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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Doclisboa'18: um convite à lá Luis Ospina

Hugo Gomes, 17.10.18

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Todo comenzó por el fin" (2015)

O Doclisboa avança com a sua 16ª edição, um ano que será marcado com regressos de habitués como Wang Bing, Salomé Lamas, Frederick Wiseman e até mesmo Rithy Pahn, e até nomes a descobrir como já é “tradição” na secção Verdes Anos. Porém, afirma-se, no Doclisboa’18 um dos grandes destaques, se não o grande, encontra-se num nome, possivelmente desconhecido para muitos: Luis Ospina.

Originário da cidade de Cali, uma das mais importantes da Colômbia, Ospina estudou cinema nos EUA, mais precisamente na UCLA, tendo regressado após um primeiro filme à terra natal na década de 70. Aí fundou um cineclube e uma revista de cinema Ojos al Cine. Considerado um cinéfilo ferrenho, o cineasta nunca escondeu a sua forte veia política na sua obra, usando diversas vezes o audiovisual como uma denúncia da miséria vivida na sua nação. Para além do seu cinema-intervenção, também concebeu documentários de estudo e investigação de diferentes temas ligados ao Cinema, desde os mudos slapstick até ao perdido e desconhecido cinema colombiano.

O porquê da retrospetiva de Luis Ospina ser o programa mais relevante deste Festival com os olhos postos no Mundo? Porque esta é a primeira retrospectiva integral da sua obra na Europa – ter lugar na Cinemateca Portuguesa contando com a presença do próprio para contextualizar os filmes projetados, um convite para todos os curiosos e aventureiros em conhecer um dos nomes mais fortes do Cinema da Colômbia.

Todos desejamos ser "felizes como Lázaro". Uma conversa com Alice Rohrwacher

Hugo Gomes, 15.10.18

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Lazzaro Felice (2018)

Podemos ser todos felizes como Lázaro? A personagem, encarnada com total doçura por Adriano Tardiolo, é o pedestre de uma Itália convencida por uma ilusão, um saudosismo que o impede de olhar para o futuro e renascer das suas anteriores cinzas.

Por outras palavras, é a perspetiva de alguém que entende o confuso espírito do seu país. Alice Rohrwacher, atriz que tem se aventurado na realização, que com esta sua terceira longa-metragem confirma a sua posição como uma das mais pessoais cineastas de Itália. Lazzaro Felice” é acima de tudo um conto sobre os estilhaços de uma Itália em crise existencial.

Falei com a realizadora sobre o seu filme, as referências e os seus sentimentos enquanto mulher no Cinema.

Em “Lazzaro Felice” deparamos com um filme tão próprio de si, assim como saudosista aos imensos mestres italianos, desde Ettore Scola a Fellini, passando por Ermanno Olmi. Quer falar sobre as suas influências?

É muito difícil falar sobre as influências diretas, tudo soa inconscientemente. Porém, é ainda mais violento e doloroso falar do “maestro” [na altura desta conversa, Ermanno Olmi tinha falecido há uma semana]. Sinto uma grande tristeza ao pensar no que aconteceu. Tinha uma grande admiração pelo Ermanno.

O título serve-nos para entender a composição da personagem de Lázaro, há algo nele que faz pensar que “quanto mais ‘idiotas’ somos, mais felizes somos”. A dita felicidade é algo inatingível a quem raciona e reflete sobre a sua própria vida?

Eu penso que no filme, tal não é o ingrediente-chave para a felicidade individual, possivelmente uma tentativa de atingir a felicidade coletiva, o qual percebemos ser impossível porque estas pessoas estão deslocadas dos seus sítios originais  Não diria que Lázaro seja feliz, diria antes que é sereno, o que faz com que a coisa acabe por não lhe correr bem.

Lázaro não é a solução, é a possibilidade de olhar para a inocência e lembrar-nos que ela existe nos seres humanos. Ou seja, é um memorando.

Em comparação com o seu “Le Meraviglie”, existe em “Lazzaro Felice” uma tendência de aproximação ao tradicional storytelling do que a narrativa docudrama do seu filme anterior. Contudo, em ambas as obras há como uma hibridez de tons, quer da fantasia, quer da mitologia algo histórica de Itália. Sem contar com a sempre presente crítica aos tempos modernos.

