass é perpetuamente um olhar autoral à massificação do cinema de super-heróis e o faz através da desconstrução. Essa, apoiada numa metalinguagem que evidencia a mitologia hoje atestada para ponto de partida nesta aproximação/afastamento desses mesmos universos.

É um filme inteligente … sim, é … que desafia até a própria pedagogia hoje alicerçada aos pseudos-“críticos” norte-americanos, habituados (ou melhor, mal-habituados), às fórmulas disnescas e ao fun check que a indústria proporciona. Glass é sobretudo esse dedo médio à falta de reflexão no Cinema de hoje. Contudo, é Cinema, fora dos modelos academicamente aceites da narrativa, ou seja, é mais que simples “historietas”, que te contempla com um técnica sinónima a uma emancipação por parte de Shyamalan. A fim de evitar o automatismo de Split, o realizador se assume rigoroso não no guião, mas no como entregá-lo através de uma narrativa visual, exemplo disso, a sala cor-de-rosa picotada com grandes planos de cada um destes peões, o substituto digno da vitrine prisional de Silence of the Lambs, as reavaliadas lições de suspense de Hitchcock.

Da categoria: filmes que tem vindo a crescer e o cinema é mais que telenovela

#SomosBacurau: falando com Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Hugo Gomes, 15.01.19

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Passaram-se sete anos desde a última reunião entre o artista Juliano Dornelles e o crítico de cinema convertido em cineasta, Kleber Mendonça Filho, o qual gerou o muito elogiado “O Som ao Redor”. Após uma pausa em que seguiram caminhos distintos, a dupla regressa com um projeto que tinha na gaveta há quase uma década: “Bacurau”.

Filmado na região Pernambuco, captando as vastas planícies secas que evocam os westerns “fingidos” e sobretudo das distopias pós-apocalípticas, aqui, “Bacurau”, uma terra que apela pelas boas intenções daqueles que estão de passagem, é um território ameaçado por forças que os seus habitantes não compreendem, mas que mesmo assim resistem (palavra predileta de Mendonça Filho).

Uma invocação do cinema de género que guarda todo um coração politizado e ativista que conquistou a sensibilidade do júri de Cannes, que recompensou a obra com um Prémio de Júri. Mas “Bacurau” é mais que um amontoado de referências ao serviço do quadro daquilo que lhes convém; é um grito num universo extenso, maleável e convergente com a nossa realidade. Sonia Braga e Udo Kier, os dois veteranos do elenco, traçam essas forças.

Tive o prazer de conversar com a dupla de realizadores sobre este filme, materializado sobre a sua veia política, cinéfila e sobretudo inserido no panorama do cinema pernambucano, um dos estandartes da resistência audiovisual no Brasil.

O vosso filme gerou as mais variadas reações em Cannes, sobretudo um consenso geral de um filme narrativamente não linear. Sempre foi a vossa intenção evitar os lugares-comuns da estrutura narrativa?

Kleber Mendonça Filho: Quando escrevia o meu primeiro filme – “O Som ao Redor” – estava confiante de que conceberia uma história linear percetível a qualquer um. De certa forma, consegui, só que tal dependeria da pessoa que o vê. [risos]

Foi então que descobri da pior maneira que muitos acharam uma experiência impenetrável, demasiado cerebral e difícil. “Aquarius”, foi no meu ponto de vista, um filme bem mais linear e com “Bacurau”, sentimos o mesmo, linearidade acima de tudo. É o que é.

Primeiro de tudo, apresentamos a comunidade … existe aquela mulher, existe aquele homem … e depois tudo se desenvolve até ao clímax. Sim, julgo que fiz um filme narrativamente fácil. É por isso com admiração que ouço coisas como: “é estranho, bizarro ou metafórico“. É sempre uma surpresa deparamos com as reações do espectador.

Mas não será isso um elogio?

KMF: Sim, obviamente que é um elogio. Mas não deixa de ser estranho. É como se eu lhe desse um copo com água e você me dissesse algo como: “esta é a água mais esquisita que alguma vez bebi” [risos]. E afinal é somente um copo com água … por favor.

O que quero dizer é que para nós, “Bacurau” é um filme claro naquilo que quer ser. Possivelmente foi a indústria que nos habituou mal, e que tenta padronizar o Cinema que consumimos.

É inevitável não associarmos Bacurau com o contexto político do Brasil que hoje testemunhamos. Vocês inspiraram-se no que realmente está a acontecer para embarcar nesta aventura?

Juliano Dornelles: É uma coincidência.

Coincidência?

JD: [risos] Acreditem em nós, é uma coincidência. Este projeto tem mais de dez anos de existência, evidentemente que as motivações deste filme são fortemente políticas, mas “Bacurau” é sobre aquilo que acreditamos que deveria acontecer, não no sentido politizado, mas social. Deixe-me explicar melhor. Nós vimos imensos documentários étnicos em diversos festivais e todos eles tratavam essas mesmas pessoas, com curiosidade é óbvio, mas com exotismo e simplismo. Aliás, é muito simplismo.

