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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"First Reformed" e a epifania do autor incompreendido

Hugo Gomes, 29.06.18

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Paul Schrader sempre fora estudado como um curioso caso isolado. Cinéfilos de gema e com profundos conhecimentos da natureza cinematográfica, por norma, nunca geram grandes cineastas e o invocado é exemplo disso. Por mais esforços que cometa (até mesmo o próprio admite), será relembrado no fim dos seus dias como o argumentista ao invés da sua carreira a solo, esta diversas vezes subestimada na indústria que insere.

Em todo o caso, Schrader é um "outsider'' duma Hollywood que não acredita em si própria, e os seus filmes [dirigidos] são a prova de uma total descrença no sistema como na emanada cinematografia. Contudo, eis que nos chega “First Reformed”, que diríamos ser o fim de uma dificultada maratona, uma corrida de resistência que culmina numa fadiga constante de um autor decepcionante perante os obstáculos que sucedem a (ainda) outros obstáculos. Provavelmente esta é a sua epifania, a desilusão ao tomar conta da figura, e esta projetada no destino da Humanidade por via da sua ferramenta mais íntima.

Sob o protagonismo envolvente de Ethan Hawke (possivelmente o seu papel mais visceral, inerentemente falando), “First Reformed” nos leva, como as palavras indica, a passos cuidadosos para uma igreja secular, o travelling de espera na passagem dos créditos iniciais nos transmite um efeito de reconhecimento perante o cenário que servirá mais que template da narrativa, uma aura fantasmagórica, a ponte invisível entre mortal e o divino imortal. Nela, Hawke, um “pároco” (reverendo Ernst Toller) que perdera o seu filho na Guerra, fustigado por uma angústia silenciosa somente tranquilizada pela fé pregada, ou sem rodeios, uma espécie de analgésico espiritual. Mas é ao encontro de um dos seus “cordeiros”, um ambientalista desesperado pela descrença na tão negligenciada humanidade, que Toller despertará para uma nova realidade, um fosso que parece interligar o seu luto que se revolta para com o estado das coisas que o rodeiam.

Por mais referências que encontremos neste espiritualismo mutilador, de Bresson a Ozu (passando por Dryer e Bergman), que transcrevem os planos e os movimentos destas personagens suicidas, é a autorreferência de Schrader que “First Reformed” triunfa como uma meta atingida. É o “Taxi Driver” do novo século, inserido num mundo no qual têm que partilhar com os imensos “rebentos” do mundialmente conceituado filme de Martin Scorsese (que o próprio Schrader escreveu). É a estrutura intacta a servir de fortalecimento a este grito de ajuda, tal como a igreja que assume -se como vetor narrativo, é a reconstituição moderna perante um “esqueleto” de outros tempos, assim, “First Reformed” sob um tremendo ar bafiento de ’70 (não com isto insinuar que o Cinema precisa diariamente de lufadas de ar fresco) ergue-se numa ousadia modernizada.

Enquanto “Taxi Driver” resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, “First Reformed” olha para o mundo deixado por “Taxi Driver”, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletarismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).

Não saindo da temática das causas, “First Reformed” liberta-se do filme-ficção para endurecer como a causa que Paul Schrader fervelhava no seu negro íntimo. E sob o reflexo das suas paralelas criações (First’ e Taxi’), eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então).

Atenção, daqui fala um anterior cético (à imagem da descrença absoluta de Ethan Hawke) que, também graças à bênção divinal nos braços de Amanda Seyfried, tornou-se num crente. Devastador e destemido. Existem atualmente poucos filmes assim.

Super-heróis (socialmente) desesperados

Hugo Gomes, 28.06.18

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Tudo começou em 2004. A Pixar vivia os melhores momentos da sua jornada pela indústria da animação graças ao sucesso atingido por “Finding Nemo" (aliás o maior êxito do estúdio na altura), mas o objetivo não era seguir os conselhos táticos de “equipa que vence não mexe”. O que fazer depois desse coming-of-age submarino? A resposta foi encontrada por Brad Bird que visualiza o crescente cinema de super-heróis que estaria a dar os seus importantes passos de rejuvenescimento e encontra nele um foco quotidiano e subversivamente sociológico: e se os super-humanos vivessem entre nós, e que fossem condenados às meras vidas humanas, escondendo as suas verdadeiras identidades em prol do mundano?

