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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Assédio: Bertolucci filmou um filme fora do seu tempo

Hugo Gomes, 28.11.18

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Depois de Beleza Roubada (1996), Bertolucci avançou para a história original de James Lasdun que aborda as questões dúbias de uma exilada.

O cineasta altera, em consolidação com a escrita da também realizadora Clare Peploe, nacionalidades e ambientes estabelecidos pela imaginação de Lasdun. Enquanto o escritor centrava numa latina que sobrevivia em Londres, L’Assedio apostava numa queniana, interpretada por Thandie Newton, que tenta a sua sorte em Itália, dividindo os seus dias entre a escola médica (uma licenciatura que faz com esforço e dedicação) e do trabalho-a-dias na casa de um pianista (David Thewlis). Quando o artista/patrão começa a interessar-se amorosamente pela rapariga, esta fica dividida pela vida que optou e pelo marido deixado no continente africano, um prisioneiro político. E a partir daí surge uma relação de persistência, desejo e sobretudo, ambiguidade.

Originalmente tido como um projeto televisivo, em L’Assedio o realizador prezou numa intriga salientava o poder da narrativa imagética do que a imperatividade dos diálogos. Como o próprio indicava, após uma série de grandes produções, era o seu desejo conceber um filme como uma “partitura musical”. A crítica dividiu-se entre esta sua decisão de narração, mas elogiaram sobretudo as panorâmicas que centravam a ação numa Roma em ruínas (nos arredores da famosa Piazza di Spagna) e no apartamento onde o poeta e dramaturgo Gabriele D'Annunzio escreveu um dos seus romances mais famosos - Il Piacere.

Atualmente, é visto como um dos filmes mais desprezados da carreira do realizador (possivelmente uma obra que não sobrevive ao teste #metoo de hoje) que na altura se esforçava para o filmar. Bertolucci o rodou sob tamanha dor, sendo que pouco depois do fim das filmagens teve que ser submetido a uma cirurgia a uma hérnia discal. Curiosamente, para o realizador brasileiro Fernando Meirelles, que assumiu L’Assedio ser um dos filmes prediletos, declarou como uma das influências técnicas para o seu Cidade de Deus.

 

"Beautiful Boy": a paternidade posta à prova

Hugo Gomes, 28.11.18

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Tendo em conta a temática comum entre os seus filmes, parece que Felix Van Groeningen possui uma questão paternal por resolver e a sua obra ressoa como um ensaio de voluntária psicanálise. Porém, fugindo a qualquer tentativa de divã, é de evidenciar essas questões presentes na sua recente filmografia, a começar pelo grandíssimo “The Broken Circle Breakdown”, o relato da dor vivida entre um casal que acaba de perder a sua filha, passando por “Belgica”, filme onde adapta as memórias do seu pai e agora com “Beautiful Boy”, que através de duas biografias costura a resistência e embate de um progenitor que lida com a toxicodependência do seu “rebento”.

Tendo como linha os livros de memórias de David e Nic Sheff (pai e filho), "Beautiful Boy" foge da corrente dos supostos filmes de superação pelo simples virar do holofote. A recordar exemplos como “The Fault in our Stars” (“A Culpa é das Estrelas”), que sob uma abordagem puramente adolescente, contraía a história de doença e resistência no epicentro da dor, elaborando com isso um filme egocêntrico, egoísta e demasiado martirológico (sem também falar das grandes “demências” deste trabalho pueril). No filme de Van Groeningen, à imagem de “Broken Circle”, o foco não é quem vive a dor, mas quem convive com essa dor, o segundo elemento da dita superação é sobretudo, neste caso, a família, que sofre e desespera e é nesse duo sentimental que nos identificamos (deixando com isso de serem meros ‘bonecos´ como são representados no anteriormente referenciado filme de jovens). E com este foco alternativo, o elemento de superação renuncia à sua apresentação como tal.

