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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"O que é a verdade?"

Hugo Gomes, 28.03.18

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O nome de Hirokazu Koreeda transporta-nos diretamente para um termo saudosista da memória do cinema deixado por Ozu, sendo que “Still Walking” (2008) foi a sua grande consolidação com estes efeitos de legado. Contudo, um objeto como "The Third Murder" representa uma espécie de rebelião, uma tendência atípica de descartar as associações do seu nome até então. O que nos é apresentado é um filme de tribunal, com um prefixo de thriller de investigação extremamente sereno e paciente para com a sua própria astúcia, brincando sobretudo com a semiótica das suas situações. Poderia ser um prolongado jogo de dedução, mas Koreeda brinca a outro “santo japonês”, Akira Kurosawa, não no sentido épico shakespeariano que mais uma vez é associado, mas à sua obra “Rashomon” e as bifurcações da chamada verdade, se é que existe essa presunção “totalitarista” que é isso mesmo … a verdade.

Tal como a obra de 1950, onde um julgamento constitui uma narrativa encadeada por relatos, quer os flashbacks pelo qual são constituídos, ou o relato principal que transforma o próprio tribunal num integrado flashback, “The Third Murder” joga com as questões e como elas se confrontam com a realidade jurídica (mais uma vez, realidade, a servir de dilema). O que é a verdade? Ou a verdade para existir deve ser acreditada? Ou defendida? Não esperamos respostas, até porque, tendo como espelho o próprio decorrer do julgamento, Koreeda é engenhoso na implementação dessas mesmas dúvidas, nos debates que poderão ser formados nas “caixas de vidro” que são agora confessionários improvisados. Aliás, os reflexos postos e sobrepostos aludem à própria natureza desta ficção que busca, apesar de tudo, um só propósito: o porquê da Pena de Morte?

Assim como Orson Welles, ciente dos crimes cometidos pelos seus defendidos lançaria numa furtiva resposta ao direito da vida, mesmo esta condenada ao enclausuramento, em “Compulsion” (Richard Fleischer, 1959), Masaharu Fukuyama (que trabalhou com Koreeda em “Like Father, Like Son”) é encarregue de livrar o seu “assassino” da sentenciada morte, especificando através dessa ação os diferentes atos de matar.

Em certo aspeto, “The Third Murder” leva-nos a conhecer um outro sistema jurídico sem as ênfases orquestradas por episódios hollywoodescos. Uma obra curiosa que salienta uma versatilidade incomum num autor como Hirokazu Koreeda, pronto a deixar os seios familiares em prol de uma pertinente essência de verdade parcial e os caminhos traçados por essas divergências perceptivas (assim como é metaforizado na sequência final, as encruzilhadas guiadas pelas nossas convicções).

Vislumbres do aluno aplicado

Hugo Gomes, 24.03.18

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O ensino do português não se pode limitar aquilo que chamamos matéria”, como refere o jovem professor Alberto Soares (Jaime Freitas) perante o reitor do Liceu de Évora (João Lagarto), uma pequena lição que poderia ser seguida pela nosso Fernando Vendrell (aqui registando o seu regresso à realização, 12 anos desde “Pele”). Reformulando essa doutrina algo ativista citada pela personagem, o Cinema não se pode limitar aquilo a que chamamos narrativa, visto que no caso de “Aparição”, a adaptação do homónimo livro de Vergílio Ferreira, exista uma clara sede de ir além do seu próprio enredo.

Tal sente-se, numa narrativa descosturada, que desesperadamente liga e interliga situações, figuras e pensamentos que são aqui e ali invocados de maneira despachada. Pena, até porque em termos produtivos, “Aparição” comporta-se como uma lição bem estudada às milésimas estruturas televisivas que se confundem nas grandes telas, porém, para este filme em si ser sobretudo incisivo era preciso não se contentar com a superficialidade e num ato como o de beber e gargarejar por completo os reflexos contidos na obra. O incentivo da criatividade, o existencialismo que desafia a religiosidade de um Portugal (ainda) refém e a subliminar crítica a um país que se vive nas odes das “limitações seguras” (“não é permitido ter mais que a quarta classe ou mais de 300 porcos”), sugestões desaproveitadas em prol de uma narrativa direta que não despreza a intelectualidade do espectador, mas que nunca verdadeiramente a incentiva.