Obviamente que a questão não era de todo original, a aura destes heróis de collants deriva sobretudo da dicotomia identitária, o disfarce que cada vez mais se confundia com o seu próprio “eu”. “The Incredibles” surgiria, coincidentemente, no mesmo ano em que David Carradine discursa a natureza ocultada do super-herói nos momentos finais de “Kill Bill”, exemplificando um curioso caso, o do Super-Homem. Esta criação da DC, possivelmente a mais célebre do arquétipo heroico, é um ser poderoso cujo disfarce não é nada mais, nada menos que o mero mundano. Segundo o “malévolo” Bill Carradine: “Superman was born Superman. When Superman wakes up in the morning, he’s Superman. His alter ego is Clark Kent. His outfit with the big red “S”, that’s the blanket he was wrapped in as a baby when the Kents found him. Those are his clothes. What Kent wears – the glasses, the business suit – that’s the costume. That’s the costume Superman wears to blend in with us. Clark Kent is how Superman views us. And what are the characteristics of Clark Kent. He’s weak… he’s unsure of himself… he’s a coward. Clark Kent is Superman’s critique on the whole human race.

“The Incredibles” funcionou como um gracioso sucesso de crítica e público, contornando as preocupações iniciais de um filme que parecia confundir-se com as grelhas televisivas dirigidas ao público-alvo. Era mais que cinema de super-heróis, aliás os super-humanos eram só pretexto para uma pertinente crónica sobre a mortalidade e os valores afetivos. Os fãs, então gerados, solicitavam constantemente uma sequela, uma resposta ao jubilante cliffhanger, mas tais desejos foram recusados, por outras palavras, adiados e adiados até contabilizarmos 14 anos ( uma espera que fecundou continuações desnecessárias desde Carros a Dorys, com a exceção de um excecional “Toy Story”, mas isso são outros contos).

Este “Incredibles 2”, agora sem o “The” (mas novamente com Brad Bird), é uma animação sob um batido signo de família e união, porém, esses “trapos” são costurados com peças modernas que dialogam com os novos tempos. Há um lado de emancipação feminina visada pela inversão dos papéis de género. Ele torna-se “dono de casa desesperado”, ela vai de viagem de negócios. Essa troca de identidades sociais é revisada como o pólo criativo desta jornada Pixar, calculado com humor astuto e do coração bem disnesco que se reconhece a léguas.

Contudo, a viagem, por mais agradável que seja, um revisitar a estes heróis calorosos, é ditada por um triste sabor de revisão, de beco sem saída na originalidade hoje tida como raridade. Fala-se por meio de fantasmas da NSA, coloca-se a questão queixada por Alan Moore e a sua obra-prima “Watchmen”, porém, esses ingredientes servem como faíscas de ação e reação num produto que se constrói em terreno seguro.

Quando chegamos a um ponto em que, visualmente, a animação já não parece surpreender, deve-se tocar o botão de emergência da Pixar, há que procurar além da história, novas formas de contá-la.

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

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A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

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"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

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"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

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Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

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"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]

“Vamos falar sobre o teu futuro”

Hugo Gomes, 26.06.18

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Com Denis Villeneuve de fora, sem Emily Blunt e Jóhann Jóhannsson (este último por motivos fatídicos), a sequela de “Sicario” avança entre nós com algum ceticismo. Contudo, vale a pena salientar que este “Day of the Soldado” segue o mesmo registo acinzentado do original. Sublinhando mais uma vez – demasiado cinzento – inclusive para os nossos dias, cuja consciência política parece ter atingido tamanha sensibilidade.

O italiano Stefano Sollima é o novo mestre do leme, trocando uma guerra, anteriormente a máfia “cefalópode” em “Suburra” e na série “Gomorra” por um outro palco bélico –  o verdadeiro confronto armado oriundo do outro lado da fronteira – aproveitando com benefício toda a situação que se vive desta crise de migração ilegal mexicana e dos constantes escândalos fronteiriços da administração Trump. Mas vamos por partes quanto ao dito tom cinza neste prometido thriller de ação.