O que está em jogo não é mais esta esperançosa arte de motivação, “Beautiful Boy” desliza pela delicadeza, pelo arrasto e cansaço das personagens, um caso que soa ao de um milhão, e Van Groeningen fá-lo pela decência das mesmas (um imprescindível Steve Carell e um Timothée Chalamet a provar a sua garra de promessa). A composição de uma narrativa intercalada e temporalmente desmontada (como fizera com “Broken Circle’”) valida ainda mais a transfiguração representativa dos seus protagonistas, os “meninos bonitos” que se convertem “rebeldias autodestrutivas” e os pais presentes que ocultam o desejo de fuga fácil.

Sim, “Beautiful Boy” (referência direta ao single de John Lennon, novamente, demonstrando a “bom ouvido” do realizador) é uma obra que cospe na cara das milésimas Luas de Joana e afins, é a história da simplicidade (sem insinuar o simplismo do conflito), da confraternidade e mais uma vez da importância da paternidade. Mesmo que por vezes soe quase eunuca, impotente perante tais batalhas inesperadas.

Falando com Hirokazu Koreeda, o japonês de primeira linha

Hugo Gomes, 22.11.18

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Shoplifters (2018)

Foi com uma família de pequenos ladrões que o cineasta japonês Hirokazu Koreeda conquistou a Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Durante a sua passagem na Riviera Francesa, a sua mais recente obra foi celebrada por todos que o viram, inclusive Cate Blanchett, a presidente de júri que não conseguiu disfarçar a sua comoção.

Shoplifters é um filme que culmina nos mais diversos e reconhecíveis elementos da carreira de um dos mais citados dos realizadores nipónicos modernos. É o regresso ao conto das “famílias fabricadas”, aos afetos quase inexistentes de uma sociedade aprisionada à solidão e ao individualismo e as pertinentes questões do sistema prisional e judicial.

Tive o prazer de falar com o realizador sobre o seu laureado trabalho e dos seus processos de criatividade.  

Quer falar-nos como surgiu esta ideia e se ela tem algo relacionado com a sua experiência? Possivelmente com a sua juventude?

A minha infância foi diferente daquilo que se vê em Shoplifters, de certa maneira. Vivi num apartamento pequeno com a minha família, se bem que baseei a história através da minha perspetiva e observação aos mesmos. Porém, aviso … não éramos “shoplifters” (ladrões de supermercado) [risos].

Com o tempo, a mesma história foi contagiada com diversos eventos que via nos boletins noticiosos. Uma coisa é certa. O Japão tornou-se gradualmente num país de classes maioritariamente médias e altas, mas ainda havia uma camada marginalizada que subsistia do part-time e dos subsídios sociais e outras ajudas do Estado. E por causa disso, o que assistimos no filme – fraudes nas pensões – acontece frequentemente. A família não anuncia a morte dos seus anciões de forma a continuar a receber a pensão, crucial para a sobrevivência. O filme não foi baseado em nenhuma história verídica, mas possivelmente em muitas.

Em Shoplifters deparamos com uma marca sua, o retrato de um coletivo ao invés de se focar numa personagem só.

Penso que o fiz em Air Doll. Curioso é que existem muitos jornalistas que lançam essa questão. Sinceramente não estou muito interessado em elaborar uma personagem central, as histórias que abordo são propícias ao coletivo.

A família é uma boa maneira de contar a história de uma pessoa, porque é através do conceito de família que encontramos tudo o que precisamos para entender e desenvolver a personagem, sobretudo sob uma perspetiva emocional. Por exemplo, gosto muito de trabalhar com personagens femininas, as mulheres  criam melhor esses laços afetivos, dentro e fora do circuito familiar. É nesse mesmo que desenvolvo as minhas personagens, num ensaio de união e confraternidade.

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Eu e Hirokazu Koreeda

Como muito da sua obra, em Shoplifters tenta sobretudo entender esta família em vez de expressar o seu ponto de vista.