Um caso em que o storytelling não é tudo enquanto não existir uma profunda introspeção à relação à matéria-prima, e que por sua vez, não basta ser “boa adaptação” como se limitasse “aquilo que chamamos matéria”. Entretanto, existe sempre uma luz no fundo disto tudo, da mesma maneira que “Amor Impossível”, de António Pedro-Vasconcelos, usufruiu da sua “força centrífuga": Victoria Guerra releva-se mais uma vez, que mesmo sob pequenas doses, é um dos must do cinema nacional e esperamos que não só dele.

O Último dos Homens

Hugo Gomes, 17.03.18

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Os prisioneiros alinham-se em frente à vala que lhes servirá de derradeiro leito. A artilharia-carrasca encontra-se apontada a estes corpos condenados. Do outro lado do eixo, um capitão observa serenamente todos estes preliminares. Ordena-se Fogo, o rompante mecanismo dispara furtivamente. Os corpos cedem a este tremor, caem na fossa, já sem vida. São nanossegundos que marcam a transição entre vida e morte. O Capitão berra, expressando a sua repugna pela “valsa de horrores” que presenceia. O espectador vê-o gritar, mas na verdade não grita. Momentaneamente está novamente sereno, olhando friamente para aquele monte de carne que se vai apinhando em terra de ninguém. O que vimos, aliás, o que o espectador viu, foi somente um lapso, uma impressão, ou quem sabe, uma expressão oculta, travada por uma capa. Sim, a capa que separa os monstros dos homens. Falando em capas, porque não fardas.

De outro modo, “The Captain” (“Der Hauptmann”), o filme de Robert Schwentke (o realizador alemão que se aventurou em Hollywood para se embarcar em produtos como “Insurgent” e “R.I.P.D.”) relata os finais da Guerra com tamanha anarquia que uma farda simboliza a ordem alcançada nesta profunda entropia humana, ou a fonte de um mal imperativo, desculpada pela “banalidade” arendtiana.

Momentos antes do cair do pano do grande episódio bélico, um soldado desertor (Max Hubacher), fugindo à sua própria condenação, alcança o seu Deus Ex Machina, uma “miraculosa” farda oficial, a de um Capitão, para ser mais claro. Ao vesti-la, este soldado raso deixa de ser um soldado e transforma-se numa personagem até então inexistente, a do Capitão. Esse desencadear metamórfico irá despertar-lhe uma faceta anteriormente adormecida (ou provavelmente negligenciada). Não se trata de hora marcada com a raiz do mal, a farda não descreve o nazismo fechado a conceito implantado (mesmo que fascínio entre uniformes e alemães seja algo mais interiorizado e já citado no Cinema, a ter em conta “Der Letzte Mann” / "O Último dos Homens", de F.W. Murnau). Sim, as divisas de capitão funcionam como o mais recente acordo do demónio Mefistófeles, oriundo do romance de Goethe. A sua escapatória e, ao mesmo tempo, a agendada descida aos infernos existencialistas, o animalesco da sua própria vivência.

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“The Captain” é esse embarque pelo  contido maligno, pelo despertar antagónico no qual concentra o início e desfecho de Guerra, e, quem sabe, repercutido pela modernidade da nossa Europa velha e cansada que anseia explodir, expondo o seu primitivismo emocional. Sim, um conto da Segunda Guerra Mundial que mimetiza a expansão (se alguma vez estivesse escondido) de um certo pensamento discriminatório e extremista. Robert Schwentke percebe dessas facetas e humoriza acidamente nos créditos finais, filmando a surpresa do século XXI perante Nazis de um tempo passado (quase como um “parque jurássico” antropológico).

Uma obra emocionalmente caótica que revela a sua corrupção humanista perante o Poder, ou a sensação deste. E perante tal exercício de reflexão, Robert Schwentke veste a sua farda. Pensando melhor, despiu-a. Refiro-me a de tarefeiro desperdiçado na indústria norte-americana, de forma a regressar à sua terra natal com um incisivo olhar aos tempos atuais, invocando como moral o passado que desejamos esquecer.

E falando em capas, a fotografia de Florian Ballhaus é de certa forma uma brilhante enclausuramento destes horrores cometidos e ilustrados.

Será que ansiamos por ser como os nossos pais?