Não tenho a certeza que seja tão diferente do anterior, possivelmente a história seja na verdade, mas ambas as obras foram feitas pelas mesmas pessoas, eu e os meus colaboradores. Por isso, se tiver que comparar com o “Le Meraviglie”, diria que este “Lazzaro Felice” é mais livre de certa maneira, porque nos levou a aprofundar a história do protagonista e da sua inocência.

A ideia do realismo que combina com o folclore mágico deriva de dois elementos que constituem o núcleo da minha cultura- Itália – a nossa História, de certa maneira. Diria que a História e a Mitologia interceptam-se durante o tempo. Trata-se de um país com uma enorme quantidade de camadas na História. Por exemplo, é costume irmos a um posto dos correios e ao lado encontrarmos um túmulo de séculos passados ou monumentais ruínas. Tudo está misturado. Tudo está compactado.

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Alice Rohrwacher na rodagem de "Lazzaro Felice" (2018)

Mas devo dizer que há qualquer coisa de retrato da crise dos refugiados nesta sua “fábula”.

Vivemos num momento preciso da História e como tal desenvolvi este desejo de fazer um filme político decorrido em Itália, mas que possa ser identificado com a situação vivida em imensos países do Ocidente. Ou seja, quis abordar o receio e medo da vinda de outros e, claro, que o Cinema pode ser bastante direto, assim como expressivo e simbólico, sendo possível abordar histórias do nosso passado ou vindas diretamente da nossa imaginação e fazê-las comunicar com o nosso presente.

Tinha esta imagem que era o medo tido pelos migrantes, milhares que diariamente chegavam à Itália. Através disso, pensei nas possibilidades da migração ser sobretudo doméstica, do próprio país, o que não estava inteiramente longe da realidade italiana. Espero que com estas imagens de camponeses e agricultores limitados a um rio  – e da polícia perplexa, que os questiona “porque simplesmente não o atravessam" expresse esse medo vivido nos dias de hoje. Essa imagem tem como eco as imensas que abundam nos telejornais e jornais sobre os refugiados e as vagas migratórias. O Cinema é muita coisa e ser uma ferramenta política é uma delas.

Obviamente que na teoria isto seja tudo um conto negro, mas a iluminação trazida por Lázaro converte este filme politizado num conto de fadas alicerçado ao território espiritual.

Não é só em Lázaro que encaramos como um signo de uma Itália sem perceção do seu espaço, assim como na personagem de Tancredi, o filho da dinamarquesa, deparamos como uma alusão a um país decadente mas que nega essa mesma decadência.

Sim, em certa parte existe um simbolismo de Itália. Estamos a falar do filho de uma dinamarquesa, um rapaz de uma hereditariedade privilegiada que colapsa. Através desse mesmo colapso, perdendo os anteriores privilégios, tenta cortar as ligações de todas as pessoas que explorou. O símbolo aqui opera diferentemente em diversos níveis e o filho da dinamarquesa acaba por destruir todo um legado.

Mas falando em Tancredi, curiosamente, é o nome de uma personagem de “Il Gattopardo”, de Visconti. Há aqui algo mais que uma mera coincidência?

Sim, Tancredi é o nome da personagem de Alain Delon nesse filme, mas também é o nome de um cavaleiro francês cujos feitos são relembrados pelos cânticos dos trovantes em praças públicas. Foram essas glórias que levaram a Marquesa a batizar o seu filho mimado, mas infelizmente para ela, este é incapaz de lhe dar tais renomes.

Para Lázaro, o mistério do filme é ser um filme e não apenas um mistério. É simplesmente chamar as coisas pelos seus devidos nomes. São muitos precisas as referências, por que tal como sabemos, Lázaro é alguém que ressuscita e o local onde ele habita chama-se Inviolata. Tomamos a simplicidade como se tudo fosse explicado para crianças.

Em relação à Competição de Cannes? O facto de ser uma das três realizadoras integradas no certame, e atualmente a importância que é dada nessa representação.