Em termos sociológicos, comecei a minha carreira de cineasta como realizador de documentários para televisão, sendo que, com isso, priorizei uma atitude observacional. Para mim o importante não é a expressão, por mais que diversas vezes queira o fazer, mas sim a descoberta. Tenho em conta que as audiências possuem cada uma delas um ponto de vista e uma perspetiva. Em Shoplifters, a importância era o de observar esta família e aprender através dos seus atos, e faço-o prestando tudo aquilo que descobri no ramo do “storytelling”.

Conheceu alguma família assim nesse processo observacional?

Não conheci nenhuma família de “shoplifters” se é isso que me pergunta, mas fui a diversas casas de acolhimento para crianças e fiz uma intensa pesquisa sobre o sistema, como funciona, como atua e as suas falhas.

Repescando outra marca autoral, tendo em conta o seu “Like Father, Like Son” (“Tal Pai, Tal Filho”) e este ``Shoplifters'', tem abordado sobretudo o conceito de família. Eu, enquanto ocidental, tenho a ideia que no Japão há uma prioridade nos laços sanguíneos, mas Koreeda literalmente diz que a estrutura de toda a família está no afeto?

As famílias destes dois filmes são exceções e a imagem que se tem sobre o Japão é quase exata. Nós valorizamos as famílias unidas pelo sangue, e por norma olhamos para as “famílias fabricadas” com uma certa frieza. Porém, estas personagens - que se juntaram - foram abandonadas pela sociedade, tendo em comum a sua marginalidade, apoiando-se e encontrando conforto e afeto em cada um desses elementos. O que pretendo é que as audiências simpatizem com eles, mas acima de tudo, percebam das causas que os levaram a esta união. Demonstro isso através dos sentimentos que nascem nesse mesmo conceito de família.

No seu filme também aborda outra questão que tem sido ligada à condição da sociedade japonesa – a solidão.

Temos uma expressão, que tem sido utilizada cada vez mais nos últimos anos, que significa mais ou menos isto: “fazer as coisas por nós próprios”. Por exemplo, se nós queremos ir a um restaurante, vamos, mesmo que sozinhos.

Julgo que a grande dificuldade da sociedade japonesa é o de lidar com a diversidade. Existe muita pressão para os casais, o casamento é quase visto como uma obrigação do que qualquer outra coisa, e como tal os japoneses mais jovens têm apostado sobretudo no individualismo ou simplesmente na vida como casal, ao invés das numerosas famílias.

Eu não quero impor essa ideia de conceito familiar, mas nas últimas duas décadas o sistema económico entrou em recessão, o que tem providenciado essas tendências. Onde era comum encontrarmos casas habitadas por seis gerações numa família, hoje deparamos com casais ou individualistas.

A única coisa que tenta contrariar essa mesma tendência é o estatuto, mas isso tem impulsionado a ascensão do nacionalismo, o que tem pressionado diversas famílias.

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Air Doll (2009)

E quais serão as causas desse nacionalismo?

Quando o sistema económico está em queda, culpamos sobretudo os imigrantes. O nacionalismo é uma raiva direcionada.

Nos seus filmes existe uma certa sensação de improvisação por parte dos atores. Como os dirige? Quais os seus métodos de trabalho neste ramo?

Não existe muita improvisação nos meus filmes, ao contrário do que as pessoas pensam. A questão é que nunca termino os meus argumentos antes de começar as rodagens. Aliás, só começo a filmar quando começo a escrever o argumento. Isso dá-me manobra criativa e perceção para entender que rumo seguir com a história que estou a desenvolver. E em cada dia de filmagens, reforço ou reformulo o guião.

Constantemente procuro algo nos desempenhos dos meus atores, uma matéria orgânica que os envolve juntamente com as personagens e o meu guião. O meu trabalho é sempre mais difícil porque o argumento está em gradual transformação.

Existe uma cena em Shoplifters, onde várias personagens são interrogadas pela polícia em que não preparei os meus atores com nenhuma fala definida. Eles desconheciam as perguntas que a polícia iria fazer. Este é o tipo de improvisação que faço, à procura do momento e do efeito genuíno.

Mas mesmo assim, filma cronologicamente?

O quanto possível.

Nota-se que tem um certo carinho por estas personagens, por esta família.

