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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A memória, o legado, o passado e o futuro, os frutos da nossa existência

Hugo Gomes, 25.05.18

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Antes de seguirmos pelos labirínticos registos da existência de Eduardo Lourenço, é preciso falar de Miguel Gonçalves Mendes, realizador que se tem dedicado à evasão do formalismo e o formato academicamente aceite que o documentário português parece ter contraído no sentido em esquematizar “vidas e méritos alheios”. Por sua vez, é também fugaz a distorção dos cânones do docudrama que ultimamente tem caído num poço sem fundo de (não) criatividade. Passando pela lenda de mouras encantadas de Olhão, pela marca pessoal de Cesariny ou do romance que transgride o “eu” artístico e criador de José Saramago, Gonçalves Mendes aventura-se agora, ou deixa-se aventurar, pelos pensamentos de contradições de Eduardo Lourenço, ensaísta, professor e sobretudo “poeta da vida”.

Nesta tendência de condensar um livro da autoria de Lourenço, “O Labirinto da Saudade” (1978), o realizador propõe ao catedrático uma demanda pessoal e pensante pelo seu íntimo intelectual e fá-lo através do uso da tecnologia para colocar um velho sábio em perfeita confrontação com as suas ideias. Este é um caso em que a ideologia e o homem se confundem, parindo uma quimera de conscientização dos fantasmas da nossa nacionalidade, enquanto Lourenço se debate pela sua própria existência. A existência de um paralelismo com o nosso legado enquanto portugueses, viventes de um país traumático, cujas mazelas agora convertidas em lendas e criaturas mitológicas, olharapos da nossa História (“A História é a ficção das ficções”).

As questões deparam-se, aguçadas como adagas feudais, no qual Eduardo Lourenço se defende com a serenidade e a lucidez pelo qual é visto, respeitado e venerado. E dentro dessa divindade, Gonçalves Mendes prepara um altar tecnológico, empacotado entre caixotes dimensionais e náutilos, a espiral logarítmica que nos leva ao córtex da sua concretização, mas ao mesmo tempo à sua tragédia. Por entre esses traumas evidenciados, existem dois que se cometem como pessoais, acima da reflexão pensante dos anteriores.

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A primeira cicatriz do nosso país que Eduardo Lourenço verdadeiramente testemunhou conta com Ricardo Araújo Pereira como o interveniente escolhido para uma exorcização do salazarismo vincado nas nossas raízes (“povo fascista e ‘fascizado’”), ou a análise do “sacerdote falhado”, Salazar em pessoa e a sua cruzada pelo país imaginário ainda hoje invocado com um martirológico saudosismo. O segundo “trauma” experienciado é mais quebradiço, até porque é o futuro que aborda, o futuro da nossa cidadania enquanto europeus, continentais acima de nacionais (“Precisamos mais que nunca ser europeus”).

Essa questão das questões, a bandeja direta ao apocalipse identitário, guia-nos para o derradeiro dos destinos, no qual Lourenço encontra-se consciente. Nada é eterno, porém, “escrevemos como se fossemos eternos”. Quanto à morte, a paragem final, que não aflige a sábios, aliás, porque a “verdadeira morte é a do outro”, nesse campo, Lourenço encontra-se calejado. A tragédia parece se abater nos últimos tempos deste “Labirinto da Saudade", mas Miguel Gonçalves Mendes responde com um reencontro a um legado e fá-lo sob o jeito de um antecipado tributo.

Fora a figura do sábio, que monta e desmonta a sua sapiência através de passos (planeados pela personificação de Diogo Dória), o filme em si, adverte para um sufocante cerco tecnológico e provavelmente não era preciso tantos “confettis” para celebrar tais ideias. Contudo, em defesa a Miguel Gonçalves Mendes, esta assoalhada artificial gira em volta da sua figura, portanto, saúda, e ouve atentamente à sua palavra, ao contrário dos textos que se querem fazer ouvir mas que são emudecidos pelas imagens salteadas de quem não sabe pensar além do seu umbigo. Acreditem, existem muitos autores assim, que se escondem por “correspondências”, mas Gonçalves Mendes não é um deles.

