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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Manoel de Oliveira “resgatado” da Invisibilidade. Uma retrospectiva Cinemateca Portuguesa.

Hugo Gomes, 11.12.18

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Cristóvão Colombo - O Enigma (2007)

A Cinemateca-Portuguesa Museu do Cinema será palco da primeira retrospetiva integral da obra de Manoel de Oliveira, intitulado de O Visível e o Invisível.

O cineasta português será alvo de revisão e imortalização num programa que arranca no dia em que Oliveira celebraria o seu aniversário (seriam 110 anos, para ser exato), que se prolongará até ao início do próximo ano. Uma iniciativa que pretende celebrar todo o seu percurso cinematográfico, o qual, tirando as óbvias menções das suas curtas, médias e longas metragens, incluirá os seus filmes encomendados que de certa forma serviram de sustento ao realizador.

Talvez envolvido por um certo estigma, suscitado por volta da década de ’80, numa altura em que se edificava ainda mais a barreira entre o cinema de autor e o comercial em Portugal (a desaprovação do seu “Amor de Perdição” foi um dos impulsores dessa corrente), Oliveira foi sempre, apesar de tudo, apreciado pelas mentes intelectuais deste mundo fora, ostentando um cinema de artifícios com um certo primitivismo (salienta-se), que embebia sobretudo de muita da criação literária e teatral do nosso património.

Teatro filmado” como muitos apelidavam (num jeito pejorativo), o cineasta “demoliu” diversas vezes essa barreira tênue que separava as duas plataformas / artes, como é o caso (curiosa coincidência de palavras), “Mon Cas” (“O Meu Caso”, 1986), onde a perspetiva e o contexto entram em acordo com um gesto de recriação narrativa, ou a ópera que vai desconstruindo o glamour associado ao serviço de um crítica social a uma aristocracia decadente em “Os Canibais” (1988).

Como se poderá evidenciar neste ciclo exaustivo em sua homenagem, Manoel de Oliveira nunca foi um realizador de uma só linguagem cinematográfica, aliás, os períodos fizeram parte do seu percurso como um dos mais notórios artistas, seja qual for a arte. Começando no Cinema como uma paixão jubilante, um prazer em filmar que o levou a concretizar “Douro Faina Fluvial” (1931) nas suas horas vagas, Oliveira solidificou a sua visão cinemática através da montagem e o poder desta em prol de uma narrativa. Visto como um dos grandes tesouros da nossa cinematográfica, a curta-metragem contraria o rótulo que mais tarde seria atribuído ao cineasta: o detentor de planos longos, “mortos” e sem conflito.

Os seus primeiros anos foram sobretudo devedores ao poder da montagem (mesmo com “Aniki Bobó”, o seu filme mais popularmente apreciado), até porque Oliveira é um homem do seu tempo, sendo que mais tarde parte para outras aventuras, motivadas por uma acidental descoberta. Através de uma tradicional encenação da Paixão de Cristo pelos habitantes de uma aldeia em Trás-os-Montes durante a rodagem da “A Caça” (1963), o realizador deparou-se com um retrato etnográfico de um Portugal profundo e à sua maneira místico. A visão despertaria ao mesmo um gosto pela teatralidade, pelo afastamento do real (mesmo que encenado) e uma aproximação da moldável fantasia do crer. Tornou-se na formulação de uma perversa docuficção, e assim nasceu “Ato da Primavera" (1962), indiscutivelmente uma das suas obras importantes que acabaria por dar-nos um realizador novo até então. Foi um percurso que o guiou à sua próxima fase, que se poderia resumir em “artística”, visto que nesta mesma etapa salientaria a fixação pelo palco e pelas quebras da canónica narrativa digna do chamado storytelling, recorrendo ao teatro e à literatura.

O Gebo e a Sombra (2012)

A partir dos anos 90’, Manoel de Oliveira, pelo positivo ou pelo negativo, torna-se numa tradição do anuário de estreias, produzindo uma obra em cada ano. Fase que se prolongou até ao fim dos seus dias, onde gerou algumas das mais respeitadas pulsações de criatividade e ao mesmo tempo os seus filmes menores, fruto de um cansaço, uma exaustão alicerçada numa vontade de filmar como uma resistência à vida.

Diversas vezes Manoel de Oliveira apoiou-se na História (“Non” ou A Vã Glória de Mandar” é um dos mais saudosos hinos ao espírito português) e nos escritos de Agustina Bessa-Luís (a qual suscitou 7 obras, não incluindo com isto os diálogos do muito pessoal “Visita ou Memórias e Confissões”, gesto biográfico que é resgatado após a sua morte como um póstumo e novo filme), que validaria um gosto pelos diálogos pomposos, onde a força das palavras proferidas pelo seu grupo de atores (um rol de caras que gradualmente se converteriam em residentes de uma “fundação Oliveira”) salientaria a emotividade do artificialismo.

Os cenários de set, o cinema de estúdio hoje perdido no nosso panorama, a luz que incide em cada espaço com um fixação magnética (a recordar a sua última longa, “O Gebo e a Sombra”, onde a fotografia esteve a cargos de Renato Berta), marcas que se imprimiram na pele de Oliveira, convertendo-o em muito mais que um cineasta, mas um ícone, para o bem e para o mal, colocando o Cinema Português no mapa.

