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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Seleção Natural

Hugo Gomes, 29.03.18

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Para onde o Cinema poderá evoluir? Uma das respostas a essa derradeira questão surgiu no calor da edição de 2017 do Festival de Cannes. Aí, o realizador mexicano Alejandro G. Iñarritu orquestrou a experiência de Realidade Virtual – “Carne y Arena” – onde o espectador se colocava na pele de quem tenta atravessar a fronteira norte-americana rumo a um sonho vendido por yankees. Enquanto se celebrava uma competição recheada de nomes autorais do cinema presente, outros invocando memórias de tempos em que o futuro do Cinema não era pensado como um dilema, a instalação de Iñarritu tornou-se gradualmente numa espécie de “elefante na sala”. Seria esta a resposta para a crise cinematográfica? O salvador da Sétima Arte frente à modernização do streaming e da emancipação do pequeno ecrã? Ou seria, como muitos previram, o nascimento de uma nova Arte “vampírica” (citando João Botelho na sua relação com a natureza do Cinema)? O Cinema sem tela e a 360o?

Enfim, enquanto se espera pela realização de tais profecias, a Realidade Virtual detém, para além de um desígnio científico, um sonho humano, a catarse dos avatares, a alteração radical da nossa realidade e quem sabe da nossa própria existência. Recentemente, filmes como “Avatar”, de James Cameron, ou o mais incisivo e profundo “The Congress”, de Ari Folman, centraram, cada uma à sua maneira, esta filosofia de individualidade. E eis que surge neste panorama “Ready Player One”, a adaptação visual de Steven Spielberg da obra literária de Ernest Cline, um enredo que dispõe futuros próximos, tecnologias omnipresentes e, como já é código no cinema dito de entretenimento, os desígnios traçados do protagonista (o “The One”, para ser mais exato na designação). Assim, Spielberg dispõe de uma construção narrativa com base na estética digital, por sua vez diluindo um dos “venenos” trasladados do Cinema atual, a experiência videojogo que tem aqui o seu auge de pertinência cinematográfica. Se é bem verdade que em termos visuais este “Ready Player One" seja comparado com um novo “Avatar”, também não é mentira que estas escolhas virtuosas em prol de uma experiência, tornam o novo trabalho de Spielberg não muito longe dos habituais simulacros de feira.

Contudo, regressando a esta Terra em pleno 2045, o Homem, incapaz de lidar com a realidade, criou a Arte de forma a moldar o seu próprio realismo, neste caso, um prolongado videojogo sob os moldes dos habituais RPG. É um escape que se revela numa autêntica prisão. Contudo, o filme encontra formas de celebrar esse mesmo enclausuramento, e fá-lo tornando-se num campo de referências minado. Neste momento sentimo-nos cada vez mais distantes da década de 80, sendo que toda a sua cultura é convertida para os patamares de imunidade crítica. Por via prática, temos personagens de um novo milénio a citar constantemente essa mesma apropriação com mais fulgor e fascínio do que aqueles que realmente viveram esse período.

Em tempos que celebramos o anterior da mesma forma que o posterior (basta termos séries com valor quantitativos de marcos e easters eggs para serem elogiados, basta ver o fenómeno “Stranger Things”), “Ready Player One” usa iguais armas de uma nostalgia mercantil, mas que deve sobretudo ser questionada para os tempos de hoje em nome do individualismo (“O nosso amor vem do Mundo que nascemos e daquele que integramos ao crescer”, frase repescada de “Que le Diable nous Emporte”, de Jean-Claude Brisseau). Por isso é normal que saiamos do visionamento exclamando coisas como “o filme mais geek de sempre”, ou “vindo diretamente da nossa juventude”, mas a situação é a seguinte: sem todo este dispositivo prazenteiro, “Ready Player One” funcionaria como uma crítica sobre a (sobre) importância de outras realidades que nos comprometem a uma deterioração dos nossos laços comunicativos e sociais?

