Michael Anderson (1920 – 2018): o ilustrador de distopias e das certezas
Michael Anderson
Dominique (1979)
Around the World in 80 Days (1956)
The Quiller Memorandum (1966)
Millennium (1989)
Orca (1977)
1984 (1956)
Logan's Run (1976)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Michael Anderson
Dominique (1979)
Around the World in 80 Days (1956)
The Quiller Memorandum (1966)
Millennium (1989)
Orca (1977)
1984 (1956)
Logan's Run (1976)
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Katherine Hepburn
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No cinema português existem vários pecados; os autores passivos que esperam pelo financiamento fácil, os realizadores convertidos à indústria e com isso uma evidente perda de identidade cinematográfica e no caso de Luís Diogo uma recusa pelo legado da nossa cinematografia em prol de uma folha de rascunho.
Não é ao acaso a utilização da palavra pecado aqui, Luís Diogo para além de ter na consciência a maldição que foi o argumento de “A Bomba”, de Leonel Vieira (aquela obra que se tornou num assombrado “mito urbano”), experimentou a realização-a-solo e sob autodidatismo empreendedor (dou graças a isso) com “Pecado Fatal”, onde cometeu o seu primeiro grande erro – uma promoção sobretudo ignorante (“um filme para quem não gosta de cinema português”) – tendo resultado num produto amador aos mais diferentes níveis. Mas apesar do equívoco, um realizador não se faz de um filme apenas, sendo que é com algum entusiasmo que sigo em frente para uma segunda longa da sua autoria, com a esperança de assistir aperfeiçoamento e sim … redenção.
Mas é com tristeza que saio deste “Uma Vida Sublime”, até porque Luís Diogo demonstra alguma ocasionalidade nas suas ideias (basta recordar o seu contributo no “Gelo”, do pai e filho Galvão-Teles). Todavia, aquilo que acabo de presenciar é uma falta de talento e de garra em conduzir um filme para o seu propósito de Cinema. Existe uma cena em particular que demonstra exatamente isso: um plano conjunto onde uma família reúne para consumir a sua refeição matinal. Aqui encontram-se concentradas várias ações distribuídas por quatro personagens, cada uma delas operando por si próprias mas com um foco principal no cansaço do casal (pai e mãe), tendo como representação um episódio envolvendo uma “taça de cereais”. Existe muita informação aqui, o propósito desta mesma cena é evidente e nisso estamos de acordo com a visão do realizador, porém, algo de errado se passa. O plano não obtém a profundidade necessária, a câmara é incapaz disso e a ação principal, que poderia manipular a nossa atenção com um cuidado quase “velasqueano” (o segundo plano jogado como o primeiro), é simplificado à mão de semear pelo espectador deixando o resto da ação (o pedinchar de um telemóvel por uma das filhas do casal) num total desaproveitamento.
A nível técnico estamos esclarecidos, passamos agora para o interpretativo e nesse termo confrontamos com uma agravante. Luís Diogo é incapaz de se comportar como um director de atores, é insciente a captar e incentivar nos seus colaboradores desempenhos verdadeiramente convincentes, e a cena referida anteriormente é contagiada por esse mesmo mal. Esse, que nos leva a outro – os diálogos – a somente ponta do iceberg para a escrita do filme. Se deparamos uma ideia ou outra inserida com convicção, no seu todo somos atingidos por um argumento costurado com tiques e manias dos “rodriguinhos” do género de terror (um Saw à Portuguesa, resumidamente), onde não faltam pseudo-filosofias de autoajuda como moralismos quase propagandísticos e ditatoriais. Ainda temos os diversos absurdos, mas não vale ser drama queen nesse sentido.
Sim, “Uma Vida Sublime” é um objeto longe da sublimidade prometida, a milhas da perfeição o qual esperava ser colhido e sobretudo do dito ativismo contra o Cinema Português no geral (hipocrisia, visto que Luís Diogo pertence a essa “comunidade”, quer queira, quer não) que estes filmes tendem em evidenciar. Está uns quantos “passos” acima de “Pecado Fatal”, mas sem grande efeito e significância.