Eu amo esta família, mas o facto de declarar esse amor não quer automaticamente dizer que concordo com eles em tudo.

Gostaria que falasse da fotografia deste filme. Os tons coloridos mesmo num quotidiano acinzentado.

Julgo que Ryûto Kondô é um dos melhores diretores de fotografia do Japão e foi um prazer trabalhar com ele. Quanto à questão das cores, mesmo em tentar apostar num filme de teor realista, sinto que na observação do quotidiano, procuramos uma certa poesia e o embelezamento trazido por esta pode muito ser representado pelos tons. Debati muito com Kondô e acordamos naquilo que procurávamos. Hoje olho para o filme e apercebo-me do excecional trabalho da sua parte.  

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Shoplifters (2018)

É habitual fazer esta comparação, mas queria diretamente questionar-lhe. Acha que é o herdeiro legítimo do cinema de Yasujiro Ozu?

Muitos dizem que sou o seu neto, mas posso certificar que não tenho qualquer relacionamento com ele. Ozu é um grande mestre, mas estou sempre a afirmar em entrevistas que conscientemente não o refiro nem o tento imitar nos meus filmes. Porém, essa comparação é um enorme elogio, eu sei e acabo por não resistir.

Com este filme quis retratar um casal, julgo que por isso sou mais Mikio Naruse que Ozu, e pelo meio desse retrato tentei abordar toda uma sociedade envolta como o Ladybird Ladybird de Ken Loach, que foi um dos filmes que me inspiraram, assim como o Boy, de Nagisa Oshima. Nesse filme damos de caras com uma família disfuncional que atravessa o Japão e que voluntariamente submete-se a atropelamentos para extorquir dinheiro. Vi esse filme no processo de conceção de Shoplifters.

Como costumo dizer, como cineasta levo comigo uma variedade de DNA.

Como vê a indústria de cinema no Japão atualmente?

Está constantemente a piorar. Algo que tenho percebido é que existem cada vez menos participantes japoneses em eventos como Cannes.

Há cinquenta anos atrás existiam mais cineastas independentes e distribuidores que gostariam de trabalhar com eles. Atualmente, os grandes estúdios têm uma visão muito limitada e apostam quase exclusivamente no mercado interno. Olhando para o lado independente, encontramos uma vaga talentosa, mas também ela a decrescer devido a isso mesmo, o pouco interesse no mercado japonês. Julgo que o Japão está a tornar-se cada vez mais fechado e isso é algo que devemos impedir e atuar. 

O frágil som da alma

Hugo Gomes, 18.11.18

46508138_10212775043547811_3905543852517228544_o.jHoje presenciei e participei num workshop de performance e a minha memória automaticamente me transportou para o esquecido … reformulando … muito esquecido Before We Go, de Jorge León. Filme-ensaio que passou em Lisboa, meio despercebido numa edição do Indielisboa, é um retrato do fim de vida, uma eutanásia aos nossos projetos e ambições, erguido sob o formato de uma prolongada performance. Os corpos decadentes em contraste com a jovialidade dos descendentes e os anjos, entidades que ecoam singles de Nick Cave, a pronunciarem uma segunda e derradeira juventude.

Um filme assombroso que nos toca delicadamente nas nossas respetivas carapaças, endurecidas mas não imunes à fragmentação. Somos humanos porque sentimos, e sentimos porque somos humanos.

Há cinco anos que encontrei o meu lugar ...

Hugo Gomes, 16.11.18

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Cinco anos passam e nem sempre passam furtivamente, mas ao lidar com certos fantasmas apercebo dos sacrifícios cometidos, aqueles que só uma pessoa apenas fez e faz por mim.

Penso desculpa por estar a ser críptico. Não quero me expor a nu.

Quanto à foto, Visita ou Memórias e Confissões de Manoel de Oliveira, numa das cenas chaves para o filme, assim como para a minha "persona".