A primeira sequência tem de tudo para agradar uma certa fantasia trumpista, os terroristas islâmicos vindos da rota dos bad hombres e toda a consciência de um perigo real que cerca a tão “agraciada” América. Sim, é uma pertinência de ideias políticas bastante à direita, ou republicana tendo contexto o universo político norte-americano, é o mediatismo, o medo real ou irracional perante uma aproximação globalizada graças aos medias e a “cachoeira informativa” o qual deparamos constantemente. Através desse “cavalo de Tróia que arrasa os valores democratas, “Sicario” circula para uma outra via, a da militarização, percorrendo os bastidores; um desencantado “Doutor Estranho Amor” que vai “contagiando” o medo maniqueísta criado até então. Os “heroicos” americanos convertem-se nos verdadeiros catalisadores, sob o desejo de um mundo aos seus pés e de uma guerra iminente, incentivada por interesses políticos.

Sollima filma todo o percurso, uma não-discreta “invasão”, como se um filme de guerra tratasse, tão próximo daqueles exemplares decorridos no Golfo Pérsico ou das outras e inúmeras variações em solo árabes. Sim, já perceberam, “Sicario” é, em generalizada designação, um filme de guerra. O Soldado do título resume-se às soluções projetadas para um termino de um conflito imaginário, a Guerra como plano final como se materializa-se no popularizado provérbio de “combatendo o fogo com fogo”.

O realizador responde com confiança ao lugar deixado por Villeneuve (digam o que dizer, “Sicario” era o seu melhor filme), de mão firme nas sequências de ação e dos muitos zenits filmados com a graciosidade dos drones (a inovação e a possibilidade destes mesmo planos graças a este tipo de tecnológica). A realização, é sim, adaptativa aos maneirismos do original, porém, falta-lhe o toque à Michael Mann que o filme de 2015 concretizava com aprumo (mais Mann que muitos filmes do próprio Mann, como verificamos na pertinente cena do trânsito), e à banda sonora da autoria de Hildur Guðnadóttir, a ferocidade monstruosa de Jóhann Jóhannsson.

“Day of the Soldado'' é assim uma continuação esforçada em acompanhar o ritmo estabelecido, tecendo as diferentes ideologias em prol de um realismo teorizado, impondo questões e nunca respostas substantificadas. Se o início é pura urticária a democratas, com os reflexos das últimas demências de Eastwood, já o final encontra essa consolidação política, desde uma emotividade pedagógica que amolece as personagens, passando por momentos finais tenebrosos, negros e repescados a uma ambiguidade sem igual.

Sollima passou o teste de Hollywood, é lúcido que baste e com isso mexe e remexe no argumento de Taylor Sheridan (que vem provando ser melhor guionista do que realizador) com bravura e energia.

Marcada à nascença

Hugo Gomes, 23.06.18

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O título entra em cena sob pesarosas cadências como uma declaração de força, um ativismo pessoal, o punho fechado da autoestima se tratasse (I – Am – Not – A – Witch), isto, após uma sequência invulgar que coloca o espectador ocidental, conformista, de mundo feito e reconhecido em choque com uma sobrerrealidade. Essa, tão irreal que confunde-se como uma distopia fantasiosa do absurdo, porém, este tipo de ritual é inspirado em “factos verídicos”. Tais palavras que servem de um totalitarismo pensante na indústria fílmica, aqui inteirado como sugestão para um drama, por si reconhecível a estas audiências privilegiadas, a emancipação de uma criança … ou pelo menos em teoria.

Mas afinal, o que de tão ridículo encontramos nesta primeira longa-metragem de Rungano Nyoni? Desde uma sociedade ainda regida pelo tribalismo no interior da Zâmbia, até ao preconceito alicerçado ao mito da Bruxa. Longe da imagem ocidental de um verrugosa mulher com pactos faustianos e de má índole, as “bruxas” nascidas nesta savana são “seres” fora do condição humana, temidas e igualmente veneradas perante um estranho método de domesticação. “Não se deixem enganar, ela não é um ser humano, é uma bruxa”, avisa o Presidente da Câmara numa emissão televisiva. Homem de alto cargo político motivado por crenças ancestrais que dilui com a “fé do primeiro Mundo”, a capitalização. Um desses atos de ganância, a apresentação do seu “novo” animal de estimação, Shula (Maggie Mulubwa), uma menina de pais desconhecidos, abandonada à sua sorte após ser acusada de “bruxaria”. Sabe lá a rapariga o que isso é!