Provavelmente é o próprio filme a responder a isso através da “catchphrase” que ecoa vezes sem conta: “o criador que abomina a sua criação”. Ora, enquanto se destrói a memória de “Shining” de Kubrick, Spielberg parece desculpar-se em toda esta salganhada tecnológica que em certo sentido tenta disfarçar as suas legíveis fraquezas enquanto entretenimento cinematográfico (desde os diálogos pueris até a um cliché por aquelas bandas hollywoodescas, um terceiro ato autodestrutivo). No fim de contas, é isso. A celebração das artimanhas que sobrecarregam a indústria e a (não) proeza de confundir progresso com o acrítico.

"O que é a verdade?"

Hugo Gomes, 28.03.18

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O nome de Hirokazu Koreeda transporta-nos diretamente para um termo saudosista da memória do cinema deixado por Ozu, sendo que “Still Walking” (2008) foi a sua grande consolidação com estes efeitos de legado. Contudo, um objeto como "The Third Murder" representa uma espécie de rebelião, uma tendência atípica de descartar as associações do seu nome até então. O que nos é apresentado é um filme de tribunal, com um prefixo de thriller de investigação extremamente sereno e paciente para com a sua própria astúcia, brincando sobretudo com a semiótica das suas situações. Poderia ser um prolongado jogo de dedução, mas Koreeda brinca a outro “santo japonês”, Akira Kurosawa, não no sentido épico shakespeariano que mais uma vez é associado, mas à sua obra “Rashomon” e as bifurcações da chamada verdade, se é que existe essa presunção “totalitarista” que é isso mesmo … a verdade.

Tal como a obra de 1950, onde um julgamento constitui uma narrativa encadeada por relatos, quer os flashbacks pelo qual são constituídos, ou o relato principal que transforma o próprio tribunal num integrado flashback, “The Third Murder” joga com as questões e como elas se confrontam com a realidade jurídica (mais uma vez, realidade, a servir de dilema). O que é a verdade? Ou a verdade para existir deve ser acreditada? Ou defendida? Não esperamos respostas, até porque, tendo como espelho o próprio decorrer do julgamento, Koreeda é engenhoso na implementação dessas mesmas dúvidas, nos debates que poderão ser formados nas “caixas de vidro” que são agora confessionários improvisados. Aliás, os reflexos postos e sobrepostos aludem à própria natureza desta ficção que busca, apesar de tudo, um só propósito: o porquê da Pena de Morte?

Assim como Orson Welles, ciente dos crimes cometidos pelos seus defendidos lançaria numa furtiva resposta ao direito da vida, mesmo esta condenada ao enclausuramento, em “Compulsion” (Richard Fleischer, 1959), Masaharu Fukuyama (que trabalhou com Koreeda em “Like Father, Like Son”) é encarregue de livrar o seu “assassino” da sentenciada morte, especificando através dessa ação os diferentes atos de matar.

Em certo aspeto, “The Third Murder” leva-nos a conhecer um outro sistema jurídico sem as ênfases orquestradas por episódios hollywoodescos. Uma obra curiosa que salienta uma versatilidade incomum num autor como Hirokazu Koreeda, pronto a deixar os seios familiares em prol de uma pertinente essência de verdade parcial e os caminhos traçados por essas divergências perceptivas (assim como é metaforizado na sequência final, as encruzilhadas guiadas pelas nossas convicções).

Vislumbres do aluno aplicado

Hugo Gomes, 24.03.18

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O ensino do português não se pode limitar aquilo que chamamos matéria”, como refere o jovem professor Alberto Soares (Jaime Freitas) perante o reitor do Liceu de Évora (João Lagarto), uma pequena lição que poderia ser seguida pela nosso Fernando Vendrell (aqui registando o seu regresso à realização, 12 anos desde “Pele”). Reformulando essa doutrina algo ativista citada pela personagem, o Cinema não se pode limitar aquilo a que chamamos narrativa, visto que no caso de “Aparição”, a adaptação do homónimo livro de Vergílio Ferreira, exista uma clara sede de ir além do seu próprio enredo.