 

Falando com Beatriz Batarda, a nossa "Sara", a atriz do choro e do riso

Hugo Gomes, 16.11.18

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Foto.: Hugo Gomes

É de facto uma das “caras” mais reconhecidas do cinema português. Beatriz Batarda irá transitar para um novo universo, as séries de televisão e estreará com Sara, um ensaio meta-narrativo de uma atriz de drama que perde a capacidade de chorar e embarca numa jornada ao reencontro do seu “eu”.

A atriz, conhecida pelos seus trabalhos em obras de João Canijo, João Botelho, Margarida Cardoso, Manoel de Oliveira e, claro, Marco Martins, falou sobre a nova aposta da RTP e as escolhas dos atores, mais precisamente, as suas escolhas de carreira.

Confesso que estive a procurar qualquer indício de trabalho na televisão portuguesa. Como não encontrei, presumo que esta seja a sua estreia neste formato, por isso questiono: como é chegar à produção televisiva nacional?

Para dizer a verdade, fiz figuração há 25 anos atrás. Essa informação ficou perdida, nem me lembro se era novela ou série, mas porque hoje só temos currículo se estiver na internet.

Mas bem, não considero uma estreia, Sara é a minha chegada. O que posso dizer é que se trata de um universo bem à parte do Cinema. Enquanto espectador particular, porque sou profissional, vejo o quão diferentes são esses formatos: Cinema, Televisão e Teatro. E dentro desses mesmos existem registos completamente distintos. A qualidade maravilhosa desta série é que no mesmo seriado conseguimos reunir imensos registos, e numa forma organizada, natural e até intuitiva, sem perturbar a narrativa, a estética e até a linguagem da montagem que está instituída.

O facto é que o Marco [Martins] ter conseguido na sua realização esse casamento, porque se mantêm essas qualidades que estão todas presentes, é notável. Como se diz - qual está na moda nesse rol de programas de culinária - uma explosão de sabores [risos]. Estes termos e expressões vão ser absorvidos naquilo que é agora a programação televisiva. Esperemos que esta série influencie alguma coisa ou até mesmo alguém.

E como esta ideia chegou a si?

As pessoas quanto muito também conversam, partilham desejos e projeções, e o Marco tinha desejo de experimentar a televisão. Eu fiz pouca televisão, porém, gosto de explorar, aprender, sair da minha zona de conforto e o Bruno [Nogueira] tinha sido desafiado pela RTP para apresentar um projeto novo. Esteve ali nessa procura e apresentou esta sinopse, até porque tudo começa com uma simples sinopse, um esqueleto evidentemente.

A premissa de uma atriz que é apanhada no fundo de uma tragédia, que constitui na perda do seu maior instrumento – a capacidade de chorar – e transformando essa tragédia em algo risível. No fundo é o que fazem os escritores de comédia. É uma forma de ultrapassar, de viver com, digerir as dificuldades da vida. A comédia nos ajuda a fazer isso. Ou seja, ele fez um esqueleto e partilhou com o Marco esta ideia, que por sua vez ficou entusiasmado e quis logo fazer parte enquanto realizador. Penso que não é injusto dizer que a ideia do Bruno surge um pouco inspirada nesta imagem que eu construí, uma imagem pública que não corresponde certamente à verdade.

Sara (Marco Martins, 2018)

E que imagem é essa?

Sei que estou catalogada como aquela atriz ligada ao Cinema de autor, o do drama e com pretensões intelectuais arrogantes. É a construção de uma imagem como outra qualquer que alimenta muitos espelhos. Realmente existe quem se alimente disso e eu vivo bastante bem com essa imagem, é quase como um acordo entre cavalheiros. É agarrada nessa imagem que o Bruno desenvolve a ideia da Sara. Construímos juntos esta personagem, fomos dando essas cores, espaço para várias vertentes. Resumidamente, aquilo pelo qual gosto de construir personagens cheias de contradições. Como tal, fomos criando espaços na narrativa para que estas mesmas contradições ganhassem corpo e dimensão cómica evidentemente.

Poderemos afirmar que a Beatriz e a Sara têm muito em comum?