Depois da Guerra Fria, continua a Guerra Fria ...

Hugo Gomes, 21.05.18

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As paixões cercam os tempos negros descritos nesta “fábula” a preto-e-branco. Pawel Pawlikowski, o consagrado realizador de Ida, esse melancólico caminhar nas memórias bélicas e dos horrores em vão, vindos de um país vítima/agressor, uma fonte a ser extraída em “Cold War”. Afirmamos que permanece aqui uma espécie de legado, a ida e vinda de um filme que insere-se e confunde por entre as fatídicas recordações de tempos de amor e ódio, de um conflito visto por entre palas, porque o romance, esse amor platónico que poderia servir como salvação (assim ecoam canções de esperança), resulta num mártir, uma silenciosa perda da sua inocência vendida.

Esta Polónia não se fica pela reconstituição, é um país imaginário que se transforma por entre épocas, e se distancia dos seus protagonistas, porém, sob um falso efeito de segurança (até porque os demónios nunca abandonam as paixões a abater). Nessa mesma nação enfatizada por experimentos sociopolíticos, nasce uma improvável aliança, recolhida através de um ato propagandista de uma identidade em vias de extinção. “Cold War'' começa com um dos desses experimentos, a música a servir mais que um consolo, a perpetuar a História enraizada por entre melodias.

Uma equipa contratada pelo Estado lança-se nessa coletânea de sons e vozes angelicais, uma inicial datação das tradições remotas, as réstias de um país “desaparecido”, para se comprometer numa união de esforços na balada de uma só ideia. Esse socialismo imposto servirá como a aresta picotada desse país que vos falo, e, mais, a expressão antagónica que ameaça o romance prescrito nesta experiência. Assim, nasce esse contexto romântico-dramático que seguiremos ano após ano. A distância, a aproximação, o encontro, a trégua e o choque. O mundo não os quer harmoniosos, por outras evidências, o mundo não os quer juntos.

Entendemos os toques shakespearianos, aliás a tragédia acompanha o percurso sem discrição. Pawlikowski apresenta-nos um amor “impossível” (nada de novo!) mas é na sua inserção que encontramos uma memória. Como a invocada em Ida, em “Cold War” somos remetidos à Guerra nunca vista, porque as atenções estão metaforizadas no bélico dos sentidos. O realizador consegue centrar o classicismo da sua formação e instalá-la nesta conjugação de elementos. Há amor, não através dos elos evidentes das personagens, mas por estas personagens. Pawlikowski deixa claro esse sentimento, até aos últimos minutos, em que desvia o olhar de destinos funestos até à chegada dos créditos finais.

Se “Ida” era considerado um filme frívolo, “Cold War” vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos. Há muito tempo que não se via um romance platónico desta dimensão no grande ecrã, assim como não se presenciava uma dança tão orgânica desde que Luchino Visconti respirava. Sim, é um filme com o seu quê de saudosismo pelo já feito, mas bem empregue neste retrato romantizado de uma guerra sem fim. Até porque finais felizes não existem. Estamos simplesmente “condenamos” a não vivê-los.

Sósia de Ronaldo produziu um “objeto estranho”

Hugo Gomes, 20.05.18

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Coloquemos em “pratos limpos” os reais motivos da primeira longa-metragem de Gabriel Abrantes (em parceria com Daniel Schmidt), existir: por debaixo das caricaturas de Ronaldo e do humor deslocado e desvairado, "Diamantino" tende em seguir uma sátira ácida aos movimentos populistas e nacionalistas que tem crescido por toda a Europa (e não só … Portugal não tem sido exceção).