Já estive 3 vezes em Cannes e sempre me perguntaram como é ser uma realizadora, uma mulher nesta indústria. Na última vez [“Le Meraviglie”], tal questão vinha normalmente de revistas femininas ou da imprensa cor-de-rosa, mas atualmente tornou-se, finalmente, numa pergunta séria. O festival começou a tratar o problema da representação feminina com seriedade.

As mulheres têm uma herança de 4 mil anos ou mais de abusos, opressão e marginalização. Era impossível estudarmos, ou sequer termos uma expressão própria. Por isso é importante, sobretudo do ponto de vista político, encarar o feminino com a devida seriedade.

Apontamentos de um gesto desaparecido à lá Ruiz

Hugo Gomes, 14.10.18

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A pomposidade dos dramas de época levam-nos a este antídoto, uma reconstituição míope, despojada, que se apoia sobretudo na palavra e na crença ostentada pelas suas personagens em tempos expirados. Adaptação de “O Livro Negro de Padre Dinis”, uma espécie de prequela de “Os Mistérios de Lisboa” de Camilo Castelo-Branco, o testemunho deixado por Raoul Ruiz à sua mulher, Valeria Sarmiento, torna-se numa bandeja à memória pós-tumulo do seu “eterno amante”, tendo como objetivo máximo a concretização de uma “ressurreição”. Triste será dizer que não encontramos alternativa, nem regresso a espíritos passados: Ruiz desapareceu do nosso Mundo (infelizmente teremos que aceitar isso), Sarmiento apenas arma uma fita com o afeto memorial.

Talvez seja por isso que exista aqui um certo desdém, diríamos antes, sentimento de estranheza, como um substituto deslavado se tratasse, mas é dentro dessa mesma irreconhecibilidade que somos afrontados com um romance de outrora e de salvaguardado fatalismo, que despeja lirismo nos seus gestos automatizados com uma fé inabalável. Prolongando a linha … diríamos antes … as “Linhas de Wellington” (projeto inacabado de Ruiz que Sarmiento assumiu sem alternativa), em “O Caderno Negro” somos puxados à limitação cénica e conflituosa, mas nem por isso ilimitados da nossa imaginação.

Não se sentia assim desde o primitivismo trazido pelos “teatros de época” de Oliveira ou a manobra temporal de Olmi em “Il Mestiere delle Armi” (2001), a reconstituição que não prima pelo detalhe visual nem sequer assumindo a réplica aludida, mas a recomposição de um certo parecer, antes de mais ser. É um filme enquadrado numa vontade, o gesto assimilado ao invés do gesto realizado da credibilidade, de facto, ficamos no impasse de uma obra cuidada e alegadamente cúmplice do seu artificialismo. E mesmo sob uma passiva narrativa de contos e recontos de uma adaptação reduzido ao esquematismo, algo quase alicerçado a um certo cinema de autor, “O Caderno Negro” provém de uma veia classicista, não no seu formato mas das contrações espirituosas. Aliás, somos conduzidos à tragédia de romances incumpridos, como juras de amor que imobilizam vidas e imortalizam mortes. Aí deparamos, o seu vínculo reafirmado da pomposidade da palavra e dos sentimentos anexados.

Falando em “anexos” e antes que seja tarde, miremos a beleza e a doçura amargurada de Lou de Laâge, a mera figura acorrentada a um drama maior que ela própria.

"Chegamos ao Lugar!" Arranca 3ª edição do Close-Up

Hugo Gomes, 12.10.18

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Florida Project (Sean Baker, 2017)

A memória levou-nos à viagem, e em consequência disso, guiou-nos ao Lugar. Mas qual lugar? O Cinema encaminha-nos para espaços, não-lugares, cenários, etapas que resumem a leitmotiv cénicos. Neste terceiro episódio de Close-up: Observatório de Cinema, prosseguimos na jornada de desestruturação do Cinema propriamente dito. De que matéria é feita? Para onde segue? Quais as suas convergências e divergências? Com o Lugar, tema desta nova edição, chegamos, não ao destino, mas possivelmente a uma nova partida.