Hugo Gomes, 13.03.18

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Digo isto não como cinéfilo, mas como adulto, cuja juventude parece desaparecer gradualmente dia após dia, ver Como Nossos Pais foi uma reflexão sobre as nossas relações, os nossos medos indiciados nas rotinas diárias, aquelas correntes que nos amarram o espírito. Este é somente um dos muitos casos em que os filmes dialogam comigo, como se me conhecessem melhor que ninguém. O antídoto desta obra de ruínas matrimoniais foi encontrado na revisão de Uma Lição de Amor, de Ingmar Bergman, a marcada restauração dessas mesmas estruturas.

 

 

Manuel Mozos: "Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar"

Hugo Gomes, 10.03.18

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Manuel Mozos

Manuel Mozos é uma peça importante no cinema português contemporâneo. A sua geração, na qual cabem autores como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Leitão, tem sido apontada desde sempre como “salvadores” de um cinema escasso. A sua prolificidade tem o transformado numa figura constantemente presente, contudo, em comparação com os demais, a sua visibilidade é quebradiça. A culpa, possivelmente, é de um certo e proclamado fantasma: Xavier.

De qualquer modo, é “Ramiro” que com carinho o recebemos no seu regresso à ficção, nove anos depois de “4 Copas”. Esta história de um alfarrabista preso à sua passividade e ao passado glorioso que deixou fugir entre mãos é uma comédia tragicómica que vai ao encontro de uma Lisboa a passos da sua modernidade, assim como da personalidade que Mozos assume nesta “Glória que é Fazer Cinema em Portugal”.

De onde surgiu a ideia de Ramiro?

Bem, a ideia não é minha. Esta surgiu de Telmo Churro e de Mariana Ricardo, que escreveram o argumento, e me propuseram certo dia. Aceitei e, uns dias depois, eles apresentaram-me uma versão reduzida que gostei. Foi então que incentivei-os a avançar com essa mesma ideia. A partir daí trabalhamos em conjunto, tínhamos reuniões, encontros, mais propriamente, íamos falando. No fundo […] o projeto encontrava-se bastante próximo daquilo que tenho feito na arte da ficção. Uma intriga sobretudo centrada nas personagens, sendo a central alguém um pouco desfasado da realidade, e os espaços que vão desaparecendo e que se vão transformando.

De certa forma, Ramiro é uma personagem tragicómica, como disse, o seu mundo está a transformar, mas ele não recusa tal metamorfose.

Ou seja, a ideia era mesmo ter esse pendor tragicómico. Porém, não queríamos uma personagem somente restringida a esse sentido. Não pretendíamos um “velho do Restelo”, que olhava permanentemente ao “antigamente”. Queríamos fragilidades, uma figura inábil na sua relação com os outros, criando assim uma certa comicidade, digamos.

Existe uma frase dita pelo próprio Ramiro que desmistifica toda a sua personagem que é “E foi então que descobri que sou um ser passivo”. Aliás, porque como nós já percebemos, o mundo mudou mas ele não quer saber dessas mudanças.

Concretamente há uma certa resistência saliente da parte dele em fechar-se ao Mundo, não é que esteja contra o Mundo, mas ele próprio forma ao seu redor um casulo. Depois, quando tenta espreitar fora dele, depara-se com um cenário não muito confortável. Ramiro vai repentinamente viver com algumas situações que para pessoas “mais normais” [risos] não seria nenhum problema, mas para ele são grandiosos desafios, porque simplesmente limitou-se àquela redomazinha, o entre a casa e a loja, a loja e a tasca com os amigos. Um mundo pequenino, portanto.

E aí entra o paralelismo com as novelas. Ramiro consegue por fim ver telenovelas no ecrã e subitamente a sua vida transforma-se em conformidade com isso.

Sim, queríamos brincar com essa dimensão. Ele não ligava às novelas e à conta de outros acaba por tornar-se espectador das mesmas. As novelas acabam por ser um reflexo do mundo em que ele vive, que transforma-se num autêntico conto novelesco.

Quanto à entrada de António Mortágua no elenco? A sua escolha até o processo criativo da personagem.

