E é assim ... mais um ano a caminho!
Clark Gable, Van Heflin, Gary Cooper e James Stewart
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Clark Gable, Van Heflin, Gary Cooper e James Stewart
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Estamos em 2018 com uma nova geração, mas devemos partir para 1976 num tempo em que nos deparamos uma Filadélfia decadente, negligenciada e mergulhada em toda uma violência social.
Aí surgiu Rocky Balboa, pugilista de quinta categoria sem classe nem elegância no combate desportivo. Para alguns existe nele potencial, porém, fica-se pelas promessas porque vindo de um circuito pobre como esse, juntamente com a sua falta de ambição, longe nem sequer é considerado objetivo. Balboa é um verdadeiro underdog, até então passivo no seu próprio ambiente. Nesse mesmo ano, outro pugilista surge em frente aos nossos olhos, Apollo Creed, ele é o campeão por direito e, como tal, os desafios tornaram-se escassos. Como forma de marketing (visto que o boxe é um desporto cada vez mais em função disso), os publicistas decidem organizar um combate ao acaso, procurando fora da sua categoria, escolhendo, da mesma forma, um lutador da divisão abaixo.
O resultado caiu na escolha de Rocky. A história, toda a gente conhece, ou pensa conhecer, é bem diferente do que realmente aconteceu. Efeito Mandela? É. Rocky não venceu o combate com Apollo, o filme apenas celebrou a sua oportunidade, nada mais que isso, resultando num hino ao orgulho, acima das vitórias materializadas, o que foi redimindo nas sequelas que seguiram. Mas voltando a 1976, o público torcia pela personagem de Sylvester Stallone depositando nela um estandarte de luta entre classes, a resistência perante elites e a busca pelo “sonho americano”, traduzido nas origens nunca ocultadas por Rocky, ou The Italian Stallion.
Assim chegamos a 1985, com um quarto filme instalado no seu próprio contexto temporal, a Guerra Fria, obviamente cedendo a maniqueísmos evidentes. O conflito entre duas nações emprestado no combate corpo-a-corpo entre dois pugilistas, de um lado o “americano” Rocky sob as promessas de vingança (Apollo Creed foi morto no ringue pelo seu adversário) e do outro o orgulho soviético Ivan Drago (interpretado por Dolph Lundgren). À partida, esta sequela musculada e esteticamente vibrante serve de apoio para esta continuação do bem-sucedido spin-off onde Creed, filho do falecido Apollo, atesta-se como um campeão mundial, contando com o agora reformado Rocky no canto do ringue. E é então que o passado persegue. Ivan Drago regressa, apresentando o seu filho (o lutador Florian Munteanu), constantemente treinado como um cão de guerra, para uma luta a favor da estima perdida.
Mesmo retornando aos ecos da Guerra Fria, que por sua vez nunca abandonaram Hollywood, “Creed 2” apresenta-se como um determinado jogo de legados tendo como o boxe a mais romantizada das suas catarses. Mas algo falha aqui, e não mencionamos a falta que Ryan Coogler faz na direção, um realizador sobretudo tecnicista que atribuiu no filme de 2016 um brilho que se poderia ter esgotado na pré-produção (o substituto Steven Caple Jr. falha na narração, mas solidifica a espetacularidade), até porque recuperar Stallone e a sua mais querida personagem após a melancólica despedida de 2006 (poemas másculos e triviais convertidos a um soneto motivacional) torna-se num gesto ingrato e oportunista. Enfim, o que aconteceu com os novos desafios de “Creed” é que não nos deparamos com o velhinho reconto da ascensão. A personagem de Michael B. Jordan (possivelmente um dos carismáticos atores da atualidade) encontra-se no topo, favorecido, frente a um némesis criado com um só objetivo, vindo de um ambiente que Rocky tão bem partilha em 1976. A juntar a esta equação, a relação frívola com o pai (porta aberta para epifanias de paternidade).