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André Gil Mata
Sarajevo é uma cidade abalada por espectros de uma Guerra não tão distante e o português André Gil Mata aventura-se a codificar esses mesmos espíritos em “Drvo” (“A Árvore”). Porém, o exorcismo é falhado, e o desvendar converte-se automaticamente num retrato de impressões e alegorias atmosféricas. Essa Bósnia sob cicatrizes poderá responder como um alarme aos tempos “negros” que ameaçam decorrer nesta Europa.
Um projeto que nasceu de uma imagem, esta materializada por um realizador num país que não lhe pertence e que promete abordar sob uma língua universal – o Cinema. Conversei com André Gil Mata sobre as suas paixões, medos e das experiências adquiridas em Sarajevo, quer na cidade ou na escola FilmFactory, na qual doutorou-se, sob a orientação do cineasta húngaro Béla Tarr.
Segundo as notas de produção, a ideia para este filme surgiu através da imagem de uma árvore.
Há 5 anos atrás cheguei a Sarajevo e encontrei uma cidade coberta de neve, a qual não conhecia superficialmente, e essa relação com a História e de não conhecer os lugares, fizeram-me sentir pequeno e incapaz de filmar aí, apesar de Béla [Tarr] nos propor a filmar automaticamente.
Realmente, foi durante a ida a uma zona da cidade, não tão central, que deparei com uma determinada imagem. Um rio, um homem e fumo. No centro disto, uma árvore despida enraizada na neve. Registei esta mesma imagem na minha câmara. E tendo em conta o facto de Sarajevo ser uma cidade profundamente vivida pela Guerra, aliás, esta encontra-se presente na arquitetura (os buracos das balas, por exemplo, que sempre relembram a passagem do conflito) e das pessoas, na sua postura no qual caminham com o pesar de uma assombração. Essa, porque juntou com este espírito vivido na Cidade, por estes fantasmas que auferiram simbolismo aquele simples retrato.
Nisto criou-se uma obsessão pela repetição das nossas ações, independentemente dos anos, das pessoas, da História e do estado do Mundo. Aquela Guerra poderia, ou poderá voltar a ser repetida.
Sim, repetida. Aliás, o seu filme embarca nesta demanda por fantasmas.
Sim, no meu conhecimento foi uma Guerra que terminou no conflito físico, digamos, mas é uma Guerra que não está resolvida, porque nos meus olhos, as questões nacionalistas permanecem ainda dentro das pessoas, como em certas zonas. Comporta-se como um eco, uma latência de nacionalismos por questões que foram incendiadas por determinados sectores políticos. À imagem disto, é o que está a acontecer um pouco por toda a Europa. Existem e continuam a existir incendiários, de forma a assumir controlo, tal como noutros tempos. Na verdade, estamos a recuar socialmente e politicamente e a ideia do filme começou por surgir dentro desse ciclo de repetições dos erros humanos. Continuamos a errar como fizemos anteriormente. Não aprendemos nada com isso.
Mesmo sendo assombrado por estes mesmos espectros, existe um receio em abordar criticamente este cenário, visto que é uma apropriação cultural e histórica. Nesse sentido, você fez um retrato do conflito, evitando qualquer tendência de crítica ou de denúncia.
A apropriação da Guerra, quer dos Balcãs, como da Segunda Guerra Mundial, é algo que não posso fazer porque simplesmente não o vivi, logo não sinto capacidade nem dever de tomar um partido. Se eu entrasse na cedência de um partido, estaria a entrar nessa lógica de pensamento que originou estes conflitos. O que tento fazer é uma reflexão desses nossos erros. Não estou a pôr em parte quem fez os erros, ou olhar de cima e apontar que “aquele determinado errou”, e descrever os erros. É mais uma tentativa para pensar naquilo que está a acontecer, quer ali, assim, como em outros pontos, na Europa e no resto do Mundo. Creio que por vezes vivemos as nossas vidas sem refletir sobre isso, o que nos coloca numa posição igual a estes pequenos conflitos como podem incendiar, ou que incendiaram na Segunda Guerra, ou nos Balcãs. Não sei de onde vem essa raiz da apropriação de território, invasão, extermínio por parte do Homem. Mas uma coisa é certa, é algo que me transtorna.
