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Julgo que, para quem tem o mínimo dos mínimos de literacia cinéfila, Stanley Kubrick dispensa qualquer tipo de apresentação. Não é a porta de entrada, mas sim o corredor que nos leva às múltiplas assoalhadas, e, contrariando a ideia, é um corredor onde gostamos de permanecer, observando atentamente os seus quadros, diversos e ressoados no mesmo estilo — "A Clockwork Orange" (1971), "Spartacus" (1960) ou "The Shining" (1980), basta nomear — ostentando uma meticulosidade obsessiva e um rigor quase clínico na desconstrução do realismo cinematográfico. Contam-se apenas 15 obras, sobrando aquelas cujo desejo não foi cumprido, cada uma explorando um género, subgénero ou exatidão.
Deixemos então de modas e avancemos diretamente para aquele que é o seu objeto mais citado e, quem sabe, mesmo que discutível, o seu filme-fronte: "2001: A Space Odyssey" (1968). A parceria com Arthur C. Clarke, cuja imaginação e inteligência conceptual transbordam da página para o ecrã, deu origem a uma meditação filosófica sob a forma de ficção científica. Como o título sugere, a narrativa transporta-nos para um ano 2001 alternativo, uma era onde o Homem conquistou o espaço e o transformou na sua nova morada. A tecnologia, agora indispensável à sobrevivência, evoluiu ao ponto de criar máquinas capazes de raciocinar autonomamente. Um caleidoscópio de temas fundidos numa representação primitiva — e simultaneamente sofisticada — da ficção científica enquanto género.
Ao contrário do frenesim fantasioso de um "Star Wars" ou de um "Star Trek", "2001: A Space Odyssey" nega qualquer indício de parentesco, transformando o espaço não num lufa-lufa, mas num longo e demoroso bailado, discreto e experimental (já lá vamos ao delírio). Por miúdos, é obviamente um filme que aborrece muita gente, por não deter o fascínio pueril por este futurismo, ao invés disso, é uma contemplação. Kubrick emana desta visão uma crónica humana sobre a nossa evolução — emancipação, poderemos chamar-lhe assim — que dará lugar à nossa evidente ultrapassagem, de Deus para homos, como o divino e nunca entendido monolito daquele icónico início, acelerando o processo de mutação dos hominídeos primitivos, as suas ferramentas de ossos dão lugar à tecnologia, e, por sua vez, a tecnologia assume esse papel de primitiva besta, com anseios de se tornar e tomar o novo “monolito”, o dominante Homem.
Kubrick nunca teve pressa em difundir esta sua interpretação da nossa existência fugaz: uma mise-en-scène minuciosa, uma narrativa que se estende para lá do convencional e uma cadência oposta ao seu imediatismo, planos maioritariamente estáticos absorvem cada gesto dos seus atores, e por fim, a banda sonora! Clássica no seu sentido de epicidade, como de domínio público, veja-se a intemporalidade da abertura do filme — "Also sprach Zarathustra", de Strauss — ao balé flutuante em gravidade zero ao som de "Danúbio Azul". Exemplos que conferem uma dimensão operática à experiência.
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Mas há que falar daquele último ato, daquela psicadélica epifania! Clarke projetou um futuro alternativo, sim, mas foi além disso. As questões que levanta são das mais elementares da condição humana: De onde viemos? Qual o nosso propósito? Para onde vamos? Tudo isto sem recorrer ao conforto da religião ou de outra doutrina de fé. Kubrick e Clarke não dão respostas, apenas ampliam o mistério. E é então que se dá um febril devaneio pela interdimensionalidade, uma ambiguidade existencial, pura abstração e simbolismo, "2001: A Space Odyssey" torna-se, assim, não apenas uma odisseia no cosmos, mas uma odisseia da própria vida.
O maior desafio é chegar lá. Kubrick afasta muitos espectadores com a sua linguagem visual rigorosa, a recusa da explicação e do aforismo. Do meu lado, não encontro nenhuma resposta para o leitor e fiquemos bem assim, com apenas leituras e releituras, porque o Cinema não nos deve qualquer explicação, e nós também não lhe devemos qualquer contribuição. Como tal, o filme pode ser visto como hermético, desafiante ou até cansativo, mas nunca — e acredito na consensualidade deste ponto — nunca irrelevante. "2001" é a ficção científica elevada ao seu expoente máximo, a manifestação de um cinema que pensa e desafia o espectador na sua confortabilidade e no seu saber mais que fundado. Ignorá-lo? Isso, sim, deveria ser um crime.
I’m afraid. I’m afraid, Dave.”