Com isto, vai-se desencadear o seguinte: o espectador apercebe-se que “Creed 2" embica numa jogada de patriotismos escondidos com teorias “batidas” da conspiração embutidas, ao invés de manobrar as emoções impostas no primeiro round. Resultado, caímos no desnecessário para todo um legado, com Sylvester Stallone a servir de gancho para ambos os franchises, e um filme corriqueiro para com a sua receita de eleição. É sim, uma história de ascensão … ou será antes de (re)ascensão, prometendo às audiências um reencontro entre gigantes (a primeira partilha de ecrã entre Dolph Lungdren e Stallone está ao nível das conversas de café entre De Niro e Pacino em “Heat”, de Michael Mann), uma desconstrução do estigma yankee a russos (reprovado) e toda uma teia de relações quebradas e restauradas (o foco devia estar apontado ao inimigo ao invés do protagonista sem nada a perder).
Mas no fim, é isso mesmo: promessas, jabs e uppercuts. Um campeão insuflado.
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Dogman (2018)
Desde “Gomorra” que o realizador Matteo Garrone não recebera tanta atenção. Face à crise do cinema italiano, e cuja opinião dos mais acérrimos cinéfilos, uma cinematografia completamente morta e refém da linguagem televisiva ou da invocação do passado cada vez mais longínquo, Garrone prova ser um dos nomes a ser falados na atualidade.
“Dogman”, baseado num mediático crime real, é a história de Marcello, um homem de bom coração mas apegado à violência do seu meio, um retrato de uma Humanidade constantemente comparada com os companheiros de quatro patas. Castrados obedientes ou rafeiros gerados no ódio, são as inúmeras opções que não conseguem afastar-nos do universo canino, sabendo nós que os cães são fruto da nossa Humanidade.
Falei com Garrone durante a sua passagem em Cannes, festival que premiou o ator e protagonista Marcello Fonte. Foi uma conversa sobre o mais velho dos temas e igualmente o mais atual: a violência da nossa sociedade, do Mundo e de nós próprios.
Um facto é que depois “Tales of Tales”, este “Dogman” leva-nos à mesma essência dos seus primeiros filmes e em especial ao êxito de Gomorra. Foi sua intenção regressar às “origens”?
Existe uma linha, ou conexão, entre os meus primeiros filmes, incluindo o Gomorra e este “Dogman”, até porque tentei esboçar neste último projeto um retrato humanista e densamente psicológico da violência e do ser humano. Interesso-me por personagens em conflito com os seus arquétipos obsessivos e isso reflete na natureza de Marcello, um protagonista que nos faz simpatizar desde os primeiros momentos. É curioso que senti isso quando o encontrei. Ele tinha aquela face amigável e os olhos eram detentores de uma certa doçura. O argumento, esse, foi alterado ao longo de 12 anos, não por causa da pesquisa da minha parte, mas pelas minhas mudanças, a minha relação com a violência mudou ao fim de mais uma década.
E como conheceu Marcello Fonte?
É uma história trágica e divertida, mas mais trágica que divertida. Marcello é um guarda num centro social, onde vive e que participa num grupo de teatro composto por ex-presidiários. Ele entrou nesse grupo pois um dos membros faleceu devido a um aneurisma. Assim, Marcello substituiu-o. Durante o casting que fiz a essa mesma companhia, ele foi selecionado.
Mas esta não é a sua primeira experiência cinematográfica, Marcello fez pequenos papéis em outros filmes e ainda escreveu as suas memórias de infância, a qual adaptou para um pequeno filme que marcou presença em Locarno. Contudo, é em “Dogman” que tem a sua grande oportunidade, até porque toda a obra gira em torno da sua face como um Buster Keaton moderno.
E foi fácil trabalhar com ele? Como o dirigiu e trabalhou a sua personagem?
A sua abordagem foi bastante emocional. Para mim, era o ator ideal, porque o Marcello quando está dentro de cada situação consegue manejá-la com destreza e rigor, quer para o argumento, quer para connosco. Resulta por possuir um passado forte.
A sua interpretação é pura e humanista, foi um perfeito casamento entre a personagem que escrevi e a personagem que se gerou. Por vezes peço ao ator para aproximar-se da personagem. É claro que fizemos ensaios e avaliamos esta visão em relação à história verídica. E sim, de forma a não nos afastarmos do tom pretendido, descartamos imensas partes da história original, incluindo a tortura, a qual não conectava com a personagem que escrevi.