Nesta feita, partimos para um país imaginário num futuro alternativo e não pouco distante da nossa previsão, para encontrarmos o homónimo Diamantino, o maior craque do futebol, um exemplar perfeito do mundo desportivo. O Midas, assim por dizer, perde o seu dom repentinamente, em paralelo com a morte do seu “querido” pai. O protagonista, sem o intelecto necessário para perceber a sua situação, entra num vórtice existencialista e tenta preencher os vazios com atos humanitários, entre os quais adotar uma criança “refugiada” (sem ele saber que é uma agente infiltrada do Interpol) e integrar a campanha de um Partido Político Renovador (que na verdade esconde uma agenda de supremacia nacionalista).

Carloto Cotta, ator habituado a aventuras foras dos habituais contextos do cinema português (como as obras de Miguel Gomes e o esquecido "Paixão", de Margarida Gil), veste com genica este suposto heterónimo de Cristiano Ronaldo, invertendo alguns maneirismos e distorcendo o seu biotipo (as suas irmãs “malvadas”, interpretadas pelas gémeas Anabela e Margarida Moreira), sem nunca se afastar da proposta caricatural.

Obviamente que essas similaridades são chamarizes para que o espectador embarque na corrente da crítica social e política desta rábula de humor direcionado que dispara com jovialidade e encanto de um visual over-the-top. Aliás, é na sua estética (e digamos, um trabalho astuto no campo dos efeitos visuais), o qual Gabriel Abrantes trabalhou para o conceber na sua jornada pelo universo das curtas-metragens [ver com especial atenção “Humores Artificiais” e o segmento “Freud and Friends” do coletivo “Aqui em Lisboa”], que “Diamantino” parece ganhar um propósito na história do nosso cinema. Um fruto, há muito esperado, diga-se de passagem, das novas gerações e dos olhares (longe de um suposto niilismo) frescos quanto à posição da nossa “indústria” para com o país e com o Mundo.

Se há motivos de celebração, “Diamantino” está longe de ser um exercício perfeito. A ausência de dinamismo na sua concepção e da farsa, que tende em dissipar-se no decorrer da narrativa, tornam-no um objeto frágil como um castelo de cartas. Mas face a estas marés “velhacas” da arte do "storytelling", o filme de Abrantes e Schmidt é um autêntico OVNI que promete, sobretudo, futuras reavaliações.

Há muito tempo que não se via um filme português assim … tão … estranho!

Do outro lado da ressurreição

Hugo Gomes, 19.05.18

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Fora das evidentes referências bíblicas, Lázaro [personagem] é todo ele uma cápsula personificada de uma Itália perdida, à deriva de um biótopo longe da sua adaptabilidade. Para a atriz e realizadora Alice Rohrwacher, esta sua terceira longa-metragem é apenas um sufixo do seu discurso cinematográfico, o de exorcizar um país dividido, não por facões sociais, mas por tomos temporais – passado e presente – sem nunca olhar para o futuro com promissores olhos.

Trata-se de uma Itália congelada pelo tempo, onde o modernismo interpela com as reminiscências quase convertidas a folclore. Nesse aspeto, porventura, levando com sobriedade na moldagem da sua metáfora, “Lazzaro Felice” é, em linguagem simplista, um conto. Preservando a ingenuidade de fachada que esses termos dispõem com prazer, é um efeito-chave de questões sociais, políticas-financeiras, instalados numa montra, obrigando o espectador a espreitar tamanho fascínio por entre os adereços ostentativos da exposição.

Os fluxos migratórios, essas crises em que todos parecem reservar opiniões, são transitados (ótimo termo para a temática) para territórios domésticos. Num país “faz-de-conta” – assim o espectador se aperceberá graças a uma eventual reviravolta sem as antecipações shyamalianas – os camponeses vivem restringidos a uma terra isolada, contornada por um rio; a fronteira vista pelos seus próprios olhos. Cada camponês nasce e vive com o conhecimento de que é património de uma Marquesa, uma “aristocrata fabulista” que vive nos confortos do seu decadente castelo. Esta imensa “farsa”, um engano que leva a uma involuntária ignorância (sem com isto inibi-los de gestos e atos voluntários) por parte deste coletivo, é só uma camada para este embuste, desta vez sob tons de próprio inocente engodo.