Não, porque na verdade isso não corresponde à realidade, essa é apenas a imagem que as pessoas tem da minha vida profissional. Tenho um percurso imensamente variado. Já fiz anúncios, comédias, policiais, tragédias clássicas e textos contemporâneos. No Cinema, já passei tanto pelo comercial quanto como de autor. Sempre tive sorte de visitar as várias áreas. No entanto, é aquilo pelo qual sou catalogada nesse nicho. Mas não me identifico de todo com esse rótulo, evidentemente, aliás, nunca fiz novela.

E faria alguma novela?

Porque não? Estás a ver, isso já é uma projeção em relação a mim. Eu nunca disse em entrevista alguma que nunca faria novela ou que era contra as novelas. Até trabalho com muitos atores que fazem novelas. Não as vejo porque não me preenche, não me interessa, mas espreito por causa de imensos atores com os quais trabalho e que entram nesse formato.

Mas concorda com um preconceito em relação aos atores de novela? Quase soa como um sistema de castas.

Há um ditado: diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és. As nossas escolhas não nos definem na totalidade, mas influenciam a nossa estruturação. Há escolhas que fazemos na vida porque sim, porque nos levam àquele caminho inconscientemente. às vezes não podemos escolher, o que é mais grave, algo mais redutor na nossa vida. Olhamos muito para poder oferecer aos nossos filhos a possibilidade de escolha. É uma grande arma, até porque nem toda a gente tem esse poder. Tive a felicidade dessa sorte  (…) e estou grata por isso (…) o de poder escolher e fazê-lo em função das minhas necessidades. Agora, em relação a esse debate de que os atores de novela são inferiores aos atores de Cinema? A minha resposta é não. Não há inferioridades. Os atores transitam e alguns especializam-se em determinadas áreas. Sei que existem atores que são bons em fazer novelas, isso ninguém lhes retira o mérito. Assim como muitos não estão interessados em transitar para outras áreas, como o Cinema. Há espaço para isso tudo. Tal não te faz melhor ou pior ator, versátil ou limitado, tudo se resume a escolhas.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

Assim como a novela, a comédia é também uma plataforma bem subvalorizada pelo grande público, no que se refere a valorização de atores.

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas o que é que entendes por valorizar? Dinheiro ou estamos a falar de reconhecimento intelectual. É que tudo isso, como havia dito, são fruto das escolhas. Tudo em função das necessidades. Se precisares de reconhecimento intelectual, então procurarás isso, em caso de retorno financeiro, essa será a tua busca. Isso vai influenciar a escolha do teu caminho. Aqui, por exemplo, o Bruno escreveu uma série, ele é comediante e acima de tudo reconhecido intelectualmente.

Isso da comédia ser subvalorizada é uma bandeira do senso comum. Como por exemplo, é costume dizer que a comédia não vai longe nos Óscares. O que eu acho é que os critérios são muito altos e bastante inflacionáveis consoante o seu contexto. O fenómeno social em que se vive naquele presente que o filme acontece, e isso é muito variável. A comédia é na verdade muito mais difícil do que o drama. Apesar de eu partir do princípio que chorar e rir é essencialmente a mesma coisa.

Ou seja, é da opinião que a comédia vive dos mesmos elos da tragédia?

Na vida, quando tu ris, na verdade estás a chorar, porque estás a reagir ao teu medo. Tu ris porque tens medo. Para mim é a mesma coisa – chorar a rir. Vem da mesma dor, da mesma inquietação, da mesma perda e quando a comédia faz as pazes com isso adquire uma dimensão diferente.

E quanto a expectativas para a série?

Não tenho nenhumas. Nunca tenho expectativas. Eu faço o melhor que posso e depois, já não é meu. Larguei.

Novos projetos?

O Marco Martins convidou-me para a sua nova longa e eu fiquei imensamente contente. A minha personagem será uma imigrante portuguesa em Inglaterra que faz a ponte entre uma entidade empregadora de uma zona industrial e os imigrantes portugueses em situação limite em busca de uma saída económica.

Tendo em conta o Cinema de Marco Martins, aposto que esse projeto terá algo de Brexit pelo meio.