Não gosto de fazer castings, até porque a certa altura, tendo um argumento sólido, começo a pensar quais os atores que servirão para essas personagens criadas. Uns são mais fáceis de encaixar, outros mais complicados, consoante as hipóteses e dependendo do conhecimento que tenho desses mesmo atores. O único casting feito para “Ramiro” foi o da personagem de Daniela, que seguiu para Madalena Almeida, devido à sua faixa etária. Esse casting exigiu muito trabalho, visto que muitos desses candidatos são atores que fizeram pouco ou que ainda estavam a estudar interpretação. Muitos deles apenas sonhavam.

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Ramiro (2017)

O caso do António foi mais complexo. Eu conhecia-o, não pessoalmente, de duas peças de teatro, e ele não tinha feito nenhum filme. Portanto, decidi arriscar e contactei-o. Ele ficou surpreendido, até porque não estava à espera de fazer cinema, assim me disse numa conversa muito aberta, onde também lhe confessei o pouco que conhecia do seu trabalho. Começamos a fazer ensaios e a perceber melhor como iriamos conceber a personagem central. Pouco a pouco, íamos tendo conversas sobre o argumento, sobre a personagem e às tantas julgo que ficamos convencidos que valia a pena o risco. Sinceramente, estou bastante satisfeito com a decisão dele e da sua parte julgo também estar.

Até que ponto esta personagem do Ramiro tem um polvilhar de autobiografia?

De alguma maneira sim. Na verdade, quando li a primeira versão do argumento que me entregaram automaticamente exclamei, pelo que eles afirmaram: “Sim, é verdade. Por isso é que propusemos a ti”.

De facto, o que não quero é que julguem que aquilo representado é a minha vida. Sim, existem algumas similaridades, ou proximidades da minha vivência com a do Ramiro, sem dúvida, mas isto não é um filme autobiográfico. Ao trabalhar no filme notei sobretudo esses elementos, mas de certa forma os meus filmes anteriores já indiciavam isso, essa conformidade para com a minha vida. Aqui talvez possa ter mais proximidade, mas sempre vi este lado biográfico representado em outros projetos meus como “Xavier” ou “… Quando Troveja”, que respetivamente marcam e espelham etapas da minha vivência. Em relação a “Ramiro”, não gosto de carregar isso, quem me conhece poderá identificar tais ligações.

O Manuel tem a consciência de que a personagem do Ramiro possui um livro da sua autoria que é visto como uma obra fundamental da literatura portuguesa, mas esquecido e cujos objetivos não foram cumpridos. Isso torna-se uma alusão ao seu “Xavier”, cujas infelicidades de produção o desviaram da obra que poderia ter sido. Quero com isto pegar numa frase apropriada de um documentário, “Glória de Fazer Cinema em Portugal” – Custa fazer Cinema no nosso país?

Sim, custa. E se custa. Mas não é só para mim, é para todos. Obviamente o título de “Glória de Fazer Cinema em Portugal” possui uma carga irónica, principalmente para mim hoje. Mas nem sempre foi assim, quando estava a fazer o “Xavier”, detinha um certo tipo de ambição, aliás trabalhava no filme um ano depois da primeira obra – “Um Passo, Outro Passo e Depois…”.

Mas foi a partir daí que as coisas mudaram, quer dizer, até certa altura pensava “isto está a correr bem”, mas o “desastre” trazido por “Xavier” [devidos a problemas de produção] colocou isso de parte. Apesar de tudo, consegui ir fazendo filmes, uns mais visíveis, outros menos visíveis, e num determinado ponto, visto que já não tenho a juventude, nem o fulgor de há trinta anos, posso fazer uma auto-ironia daquilo que faço, e por outro lado estar apaziguado com essa ideia.

Há ainda esse lado, o do realizador que teve um percalço e ficou numa situação esquecida de visibilidade. Esse é um lado que pode aproximar à figura do Ramiro, que trará escrito um livro importante de qualquer maneira, mas de algum modo bloqueou a sua criatividade.

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Xavier (1992)

Mas ao contrário do Ramiro, o Manuel não bloqueou …

Sim, não bloqueei, mas em termos de visibilidade é um bocado parecido. O de viver com a ideia de que poderia ir para um lado mas a carreira não seguiu. Nisso sim, há um paralelismo com o Ramiro.

De certa forma é um pouco triste todos relembrarem que foi o realizador do “Xavier” e constantemente estarem a trazer isso à tona?