Quando a loucura nos conforta

Hugo Gomes, 09.12.18

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Por mais (más) críticas que existam, assim como desprezo vindo (principalmente) da imprensa portuguesa, “A Batalha de Tabatô” foi possivelmente um dos primeiros filmes nacionais a apresentar uma África sob uma perspetiva fora do olhar colonialista. Uma canção de amor frente ao ódio, assim como mandam as melodias reconhecíveis e imortalizadas de John Lennon. Pegando agora em “Our Madness”, a segunda longa-metragem de João Viana, “Tabatô” ficou além, converteu-se num espectro cada vez mais longínquo (até de certa maneira, parte integrante dessa nova conceção). Nesta nova “loucura”, a narrativa torna-se mais críptica, o simbolismo apodera-se da encenação do real, os horrores tornaram-se abstratos, assim como a nossa memória da história.

Aqui, a Guiné de “Tabatô” é substituída por Moçambique, um país registado pelos olhos da loucura oriundos de um sanatório, onde um muro separa esse biótopo utópico das diferentes devaneações para com o vermelho-sangue dos assombrados. Como Gil Vicente e as suas Barcas Infernais, o Louco corresponde à figura do verdadeiro sem o filtro da cordialidade civil, hoje, equiparado a discursos populistas. Em “Our Madness”, essa loucura materializa-se em fantasias impactantes em direção ao centro da raiva exercitada pela Humanidade. Novamente a Guerra Colonial serve de fronte às sentenças da culpa branca, e a Escravidão um elo para com o ensurdecedor silêncio que se faz sentir.

É um filme que presta no seu “surrealismo”, assim chamaremos com a nossa indiscrição, à vontade de ser decifrado. Contudo, o críptico deste amontoado de representações prende-se, não fechando um filme mas tornando-o vaporoso, não denso, e sim etéreo. As interpretações são múltiplas nesta viagem por uma narrativa quase isenta de diálogos, onde a voz off sussurrante atenta-se de forma xamânica nas diferentes questões (essa encruzilhada representativa leva-nos a encontrar gratuidade nas próprias reinvenções do físico). Desde o país imaginário nunca concretizado, aquele visto pelos olhos do louco(a), ou dos ídolos ocidentais que não se vingam em terras sangrentas cujo vermelhão é diversas vezes filtrado pelo preto-e-branco (a fotografia é da autoria de Sabine Lancelin, que trabalhou com cineastas como Manoel De Oliveira, Raoul Ruiz ou João Mário Grilo) ou até mesmo pelo negativo (o contraste do eros e thanatos).

Our Madness” é assim, uma viagem por grifes da irracionalidade, o único pensamento digno de uma Humanidade em autodestruição. João Viana aproxima-se mais das montanhas sagradas de Jodorowsky, é o diálogo profano a prevalecer sob a naturalidade das coisas. Mas falamos de temas abstratos aqui, o colonialismo continua a prevalecer como algo (não)concreto apenas enraizado na fé de alguns. Tabatô está longe, a Loucura sente-se, e João Viana persiste.

Erradicando o ‘rapaz’ em nós

Hugo Gomes, 07.12.18

Curiosidades-de-Boy-Erased-filme-cancelado-no-Bras

O segundo passo do ator Joel Edgerton na realização faz-se por um filme-denúncia. Remexe nas memórias do escritor Garrard Conley, filho de um pastor Baptista, que após revelar a sua homossexualidade é enviado para uma instituição de forma a “curar-se”.

Boy Erased” apresenta-nos Lucas Hedge (“Manchester By the Sea”, “Lady Bird”) no papel de Conley, que se assumirá como um guia para um protótipo destas casas de conversão gay, sempre pontuado de doutrinas religiosas e alusões a cantos infernais e movimentos pecaminosos. Todo este processo tende em soar como irmão bastardo entre os Alcoólicos Anónimos e um estabelecimento militarizado (aqui até mesmo a posição é sinônimo de virilidade). Este Hedge / Conley evoca-se como um “insider” pronto a esboçar esta realidade ainda existente em terras yankees, fundando assim um encenado documento para com esta desinformação. É como se um artigo da New Yorker tratasse, minado de reflexão e tendências jornalísticas, originando um filme sobretudo esquemático e descritivo onde as personagens não são mais do que meras representações (curiosamente, um dos “utentes” é Xavier Dolan).

Nesse termo, “Boy Erased” justifica a sua visualização para fins de conhecimento e conscientização, o que prova acima da tentativa de Edgerton prevalecer como um realizador de R maiusculo. Endereçado por uma planificação sobretudo académica onde não faltam os graduais fade in e fade outs como mandam as leis emocionais de Spielberg, o realizador parece não ter controlo numa miopia castradora para com as eventuais direções do filme, fechando, ou melhor, enclausurando com uma falsa luz messiânica do que é Cinema.