Não é à toa que ele escolhe Inglaterra como cenário, pretendendo assim levantar todas essas questões, se há ou não livre circulação dentro dos mercados e se em concreto é equilibrada ou não

Uma lágrima para Koreeda

Hugo Gomes, 12.11.18

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Na obra de Hirokazu Koreeda assim como no seu recente Shoplifters, em particular, a palavra-chave encontra é LÁGRIMA. Aquele vestígio de sentimento que guardamos com a maior das reservas até ser libertada após as desamarras dos nossos passivos demónios. Uma. Basta apenas uma só, que dita toda uma costura de subtileza e sensibilidade para com o retrato concebido de um Japão fora dos canónicos ficcionais de hoje. E é essa lágrima, tida como dentro [nas personagens] e igualmente de fora [no espectador] que nos encarrega de guardá-la com a maior das confidências.

Carga fora!

Hugo Gomes, 08.11.18

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Esperamos ouvir falar futuramente mais do estreante Bruno Gascon, até porque em “Carga” existe uma garra, um amor à técnica visual e sonora e sobretudo a aptidão para construir um espetáculo de cinema, sublinhando, em recurso português. Porém, é neste mesmo primeiro trabalho que é revelada a sua grande fraqueza, a dependência para com o tema, e não só, pelo “suco” extraído do mesmo, sob um tom pedagógico e meramente descritivo.

Da mente deste vosso escriba surge automaticamente “Traffic” (2000), de forma a especificar como uma temática (no caso da obra de Steven Soderbergh a “patologia humana” era o narcotráfico) é encarada como combustão para um desfragmentado filme-mosaico (pelo menos a proposta é tentada). Gascon entra nas redes de tráfico humano para se lançar na deriva do “choque” atmosférico, em prol de uma fotografia esgalhada por parte de Jp Caldeano, ou de uma técnica por vezes subtil e com rasgos de primor (a destacar o plano-sequência do suicídio).

Mas é nesse mesmo “cast away” que o jovem realizador se perde, as personagens são esquemáticas servindo como protótipos de “exemplos dados às criancinhas”, a banda sonora marca uma omnipresença alarmante e todo o enredo remexe em habituais cantos do senso comum do espectador referente à abordagem. Por cada prova de ambição, Carga se escurece nos modelos mainstream e na demasiada sobreliterarização do panfleto, enquanto que o elenco ou cai na mouche (Michalina Olszanska, Duarte Grilo e Miguel Borges) ou persistes nos personagens-tipos do nosso universo cinematográfico (Vítor Norte, Rita Blanco, Dmitry Bogomolov).

Assim, direto e a frio, escusamos de torturar-nos com experiências - Portugal não tem uma indústria cinematográfica – mas se futuramente existir qualquer indício do mesmo, possivelmente encontraremos mais dessa tendência em maçaricos como Justin Amorim (“Leviano”) ou em Bruno Gascon, do que em “veteranos” deste jogo como Leonel Vieira. Esperemos que sim, não cedendo às “palmadinhas nas costas” e às aclamações de um “bom trabalho”, mas o de “vamos estar atentos”. “Carga” falha, porém, que venham mais falhas como estas no nosso panorama.

Dança comigo ...

Hugo Gomes, 05.11.18

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Luca Guadagnino quis chocar e prometeu através de mais uma aventura pelas readaptações … lembram-se de “A Bigger Splash”, essa leitura ao “Le Piscine” de Jacques Deray? … Bem, a matéria-prima desta vez é de contornos mais controversos, até porque o alvo foi um auge da estética e da edição - Suspiria - hoje visto como uma das jóias da coroa de Dario Argento.

Pegar no filme de 1977 e refazê-lo, acima de tudo, demonstra um certo sentido de risco e uma coragem sem precedentes e o realizador de “Call me By Your Name” adequa-se a esses requisitos. Ao contrário do barroco proposto do original, este “Suspiria” encaminha exagero para o seu interior, endorsando um tom mais negro, grotesco e sobretudo contemporâneo, não em contexto histórico, até porque a história-narrativa reside no ano em que o filme de Argento foi produzido, mas sim pela tendenciosa espreitadela aos anacronismos politizados.