Tal sente-se, numa narrativa descosturada, que desesperadamente liga e interliga situações, figuras e pensamentos que são aqui e ali invocados de maneira despachada. Pena, até porque em termos produtivos, “Aparição” comporta-se como uma lição bem estudada às milésimas estruturas televisivas que se confundem nas grandes telas, porém, para este filme em si ser sobretudo incisivo era preciso não se contentar com a superficialidade e num ato como o de beber e gargarejar por completo os reflexos contidos na obra. O incentivo da criatividade, o existencialismo que desafia a religiosidade de um Portugal (ainda) refém e a subliminar crítica a um país que se vive nas odes das “limitações seguras” (“não é permitido ter mais que a quarta classe ou mais de 300 porcos”), sugestões desaproveitadas em prol de uma narrativa direta que não despreza a intelectualidade do espectador, mas que nunca verdadeiramente a incentiva.

Um caso em que o storytelling não é tudo enquanto não existir uma profunda introspeção à relação à matéria-prima, e que por sua vez, não basta ser “boa adaptação” como se limitasse “aquilo que chamamos matéria”. Entretanto, existe sempre uma luz no fundo disto tudo, da mesma maneira que “Amor Impossível”, de António Pedro-Vasconcelos, usufruiu da sua “força centrífuga": Victoria Guerra releva-se mais uma vez, que mesmo sob pequenas doses, é um dos must do cinema nacional e esperamos que não só dele.

Uma Casa de Bonecas em estado de demolição

Hugo Gomes, 20.03.18

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“Minha dor é perceber

Que apesar de termos feito tudo o que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Como os nossos pais…”

 

Canta assim Elis Regina naquele seu êxito o qual partilha o mesmo título com esta nova obra de Laís Bodanzky (“O Bicho de Sete Cabeças”). Não é coincidência, a realizadora já veio a público assumir a presente referência, e com isso, é natural que as letras desta canção de 1976 (do álbum Falso Brilhante) adquiram uma certa cumplicidade a este drama no feminino.

Como Nossos Pais” [filme] é um ensaio interiorizado na validade do matrimónio, ou para irmos mais além, na “longevidade” do relacionamento, o que está por detrás da paixão, do entusiasmo e das jornadas ao conhecimento do nosso par. Longe das canções românticas, infantilizadas por um platonismo mortal que coabitaram o universo deixado por Regina, a obra de Laís Bodanzky forma um cerco que rodeia estas personagens enclausuradas no cansaço, enquanto espelha as rotinas dando solução às mesmas por saídas que não cedem, e até mesmo desafiam, o seio dos moralismos implantados, sobretudo por uma educação cristã.

Aqui o objetivo não é julgar as opções de Rosa (Maria Ribeiro), a imagem da “super-mulher” moderna, em constante malabarismo com as facetas domésticas e o seu lado de profissionalismo, enquanto o seu marido dedica os dias num ativismo prolongado para salvar a Amazónia. É óbvio que dentro deste cenário suscita-se uma reavaliação do contexto da Mulher no século XXI, e os discernimentos sociais estão presentes como denúncias silenciosas, mas "Como Nossos Pais" é um filme que se adapta à audiência, longe do género exposto, até porque existe uma Rosa em cada um de nós. O Amor (palavra sequentemente imperativa) torna-se não um sentimento, e sim um conceito imposto pela sociedade (será que amamos os mesmos conceitos, mais que as próprias pessoas?). A fidelidade é também questionada, hesitada, olhada como uma repreensão que trava os nossos devaneios. Os ditos escapes que surgem na outra margem.

Sim, somos remetidos a experiências sociais, enunciados que emitem lógicas a ser debatidas pós-visionamento, orquestrado por personagens que autodestroem os estereótipos alicerçados, assim como o maniqueísmo fatal dos chamados “panfletos feministas”. Longe disso, “Como Nossos Pais” revela-se num “playground” para os afetos. Segundo Bodanzky, da mesma forma que reproduz nos desejos da sua personagem-chave, a intenção do filme é arrancar onde a peça de Henrik Johan Ibsen, “Casa de Bonecas", termina. O que fazer depois da declarada emancipação? O que surge depois da motivação de espírito? Uma cadência que vai atingindo numa narrativa episódica, endereçada a modelos ou exercícios de reflexão que funcionam como conflitos. Ou seja, este é um daqueles casos onde o conteúdo (a provocação deste) sobressai ao formato, que no seu todo se resume a um cinema “limpo” e tecnicamente previsível.