Aquilo que acreditamos é que o ser humano é tudo menos simples. Consequentemente, preenchemos alguma dessa “simplicidade” com política. Todavia, o que quisemos demonstrar com este filme é um grupo de pessoas aparentemente simples que irá mostrar a outras a natureza por detrás dessa capa. E foi assim que aconteceu "Bacurau".

Mas isto foi há 10 anos. Desde esse momento muita coisa mudou, inclusive o Brasil. Lançamos então o "Aquarius" e só depois de consumado esse filme, sentámos-nos e decidimos terminar o argumento deste “Bacurau”. Nesse processo, a nossa ideia original foi contaminada com imensos fatores e um deles foi a eleição de Donald J. Trump. Poderemos considerar um filme político, mas há mais aqui que somente isso. Como as pessoas que quisemos retratar.

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Tudo muito bem, mas então é um erro nosso considerar “Bacurau” um filme político? Pelo menos eu acredito que tudo é político, até o infame pormenor.

KMF: Claro que tudo é político, o que o Juliano está a tentar dizer é que “Bacurau” não entra no mesmo registo que um Costa-Gavras ou um Oliver Stone integram. Quer dizer, eles fazem bons filmes, o que acontece é que produzem obras políticas de uma maneira frontal. E “Bacurau” não é frontal.

JD: O que estamos a tentar querer dizer é que quando estávamos a escrever o argumento, não tínhamos a determinação de fazer um filme político nessa frontalidade. Tudo é político, sim, mas não de uma forma evidente e chamativa.

Esforçamo-nos acima de tudo em criar um western, um filme de género, um apogeu de violência. Poderemos dizer que “Bacurau” é uma reação a algo. A política apenas surge de forma espontânea, não forçada ou dependente.

KMF: Só o facto de um mapa ser alterado para corresponder às nossas especificidades em relação ao Mundo, é político até à medula. Mas a resistência é a sociedade a dizer-te o que fazer e acreditares que tal não deve ser aplicado a ti. Voltando a frisar, tudo é político.

Tendo em conta aquilo que presenciamos em “Aquarius” e agora com “Bacurau” e o facto de ter mencionado a “resistência” como um ingrediente-chave, pensa futuramente persistir no tema?

KMF: Penso em fazer três filmes bastante diferentes, que de certo serão influenciados com aquilo que está acontecer, porém, todos esses projetos serão sobre a História. À sua maneira, “Bacurau” é uma obra sobre o poder da História, sobre os factos. E principalmente para o Brasil, que não é um país muito velho, que conta com os seus 500 anos de existência, há uma condenação à História, assim como os museus são considerados hobbies de velho por grande parte dos brasileiros. Eu discordo disso, talvez por ser filho de dois historiadores, mas a minha mãe sempre frisou a importância das coisas e porquê elas o são.

E isso está no filme. Aliás, o museu tem um papel importante em “Bacurau”. A certa altura foi proposto a duas pessoas a hipótese de visitarem o museu e ambas recusaram.

Em “Bacurau” existe também uma certa veia anti-colonialista.

KMF: Acredito que a História repete-se vezes sem conta e de diferentes maneiras. Por exemplo, a União Soviética a invadir o Afeganistão, o processo colonialista do Reino Unido ao longo dos anos e até mesmo o Vietname pelos EUA. Aliás, pensamos muito no Vietname quando escrevíamos o guião – os americanos com todo um vasto equipamento que invadem uma região e nem sequer se preocupam em pesquisar antes da operação. Tal provoca uma situação desconfortável. No geral, o que estou a querer insinuar é que este tipo de confrontos tendem a repetir-se e a resistência é uma possibilidade, nem sempre bem-sucedida.

E com isso quisemos fazer uma fantasia, um filme sob os moldes de cinema de género onde as personagens lutam por aquilo que acreditam (que realmente acreditam). Sinto também, que de certa maneira, o facto de conhecermos aquela região e como as pessoas de lá realmente “funcionam” ou como pensam, serviu para que esta resistência embelezada seja credível o suficiente para atravessar a referência de género.

Em “Bacurau”, assim como em “Aquarius”, de certa maneira senti que tentam explorar aquilo que na Psicologia é apelidado de retorno do reprimido. O despertar dessas defesas que surgem quando algo é imposto contra a nossa vontade. Acredita nisso?

KMF: Sim, acredito. O que fizemos é o trabalho estruturalmente clássico, mas o que me interessa aqui é a alusão de alguém a impor-nos a realidade que não nos pertence. No caso de Aquarius é uma senhora de idade que vive num edifício fantasma, e para alguns essa estadia é um impasse de algo. Já em “Bacurau” é a forma de alguém supor que aquelas pessoas nada importam e acima de tudo são estorvos dos seus verdadeiros propósitos. Este tipo de temática encaro de forma intensa, é um forte ponto para iniciar uma história: “supostamente tu não deverias estar aqui“.