"Drvo" / "A Árvore" (2018)
Até porque o cenário da “A Árvore” consegue ser universal. O inimigo, apesar de presente, é invisível, e nessa invisibilidade é lhe atribuído o medo. Recordo a personagem da criança que corre desalmadamente na floresta e que identifica o perigo como “Fascistas”. Até que ponto este filme não serve como um alarme à expansão do pensamento da extrema-direita na Europa que vemos atualmente?
Admito que também é um medo que eu próprio tenho. Sinceramente, vivemos numa democracia em Portugal e o facto de estarmos encostados no oeste, desvia-nos um pouco a nossa atenção a este fenómeno. Também pelo facto de nunca termos passado por nada aqui nos últimos anos. Felizmente! E nesse ponto sentimo-nos agraciados pela sorte de não vivermos um conflito recente, apesar do Ultramar ainda encontrar-se na memória. Fora isso, vivemos na ideia de habitarmos numa espécie utopia. Harmoniosa utopia.
Mas para além da fronteira portuguesa, testemunhamos manifestações em França, onde a Extrema-Direita assume papéis políticos, ou a Catalunha com os políticos a usar as mesmas armas que foram usadas em outras guerras. O de colocar as populações numa frente quase incendiária de nacionalismo cego. São cenários que nos podem amedrontar, mas acima de tudo devemos refletir e não deixar influenciar por estes discursos de loucura. Temos que pensar sobretudo naquilo que a História nos ensinou, o que isso provocou, o terror de outros tempos. Temos que viver com essa consciência .
O seu filme é praticamente composto por planos-sequência e aí devo perguntar: para ti quanto dura um plano até este perder o seu simbolismo?
O plano dura, não por simbolismo, o tempo em que o próprio plano se assume daquilo que nós imaginamos. Há um determinado momento em que é o próprio objeto filmado que adquire força acima de qualquer ideia, rebeldia contra o que imaginamos anteriormente e aquilo que pretendíamos filmar. Aí, o plano ganha uma identidade própria e autodefine essas definições. Quando estamos a filmar sentimos o quanto o plano vive, ou seja, não devemos programar que o plano y deve ter x de duração, o que importa é dar a vida a esse mesmo plano. E dar-lhe os elementos de forma a que se auto-construa.
Depois há a questão da montagem e o sentir essa duração. O tempo que não seja de forma racional (começa aqui e tem que acabar ali), e sobretudo procurar quando um plano está vivo e até onde ele mantém essa vivacidade. É quase como jogar um puzzle, basta juntar as peças. A música, por outro lado, poderá servir como um auxílio dessa duração e atribuir os mais diversos suplementos, por exemplo, a tensão ou a emoção. Depende muito da intenção. Acho que um plano, antes de filmar não sabemos o quanto durará.
Mas num pensamento academista há a regra de que um plano tem que obedecer a um x tempo.
A única academia que efetivamente eu tenho é a Matemática, e o que ela realmente nos diz são determinadas regras. Porém, nunca uma limitação. Há uma noção de infinito. O facto de termos regras, o conhecimento delas, permite andar dentro do jogo, mas nunca a imperatividade de usá-las. O academismo não é algo que me assiste.
Quanto ao plano, estarmos a controlá-lo é limitar o seu potencial enquanto elemento.
Quanto às influências de Béla Tarr?
Acho que ele me influenciou mais como pessoa do que propriamente como cineasta. Não sinto. Antes de o conhecer pessoalmente, era mais influenciado pela obra dele do que sou hoje. Conheces a pessoa, passas o dia a dia com ela e isso ajuda-te a desmistificar essas questões de idolatria ou de veneração. Ele tem um carácter bastante forte, o que nos poderá afetar de certa forma. Creio que … sei lá, qualquer indicação de procurar ou repetir a linguagem que é dele, é realmente algo que até a ele provoca confusão.