Mas o Cinema não se faz apenas de formas, ele também comunica com o espectador. Aliás, “O Cinema é a arte do sensível”, salienta o filósofo francês Jacques Rancière, e “Como Nossos Pais”, não se revelando brilhante ou fundamental na História da Sétima Arte, embica nesse tremendo diálogo e sensibilidade.

Um abraço (precisa-se) às fragilidades de cada um de nós

Hugo Gomes, 18.03.18

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Em momento algum a palavra “crise” ou até mesmo “austeridade” é citada no contexto cénico-temporal, mas tal rótulo, ou “post-it” para refrescar memórias, é desnecessário, visto que o espectador (principalmente o de nacionalidade portuguesa) encara e identifica facilmente tal ambiente vivido. Uma atmosfera que se vai adensando até atingir as personagens, alterando por completo as bases estruturais estabelecidas pela sociedade como nós conhecemos.

Uma família torna-se assim a cobaia de tal experiência, são as vítimas de tais assombrações sociais, no qual se nota a desfragmentação individual da mesma forma, coletiva, a evidenciar o afastamento do Humano Moderno e Civilizado até à estrutura convencional da ideia de família. Trata-se de um crime existencial, salientam alguns perante estas transformações evidentes. Trata-se de paranoia acumulada pela espera, impaciência, o constrangimento de gerações reprimidas por falsas promessas, ou o pânico de a vida ser reduzida ao somente objetivo de sobrevivência, isto dirão outros perante tais e iguais transformações.

Sim, Teresa Villaverde espelha uma experiência social (ou ensaio cinematográfico, como quisermos lhe chamar), uma pequena provocação direcionada ao espectador de igual método que Yorgos Lanthimos nos conduz entre as suas distopias. Aliás, a distopia de Villaverde tem muito de “Canino”, mas ao invés do ato radical – a eliminação das bases sociais herdadas para a construção de um novo tipo de ser humano - “Colo” apresenta a transição, o questionamento, a hesitação e por fim a ação como a saída possível, levando-nos à partilhada metamorfose.

A obra constrói-se em tal estado, não no somente sentido das personagens, mas como filme em plena metamorfose, um “monstro” que nos falseia com a proposta de retrato, para nos inserir em becos encaminhados pelo pensamento incógnito destes mesmos peões, aspirados pelas falhadas emancipações. As personagens se motivam através disso, fracassando constantemente, necessitando cada um do seu “colo” para embarcar novamente na vida em plena trajetória.

Colo” é isso mesmo, um filme frio, um filme emudecido pelas suas vontades em vão, e que tal como a sua família protagonista, inteirada num prolongado senso de derrota. Villaverde demonstra acima de tudo técnica (nota-se a bruta presença fotográfica de Acácio de Almeida), ou do mosaico planificado estampado nos edifícios obscuros apenas iluminados pela luz interior (serão essas as presenças, os vestígios humanos de um mundo sem humanidade?).

Contudo, o exercício lacrimeja com a imensidão da sua subjetividade, acima da praticável objetividade, assim como o último plano, aquele travelling que avança e recua como predador hesitante. É a deriva pela qual o filme se constrói, mas não é por ele que o filme vive. O registo deixa assim estas trágicas personagens à sua mercê, onde os seus destinos teriam mais em conta, como catarses teorizadas. Enfim, nada cumprido. O Cinema “bonito” pratica-se, porém, não se vinga e tal como a adolescente (Alice Albergaria Borges) que grita para a sua mãe (Beatriz Batarda) – “não estamos em nenhuma Guerra” – refletindo o porquê de tanto sacrifício e irreversíveis decisões, neste caso [o filme], o porquê de tantas derivações.

No fundo é um filme que precisa do nosso colo ... carinho ... empatia.