Assim, somos introduzidos a Lázaro (um estaticamente doce Adriano Tardiolo), o conhecido “tonto” da comunidade, quase um autómato devido à sua incapacidade emotiva e sobretudo intelectual. Mas como o título sugere, “Feliz como Lázaro”, este consegue ser o mais satisfeito em todo este enredo. Mas essa sua felicidade fantasiada é só a mentira contada ao espectador para o negar da principal consciência fílmica de Rohrwacher, assim como a escancarada menção bíblica, porque na verdade o que evidenciamos é uma Itália vivida numa prolongada burla, uma mentira não tão doce e igualmente discriminatória e castradora.

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A realizadora articula todas essas variações e perpetua um cinema em constante saudosismo para com o seu legado. Por entre o rocambolesco de um Ettore Scola ou do tradicionalismo espiritual de um Ermanno Olmi (contraindo também uma ruralidade digna de “L’albero degli Zoccoli”), há que encontrar aqui, até porque o principal ingrediente está na mentira e como esta é forjada e mantida, especiarias do próprio Fellini. Sim, existe em “Lazzaro Felice” todo um cocktail de referências e tiques que se mesclam dando origem a um objeto cuidado, mesmo que a sua aparência seja sobretudo intuitiva e “sujamente” desleixada, uma metáfora a ser lida em qualquer que seja dos lados a começar.

Infelizmente, está longe da caricatura suspensa de “Le Meraviglie”, mas está perto de aquecer o nosso coração cinéfilo e acima de tudo acreditar numa cinematografia absolutamente grata aos seus mestres. Agora só esperamos que Itália veja o seu Cinema a seguir as pisadas de Lázaro, ou seja, a ressuscitar. Não apenas a voltar à vida, mas encarando-a com nova vida

A união faz a guerra

Hugo Gomes, 16.05.18

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A união entre Stéphane Brizé e Vincent Lindon não é novidade alguma, porém, é a constituição deste "En Guerre” … não a dupla … mas o próprio conceito de união. O ator é novamente um dispositivo narrativo nas mãos do realizador, que após a catarse da condição do (des)empregado e do mercado de trabalho que fora “La Loi du Marché”, converte-se num símbolo de uma luta sindicalista.

É uma guerra vivida no centro da modernidade, fora dos territórios bélicos que surgem em meio de um senso comum. Aqui as armas são outras, a determinação é a munição do seu infante e a negociação a artilharia pesada. Lindon é assumidamente um capataz, um general de forças humanas que se condensa como uma massa coletiva, uma multidão que resume-se em si na personagem fatal. Obviamente que Brizé regressa ao seu registo de quotidiano, a realidade encenada que tão bem emprega, mas convém salientar que “En Guerre” existe uma vergência, um afastamento dessa mesma restrição.

Em toda a sua narrativa, a batalha “campal” de Lindon é despojada de qualquer dramaturgia sobrejacente, tudo aqui é imposto e exposto como a graça de mimetizar o real em confundir atores com os não-atores, e através desse sistema ancorar numa certa pedagogia de à lá Laurent Cantet. Mas a continuidade da ação é abruptamente intercalada por outra encenação, um falso mídia que em modo flash news garante-nos como outro dispositivo narrativo, forjando assim a rápida sucessão dos acontecimentos. Sabendo, fora dos termos práticos de tais veículos narrativos, estas escolhas de Brizé endereçam-se como uma representação do chamado “Quarto Poder”, o papel de moderação que a imprensa possui. Toda esta construção e distopia entre as frentes sindicalistas, as lutas dos trabalhadores em desespero, com esse registo dentro de um registo por parte de uma fictícia imprensa, colidem para nos entregar um filme politizado no gesto; para os mais infamados será “esquerda” a definição a utilizar. Portanto, há ferramentas de ativismo neste "En Guerre”, evidenciando a jornada de Brizé perante as diferentes bifurcações do mercado de trabalho, como se tudo se reduzisse a uma passagens de etapas cíclicas.