Gus Van Sant, por exemplo, diz que o cinema dele o mudou. Descobriu outro cinema após ver o “Sátántangó” (“Tango de Satanás”). Para mim, o filme que me fez olhar para outro cinema foi “Ao Sol do Marmeleiro” (“El sol del membrillo”) de Victor Erice, ou os “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut. São coisas que nos mudam, mas não nos modificam, e sim … transformam-nos. Não no sentido de sermos miméticos ao trabalho em causa
Não sei a que ponto fui influenciado para “A Árvore”. Obviamente temos a influência das pessoas que nos rodeiam.
Voltando atrás no tempo, o André tirou a licenciatura de Matemática antes de se aventurar no Cinema.
Na verdade, concorri à Escola de Cinema e não me aceitaram, e a única coisa que me fascinava para além do Cinema era mesmo a Matemática [risos].
Tentei estudar Cinema sozinho, no Porto, o que tornava a tarefa menos acessível, visto que a cidade não apresenta as mesmas regalias culturais de Lisboa. Por exemplo, não existe lá nenhuma Cinemateca. O facto de ter nascido numa cidade pequena também não me ajudou, sendo que os videoclubes tornaram-se de alguma maneira a minha escola. A única forma de aprender Cinema era através do aluguer naqueles dois videoclubes existentes na cidade. Os donos desses estabelecimentos foram realmente os meus programadores de Cinema.
"Drvo" / "A Árvore" (2018)
Esses “tempos difíceis” cheio de decisões difíceis – Que filme irei levar esta noite? [risos]
Pode parecer meio anedótico, mas é a verdade. O que também me ajudou, foi na altura da minha adolescência ter aberto um Cineclube na cidade vizinha [Santa Maria da Feira], que apresentava uma programação, na altura, fora deste país. Ciclos e retrospectivas inacreditáveis, que muitas delas apenas se fizeram ali. E foi aí que deparei-me com o outro Cinema.
E é triste que atualmente os Cineclubes não apresentem essa ousadia. Obviamente, grande parte deles sem apoios e muitos dos que há, apenas subsistem com as “sobras” das salas das Grandes Cidades. Perderam a sua identidade.
Exerceu os cargos de curadoria no Festival de Cinema de Santa Maria da Feira, entre 2001 a 2008, e um ano depois concretiza a sua primeira curta-metragem ["Arca d’Água"]. A questão é, enquanto curador do festival procurava nos filmes o mesmo que tenta alcançar com as suas produções?
Sai da curadoria para fazer a minha primeira curta e gostava que essa estreasse naquele festival, porque esse mesmo dizia-me muito em termos afetivos. Então saí por questões éticas, não havia senso em julgar o meu trabalho. Saí para que pudesse julgá-lo e o selecionassem ou não para o festival. Foi mais nesse sentido.
A minha curadoria no festival foi em outra escola de Cinema, a oportunidade de poder discutir filmes com todos aqueles que fizeram parte do comité selectivo e posteriormente com os próprios realizadores. Resultou numa experiência enriquecedora.
Agora, as duas experiências são completamente diferentes, tenho objetivos completamente distintos em ambas.
E em relação à ida a Berlim, como se sente pelo seu filme ter sido selecionado?
Primeiro de tudo, sinto-me angustiado por ter terminado o filme. Para mim os filmes são como paixões e quando os termino sinto que estou a terminar uma relação, ou simplesmente essa paixão vai embora das nossas vidas sem dizer adeus devidamente e ficamos desolados por não poder amar mais. Neste caso, não poder trabalhar no filme.