A decorrer entre os dias 13 a 20 de outubro, Close-up tem convertido num seminal evento em aproximação daquilo que chamamos de ano cinematográfico em revista, sem com isso reduzi-lo a um catálogo de estreias recentes repostas, mas um núcleo de temáticas e capítulos no nosso encaminhar cinéfilo. Prova disso, é a abertura oficializada com a projeção de “Lobos”, o grande trabalho de Rino Lupo, realizador italiano que na sua passagem em Portugal inseriu todo um novo olhar cinematográfico. A sessão será acompanhada por Paulo Furtado, o Legendary Tigerman, uma autêntica ousadia em cruzar a História de um passado remoto com os acordes atualizados do músico. Como encerramento, outro clássico e cruzamento, “Sherlock Holmes Jr.”, o qual Buster Keaton irá adquirir novo fôlego ao som de Noiserv.

Neste terceiro tomo há espaço para novas rubricas, o Café Kiarostami será inaugurado, uma mesa-redonda onde convidados de diferentes sectores do Cinema (realizadores, investigadores e críticos) reunirão para debater sobre os variados cantos e recantos da Sétima Arte. Contudo, serão os filmes, as verdadeiras estrelas destes sete dias rodeados de Cinema e a sua respectiva vénia.

Este ano, alguns dos destaques evidentes será a apresentação de “Cabaret Maxime” pelo próprio realizador, Bruno De Almeida. Possivelmente o melhor exemplo de Lugar neste espaço, um filme em que o cineasta transforma uma Lisboa noturna e soturna em “nenhures”, um território imaginário e igualmente real. A guerra entre cabarés é só o pico do iceberg, que é constituído pelas reposições de “Isle of Dogs”, de Wes Anderson (novamente frisando o “não-lugar”, neste caso inserido num Japão neofeudal e industrial), “Ramiro” de Manuel Mozos, a Lisboa saudosista e melancolizada no qual é embebido o espírito do homónimo protagonista e um dos grandes filmes do ano - “Florida Project”, de Sean Baker - um oásis situado nas fronteiras da Disneyland. Todas as sessões contarão com participações de personalidades ligadas ao Cinema, que debaterão com o público, a questão de espaço e lugar na compostura cinematográfica.

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Sansho, The Bailiff (Kenji Mizoguchi, 1954)

Apesar dos lugares serem vários e indeterminados, existe um específico que promete ser paragem obrigatória neste evento – a América Latina. O Close-Up irá exibir um leque de filmes recentes das diversas cinematografias latino-americanas, passando pela esplendorosa escuridão das minas bolivianas de “Viejo Calavera”, de Kiro Russo, pelos paraísos perdidos das promessas nucleares em “La Obra del Siglo”, de Carlos Machado Quintela, e as fantasmagóricas selvas em busca de Vicuña Porto em “Zama”, a mais recente longa-metragem de Lucrecia Martel.

Mas a História (H grande aplica-se) é também ele um lugar de obrigatória paragem, dando continuação à rubrica, este ano Close-Up aprofunda no Japão assombrado de Kenji Mizoguchi, projetando quatro das suas principais obras (“Sansho, The Bailiff”, “The Crucified Lovers”, “Ugetsu” e “The Street of Shame”). A lição de História passará pelos influenciados, e precisamente os portugueses que espelharam esses signos mizoguchianos nas suas respectivas filmografias. Nesse leque poderemos contar com Pedro Costa (“O Sangue”), Paulo Rocha (“Mudar de Vida”) e João Pedro Rodrigues (com a curta documental, “Allegoria Della Prudenza'').

Já na secção Fantasia Lusitana, serão destacados Diogo Costa Amarante, vencedor do Urso de Ouro da Curta-Metragem no 67º Festival de Berlim e visto como um dos mais promissores nomes da cinematografia portuguesa, e Mário Macedo, jovem realizador que também tem feito um premiado e igualmente promissor percurso em festivais. Ambos realizadores serão frutos de retrospectiva (no caso de Macedo, haverá estreia absoluta de um novo trabalho). Como anexo deste espaço, Diogo Costa Amarante teve direito a Carta Branca e a sua escolha recaiu na obra de Agnès Varda, “Vagabond” (1985).