Matteo Garrone
É curiosa essa adulteração para com a história verifica e ao mesmo tempo transformar um facto numa história ficcionada. Ao mesmo tempo, a ficção torna-se mais original que a realidade. Foi por isso que decidiu cortar essas sequências de tortura que tornaram-se mediáticas no crime real?
Sim, foi por causa disso que percebi o porquê desta história estar na minha secretária durante 12 anos. Eu constantemente voltava a ela, mas descartava imediatamente, porque sentia que tudo aquilo era uma “história repetida”, algo que vi diversas vezes na minha vida enquanto cineasta. A ideia de vingança, os fracos sobre os fortes, este tipo de enredo conduzia-me a lugares-comuns. Após essas decisões, deparei-me com um território mais subtil. Falamos de violência, porém, de um modo mais psicológico.
Tirando o enredo, existe uma força cénica. O filme é bastante atmosférico. Foi sua intenção a escolha do dito cenário?
O cenário é propositado. É um espaço que liga à história e por isso torna-se numa personagem própria. Para além da vila trazer um certo ambiente western, é uma personagem coletiva, e tentamos usar isso para alicerçar a personagem de Marcello. É importante para a história percebermos como a comunidade vê Marcello e como o julga. Essa relação entre o protagonismo e os elementos cénicos leva-nos a um filme quase à parte. Digo isto, até porque na primeira parte de “Dogman” encontramos um ambiente bem solarengo e na segunda um clima bem chuvoso e negro. No primeiro tópico, este cenário foi um achado, a luz insere-se perfeitamente.
Martin Scorsese referiu que para os seus contos de violência, inspirava-se em acontecimentos vividos pelo próprio. Questiono ainda, visto que Garrone aborda esses territórios de certa maneira “scorseseanos”, como é encontrar a ética na não-ética destes enredos?
Uma coisa é certa, a violência está em todo o lado. Por exemplo, na escola, entre os miúdos ou até mesmo na relação entre um homem e uma mulher. Graças a esta violência omnipresente, tentei criar Marcello; um indivíduo sensível, criado num mundo de violência, onde o medo o levará a estes trilhos. Aliás, é o medo a maior das vias para a violência, assim como é uma importante ferramenta de controlo político.
O que tento dizer é que a violência é invisível, não é preciso ir para Gomorra, por exemplo, para deparamos com isso.
Mas em “Dogman” encontramos contornos de neorrealismo, principalmente no retrato da comunidade da vila.
De facto, inspirei-me no cinema de De Sica, o seu modo de interpretar o género. O neorrealismo foi um modo moderno de fazer cinema e é a partir daí que a abordagem dos meus filmes arranca para depois pegar em tal material e reinterpreta-lo para uma nova dimensão, que diria abstrata.
Mas repare, mesmo sobre diferentes abordagens, todos os meus filmes remetem ao mesmo tema. Retrato obsessões, desejos, sentimentos, arquétipos, por outras palavras, falo sobre a natureza do ser humano. Conforme a dimensão que seja.
Tive a sensação que as personagens humanas foram criadas à imagem dos cães.
Sim, de certa maneira, o filme, novamente repescando a temática da violência, retrata a relação canina para com esta. E nesse sentido tentei criar as personagens humanas como cães, e a personagem de Simon é um exemplo disso. Para ser mais específico, ele é praticamente o cão raivoso que surge inicialmente em “Dogman”.
Dogman (2018)
Podemos falar do final. Um pouco pessimista, não? Ou reformulando – descrente para com o destino da Humanidade.
Dentro do mecanismo da violência não há vencedores, principalmente se fores um indivíduo pacifico que foge constantemente dessa veia. É uma questão de sobrevivência. Porém, mesmo para esses “pacíficos” que repudiam toda a violência existente nas suas vidas, eles acabaram, de uma maneira ou de outra, a tornarem-se vítimas desse sistema. Morrerá algo dentro de ti, quer queiras, quer não. Não se pode escapar a estes mecanismos, nem mesmo quem procura justiça. Porque até mesmo esses colocam mais violência nas suas vidas e no geral. Violência gera violência, não há maneira de fugir a isso. É simplesmente instinto.