Quanto ao festival, sinto-me nervoso quanto a essa exposição, onde pessoas vão ver essas paixões, obsessões e cada um interpretará à sua maneira. De certa forma, essa loucura que durou x anos, que me fez pensar que era a única coisa que amava, acordava e deitava a pensar nela, e no fim, já não nos pertence. Tentamos entender se estamos a apaixonar pelas “pessoas” certas ou simplesmente vamos sair iludidos.
Depois existe essa questão subjetiva, sabendo que nem todas as pessoas vão gostar do filme. O facto de pelo menos gostar do filme é bom, porque já não nos sentimos tão isolados nesse rodopio amoroso.
E novos projetos?
Tenho ideias, mas ainda é emocionalmente cedo. Sinto que acabei de sair de uma relação e o meu corpo precisa de um certo tempo para avançar para outra paixão.
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O nome Wes Anderson é por si, um convite extremoso para os nossos sentidos e um filme como “Isle of Dogs”, tendo em conta a sua natureza técnica e tecnológica (uma animação stop-motion), revelasse num desafiador deleite para os mesmos. Desafiador? Sim, porque este regresso do realizador texano a este tipo de animação artesanal (nove anos depois de “Fantastic Mr. Fox”) é a prova das possibilidades atingidas pela arte do stop-motion, um filme que constantemente cumpre os obstáculos que voluntariamente depara.
Para muitos poderá ser uma prova de exibicionismo técnico, aliás apoderar de um “know how” com tamanha destreza e tendo especial dedicação ao detalhe, em simultâneo com a preservação das características reconhecíveis do cinema de Anderson, é acima de tudo uma declaração de ego justificável. Como tal, é impossível falar de “Isle of Dogs”, o filme, e separá-los das aventuras tidas e contidas do realizador. Poderá ser este o universo partilhado de requinte que não se envolve em manobras gritantes de easters eggs gratuitos? Ao jeito deste mesmo mundo cinematográfico, “Isle of Dogs” joga numa aventura exposta em diferentes camadas narrativas, interpolada pelo lirismo representado por cada uma das personagens.
Wes Anderson invoca a memória de Akira Kurosawa (em espírito sonoro) como ingresso a esta sociedade nipónica faz-de-conta, adereçado ao estereótipos de uma imaginário ocidentalizado, mas crente ao signo cinematográfico (este é um Japão evidenciado no Cinema e na sua cultura pop). Da mesma forma que as personagens / marionetas são insufladas não com as idiossincrasias dos atores que emprestam voz (o elenco é impressionante), mas sim, da continuação autoral do norte-americano. Ao mesmo tempo que espelha um sentido claro de alusão político-social em todo este cenário. É que em “Isle of Dogs”, remetendo o espectador a um futuro distópico, os cães são marginalizados, aprisionados numa ilha de lixo à mercê da sua sorte. E aí entra Atari, um jovem que parte para essa mesma ilha com o intuito apenas de reaver o seu anterior “amigo de quatro patas”, uma missão que será facilitada com o auxílio de cinco cães “alfas” (Chefe, Duque, Rex, Rei, Boss), sem saber que esta demanda terá consequências na sociedade que os abandonara (“o que será do melhor amigo do Homem?”).
Uma revolução iminente que oscila pela fabulação do Oriente neomedieval e da transladação cultural (este Japão é sobretudo um travestido EUA dos últimos tempos, cego e ideologicamente isolado do resto do Mundo). Contudo, é neste último ponto que entra a cedência de Anderson para com a sua pintura, o moral high ground que parece residir na personagem ocidentalizada, uma aluna de intercâmbio (com voz de Greta Gerwig) composta por um ativismo de sonho yankee. Se os estereótipos (nada de ofensivo portanto, apenas uma leitura best hits cultural) formam em parte uma visão estrangeirada de um Japão artificial, é bem verdade que é através desta possessão identitária que Wes Anderson encontra a sua voz mais radicalizada.
Contudo, nada que impeça a apreciação da invejável estética obtida do stop-motion, prevalecendo como uma maravilhosa performance de materialização. Em certa parte é um haiku (poema japonês), cuja tradução … bem essa … mencionando a silenciada tradutora para com a honestidade libertada e revoltada do pequeno herói – “eu depois vos traduzo”.