Close-Up ocorrerá, como é habitual, na Casa de Artes de Vila Nova de Famalicão. Por entre o Cinema e os debates, ainda haverá “lugar” para a Exposição Fotográfica e de Vídeo de Ana Cidade Guimarães e Virgílio Ferreira intitulado de A Natureza do Lugar e o Lugar da Natureza.

Justiça para Damien Chazelle

Hugo Gomes, 09.10.18

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Deixe-me defender o Damien Chazelle. Deixe-me sublinhar o seu nome como um dos mais jovens mais talentosos de Hollywood na atualidade. Simplesmente deixe-me, porque neste The First Man há todo um rigor no detalhe (atenção à sonoplastia), uma ambição de ir mais além do formato biopic à americana (um estudo de caracter acima do retrato dos feitos), uma aproximação dos seus dois primeiros filmes (uma fenomenologia instalada na edição) e um intimismo que o separa da gritaria bacoca. É um espetáculo sensorial. Agora deixe-me ‘amá-lo’, porque até o perdoo das “maliquices” que insere a meio.

Bruno Nogueira: "A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer"

Hugo Gomes, 06.10.18

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Uma atriz sobretudo dramática que perde o dom de chorar. Resultado, uma inversão de marcha na sua carreira então presa a arquétipos e uma busca pelo que realmente lhe faz feliz. Esta é a resumida premissa de “Sara”, a série de Marco Martins que promete abalar toda a nossa perspetiva de ficção à portuguesa no pequeno ecrã e demonstrar as versáteis capacidades de Beatriz Batarda, que à imagem da protagonista tem vindo a ser “acorrentada” a rótulos.

Uma proposta deliciosamente satírica e astuta que veio originalmente da mente de Bruno Nogueira. O comediante e ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto e de que maneira ele se insere no panorama audiovisual português.

Sendo o autor da ideia original, gostaria de perguntar como esta surgiu?

Surgiu da minha realidade e da realidade que conhecia da Beatriz, uma atriz que facilmente cai no estereótipo, reduzida ao mesmo tipo de papéis. Sempre que a convidavam, não era para encenar “casamentos felizes”, “famílias felizes”, mas sim desempenhar algo trágico ou coisa que pareça. Pensava muito nesse mecanismo de uma atriz como a Beatriz que de um dia para o outro não conseguia mais chorar. O que aconteceria a esse tipo de atriz dramática se fosse lhe retirada a sua mais preciosa ferramenta de trabalho, e com isso a procura de um lado mais feliz na sua vida. Então imaginei essa viagem, e imaginei a partir da própria Beatriz.

De certo modo, “Sara” é sobre a Beatriz Batarda?

Só o facto de ser uma atriz e ficar quase limitada aos papéis dramáticos, o resto é somente ficção. A sua jornada, famílias, relações, amigos, tudo é fruto da ficção.

Portanto, foi através dela que construiu a base desta série que funciona no todo como uma crítica satírica ao mundo do Audiovisual e do Entretenimento do nosso panorama?

Sim, mas mais que isso, todo este processo de conceção obrigou-me a pensar sobre o Cinema, Teatro e até mesmo Televisão, no que leva um ator a fazer determinada coisa, muitas vezes tendo motivação financeira, outra apenas por curiosidade profissional, ou é uma fase da vida em que se procura o que é mais seguro. Sempre tive esta ideia mesmo quando estava fora do mundo audiovisual, agora que estou dentro apercebo-me que a realidade é para lá disso. Depois só me interessava brincar com a realidade da situação, com aquilo que a Beatriz e o Marco pensavam que era. Depois juntei uma essência forte e eficaz daquilo que é a nossa visão sobre o que são estes meios nos dias de hoje.

Mas “Sara” foi inicialmente pensado como uma série ou um filme?

Numa série. Foi sempre pensado como tal.

Mas diria que existe uma linguagem muito cinematográfica em “Sara”.

Sim, foi parte do Marco [Martins], que entrou no projeto a partir de uma simples conversa de quotidiano. “O que estás a fazer? O que andas a fazer? Projetos futuros?”, falei-lhe desta ideia e segundo as suas próprias palavras, ele achou “perfeito”. Assim, após a sua entrada, esta ideia deixou de ser minha e passou a ser “nossa”. Foi quase um trabalho em família.