Mas Marcello não é nenhum herói, nem sequer o exemplo perfeito de isenção da violência.
Vamos ser claros aqui, eu não criei Marcello de uma forma tão inocente assim. Ele é um traficante de drogas e por vezes cúmplice dos impulsos violentos de Simon. O que tento dizer é que a inocência assim como a violência são complexas e ambíguas. Marcello é a representação disso, o anti-maniqueísmo.
Se olharmos com atenção, e mesmo não ignorando esses gestos criminais, Marcello é uma personagem movida pelo amor e cheio dele.
Uma pergunta descontraída, tendo em conta o filme, gosta de cães?
Eu cresci com cães e por isso tenho afeto enorme por eles.
Quais foram as suas influências cinematográficas em “Dogman”?
Como referi, para além de De Sica, a minha grande referência são os filmes de Buster Keaton. Contudo, quando nós realizadores concebemos um filme, apropriamo-nos de vários elementos e influências. Mas sim, Keaton foi a minha principal inspiração para criar a personagem de Marcello, assim como Chaplin e todo aquele dócil carisma. Mas também posso afirmar que pensei muito em Pasolini enquanto fazia este filme.
Curioso falar de Pasolini, senti por vezes estar a assistir uma espécie de atualização desse cinema.
A verdade é que estou a ficar velho e apercebi-me disso durante as filmagens de “Dogman”, em que encontrava similaridades destas cenas com os meus outros filmes [risos]. Mais do que me inspirar em Rosselini, Pasolini ou outros, começo a cair em déjà vu e cito inconscientemente os meus próprios filmes.
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Brigitte Bardot e Franco Interlenghi celebrando o Natal nos bastidores de "En cas de malheur" / "Love is My Profession" (Claude Autant-Lara, 1958)
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É triste para mim, não apenas pelo facto de mais um cinema estar a fechar, mas sim pelo cinema em questão. Aquele que me acompanhou durante quase metade da minha vida. Recordo as tertúlias passadas, os filmes e as sessões, as namoradas, amigos e familiares que levei, e, acima de tudo, o ambiente que se distinguia das cadeias de fast food dos multiplex. É uma dor profunda, simplesmente dói, apesar do que possam dizer as más línguas.
Nesse último ponto, pegando num dos assíduos e famosos espectadores destes cinemas: “quero que as más línguas se fodam”.
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Entramos aqui de porta escancarada num pleno paradoxo. Se por um lado, este “Bumblebee” será para muitos dos adeptos da saga (e não adeptos) o “mais filme” dos sete (saliento com isto a comodidade da narrativa de três arcos e dos reconhecidos elementos que formam, por exemplo, os êxitos crowd pleaser), é também o menos personalizado. É que, para o bem ou para o mal, os tiques visuais e a megalomania de Michael Bay atribuíam a este franchise uma “casa à sua marca autoral”. Mesmo com o sufoco narrativo, perversamente esmagado num sexto filme, havia uma liberdade que se sentia nesta jornada cinematográfica dos famosos produtos da Hasbro.
É certo que de Bay existe uma presença tóxica que por si só afastou “The Last Knight” do habitual target de audiências (605 milhões não é nada em comparação com a entrada na casa dos mil milhões de dólares dos capítulos anteriores). Com “Bumblebee”, focando sobretudo na origem do carocha que sempre se pontuou como um dos favoritos dos fãs, Travis Knight (vindo das animações stop-motion da Laika) prescreve um filme anacrónico da cultura-pop dos anos 80 (moda nostálgicas … check), sob a vencedora pasta de “family-friendly” como os norte-americanos gostam de apelidar. Ou seja, povoando um território mais familiar, mais contido (até mesmo as sequências de ação são mais elegantes e perceptíveis), este spin-off/prequela de “Transformers” é uma fórmula vencedora no que requer a citar os atributos desejados do público mainstream.