Não. Para já, há algo muito curioso que é o facto de muita gente não ter visto o “Xavier”. Sim, podem falar ou conhecer a história por detrás, mas são mais aqueles que o nunca viram. Por outro lado, felizmente, isso já é levado por outros dois filmes meus que eventualmente tiveram mais visibilidades, como no caso do “Ruínas” e do “Outros Amarão As Coisas que eu Amei”, ou até mesmo o já referido “Glória de Fazer Cinema em Portugal”, que de algum modo me deram um outro tipo de atenção. Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar [risos].

É certo que em “Ramiro” encontramos influências do cinema de Miguel Gomes, aliás, recorda-se que trabalhou em inúmeros projetos do realizador e os argumentistas de Ramiro são colaboradores habituais.

Nós conhecemo-nos pela primeira vez no Porto durante uma edição do Fantasporto, onde projetava o meu “… Quando Troveja”. Na altura, Miguel era jornalista do Público, e em alturas do festival escreveu uma crítica muito benéfica, aclamado que o filme seria uma referência no cinema português. Lá contactou que gostaria de fazer-me uma entrevista e fez, e foi a partir daí que, de algum modo, criamos uma amizade.

Na sua segunda curta-metragem (“Inventário de Natal”), o Miguel convidou-me para o cargo de anotador e responsável pela montagem do filme, uma colaboração que foi repetida com a sua primeira longa (“A Cara que Mereces”), onde trabalhei no argumento ao lado de Telmo Churro. Mais tarde conheci a Mariana Ricardo.

Quando tinha o projeto “Ruínas”, pertencíamos todos à mesma produtora, sendo que criamos uma espécie de relação quase familiar. Obviamente não é a única produtora em que tal sucede. Várias começaram desta maneira. Apesar de tudo, o Miguel nunca faria o “Ramiro”, assim como eu não faria o “Mil e uma Noites”, não por não querer, mas se isso acontecesse resultariam filmes completamente diferentes. O cinema do Miguel é dele mesmo, o meu é o meu. Não sei até que ponto as influências são óbvias, mas acredito que o facto dos argumentistas oscilarem entre projetos, compõem uma espécie de núcleo o qual o Miguel assume. Núcleo base como motor da sua filmografia. Não trabalho assim, porém, se eles [Churro e Ricardo] propuserem outros argumentos para mim, ótimo.

Um facto curioso, "Ramiro" foi o filme escolhido para abrir a passada edição do Doclisboa …

[risos] Confesso que também fiquei surpreendido após a proposta do Luís Urbano [da produtora Som e Fúria], e ao mesmo tempo hesitante, visto que é uma ficção e não um documentário. Então falei com a direção do Doclisboa que se sentiam agradados com a escolha. O argumento encontrado é a possibilidade de abrir portas no festival, não restringindo a um só formato de cinema.

É verdade que a fronteira do que é documentário e do que é ficção vai-se esbatendo ano após ano, mas mesmo assim … abrir um festival especializado em documentários. Lá, eles alegaram que de certa maneira “Ramiro” possui uma face documental, o retrato de uma Lisboa em transformação, e cuja inserção na programação poderia levar o festival a passar ficções, até porque os planos deles são apresentar retrospetivas de autores que desbravaram nesses dois mundos. Se formos a ver bem as coisas, o Indielisboa, por exemplo, não passa só cinema independente, nem o Curtas Vila do Conde é exclusivo a esse formato.

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Ramiro (2017)

Pegando nesse termo, “o retrato de uma Lisboa em transformação”, e no seu documentário, "Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista", considera a cidade num local eficazmente cinematográfico?

Absolutamente. Lisboa é definitivamente cinematográfica. Desde o ambiente à sua atmosfera e até mesmo a qualidade e a disponibilidade da luz, apesar disso ser por vezes um pesadelo para os diretores de fotografia. Mas falamos de Lisboa, assim como falamos do Porto, que é igualmente cinematográfica, mesmo soturna e mais pesada. Aliás, gostaria de reformular que Portugal tem das cidades mais cinematográficas.

Novos projetos?