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E como pensa que reagirão os espectadores em relação a “Sara”?

Não sei. Acho que toca com vários tópicos, mas sobretudo vai muito ao encontro da perceção que os espectadores têm, outros informaram um pouco mais, mas um caso é um caso. Não sei realmente como reagirão. Isto é uma coisa muito egoísta de dizer, mas “Sara” foi concebido como aquilo que eu gostaria de ver na televisão neste momento. Por isso, como última análise, isto foi para nós vermos. Foi um projeto fiel aquilo que pretendíamos e que gostaríamos de ver, obviamente tendo em conta que isto estava direcionado para televisão.

Mas é um projeto arriscado para a nossa televisão, diria que é uma série construída a partir de uma metalinguagem bastante própria e incisiva.

Vejamos, a ideia era de posicionarmos de fora a assistir a isto tudo. Portanto, tem várias camadas. Dando exemplo, colocamos a Rita Blanco a criticar quem faz novelas e anúncios a bancos, enquanto sabemos que a própria atriz já fez isso tudo. A série retrata um pouco o Mundo de cada um dos envolvidos, e mesmo sendo, em alguns casos, feridas nossas, só o facto de avançarmos com essas representações estamos em certa parte a exorcizar os nossos pontos fracos.

Tendo como base o conteúdo, o contexto e as “farpas” que Sara constantemente lança, gostaria de perguntar como vê a atual produção cinematográfica e televisiva em Portugal?

Cada vez mais o Cinema Português vem ao encontro com o público e durante muito tempo estes dois fatores estavam intrinsecamente desencontrados. O público não via o nosso cinema, guiando por palavras-chaves como “filmes longos e chatos” (e verdade é que existiam imensos longos e chatos). Hoje em dia, uma coisa que ajuda imenso o cinema português, felizmente, é o reconhecimento estrangeiro e desta nova geração de realizadores que têm uma maior proximidade com o público. Por isso, sou da opinião que o cinema português está melhor não só por essa cumplicidade com os espectadores, mas até pelos espectadores que fizeram um esforço para entender a sua linguagem.

A televisão … bem … tendo em conta a minha experiência, uma ideia passa por imensas transformações até chegar ao produto final. Veja-se o caso de “Sara”, a ideia é originalmente minha e foi gradualmente transformada em uma outra ‘coisa’ com as contribuições de Marco Martins, Beatriz Batarda, entre outros. O que restou dos primeiros pensamentos foi nada do que está ali. Julgo que em 90% das séries nacionais, as ideias, que podem ser boa, são submetidas a todo um conjunto de intervenções, passando pelos executivos a produtores, “vamos meter umas gajas nesta cena aqui”, ou o diretor do canal, “epá, o que ficava bem aqui era aquele gajo que agora está na ribalta”. Portanto, a ideia com todos estes contágios misturados resultam numa … papa … perdeu-se no caminho.

Acho que temos ótimos autores em Portugal, mas a ideia original perde-se no trajeto e aquilo que presenciamos no ecrã não é, nem tão pouco aquilo que originalmente seria. De resto, não acho que esteja num caminho brilhante. A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer, e por vezes isso é discutível. Para vir para cá, passei por um acidente na A5. Não havia trânsito, mas os carros paravam para ver os destroços. Naquele momento, o que público pretendia era ver o acidente, por isso julgo que essa política “das intenções do público” não seja de todo verdade.

Um canal privado tem outras obrigações para além de mostrar o “acidente”, e a RTP, enquanto pública, tem o papel fundamental que é o respeito pelos atores e cumprir essa preservação autoral, assim como a valorização dessas mesmas.

Novos projetos?

Penso voltar à televisão, por enquanto não é o momento certo, estou à espera de ideias e isso leva o seu tempo. Contudo, vou regressar a algo que tinha saudades e que têm dedicado paixão que é o stand-up comedy. Ando em experiências e testes de material e em novembro arrancarei com uma tournée.