Convém salientar que a sobriedade de Knight no storytelling concentra aqui a sua melhor qualidade/ambição, extraindo da loucura à lá Bay estas personagens e insemina-las em fertilidades “spielbergueanas” (Steven Spielberg mantêm o seu cargo como produtor). Porém, como entretenimento, "Bumblebee" abdica da espetacularidade em nome da arte de contar uma história para as massas. Infelizmente, é com isso que se converte em “mais um filme”.
Profundamente despersonalizado e anónimo, Travis Knight (mesmo tendo entregando a preciosidade de “Kubo and the Two Strings”) é um jogador fiel às suas regras e Michael Bay um desalmado que mina os seus filmes de devaneios catastroficamente artísticos (goste-se ou não, há que reconhecer que Bay é um autor destes novos tempos) que pouco quer saber desses mesmos regulamentos da indústria. No final, só um ficará para a posteridade. As nossas apostas estão nos “trambolhos” narrativos de Michael Bay.
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Glauber Rocha
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Este Mundo precisa da existência de um Lars Von Trier e antes que comece o apedrejamento, solicito a liberdade de argumentar.
Precisamos de um autor. Sim, leram bem, autor, como o dinamarquês nesta indústria que muitos, como ele próprio, gostam de chamar arte (convém também dizer que o Cinema em si está acima da indústria e do veio artístico, mas isto não é desculpa para adorar ou odiar Von Trier e as demandas de ego). Alguém que assume a sua loucura para filmar, alguém que desafia a homogeneidade quase provocada pelos movimentos samaritanos e do politicamente corretos. Este Mundo necessita de provocadores, conforme seja o “lado do vento”, precisa de “irritações” como diria o dramaturgo brasileiro Dias Gomes: “Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada”. O pior é somente levá-lo a sério.
O choque inicial tido neste “The House that Jack Built” é sinónimo dessa procura pela provocação, porém, ao contrário de um Gaspar Noé, por exemplo, Von Trier não pretende causar uma experiência sensorial. Por mais gore que sejam as imagens transmitidas (um macabro que não poupa ninguém), a grande provocação encontra-se nas suas palavras, nos relatos ideológicos que nos enviam diretamente para uma espécie de inferno. Custa-nos de certa maneira engolir todas aquelas teses, custa-nos a acreditar que estas são apenas fabricações da ficção, custa-nos pensar que tudo isto não passa de um disfarce. É preocupante um filme como “The House that Jack Built”, o conto de serial killer narrado na primeira pessoa, olhado na primeira pessoa e pensado na primeira pessoa, não partilhe a mesma crença que o seu criador (há aqui qualquer de perturbador como em “Henry: Portrait of a Serial Killer”). Esta linha umbilical entre criação e criador cria desconforto, acima das tentações consumadas pela personagem de Matt Dillon, arquiteto que descobre o prazer na “matança”, o artista frustrado que assume a carnificina como ópio toxicológico.
Lars Von Trier resolve replicar o dispositivo narrativo do anterior díptico “Nymphomaniac”, dividindo a intriga episodicamente (neste caso por ‘Incidentes’) e presenteando com uma voz-off que oscila entre a narração da ação com a leitura da situação. Mas a semelhança termina aqui, Lars Von Trier possui uma espécie de firewall nesta visão de psicopata, enquanto nos indignamos com a voz de Matt Dillon a especificar, comparar e a reduzir todos os seus grotescos atos em ‘Arte’ (Art is Everything ali, Art is Divine acolá), existe a presença de uma segunda narração, uma voz que debate-se com a do nosso psicopata, uma consciência que não se assume imperativa e pedagogicamente totalitarista. Esta voz, pertencente a Bruno Ganz, questiona todas as afirmações solidamente acreditadas pelo maldito protagonista, e as suas questões importunam, intervindo como moderador do tom sádico-demente que poderia expandir para territórios obscuros.
Obviamente que toda esta linguagem, discursos de caçador em vanglória dos seus troféus, acompanhado com um visual trabalho no contexto-choque, o gore, o esperado macabro trazido para envergonhar Anticristo, chega para desmontar os sacrilégios códigos do terror. Entre essas imagens que nos fazem temer, Lars Von Trier comete o “atentado”, ou diria antes os “atentados”, da morte, tortura e deturpação de crianças, esses símbolos da inocência que se demarcam como as saídas da sensatez para muitas obras do género. E estando a “apedrejar” esses mesmos símbolos, a destruí-los por completo, “The House that Jack Built” abre uma porta para uma patologia sanguinária sem limites.