O Último dos Homens

Hugo Gomes, 17.03.18

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Os prisioneiros alinham-se em frente à vala que lhes servirá de derradeiro leito. A artilharia-carrasca encontra-se apontada a estes corpos condenados. Do outro lado do eixo, um capitão observa serenamente todos estes preliminares. Ordena-se Fogo, o rompante mecanismo dispara furtivamente. Os corpos cedem a este tremor, caem na fossa, já sem vida. São nanossegundos que marcam a transição entre vida e morte. O Capitão berra, expressando a sua repugna pela “valsa de horrores” que presenceia. O espectador vê-o gritar, mas na verdade não grita. Momentaneamente está novamente sereno, olhando friamente para aquele monte de carne que se vai apinhando em terra de ninguém. O que vimos, aliás, o que o espectador viu, foi somente um lapso, uma impressão, ou quem sabe, uma expressão oculta, travada por uma capa. Sim, a capa que separa os monstros dos homens. Falando em capas, porque não fardas.

De outro modo, “The Captain” (“Der Hauptmann”), o filme de Robert Schwentke (o realizador alemão que se aventurou em Hollywood para se embarcar em produtos como “Insurgent” e “R.I.P.D.”) relata os finais da Guerra com tamanha anarquia que uma farda simboliza a ordem alcançada nesta profunda entropia humana, ou a fonte de um mal imperativo, desculpada pela “banalidade” arendtiana.

Momentos antes do cair do pano do grande episódio bélico, um soldado desertor (Max Hubacher), fugindo à sua própria condenação, alcança o seu Deus Ex Machina, uma “miraculosa” farda oficial, a de um Capitão, para ser mais claro. Ao vesti-la, este soldado raso deixa de ser um soldado e transforma-se numa personagem até então inexistente, a do Capitão. Esse desencadear metamórfico irá despertar-lhe uma faceta anteriormente adormecida (ou provavelmente negligenciada). Não se trata de hora marcada com a raiz do mal, a farda não descreve o nazismo fechado a conceito implantado (mesmo que fascínio entre uniformes e alemães seja algo mais interiorizado e já citado no Cinema, a ter em conta “Der Letzte Mann” / "O Último dos Homens", de F.W. Murnau). Sim, as divisas de capitão funcionam como o mais recente acordo do demónio Mefistófeles, oriundo do romance de Goethe. A sua escapatória e, ao mesmo tempo, a agendada descida aos infernos existencialistas, o animalesco da sua própria vivência.

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“The Captain” é esse embarque pelo  contido maligno, pelo despertar antagónico no qual concentra o início e desfecho de Guerra, e, quem sabe, repercutido pela modernidade da nossa Europa velha e cansada que anseia explodir, expondo o seu primitivismo emocional. Sim, um conto da Segunda Guerra Mundial que mimetiza a expansão (se alguma vez estivesse escondido) de um certo pensamento discriminatório e extremista. Robert Schwentke percebe dessas facetas e humoriza acidamente nos créditos finais, filmando a surpresa do século XXI perante Nazis de um tempo passado (quase como um “parque jurássico” antropológico).

Uma obra emocionalmente caótica que revela a sua corrupção humanista perante o Poder, ou a sensação deste. E perante tal exercício de reflexão, Robert Schwentke veste a sua farda. Pensando melhor, despiu-a. Refiro-me a de tarefeiro desperdiçado na indústria norte-americana, de forma a regressar à sua terra natal com um incisivo olhar aos tempos atuais, invocando como moral o passado que desejamos esquecer.

E falando em capas, a fotografia de Florian Ballhaus é de certa forma uma brilhante enclausuramento destes horrores cometidos e ilustrados.

Será que ansiamos por ser como os nossos pais?

Hugo Gomes, 13.03.18

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Digo isto não como cinéfilo, mas como adulto, cuja juventude parece desaparecer gradualmente dia após dia, ver Como Nossos Pais foi uma reflexão sobre as nossas relações, os nossos medos indiciados nas rotinas diárias, aquelas correntes que nos amarram o espírito. Este é somente um dos muitos casos em que os filmes dialogam comigo, como se me conhecessem melhor que ninguém. O antídoto desta obra de ruínas matrimoniais foi encontrado na revisão de Uma Lição de Amor, de Ingmar Bergman, a marcada restauração dessas mesmas estruturas.