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Teórico fílmico, investigador, crítico e professor do Pratt Institute, Jonathan Beller trabalha constantemente para desconstruir o valor simbólico da imagem e relacioná-la com a perceção do espectador. Os seus livros [“The Cinematic Mode of Production”] referem esse vínculo profundamente psicológica da audiência para com o Cinema, e tal a extensão para o lado mais politizado do visual.
Beller esteve presente em Lisboa, mais concretamente na Cinemateca Portuguesa como um dos intervenientes da 2º edição do Laboratório do Ciclo de Encontros “O que é O Arquivo?”, de forma a debater a importância do Arquivo e da Imagem no ponto de vista social e antropológica.
Nesta conversa, abordamos os seus objetivos assim como do arquivamento, passando pela raiz do seu trabalho e do seu fascínio pelo Cinema das Filipinas.
É sabido que esta é a sua primeira vez em Portugal, o que está a achar do país até então?
Bastante agradável, Portugal é tudo aquilo que esperava. Provavelmente melhor. As pessoas são amigáveis e o ambiente é absolutamente relaxante.
Começaremos por falar sobre o seu trabalho bibliográfico, como por exemplo o seu livro The Cinematic Mode of Production. É curioso como você habilmente mistura a natureza das imagens com questões políticas. Recordo que utiliza inúmeras vezes a palavra Marxismo para clarificar a economia simbólica das mesmas.
Ou seja, o meu trabalho é marxista e lírico? [risos] Para dizer a verdade, não uso a palavra ‘Marxismo’ como um conceito ou uma teoria, apenas desenvolvo as minhas doutrinas das imagens através das ideias fixas do marxismo e do capitalismo. Dessa forma enuncio a organização da qualidade consoante a evolução das tecnologias visuais e assim das estruturas financeiras.
Gostaria de invocar a pergunta que serve de título para este evento-ciclo: O que é O Arquivo?
O Arquivo é uma questão que tem muita atividade em diferentes sentidos. Um desses, é que senão existir acesso ou oportunidade de “navegar” no arquivo experienciamos uma sensação de empoderamento. Cuja realidade destes é fabricada por aqueles que têm o controlo do Arquivo, sendo que, principalmente no caso dos EUA, há uma tendência de fabulação dessa mesma realidade através da ausência / lacuna. Contudo, existe outra questão a ser feita: o que pretende ser arquivado ou merecer esse espaço? E de que ponto as novas descobertas pretendem inserir-se no mesmo? Será que existe legitimidade social nesse campo?
O que pretende atingir com a sua intervenção neste evento?
Nesta conferência espero elucidar que o Cinema é um “world making” (um “criador de Mundos”) e que a programação é um algoritmo que faz com que as pessoas acedam ao arquivo, fortalecendo assim o seu próprio conhecimento. Mas o meu trabalho de pesquisa não se baseia simplesmente na questão do Arquivo. Eu trabalho sobretudo, naquilo que apelido de “Imagens Programáveis”, o qual uma imagem é utilizada para organizar espaço social, assim como desejo e pratica. Nesse sentido, o autor destas imagens transmitem o seu significado, como por exemplo espelhar nelas a promoção dos ideais do capitalismo ou da supremacia branca. Mas tal difere do autor e as suas próprias ideologias e objetivos. Este problema com a criação de imagens afeta todos nós, até porque estamos a produzir em massa novos conteúdos. Para tal devemos fundar novos arquivos, programá-los ou reprogramá-los para que a imagem torne-se num símbolo de resistência.
A Short Film About India Nacional (Raya Martin, 2005)
Curiosamente, quando usamos a palavra Arquivo, somos levados à preservação de um certo espólio cinematográfico, sendo esse um dos papéis fundamentais das Cinematecas. Contudo, a minha questão é, com toda esta preocupação com o material fílmico físico, é possível o digital assumir um papel de salvador dessa conservação patrimonial cinematográfica?