Quase garantidamente estou com um documentário, mas ainda não sei quando irei filmar e antes disso vou preparar o trabalho de pesquisa. Terá algumas proximidades com o “Ruínas”, e será sobre espaços concentracionários no qual esbarrarei em algumas figuras históricas, como por exemplo Camilo Castelo Branco e o poeta António Gancho. Será um filme que relaciona espaços com as personalidades.

Ainda tenho algumas outras curtas a serem preparadas, mas ainda em fase embrionária. De momento procuro ideias para uma nova ficção.

João Miller Guerra: "Não gostaria de sentir que o nosso cinema fosse impositivo ou panfletário de alguma coisa"

Hugo Gomes, 02.03.18

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Djon Africa (2018)

Para João Miller Guerra e Filipa Reis, provavelmente uma das duplas mais prolíferas do cinema português nos últimos anos, os seus filmes integram um universo particular com constante olhar na ficção, ou melhor, no ficcionar da realidade. Nesse mesmo mundo, povoam personagens que se transfiguram em cada episódio, provavelmente induzidos numa temática de inclusão social, expatriados ou perseguidores de um “eu” perdido em raízes ocultas.

A paternidade torna-se numa espécie de fantasma em “Djon África”, a primeira assumida ficção da dupla que explora uma personagem “caseira” desse mesmo Universo, Miguel Moreira, um cabo-verdiano sem terra nem memórias da sua origem. Após ter conhecimento da existência do seu pai, ainda residido em Cabo Verde, Miguel parte numa aventura, ou diríamos antes, desventura num local místico, magnético e ao mesmo tempo desconhecido para si.    

Mas outra aventura nasce no seio desta “peregrinação”, o rumo ao desconhecido levado a cabo pela dupla ao Festival de Cinema de Roterdão, o qual “Djon África” orgulha-se de integrar a Competição Principal. Um feito, segundo eles, uma alegria, para nós.

Falei com João Miller Guerra sobre o projeto atlântico a ser apresentado na cidade holandesa, a sua criação, o seu simbolismo e o que distingue realmente o documentário da ficção e vice-versa.

Especializados em curtas e médias metragens documentais, este filme foi um enorme passo para vocês. Para além de ser a primeira longa, é também a vossa primeira ficção. Como surgiu a ideia deste filme e o porquê de avançar para este grande passo nas vossas carreiras?

Começou com uma colaboração com o nosso guionista e amigo Pedro Pinho, que trabalhou connosco sobretudo na trilogia “Cama de Gato” (2012), “Bela Vista” (2012) e “Um Fim do Mundo” (2013), o qual realizou. A juntar a isso a morte do meu pai há 5 anos atrás, que foi um importante impulsor desta ideia, aliás, deste grande passo, segundo a Filipa, que foi o de avançar na primeira longa-metragem.

Quanto ao termo “ficção”, este já era bem perceptível na nossa filmografia, até porque tivemos sempre bastante próximos, sobretudo formalmente no nosso cinema. Embora as nossas raízes fossem sempre o documentário, desde o início tivemos uma vontade de ficcionar aquilo que vemos, e “Fora da Vida” (2015) foi já um começo disso mesmo. Uma primeira experiência parcial.   

Em “Djon África”, juntamos o facto de Pedro Pinho conhecer bem Cabo Verde e, como eu estava a referir, com a morte do meu pai nós procurávamos uma história para escrever como nossa longa. Dei por mim a pensar no Miguel, com o qual colaboramos em imensos projetos. Como ele não conhece o pai, nem sequer o arquipélago, às tantas existia algo de universal nesta história, a procura das nossas raízes e a descoberta de Cabo Verde.

O Pedro escreveu a aventura em Cabo Verde, e nós trabalhamos sobretudo com o Miguel, que como era um não-ator, tornou-se difícil recriar os amores e desventuras programados no guião. Os twists e todos os dispositivos que nos poderiam colar com a personagem e ao grande ecrã, daqueles previstos no procedimento criativo, foram transformados, algo que reparámos sobretudo na sala de edição. Tínhamos calculado um lado mais místico / sobrenatural que foi imposto na mesma edição, mas que devido a esta adaptação, a sua introdução auferiu um carácter mais interior, existencialista, à jornada do Miguel, algo mais próximo da minha visão e da Filipa em relação a Cabo Verde.

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João Miller Guerra

De certa forma, graças à colaboração com o Miguel Moreira, este "Djon África" é o último de uma trilogia, esta, composta por “Li ké Terra” e “Fora da Vida”.