Todo este processo depara-se com as similaridades do modus operandis destas mesmas “casas”, uma manipulação mental e sentimental que a homossexualidade é anti-natura, assim como Edgerton julga o além-academismo numa anormalidade. Fora do cenário protagonista desta história, o filme tende em solidificar a sua dramatização com momentos pai-filho ou em spotlights repentinos de Nicole Kidman (no mesmo registo de “Lion”, ou seja, uma secundária dependente do seu destacado monólogo), tudo sob a melodia do arrasa-corações.

No final, percebemos duas coisas. Uma é que Joel Edgerton não tem “visão” para realizador (ao contrário de um Bradley Cooper que surpreende em renunciar essa linguagem de “bom americano de estúdio”). Segundo, Lucas Hedge tem a força, mas não a suficiente para realçar este telefilme disfarçado de Cinema.

A infinita tela de Roma

Hugo Gomes, 06.12.18

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Ver Roma num pequeno ecrã deveria ser considerado um crime. É um violento ato de desprezar um filme minado de detalhe, de uma História sobre a estória que ocorre no canto dos nossos olhos (México transforma-se sob a mesma cadência que este seio familiar). Isto tudo para dizer que Alfonso Cuarón regressa à sua infância, aos cheiros e sons proustianos em prol de uma delicada produção, dos ecrãs sobre os ecrãs (magnifica cena no cinema) para germinar uma autêntica erva-rato. É que (regressando ao ponto inicial) ver Roma nos serviços streamings possui o mesmo efeito que hipoteticamente colocar a Capela Sistina num postal adentro (é Cinema sim, mas não no seu formato original).

Sorrentino na mira do populismo num filme-sátiro

Hugo Gomes, 03.12.18

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Mais que uma sátira, “Loro” (“Silvio e os Outros”) é um filme-sátiro, em alusão à mitológica criatura, metade bode, metade homem corresponde à natureza desta ficção de um dos incontornáveis vultos da política italiana.

E já que falamos em caprinos, porque não passar para uma casa ao lado da taxonomia animal e espreitamos o ovino (ovelha) que abre este filme de uma forma metafórica e crítica a todo um conformismo político por parte do eleitor. Induzido num tom jocoso e satírico (não foi de propósito), o animal hipnotizado pelas transmissões televisivas (a televisão italiana, à imagem de muitas, é forte nessa continência populista) sucumbe face à visível ameaça. Hoje, com a ascensão do populismo e dos partidos extremistas, é evidente decifrar todos os símbolos desta abertura, até porque Paolo Sorrentino (cineasta que motiva amores e ódios, todos eles extremos) não é dos cineastas mais crípticos em relação a mensagens subliminares.

Não sendo um campo estranho, visto que já penetraram na política por via de “Il Divo – La Spettacolare vita di Giulio Andreotti” (2008), o realizador alia-se novamente ao ator Toni Servillo para o “camuflar” em mais um animal politizado, neste caso Silvio Berlusconi. O retrato trazido nesta duologia (em Portugal só nos será disponibilizada a versão norte-americana que une os dois capítulos num só) confere todo o caminho de excessos tão habitués para Sorrentino, a criação de uma fábula artificializada de uma Itália que sonha acordada. Através, e repescado a essência do sátiro, há aqui um gesto anedótico de paródia à própria figura central ao mesmo tempo que incentiva um tom humanista no mesmo.

Servillo funciona com o carisma que nos tem grudado desde então (incrível como o filme melhora a olhos vistos apenas com a sua introdução) para nos trazer esta personagem “mascarada”, nunca cedendo nas complexidades que a esquerda teoriza nem a superficialidade própria do moralismo norte-americano (Sorrentino sempre sonha vingar em Hollywood). Aqui todo um espólio e distorção da realidade em prol de uma desconstrução da personalidade, vetor de um filme que esquematiza, não a ascensão política, mas a queda iminente da mesma. Assim, como o protagonista questiona porque não existe um museu em sua honra, Sorrentino sorrateiramente responde com um filme – Berlusconi é um artefacto de exposição, o espectador é assim o visitante. “Loro” é então esse evento que magnetiza em prol de um homem, e que todo o seu biótopo é essencial na compreensão do mesmo.

Só que nesta obra de Sorrentino, assistimos a essa cumplicidade para com o populismo televisivo italiano, desde as demandas pelo videoclipe e a tendência pop do luxo de poucos, “Loro” enverga-se num híbrido entre o comentário político e a modernização de moda. Sim – como gosto de voltar aos tópicos anteriores! – é o sátiro, o meio, meio, o filme que se desdobra em diferentes vontades e gestos. Se por um lado temos a acidez dos diálogos, com mão aberta preparada para a eventual chapada, por outros temos o exibicionismo técnico e o fascínio do grotesco narrativo para o minar, assimilando a complexidade inexistente que a personagem apontou como falha da esquerda.

Obviamente que não há um vórtice político de caras como outra incursão berlusconiana (“Il Caimano”, de Nanni Moretti). Contudo, "Loro" detém alguma compaixão pela figura o que arrasta e igualmente acelera por territórios vastos. Sim, é o tal meio, meio.

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