Respondendo diretamente à tua pergunta, não. Todavia, o digital não é sinônimo de objeção nem sequer de neutralidade, as pessoas tendem a esquecer que o digital emerge como parte da História de uma espécie. Porém, não quero responder quanto à nossa manifestação enquanto espécie ou enquanto História. Essas questões cabem ser respondidas pelo filme em si e não pelo formato. Outra questão a ser respondida é aquela que tenho lecionado em palestras, o facto destes arquivos serem compostos por materiais físicos como bobines, fitas, ou o que quiserem chamar, e a sua relevância quer cultural ou social.
Relembro um cineasta filipino, o qual tenho colaborado em muitos trabalhos, Raya Martin, que realizou um filme chamado “A Short Film About India Nacional” (2005), no qual retratava eventos ocorridos durante a independência das Filipinas em relação à Espanha. A obra foi dirigida como se tivesse sido concretizado em tempos do “Early Cinema” (Cinema Primitivo). Os movimentos de câmara, a fotografia, os intertítulos, tudo executado a mimetizar aquele período em contexto tecnológico. O curioso é que muitas das situações do filme decorrem em 1893, ou seja, muito antes do nascimento oficial do Cinema, e como tal ele é criado de forma a constituir uma ausência do arquivo no panorama filipino.
O que quero dizer é que, sem o arquivo, os filipinos não teriam poder enquanto colónia, e sobretudo não teriam acesso ao real. A destruição deste património físico poderá ser encarado como uma prática de colonialismo.
Tem um fascínio enorme pelo Cinema das Filipinas, inclusive tem trabalhos bibliográficos nesse sentido.
Sim, interesso-me bastante por este Cinema, aliás, por toda a sua cultura artística. Foram precisos 6 anos de investigação para conseguir concretizar o livro "Acquiring Eyes", que foca principalmente o cinema social-realista das Filipinas. Muito deste Cinema surgiu em ambiente de opressão ditatorial, mas mesmo assim são poderosas obras de arte.
Curiosamente, aqui em Portugal é escassa a exibição e distribuição desse cinema.
Os filmes existem, mas enquanto não houver interesse por parte das audiências ou dos programadores, estes mesmos não poderão sair do seu “arquivamento”. Por isso, não me admira que esses filmes tenham pouca divulgação e difusão.
Quanto ao Cinema atualmente produzido? Como o vê?
Para dizer a verdade, já não vejo mais Hollywood, interesso-me por muito do Cinema Europeu, especialmente o de Haneke, assim como o cinema do Sudoesta Asiático. Particularmente interessa-me o Cinema das imagens repreensivas, como o caso do Haneke, em que o filme gira em volta do que não está representado no ecrã, e trabalham em volta disso mesmo. A resistência da mentira invisível, da vida desaparecida através das possibilidades do tempo, um sítio interessante para as intervenções cinematográficas. Não é que pense que estes elementos sejam realmente necessários, transformativos, ou seja, não há garantia que tal cinema mudará o Mundo para melhor, mas julgo que são importantes, assim como, em paralelo, o trabalho do Arquivo, a datação dessas vidas invisíveis. Uma conexão desses tempos, dessas realidades, uma ligação direta com o nosso imaginário.
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De momento ainda estou boquiaberto com as ilimitações do stop-motion. Deixa-me respirar, se faz favor ...
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Quem lida comigo conhece perfeitamente os meus sentimentos em relação à obra de Philippe Garrel, nomeadamente à ultima fase (ainda a decorrer). Contudo, ao rever o "Le Coeur Fantôme" ("O Coração Fantasma") deparei ainda mais com o porquê dessa “repudia” aos seus últimos trabalhos.
Em "Le Coeur Fantôme", Garrel filma expressões, as personagens tem, por fim, uma face a preencher a tela, e nela, sem o uso de qualquer palavra, comunicam emocionalmente com o espectador (o olhar de Luís Rego diz tudo e mais alguma coisa). Uma “mania” perdida com um Garrel que começou a filmar as relações de longe, ingenuamente de longe.