 

 

Manuel Mozos: "Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar"

Hugo Gomes, 10.03.18

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Manuel Mozos

Manuel Mozos é uma peça importante no cinema português contemporâneo. A sua geração, na qual cabem autores como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Leitão, tem sido apontada desde sempre como “salvadores” de um cinema escasso. A sua prolificidade tem o transformado numa figura constantemente presente, contudo, em comparação com os demais, a sua visibilidade é quebradiça. A culpa, possivelmente, é de um certo e proclamado fantasma: Xavier.

De qualquer modo, é “Ramiro” que com carinho o recebemos no seu regresso à ficção, nove anos depois de “4 Copas”. Esta história de um alfarrabista preso à sua passividade e ao passado glorioso que deixou fugir entre mãos é uma comédia tragicómica que vai ao encontro de uma Lisboa a passos da sua modernidade, assim como da personalidade que Mozos assume nesta “Glória que é Fazer Cinema em Portugal”.

De onde surgiu a ideia de Ramiro?

Bem, a ideia não é minha. Esta surgiu de Telmo Churro e de Mariana Ricardo, que escreveram o argumento, e me propuseram certo dia. Aceitei e, uns dias depois, eles apresentaram-me uma versão reduzida que gostei. Foi então que incentivei-os a avançar com essa mesma ideia. A partir daí trabalhamos em conjunto, tínhamos reuniões, encontros, mais propriamente, íamos falando. No fundo […] o projeto encontrava-se bastante próximo daquilo que tenho feito na arte da ficção. Uma intriga sobretudo centrada nas personagens, sendo a central alguém um pouco desfasado da realidade, e os espaços que vão desaparecendo e que se vão transformando.

De certa forma, Ramiro é uma personagem tragicómica, como disse, o seu mundo está a transformar, mas ele não recusa tal metamorfose.

Ou seja, a ideia era mesmo ter esse pendor tragicómico. Porém, não queríamos uma personagem somente restringida a esse sentido. Não pretendíamos um “velho do Restelo”, que olhava permanentemente ao “antigamente”. Queríamos fragilidades, uma figura inábil na sua relação com os outros, criando assim uma certa comicidade, digamos.

Existe uma frase dita pelo próprio Ramiro que desmistifica toda a sua personagem que é “E foi então que descobri que sou um ser passivo”. Aliás, porque como nós já percebemos, o mundo mudou mas ele não quer saber dessas mudanças.

Concretamente há uma certa resistência saliente da parte dele em fechar-se ao Mundo, não é que esteja contra o Mundo, mas ele próprio forma ao seu redor um casulo. Depois, quando tenta espreitar fora dele, depara-se com um cenário não muito confortável. Ramiro vai repentinamente viver com algumas situações que para pessoas “mais normais” [risos] não seria nenhum problema, mas para ele são grandiosos desafios, porque simplesmente limitou-se àquela redomazinha, o entre a casa e a loja, a loja e a tasca com os amigos. Um mundo pequenino, portanto.

E aí entra o paralelismo com as novelas. Ramiro consegue por fim ver telenovelas no ecrã e subitamente a sua vida transforma-se em conformidade com isso.

Sim, queríamos brincar com essa dimensão. Ele não ligava às novelas e à conta de outros acaba por tornar-se espectador das mesmas. As novelas acabam por ser um reflexo do mundo em que ele vive, que transforma-se num autêntico conto novelesco.

Quanto à entrada de António Mortágua no elenco? A sua escolha até o processo criativo da personagem.

Não gosto de fazer castings, até porque a certa altura, tendo um argumento sólido, começo a pensar quais os atores que servirão para essas personagens criadas. Uns são mais fáceis de encaixar, outros mais complicados, consoante as hipóteses e dependendo do conhecimento que tenho desses mesmo atores. O único casting feito para “Ramiro” foi o da personagem de Daniela, que seguiu para Madalena Almeida, devido à sua faixa etária. Esse casting exigiu muito trabalho, visto que muitos desses candidatos são atores que fizeram pouco ou que ainda estavam a estudar interpretação. Muitos deles apenas sonhavam.