Essa “ilimitação” leva-nos a uma revelação: a ida do inalcançável, do objeto de tentação, a catedral invertida onde todos os pecados da Humanidade são depositados, gritando em uníssono. É aí que o filme assume com clareza a sua demência. Assume a arte como uma escapatória para os seus medos e acima de tudo as suas ofensas. Revela-se conhecedor de Goethe e de Dante Alighieri, cruza ambos os universos para nos transmitir uma resolução-raiz quadrada dos percursos faustianos, para no final ceder à mais mortífera de todas as piadas (sim, porque a vida tem o seu ar de comediante).
Aliás, não será o filme um experimento de comédia negra? Nesse caso, Lars Von Trier poderá ser o nosso comediante nesta distorcida Comédia Divina.
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Como um recente programa de culinária, o termo “receita com twist” pode muito bem ser aplicado nesta estreia no universo das longas por parte do jovem Lukas Dhont, que cita a sua anterior curta “Corps Perdu” (2012) como um corrimão de apoio para um inesperado bailado. Esse, não literal à temática secundária do filme, que funciona ao jeito de uma prolongação “distópica” a Billy Elliot (a diluição de géneros para rompimento das leis embaladas da nossa sociedade, que assumem, acima de tudo, patriarcais), mas na consistência da sua narrativa diurnal, periódica nas fases de um jovem transgénero que se desfila perante o baile da sua autodeterminação.
Assim, sem mais demoras e na viabilidade de chocar o espectador com a “estranheza” do (não)reconhecimento, somos apresentados a Lara (Victor Polster), jovem ansioso pela sua mudança radical (impacientemente ansioso acrescente-se) e com isso seguir o sonho de se tornar bailarina. O que impede é claramente uma certa dissertação inerente, um isolamento emocional por parte da sua inadequação que o afasta dos demais, principalmente da família que abraça a sua causa como derradeira missão ou das paixonetas, tão particulares em verdes anos que surgem como turbilhões identitários.
Tendo em conta a generalidade dos contos transgéneros, o bullying físico-psicológico é algo abandonado por Lukas Dhont. O seu reconto nesses aspetos cada vez mais debatidos e urgentes parte vão em investida direta com as questões sentimentais do protagonista ao invés de focar numa sociedade em repudia perfeita. O que vemos, nessa questão social, é uma comunidade aberta e receptiva a essas mudanças fisiológicas e de status, e é através disso que deparamos com outro tormento a transientes, a sua auto-inserção /aprovação.
Lukas Dhont estabelece um quadro-cotidiano desta Lara, embarcando num realismo formal, mas completamente orgânico para com a câmara, ponto que viabiliza as sequências de dança no atelier com uma vibrante sincronia. Obviamente que esta carnalidade da câmara com a ação é fortalecida em efeito à dedicação e exposição do ator e dançarino Victor Polster. É inegável o seu estado de graça, contagiante … aliás, diria antes, transparente e transpassável (a transição funciona como um elo mais abrangente que a temática sexual, a ligação crucial entre espectador e filme / nossa realidade com a realidade filmada). A sua sensibilidade, a sua melancolia desgastante e por fim a sua dor, simples processos de fenomenologia, pontuam como triunfos nesta relação de confidências entre realizador e ator.
Cumplicidades que nos guiarão cegamente para o mais cruel dos desfechos. Lembram-se das “receitas com twist” … pois bem … o que aparentemente era mais um exercício de quotidiano encenado, revela-se numa provocação. Em seu jeito, uma prank, sob o gesto de abanar consciências, mais que simples éticas sociais, a da natureza inconformista e inquieta do ser humano, o impulsor desta jornada de sentidos e sentimentos. Uma das grandes estreias no “cinema para grandes”, Lukas Dhont é [indiscutivelmente] um nome a seguir.
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"Permission to come aboard."