Mas o que mais me fascinou neste revisitar fantasmagórico foi o peito cheio de masculinidade, sem receio às “balas” apontadas. Sim, "Le Coeur Fantôme" é um filme masculino, e ao mesmo tempo um filme sensível sem tentar produzir faíscas de empatia com o género oposto. Fala-nos de amor e ao mesmo tempo interroga esses mesmos afectos. Porquê amamos? Será que amar tem prazo de validade? Ou, teremos a necessidade de amar?
Questões … e questões … questiono … intrigado, porém, questiono .
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Esta é a primeira experiência cinematográfica de Donato Carrisi, escritor e jornalista italiano, que se aventura nas odes da realização com a adaptação de um bestseller da sua autoria – “A Rapariga no Nevoeiro” (“La ragazza nella nebbia”). Provavelmente esta seja a relação que faltava a muitas conversões do género (na nossa memória surge automaticamente o desastre de “The Snowman”, o olhar de Tomas Alfredson sob o imaginários Jo Nesbø), a compreensão e a carnalidade entre o escrito e a materialização visual. Se é bem verdade que esta “perda de virgindade” por parte de Carrisi nos apresenta um produto ainda muito “verde” nos requerimentos de personalidade cinematográfica (o realizador requisita demasiado toques do universo de David Fincher), não é mentira que encontramos em “A Rapariga no Nevoeiro”, um golpe aguçado na tendência destes thrillers policiais.
O desaparecimento de uma adolescente num pacato vilarejo torna-se no centro da atenção dos medias após o envolvimento do infame e temido detetive Vogel (Toni Servillo), um investigador com um modus operandis muito particular (pactuava com a imprensa para pressionar agressores e vítimas, para além de, sob esse signo, falcatruar provas e evidências). No seio da investigação, encontra-se o suposto culpado do desaparecimento da jovem, um professor recém colocado sem álibis que torna-se num dos grandes ataques da iniciativa de Vogel.
Negro e carpinteiro, que para além de servir de bandeja fresca aos adeptos do género quase fincheriano, eis um thriller que interpreta a comunicação social como uma espécie de “quarto poder”, uma resolução faustiana para com a autoridades, provando com isso a falta de ética e deontologia das duas partes (um cinismo por vezes certeiro, provando as capacidades de dualidade jornalística de Carrisi). Num universo repovoado por anti-heróis, “A Rapariga no Nevoeiro” tem a proeza de nunca ceder à demagogia moral. Ao invés disso ostenta como um corpo de inserção num mundo não tão inocente, aquele que nós vivemos e que nos cumpliciamos.
E tendo esse fator em mente, Carrisi joga com os nossos julgamento, manipula-nos e sentimos como tal, indefesos e sobretudo influenciados por essas partidas de percepção (não será isso que muita comunicação social faz em prol do mediatismo?). Um produto nebuloso que tece as suas complexidades morais acima da semiótica pura da investigação detetivesca. São essas as questões que prevalecem, bebendo a priorização por vezes limitada da chegada ao whodunnit ou do efeito twist. Aqui, em “A Rapariga no Nevoeiro”, tal perde força perante a agressividade do seu código amoral.
Vistas bem as coisas, tudo poderia funcionar num dos mais entusiasmantes thrillers policiais dos últimos anos, mas Carrisi carece de maturidade no território cinematográfico e por vezes perde controlo dos imperativos aspetos de iniciante. Perde a noção do tempo (o filme prolonga-se mais do que é preciso) e perde em adensar os seus alvos. Mas nada impede que este seja dos mais ricos e negros do seu subgénero, daqueles produzidos recentemente com dignidade de dar baile a muito das “americanices” que nos surgem.
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Marilyn Monroe e Tom Ewell em "The Seven Year Itch" (Billy Wilder, 1955)
Kelly LeBrock em "The Woman in Red" (Gene Wilder, 1984)
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