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Ramiro (2017)

O caso do António foi mais complexo. Eu conhecia-o, não pessoalmente, de duas peças de teatro, e ele não tinha feito nenhum filme. Portanto, decidi arriscar e contactei-o. Ele ficou surpreendido, até porque não estava à espera de fazer cinema, assim me disse numa conversa muito aberta, onde também lhe confessei o pouco que conhecia do seu trabalho. Começamos a fazer ensaios e a perceber melhor como iriamos conceber a personagem central. Pouco a pouco, íamos tendo conversas sobre o argumento, sobre a personagem e às tantas julgo que ficamos convencidos que valia a pena o risco. Sinceramente, estou bastante satisfeito com a decisão dele e da sua parte julgo também estar.

Até que ponto esta personagem do Ramiro tem um polvilhar de autobiografia?

De alguma maneira sim. Na verdade, quando li a primeira versão do argumento que me entregaram automaticamente exclamei, pelo que eles afirmaram: “Sim, é verdade. Por isso é que propusemos a ti”.

De facto, o que não quero é que julguem que aquilo representado é a minha vida. Sim, existem algumas similaridades, ou proximidades da minha vivência com a do Ramiro, sem dúvida, mas isto não é um filme autobiográfico. Ao trabalhar no filme notei sobretudo esses elementos, mas de certa forma os meus filmes anteriores já indiciavam isso, essa conformidade para com a minha vida. Aqui talvez possa ter mais proximidade, mas sempre vi este lado biográfico representado em outros projetos meus como “Xavier” ou “… Quando Troveja”, que respetivamente marcam e espelham etapas da minha vivência. Em relação a “Ramiro”, não gosto de carregar isso, quem me conhece poderá identificar tais ligações.

O Manuel tem a consciência de que a personagem do Ramiro possui um livro da sua autoria que é visto como uma obra fundamental da literatura portuguesa, mas esquecido e cujos objetivos não foram cumpridos. Isso torna-se uma alusão ao seu “Xavier”, cujas infelicidades de produção o desviaram da obra que poderia ter sido. Quero com isto pegar numa frase apropriada de um documentário, “Glória de Fazer Cinema em Portugal” – Custa fazer Cinema no nosso país?

Sim, custa. E se custa. Mas não é só para mim, é para todos. Obviamente o título de “Glória de Fazer Cinema em Portugal” possui uma carga irónica, principalmente para mim hoje. Mas nem sempre foi assim, quando estava a fazer o “Xavier”, detinha um certo tipo de ambição, aliás trabalhava no filme um ano depois da primeira obra – “Um Passo, Outro Passo e Depois…”.

Mas foi a partir daí que as coisas mudaram, quer dizer, até certa altura pensava “isto está a correr bem”, mas o “desastre” trazido por “Xavier” [devidos a problemas de produção] colocou isso de parte. Apesar de tudo, consegui ir fazendo filmes, uns mais visíveis, outros menos visíveis, e num determinado ponto, visto que já não tenho a juventude, nem o fulgor de há trinta anos, posso fazer uma auto-ironia daquilo que faço, e por outro lado estar apaziguado com essa ideia.

Há ainda esse lado, o do realizador que teve um percalço e ficou numa situação esquecida de visibilidade. Esse é um lado que pode aproximar à figura do Ramiro, que trará escrito um livro importante de qualquer maneira, mas de algum modo bloqueou a sua criatividade.

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Xavier (1992)

Mas ao contrário do Ramiro, o Manuel não bloqueou …

Sim, não bloqueei, mas em termos de visibilidade é um bocado parecido. O de viver com a ideia de que poderia ir para um lado mas a carreira não seguiu. Nisso sim, há um paralelismo com o Ramiro.

De certa forma é um pouco triste todos relembrarem que foi o realizador do “Xavier” e constantemente estarem a trazer isso à tona?

Não. Para já, há algo muito curioso que é o facto de muita gente não ter visto o “Xavier”. Sim, podem falar ou conhecer a história por detrás, mas são mais aqueles que o nunca viram. Por outro lado, felizmente, isso já é levado por outros dois filmes meus que eventualmente tiveram mais visibilidades, como no caso do “Ruínas” e do “Outros Amarão As Coisas que eu Amei”, ou até mesmo o já referido “Glória de Fazer Cinema em Portugal”, que de algum modo me deram um outro tipo de atenção. Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar [risos].