Após um julgamento inacreditável, onde as provas são mais escassas que as loucuras proferidas pelos cidadãos de uma vila longínqua, mas a única “casa” conhecida por Shula, a criança que da hora para a outra torna-se uma não-criança. Ou diria antes um não-humano, uma “criatura algo mitológico” – a bruxa – o seu novo estatuto.

“I Am Not A Witch” responde com um realismo seco, um episódico retalho no intuito de preencher uma ideia silenciosamente panfletária, impondo choque cultural e racional para as audiências de “outras realidades”. Sim, diríamos que Nyomi cria e recria um filme bem aos moldes do mercado world cinema, possível interação com este meio, infelizmente, nunca respondendo com exatidão ao ativismo presente no título garrafal. É com humor e com humor que se paga, contorcendo esta realidade numa caricatura plena, como o caso de Shula que usa os seus poderes de “vidente” para pedir auxílio às “seniores” bruxas através de um telemóvel.

São sequências como estas, impagáveis, que funcionam como momentos-chave de uma tragicomédia onde o lado humorístico encontra-se no nervosismo do nosso riso, aquele, envergonhado perante uma situação incapaz de lidarmos. “I Am Not A Witch” está longe de ser um grande filme, mas está perto de nos surpreender pela sua temática bizarra.

"Blue My Mind": a pequena "sereia"

Hugo Gomes, 20.06.18

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Com os seus 15 anos feitos, Mia terá que lidar com as transformações do seu corpo perante a primeira vinda do período. Diríamos nós que é o “prato-de-cada-dia” de qualquer adolescente e que este “Blue My Mind”, a primeira longa-metragem da suíça Lisa Brühlmann, é mais um no vasto território dos coming-of-age. Todavia, as transformações que esta rapariga de olho azul terá que lidar são bem diferentes que aquelas vividas por jovens triviais. O seu corpo está a metamorfosear. Sim, nós sabemos, mas em algo que nem ela própria consegue explicar.

Em teoria, "Blue My Mind" lida com a transformação da criança em adulto, usufruindo dos elementos fantásticos como recorrentes metáforas materializadas. Nesse aspeto, Mia tem na sua própria consciência duas mudanças: a visível (o corpo como falamos); e a invisível (a questão existencial, afetiva e sobretudo sexual). O espectador é a testemunha silenciosa dessas mesmas “anomalias”, assistindo em direto da perceção da sua personagem, partilhando um segredo para com os demais. Brühlmann encontra, sim, uma maneira inteligente de dialogar com as crises de adolescentes, sensível com o universo feminino e com as suas complexidades, que em equação somatória com as “complicações adolescentes” nos levam à porta interdita da “juventude eterna”. Mesmo que esta abordagem careça de originalidade e furtividade, esta é uma obra dotada de perversidade, onde a realizadora cria uma ligação fenomenológica para com o espectador, que reconhece cada drama (mesmo diluído no campo do body horror) como seu.

Até porque serão as jovens raparigas desta geração as sirenas dos novos tempos, inteiradas numa sociedade de estéticas e de prazeres ao virar da página, o autorreconhecimento dos seus corpos e dos seus íntimos, tudo embalado no cinzento da ambiguidade (nesse sentido, apesar das similaridades, é um filme menos onírico que "The Lure", da polaca Agnieszka Smoczynska). Juntamos a jovialidade e a anarquia da atriz Luna Wedler como Mia, revelando-se na estrutura fortalecida deste retrato de passagens de estações.

Ser convencional? Há que possuir uma fria relação acerca de tudo!

Hugo Gomes, 20.06.18

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Acreditar em narrativas aristotélicas? Para Hlynur Palmason, um agnóstico preso a um sistema autoritário de narrativa visual, a resposta é resistir como rebelde “encarapuçado”. Em “Vinterbrødre” (“Winter Brothers”), a sua primeira longa-metragem, o realizador interessa-se na história de dois irmãos que vivem e trabalham numa comunidade mineira, porém, longe do que qualquer sinopse anuncia, este não é o mero conto de fraternidades, aliás, o que testemunhamos é uma ode às marginalidades.