Agora, repescado à essência do termo coletivo, é de valorizar o cinema francês como o grande herdeiro das representações pluralizadas de Sergei M. Eisenstein (assim por alto recordo do muito esquecido “La Bataille de Solferino", de Justine Triet). “En Guerre” é essa resistência pela diluição do indivíduo e a criação de um “monstro” pluriforme e quimérico – quando as massas humanas se tornam elas próprias na personagem.

Só é pena que Brizé se traia a si próprio, cedendo ainda mais pelo simbolismo da sua luta e do ator-fetiche, como se pode observar num final desesperante e personalizado para com os demais. Contudo, esta é das obras mais impactantes da sua filmografia recente.

Mixórdias à moda de Jia Zhangke

Hugo Gomes, 13.05.18

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O fascínio mórbido de Jia Zhangke pela decadência do Oeste, através da desconstrução das suas imagens de marca, revela uma descrença do realizador pela dita globalização,  temáticas ou declarações fílmicas já pronunciadas e de forma mais evidente nos anteriores “Mountains May Depart” e “A Touch of Sin”. Em “Ash is Purest White”, novamente determinado na sua jornada, o cineasta cede a uma verdadeira utopia cinematográfica, frente a uma suposta distopia que encontramos na sua referida obra de 2015 [“Mountains May Depart”]. Nesse caldeirão de elementos, a sua câmara regista uma indiferença pelas diferentes nuances e tons. Se o metafórico se confunde com o realismo, a ficção com o documental, o heroísmo com o antagonismo ou o vitimismo com o belicoso, um poço leva-nos a uma mistela uniforme e unicolor, endereçado a uma espécie de “farinha do mesmo saco”.

E nessa fusão reforçada, Jia Zhangke filma o romance em conformidade com o crime sem cair nas armadilhas da transgressão passional, num registo que povoa um território cinzento algures no consciente da nossa moralidade. Sim, “Ash is Purest White” é essa distinção da cinza, a ambiguidade materializada, como a mais digna das cores a vestir, é um Cinema sem a palavra do julgamento. Com isso, surge um sentimento mais avesso à ocidentalização, com Hollywood e os seus círculos morais a serem as novas vítimas dessa fragmentação simbólica de Jia Zhangke.

A atriz Zhao Tao é novamente a arma do crime, como sempre cúmplice do realizador neste seu percurso. Ela, integrando o papel da mulher num ciclo ilícito inteiramente masculino, a perdida dama de Xangai que apela por esses códigos neo-noir, desprendendo-se disso mesmo na sua busca inerente e emocional. A atriz corresponde com exatidão a essa serventia imposta por Zhangke, a boneca ideal por essa China profunda em plena segmentação. Todavia, ela não é somente a infiltrada nessa doutrina autoral. Há um compromisso com a câmara, uma vontade indómita de atribuir a vida a uma natureza morta sem vias de ressurreição (“Still Life”).

Numa das sequências mais vibrantes desta obra, num ajuste de contas à mercê de todos, Zhao Tao prepara a sua intervenção de arma em punho. Os seus movimentos acompanham os devaneios territoriais da câmara (ou será vice-versa?), uma submissão como flautista e a sua naja embicando e bailando perante as mais antigas lições de cinema. Como já diria Griffith, para um filme basta uma “arma e uma mulher”, e  “Ash is Purest White” é mais uma lição ocidental que Jia Zhangke prescreve com essa emancipação balística.

Um turbilhão que se afasta da metáfora prolongada de “Mountains May Depart”, um “monstro” frankensteniano que interpela o Cinema como uma arte de criatividade quase eclética.

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