Em determinados momentos, “Bacurau” relembra-nos todo um vasto rol de cinema de género, inclusive do western spaghetti, quer na sua decoupagem ou no visual. Qual de vocês é o fã de Sergio Leone?

JD: Ambos. [risos]

KMF: Sim, nós dois. Aliás, acho que todos nós somos fãs de Sergio Leone. [risos]

JD: Julgo que no nosso processo de escrita, escrevíamos as cenas isoladamente e como estas iriam funcionar da melhor maneira. Para que pudéssemos perceber com antecedência a melhor forma de filmá-la e com isso encontrar a sua face mais divertida e dinâmica. E só durante a filmagem que descobrimos essas referências, anteriormente adormecidas no nosso inconsciente: “Oh, isto parece um western spaghetti. Oh isto parece pura ficção científica.”. Em oposição, nunca passou pela nossa ideia no estado embrionário do projeto em fazer uma mixagem do western ou outros elementos. Apenas são ideias, e com o nosso vocabulário cinéfilo a transformamos em referências. Apenas nasceu naturalmente.

KMF: Mas há aqui uma observação interessante, do qual não falamos até hoje, que é um trabalho de um nível mais profundo em termos da imagem de cinema, que é o facto de, na realidade, termos tido a posse de caras lentes panavision anamórficas da década de 70. Para nós, cineastas brasileiros, é gratificante termos ao nosso dispor um tipo de equipamento, responsável por um certo aspeto que apenas identificaríamos no cinema norte-americano. Uma determinada identidade.

Nos dias de hoje, tendo em conta a tecnologia digital, se não tivermos o cuidado devido, todos os filmes têm exatamente o mesmo aspeto visual. Com isto não estou a querer difamar a qualidade de uma câmara Alexis por exemplo. Mas quando chegamos a um festival e vemos pelos menos dez filmes de diferentes cantos do Mundo, filmados com o mesmo material, apercebemos o quão idênticos são. O que tentamos com isto foi transportar o espectador para umas décadas atrás, e trazer com o vintage uma sensação de novo olhar.

Não com isto afirmando que fomos totalmente bem-sucedidos em todas as cenas do filme, mas foi com este nosso empenho e recursos que atribuímos uma certa familiaridade a estas imagens. Talvez um pouco de Carpenter, Peckinpah, Vilmos Zsigmond, ou até mesmo Spielberg do tempo de “Close Encounters of the Third Kind”, que é uma espécie de imagem à americana …

JD: … até mesmo “Die Hard” [risos].

KMF: Sim, o “Die Hard” é um ótimo filme em termos de técnica.

Em jeito de curiosidade, a região de Pernambuco tem produzido um rol variado de obras de difícil classificação em comparação com o resto do país. Existe aí uma noção de distopia. Ainda há poucos anos assistimos a Reza a Lenda, de Homero Olivetto, que transformava essas paisagens pernambucanas num estilo pós-apocalíptico. Tendo em conta que filmaram lá “Bacurau”, o porquê desta região suscitar um cinema tão característico e, cada um à sua maneira, futurístico?

KMF: Primeiro de tudo, somos de Pernambuco. Contudo, é uma região com uma forte imagética cinematográfica que tem sido alvo de uma riqueza produtiva nos últimos 15 anos. O curioso disto é que está longe dos centros de produção audiovisual, que são no Rio de Janeiro e São Paulo, e que são mais orientados ao mercado mais comercial, especializado, por exemplo, em produtos televisivos ou comédias formatadas para Cinema.

Pernambuco tem-se tornado numa zona de prestígio, misteriosa e casa de inúmeros realizadores que têm gerado filmes muitíssimo interessantes. Claro, nem todos foram êxitos, muitos menos têm a pretensão de serem sucessos de bilheteira, com raras exceções como “Aquarius” ou os filmes de Gabriel Mascaro que têm sido bem recebidos em Berlim.

Diria mesmo que é um cinema muito estetizado.

KMF: Não diria estetizado, mas antes incomuns, fora de tom.

JD: Fora de tom é uma ótima caracterização!

KMF: Para além disso, são bastante autorais, desligando bastante das narrativas básicas e automatizadas, sem com isto assumir um lado experimental, porque a meu ver, até são obras bastante acessíveis, mesmo que alternativas.

JD: Os cineastas da nossa zona tendem em seguir uma direção autêntica, original. Eles valorizam isso. E valorizam de verdade.

KMF: Eu dei muitas masterclasses no Rio e São Paulo e algo que notei é que existe aí uma noção de agradar. O de tentar agradar o máximo possível. O de tentar ser popular.

JD: Já em Pernambuco é tentar ser diferente.

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