Essas, inteiradas em sujeitos que tentam ingressar numa rotina quotidiana e que fracassam, um pouco como o realizador que revolta-se contra a estrutura clássica do somente “contar uma história de forma percetível” para endereçá-la por vias de signos semióticos e um atentado às iminências e omnisciências do clímax. Ou seja, para qualquer descrente da estética e crente absoluto do argumento (uma das oligarquias do boom televisivo), “Vinterbrødre” encontra-se aterrado de cabeça no seu centro e cuja neutralidade do seu ato (sendo neutro o cúmulo da perversidade, já dizia Claude Chabrol) o estabelece como um bon vivant da narrativa mental e do júbilo visual que não são mais que entreténs para Palmason.

Por entre as simétricas trabalhadas em planos gerais (soa a organização cinematográficas intercaladas com a barafunda dos corpos banhados pela escuridão do subsolo (assim como o solo a adquirir o seu protagonismo nas contribuições ao olhar) que deixam o espectador incapaz de interpretar do que vê e a, por fim, violência em conjunto com um humor requintado que só os nórdicos parecem manter intacto.

Se existe algo que poderemos tirar partido disto tudo são duas sequências que aludem a natureza desta ambição, o VHS que exibe a Guerra (qual delas? Não interessa), o confronto armado que transforma-se numa contorção psicológica, o nascer do trauma a olhos vistos. E a segunda, provavelmente a mais relembrada neste episódio cinematográfico, a história dentro da história, o relato de um cão que reside no seu espaço à espera do dono que não volta mais, assim como o espectador que espera uma resolução fácil, as histórias da carochinha para leigo entender de caras.

Por um lado, há que encarar que esta incursão de misfits é mais densa do que as imagens indicam e mais superficial do que a narrativa e as suas constantes voltas nos levam. Hlynur Palmason tem a atitude, tem o paladar (uma escolha meticulosa dos atores com Elliott Crosset Hove) e a técnica necessária para o rastrearmos futuramente.

Histórias de um "castelo andante"

Hugo Gomes, 18.06.18

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Seguindo rasto na historieta de “mães-monstros” e do chamado white trash norte-americano, o parisiense Vladimir de Fontenay avança com um filme frio sobre afetos como inconfidência naquela que é a sua segunda longa-metragem.

Com personagens encurraladas na sua marginalidade, instáveis como as casas “transportadas” de um lado para o outro o qual servem de temática, o realizador explora a superfície de um mundo ilícito, forçado a existir perante a precariedade, ou até à sedução de tais ecossistemas. Trata-se de um exemplo curioso, mas batido enquanto retrato social. A juntar a isso, o facto de “Mobile Homes” exibir uma derivação no que requer a alcançar uma específica voz estética. Aliás, muitos destes novos nomes emergentes do cinema tendem a abdicar do estilo para enquadrarem-se na linguagem visual dos tempos que o acolheram, ou seja, a televisão pró-espetáculo, e o austero possível da violência frontal do handycam. E é pena que essa “voz” à espera de ser encontrada seja um obstáculo para que Fontenay permitisse o filme fluir como um exercício acima do panorama visto em hoje em dia.

Contudo, esta história de nómadas que sobrevivem através de “migalhas” e “cacos”, os fura-vidas de uma América que parece não os suportar, é em jeito siderúrgico, um frio aço que se vai vergando pelo contrastado calor de um sentimento depositado. Esse, um sentimento maternal, inicialmente repudiado em mais um conto suis generis (assim dava a entender), leva-nos a uma derradeira redenção. Fontenay evidencia de um cuidadoso sistema de cálculo emocional, submetendo estas suas personagens em graduais desenvolvimentos do foro afetivo. Obviamente, que estes seus peões funcionam graças à exatidão dos atores, nomeadamente Imogen Poots, sujeitando-se ao perfil de “farrapo” humano, e o ascendente Callum Turner (num papel pensado para o falecido Anton Yelchin). Pois, Fontenay pôde certamente contar à vontade com os seus intérpretes.

“Mobile Homes” é uma espécie de “castelo andante”, encantado pelo seu próprio desencanto, deslumbrado pela energia que o faz mover perante terrenos vários e ao mesmo tempo desengonçado e a um passo da ruína total graças à “ruidosa” dessincronização. Faltou a Fontenay a afirmação de alguém que deseja ser uma voz, e não um exemplo de um cinema geracional.

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