Longe dos fundamentalismos (ou “fanatismos”) por trás dos universos partilhados MCU (Marvel/Disney) e DCEU (DC Extended Universe), venho defender uma “impopular” perspetiva. A nível formal as apostas da Warner Bros. ostentam uma certa personalidade individual que entram em conformidade com o respetivo “maestro” do projeto, enquanto a Marvel / Disney (com exceção das incursões de James Gunn e Taika Waititi), preservam uma coerência visual e narrativa em nome do seu franchise, quase requisitando uma linguagem no contexto do seriado. A junção DC / Warner opera através de filmes desengonçados na sua natureza de partilha de um ecossistema, respeitando sobretudo o estilo ou os elementos característicos do seu realizador.
Evidentemente, e usando como exemplo os tiques estéticos que traçavam uma narrativa sobretudo visual de Zack Snyder em “Batman V Superman: Dawn of Justice”, as tentativas de um neo-noir pós-Training Day de David Ayer em “Suicide Squad” e a sensibilidade da construção de personagens femininas em “Wonder Woman” (é importante sublinhar o “tenta-se”), nenhum destes capítulos se interligam da maneira mais orgânica. Portanto, não cedendo em miopias de quem faz melhor ou pior, é certo que neste “Aquaman” assistimos novamente a essa corrente da “tentativa” autoral, desta feita com James Wan a ganhar o gosto pela grande produção, a trabalhar sobretudo os espaços como tem feito com algum sucesso em recentes e inauguradas sagas como “The Conjuring” e “Insidious”. Essa relação é sobretudo adaptada para com a natureza deste filme que segue o ressurgimento de Arthur Curry como Aquaman, herói da DC que tem sido anos a fio envolvido num certo tom anedótico.
James Wan não tem a visão milimétrica com que engenha os jumpscares dos seus habituais “palcos dos horrores”. Pegando como exemplo a primeira sequência de ação, onde Nicole Kidman luta contra um punhado de guardas atlantes dentro de um farol (importante referir o reduzido espaço cénico), a câmara em ponto semi-zenit mapeia todo o campo, medindo a sua dimensão ao mesmo tempo que incide como um olhar atento à decorrente ação. A partir daqui, surge, ponto a ponto, esse cuidado cénico e a cumplicidade desta para com o movimento das suas personagens (a destacar uma materialização CGI do tão mítico poster de “Jaws / Tubarão”, auferindo ao espectador uma visão unidimensional da própria ação). Em palavras mais precisas, "Aquaman" joga com pequenas pitadas de dinamismo técnico-narrativo, as imagens-ação em voga com as imagens-tempo (citando Deleuze), tudo em função de uma invisível arquitetura de arcos narrativos.
Por outro lado, esta nova aventura da DC experimenta, a nível tecnológico, novas realidades e possibilidades na criação de mundos artificiais. Em jeito de “Avatar” de Cameron (para referir essa perfeição nos mandamentos de George Lucas – as mil e uma possibilidades graças à “autenticidade” do CGI), o filme de James Wan ousa em corporalizar uma Atlântica submersa, como toda uma ação / conflito decorrido debaixo de água (ou até os diálogos envolvidos num certo eco adquirem essa (in)coerência possível).
É verdade que depois desta proposta seguimos um brindar da tecnologia e do visual colorido em modo de um espetáculo circense, mas convém referir que para o bem ou para o mal, “Aquaman” é um filme antiquado (e não menciono das pequenas essências shakespearianas), exibindo virilidade (o facto de termos Dolph Lundgren por estas águas, aprofunda ainda mais essa sensação) e um espírito aventuroso que o afasta das demais incursões do subgénero. Esta sua atitude leva-o a uma tendência auto-jocosa e é possível imaginar que se este mesmo filme fosse reproduzido na década de 80 ou 90, seria protagonizado por um Arnold Schwarzenegger ou Sylvester Stallone.
Contudo, sem fazer muito pelo cinema de super-heróis ou ser uma ode do blockbuster americano, Aquaman apura-se como um entretenimento de certo aprumo, aptidão e de constante busca por uma identidade (sabendo nós, que tenta prevalecer e definir o franchise construído por pesados, mas poucos passos). Pelo menos existe um espírito mais “Star Wars” que as últimas variações da saga.
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