Lazzaro Felice (2018)
Podemos ser todos felizes como Lázaro? A personagem, encarnada com total doçura por Adriano Tardiolo, é o pedestre de uma Itália convencida por uma ilusão, um saudosismo que o impede de olhar para o futuro e renascer das suas anteriores cinzas.
Por outras palavras, é a perspetiva de alguém que entende o confuso espírito do seu país. Alice Rohrwacher, atriz que tem se aventurado na realização, que com esta sua terceira longa-metragem confirma a sua posição como uma das mais pessoais cineastas de Itália. “Lazzaro Felice” é acima de tudo um conto sobre os estilhaços de uma Itália em crise existencial.
Falei com a realizadora sobre o seu filme, as referências e os seus sentimentos enquanto mulher no Cinema.
Em “Lazzaro Felice” deparamos com um filme tão próprio de si, assim como saudosista aos imensos mestres italianos, desde Ettore Scola a Fellini, passando por Ermanno Olmi. Quer falar sobre as suas influências?
É muito difícil falar sobre as influências diretas, tudo soa inconscientemente. Porém, é ainda mais violento e doloroso falar do “maestro” [na altura desta conversa, Ermanno Olmi tinha falecido há uma semana]. Sinto uma grande tristeza ao pensar no que aconteceu. Tinha uma grande admiração pelo Ermanno.
O título serve-nos para entender a composição da personagem de Lázaro, há algo nele que faz pensar que “quanto mais ‘idiotas’ somos, mais felizes somos”. A dita felicidade é algo inatingível a quem raciona e reflete sobre a sua própria vida?
Eu penso que no filme, tal não é o ingrediente-chave para a felicidade individual, possivelmente uma tentativa de atingir a felicidade coletiva, o qual percebemos ser impossível porque estas pessoas estão deslocadas dos seus sítios originais Não diria que Lázaro seja feliz, diria antes que é sereno, o que faz com que a coisa acabe por não lhe correr bem.
Lázaro não é a solução, é a possibilidade de olhar para a inocência e lembrar-nos que ela existe nos seres humanos. Ou seja, é um memorando.
Em comparação com o seu “Le Meraviglie”, existe em “Lazzaro Felice” uma tendência de aproximação ao tradicional storytelling do que a narrativa docudrama do seu filme anterior. Contudo, em ambas as obras há como uma hibridez de tons, quer da fantasia, quer da mitologia algo histórica de Itália. Sem contar com a sempre presente crítica aos tempos modernos.
Não tenho a certeza que seja tão diferente do anterior, possivelmente a história seja na verdade, mas ambas as obras foram feitas pelas mesmas pessoas, eu e os meus colaboradores. Por isso, se tiver que comparar com o “Le Meraviglie”, diria que este “Lazzaro Felice” é mais livre de certa maneira, porque nos levou a aprofundar a história do protagonista e da sua inocência.
A ideia do realismo que combina com o folclore mágico deriva de dois elementos que constituem o núcleo da minha cultura- Itália – a nossa História, de certa maneira. Diria que a História e a Mitologia interceptam-se durante o tempo. Trata-se de um país com uma enorme quantidade de camadas na História. Por exemplo, é costume irmos a um posto dos correios e ao lado encontrarmos um túmulo de séculos passados ou monumentais ruínas. Tudo está misturado. Tudo está compactado.
Alice Rohrwacher na rodagem de "Lazzaro Felice" (2018)
Mas devo dizer que há qualquer coisa de retrato da crise dos refugiados nesta sua “fábula”.
Vivemos num momento preciso da História e como tal desenvolvi este desejo de fazer um filme político decorrido em Itália, mas que possa ser identificado com a situação vivida em imensos países do Ocidente. Ou seja, quis abordar o receio e medo da vinda de outros e, claro, que o Cinema pode ser bastante direto, assim como expressivo e simbólico, sendo possível abordar histórias do nosso passado ou vindas diretamente da nossa imaginação e fazê-las comunicar com o nosso presente.
Tinha esta imagem que era o medo tido pelos migrantes, milhares que diariamente chegavam à Itália. Através disso, pensei nas possibilidades da migração ser sobretudo doméstica, do próprio país, o que não estava inteiramente longe da realidade italiana. Espero que com estas imagens de camponeses e agricultores limitados a um rio – e da polícia perplexa, que os questiona “porque simplesmente não o atravessam" expresse esse medo vivido nos dias de hoje. Essa imagem tem como eco as imensas que abundam nos telejornais e jornais sobre os refugiados e as vagas migratórias. O Cinema é muita coisa e ser uma ferramenta política é uma delas.
Obviamente que na teoria isto seja tudo um conto negro, mas a iluminação trazida por Lázaro converte este filme politizado num conto de fadas alicerçado ao território espiritual.
Não é só em Lázaro que encaramos como um signo de uma Itália sem perceção do seu espaço, assim como na personagem de Tancredi, o filho da dinamarquesa, deparamos como uma alusão a um país decadente mas que nega essa mesma decadência.
Sim, em certa parte existe um simbolismo de Itália. Estamos a falar do filho de uma dinamarquesa, um rapaz de uma hereditariedade privilegiada que colapsa. Através desse mesmo colapso, perdendo os anteriores privilégios, tenta cortar as ligações de todas as pessoas que explorou. O símbolo aqui opera diferentemente em diversos níveis e o filho da dinamarquesa acaba por destruir todo um legado.
Mas falando em Tancredi, curiosamente, é o nome de uma personagem de “Il Gattopardo”, de Visconti. Há aqui algo mais que uma mera coincidência?
Sim, Tancredi é o nome da personagem de Alain Delon nesse filme, mas também é o nome de um cavaleiro francês cujos feitos são relembrados pelos cânticos dos trovantes em praças públicas. Foram essas glórias que levaram a Marquesa a batizar o seu filho mimado, mas infelizmente para ela, este é incapaz de lhe dar tais renomes.
Para Lázaro, o mistério do filme é ser um filme e não apenas um mistério. É simplesmente chamar as coisas pelos seus devidos nomes. São muitos precisas as referências, por que tal como sabemos, Lázaro é alguém que ressuscita e o local onde ele habita chama-se Inviolata. Tomamos a simplicidade como se tudo fosse explicado para crianças.
Em relação à Competição de Cannes? O facto de ser uma das três realizadoras integradas no certame, e atualmente a importância que é dada nessa representação.
Já estive 3 vezes em Cannes e sempre me perguntaram como é ser uma realizadora, uma mulher nesta indústria. Na última vez [“Le Meraviglie”], tal questão vinha normalmente de revistas femininas ou da imprensa cor-de-rosa, mas atualmente tornou-se, finalmente, numa pergunta séria. O festival começou a tratar o problema da representação feminina com seriedade.
As mulheres têm uma herança de 4 mil anos ou mais de abusos, opressão e marginalização. Era impossível estudarmos, ou sequer termos uma expressão própria. Por isso é importante, sobretudo do ponto de vista político, encarar o feminino com a devida seriedade.