"Venom": viscoso, venenoso e … vulgar

Hugo Gomes, 04.10.18

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Venom”, a primeira aposta de um novo universo cinematográfico (será que hoje ninguém pensa em sagas?), poderia funcionar em tudo aquilo que queríamos num descarrilamento aos eixos da Disney. Basta ver os exemplos de “Logan” e “Deadpool” (anteriormente sob o comando da Fox) para, comparativamente, perceber que a Casa do Rato Mickey é incapaz de resolver o “anti-hero issue”. Desse lado recolhemos “Han Solo”, a prova capaz que a Disney possui, quase patologicamente, o medo de sujar, a fobia da ambiguidade e o pavor da ausência de moralismo.

Agora, chegamos a outra questão. Será “Venom” o produto messiânico direcionado a encher esse mesmo vazio? Enquanto assistimos a um filme que alude ao deterioramento das tendências atuais desses mesmos territórios, vemos um produto ao limite da sua classificação etária, onde as suas trapalhadas rumam aos disfarçados clichés do subgénero. Portanto, nas apetências do argumento, nada de novo a oeste nem a este, quanto mais a norte ou a sul.

Ruben Fleischer não tem mãos a medir quanto a um enredo reduzido a “três pancadas”, a personagens despachadas com uma alarmante unidimensionalidade e a ação coreografada consoante à sua ostentação do tecnológico. Por outras palavras, CGI com “fartura”, que por sua vez  são bocejantes para audiências habituadas a videojogos. Embora "Venom" seja um tiro às escuras que atingiu a maciça parede, há como encontrar aqui um tom esperançoso, principalmente no que refere ao trabalho de Tom Hardy em compor uma disputa identitária entre “anti-herói” e o seu hospedeiro (ou será parasita?). O ator endereça-se a um protagonista sem a inserção do comic relief, visto ser ele, em virtude de um slapstick em modo Buster Keaton, o próprio cabecilha das vontades dramáticas e cómicas, mesmo que a comédia revele aqui o seu quê de involuntário.

Por palavras mais precisas, é um entretenimento saído da caixa e ao mesmo tempo com pé dentro para uma recolha fácil, rápida e indolor. Por que como todos nós sabemos, a indústria faz parte de modelos e réplicas desses mesmos, e difícil mesmo é contorná-los. WE… aren’t Venom.

A brincar, a brincar vai o espião à sátira

Hugo Gomes, 03.10.18

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Por mais galhardetes que este Johnny English dê ao Brexit e ao nacionalismo britânico, nada o esconde de ser um exemplar cansado na comédia e uma tentativa acima das suas forças para levar uma saga avante.

Rowan Atkinson até bem pode ser um dos mais talentosos humoristas da sua geração, o qual invocou o efeito clown, reutilizando os velhos gags de um certo período mudo, principalmente no seu alter-ego Mr. Bean, que contou para além de uma concorrida série televisiva, com dois filmes de sucessos variados. No caso da sua outra criação, Johnny English, que mais soa um primo presunçoso de Bean nos Serviços Secretos Britânicos, é mais um olhar ao espelho e auto-satirização dos já prolongados e prescritos clichés do subgénero de espionagem.

Em “Strike Again”, terceiro episódio de mais umas peripécias acidentalizadas, English lança o seu trunfo, a sua capacidade de caricatura revela-o mais moderno e preciso que muitas das missões bondeanas, jogando a seu favor um caracterizado debate (com muita ironia à mistura) sob a evolução tecnológica da arte de espionar. Contudo, não falamos só em modernidade, acentua-se a atualidade que se instrumentaliza como um antídoto ao seu estafado sorriso amarelo. Requisita-se Emma Thompson a figurar uma neurótica Theresa May (sabemos que tudo não passa de uma caricatura) ou Jake Lacy a pressionar o dedo na ferida quando às novas definições de vigilância – do panóptico ao monopólio, unidos dando origem a um vilão mais impressionante que muito do rol de 007, bastando apenas olhar para Mark Zuckerberg)-, e voilá; temos crítica bem-humorada a servir de pano de fundo para as “palhaçadas” de Atkinson.

Sim, comédia inteligente sem nunca deixar o cair o seu disfarce de popularucho objeto de consumo. Mas como havia sido dito no início deste texto, já estava na hora deste Johnny English aposentar-se, assim como Rowan Atkinson em apostar em géneros mais variados (deste lado acreditamos no seu talento fora do riso induzido).

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