Numa Alemanha dividida no rescaldo do Muro de Berlim, pelos atentados do Baader Meinhof e pelos fantasmas da Segunda Guerra (e anexos) que não teimam em desaparecer, é nos contada uma história de bruxaria e dança contemporânea. Aqui as bruxas são seres milenares, os haxans como designam na língua germânica, “criaturas” sábias que desprezam a Humanidade e o fazem sob as recordações dos seus tempos gloriosos, desejando a tão ambiciosa ressurreição. Tendo a escola de dança como fachada, surge a promessa de abalar toda uma instituição através do acolhimento de uma nova aluna americana, levando-as cada vez mais perto dos seus tenebrosos objetivos.

Lucas Guadagnino utiliza a estrutura do guião de ’77 para se providenciar de um filme atento às questões identitárias da Alemanha de ontem, hoje e do amanhã. O constante sublinhar das temáticas recorrentes à identidade da mesma guiam o espectador num subliminar gesto politizado, fazendo com que o ninho de bruxas aluda a outras organizações de pensamentos e doutrinas. Por palavras mais precisas e explícitas, as bruxas confundem se com o nazismo, e o nazismo confunde se com as irmandades de bruxarias, o orgulho alemão levado na composição de tais atitudes, os feitos erguidos pela consciência e a inconsciência com que assume como retornar a essas mesmas “provocações”. Suspiria opera assim como uma fábula dessa politização social, o que nos torna ideologicamente unidos e pretensiosos nas audácias da proliferação da mensagem.

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Obviamente que os filmes de outrora não eram despidos dessa imensa leitura política, mas no caso da obra de Argento, este era uma simples invocação de um folclore em um bandeja série B que tão bem funcionou graças à dedicação e compostura do realizador nos seus tempos áureos. Luca Guadagnino herda essa fome pela imersão visual e sonora (definida e por fim livre no último dos oitos atos), mas distorce o lúdico da intriga e a converte numa seriedade “bigger than life” que aufere um pesado clima de desespero. Sente-se a vibração dos corpos quase desnudos em sintonia com a edição cronometrada e intercalada e a orgânica da dança improvisada sob a mimetização dos horrores cometidos sala fora (o espectador só sente e vê aquilo que a narrativa lhe dá, e uma delas é a dedicação corporal de Dakota Johnson … porque de resto … bem, nem vale a pena falar).

Se os bailados concretizam o que de melhor este “Suspiria” tem para oferecer, não referindo tal como os arquétipos de dança que muitos cometem pelo prazer jubilante do olhar, mas porque, quer queira, quer não, Luca Guadagnino construiu um falso musical no processo em que a dança em si possui um papel de desenrolar na narrativa e na construção dramática. Possivelmente foi através disto que o realizador encontrou a inspiração para regressar a Suspiria, deixando o resto à mercê das referências dos provocadores. Ken Russell, Pier Paolo Pasolini, Lars Von Trier (será racional afirmar que “Suspiria” tem um esqueleto narrativo tão vontriano) e até mesmo Argento pós-90 (época em que abraça o grotesco, a recordar “Mother of Tears”, terceiro capítulo da trilogia iniciada por “Suspiria”, em que detém em paralelo com esta nova versão um fetiche pelo explicito da tortura), compõem a pauta desta orquestra vazia.

Contudo, o resultado não deslumbra pela “diabrice”, condensando todo esse desejo para providenciar o prolixo e sobretudo a coesão narrativa. É um objeto de camadas gordurosas (não há contenção da mesma forma que Tilda Swinton desempenha três papéis diferentes), que enaltece um exercício de estilo ocasional e uma trapalhona mescla por vezes. Entre o amor e o ódio, Guadagnino ficou-se pelo marketing e o subliminar gesto politizado. Não estamos convencidos de facto (e nem vamos falar da sonsice da Dakota Johnson … nós juramos não falar).

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