É certo que em “Ramiro” encontramos influências do cinema de Miguel Gomes, aliás, recorda-se que trabalhou em inúmeros projetos do realizador e os argumentistas de Ramiro são colaboradores habituais.

Nós conhecemo-nos pela primeira vez no Porto durante uma edição do Fantasporto, onde projetava o meu “… Quando Troveja”. Na altura, Miguel era jornalista do Público, e em alturas do festival escreveu uma crítica muito benéfica, aclamado que o filme seria uma referência no cinema português. Lá contactou que gostaria de fazer-me uma entrevista e fez, e foi a partir daí que, de algum modo, criamos uma amizade.

Na sua segunda curta-metragem (“Inventário de Natal”), o Miguel convidou-me para o cargo de anotador e responsável pela montagem do filme, uma colaboração que foi repetida com a sua primeira longa (“A Cara que Mereces”), onde trabalhei no argumento ao lado de Telmo Churro. Mais tarde conheci a Mariana Ricardo.

Quando tinha o projeto “Ruínas”, pertencíamos todos à mesma produtora, sendo que criamos uma espécie de relação quase familiar. Obviamente não é a única produtora em que tal sucede. Várias começaram desta maneira. Apesar de tudo, o Miguel nunca faria o “Ramiro”, assim como eu não faria o “Mil e uma Noites”, não por não querer, mas se isso acontecesse resultariam filmes completamente diferentes. O cinema do Miguel é dele mesmo, o meu é o meu. Não sei até que ponto as influências são óbvias, mas acredito que o facto dos argumentistas oscilarem entre projetos, compõem uma espécie de núcleo o qual o Miguel assume. Núcleo base como motor da sua filmografia. Não trabalho assim, porém, se eles [Churro e Ricardo] propuserem outros argumentos para mim, ótimo.

Um facto curioso, "Ramiro" foi o filme escolhido para abrir a passada edição do Doclisboa …

[risos] Confesso que também fiquei surpreendido após a proposta do Luís Urbano [da produtora Som e Fúria], e ao mesmo tempo hesitante, visto que é uma ficção e não um documentário. Então falei com a direção do Doclisboa que se sentiam agradados com a escolha. O argumento encontrado é a possibilidade de abrir portas no festival, não restringindo a um só formato de cinema.

É verdade que a fronteira do que é documentário e do que é ficção vai-se esbatendo ano após ano, mas mesmo assim … abrir um festival especializado em documentários. Lá, eles alegaram que de certa maneira “Ramiro” possui uma face documental, o retrato de uma Lisboa em transformação, e cuja inserção na programação poderia levar o festival a passar ficções, até porque os planos deles são apresentar retrospetivas de autores que desbravaram nesses dois mundos. Se formos a ver bem as coisas, o Indielisboa, por exemplo, não passa só cinema independente, nem o Curtas Vila do Conde é exclusivo a esse formato.

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Ramiro (2017)

Pegando nesse termo, “o retrato de uma Lisboa em transformação”, e no seu documentário, "Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista", considera a cidade num local eficazmente cinematográfico?

Absolutamente. Lisboa é definitivamente cinematográfica. Desde o ambiente à sua atmosfera e até mesmo a qualidade e a disponibilidade da luz, apesar disso ser por vezes um pesadelo para os diretores de fotografia. Mas falamos de Lisboa, assim como falamos do Porto, que é igualmente cinematográfica, mesmo soturna e mais pesada. Aliás, gostaria de reformular que Portugal tem das cidades mais cinematográficas.

Novos projetos?

Quase garantidamente estou com um documentário, mas ainda não sei quando irei filmar e antes disso vou preparar o trabalho de pesquisa. Terá algumas proximidades com o “Ruínas”, e será sobre espaços concentracionários no qual esbarrarei em algumas figuras históricas, como por exemplo Camilo Castelo Branco e o poeta António Gancho. Será um filme que relaciona espaços com as personalidades.

Ainda tenho algumas outras curtas a serem preparadas, mas ainda em fase embrionária. De momento procuro ideias para uma nova ficção.

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