Para ser sincero nunca pensei devidamente sobre isso. O Miguel trabalhou realmente connosco no “Li ké Terra”, que assume o mesmo propósito de “Djon África”, que é a identidade. Nesse caso [Li ké’], era uma identidade burocrática, um jovem impedido de seguir com a sua vida e trabalhar devido à ausência de documentação. Em relação a Djon’, Miguel, não sendo oficialmente português e não conhecer o verdadeiro Cabo Verde, somente um país imaginário que se vai formando na sua mente, embarca nesta procura pela real identidade, o seu “eu”, sob a desculpa, sem a reconhecer, de uma busca pelo pai.

No sentido da trilogia, não sei se propõe, porque ainda fizemos outra experiência, uma curta-metragem escrita pelos habitantes do bairro que filmamos “Li ké Terra” que se intitulava “Nada Fazi” (2011). Nesse filme, o Miguel interpreta um personagem ficionado que foi escrito por eles. Em “Fora da Vida”, que foi uma encomenda da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a personagem do Miguel tinha um filho. Esse filme trazia a temática da “subsistência com o ordenado mínimo”, por isso cruzamos as personagens do nosso universo, o Miguel evidentemente, a avó dele e ainda Monique, uma das “brasileiras” de “Fragmentos de Uma Observação Participativa” (2013). Cruzamos essas personagens e encaramos isso como a nossa entrada na ficção, apesar do conceito ser mais documental que ficcional. Por isso, não sei se chamaria bem isso de trilogia.

Mas o que realmente separa a ficção do documentário, e o documentário da ficção? O que diferencia essas duas dimensões cinematográficas?

Para nós, muito sinceramente, não diferencia nada. No meu entendimento, assim como o da Filipa, um filme é um filme, portanto há sempre maneira de “enganar” o espectador. É o facto de chamarmos algo de ficção, e as audiência encararem tudo aquilo exposto no ecrã como ficcionado. No caso de “Djon África”, muito daquilo que se vê é verdadeiro. Muito do que está ali escrito, descrito e vivido, é meramente real. Onde eu acho que há uma espécie de fronteira, se é que ela existe, é que supostamente num documentário não ficcionaríamos nada, quanto muito reencenar o que já tivesse acontecido, e aqui no “Djon África” não o fizemos. Provavelmente temos aqui o nosso olhar e o filme talvez descole para algo mais místico e fantástico, e não estarmos presos ao género documental.

Mas para mim não existem muitas diferenças entre os dois mundos. Por exemplo, o “Fora da Vida” é um híbrido bem real. Eu dei profissões àquelas pessoas que não tinham, dei um filho ao Miguel que ele não tinha. Há quem chame aquilo de documentário, mas existe uma fronteira muito terna.

Há pouco falava desse lado místico, eu diria xamânico, imposto no filme e na aventura de Miguel que leva-nos a uns últimos minutos sobretudos sugestivos.   

O final é aberto à interpretação de cada um e não acho que aqui interessa dar-nos a nossa visão quanto à resolução. Essa questão de se o Miguel volta para Portugal, ou fica na ilha de forma a cumprir as mesmas pisadas do pai, isso está na consciência de cada um. Mas é quase habitual a imagem paternal do pai cabo-verdiano ser sobretudo ausente, é um comportamento pouco europeu.

Em relação a esse comportamento nada relacionado com os parâmetros da Europa, existe algo curioso na essência de ser europeu em “Djon África”, que vem enriquecer a questão da identidade do filme. Pegamos na personagem de Miguel e percebemos que ele é ilegal em Portugal e quanto a Cabo Verde, é visto como um estrangeiro.

Essa é a mesma dicotomia que já existia no “Li ké Terra”. Ele é no meu entender um português. Tendo nascido em solo português automaticamente deveria ter um documento português. O problema é que não o tem. Ao invés disso tem um passaporte cabo-verdiano. Estas eram as leis da altura e nem sei se continuam a ser as leis de hoje. Ele teria ainda de fazer prova de residência, 10 anos seguidos sem poder sair do país, para obter a nacionalidade portuguesa. Isto faz com que muitos cresçam toda uma vida para obter uma nacionalidade, e uns tantos não o conseguem.

Muitos nunca se sentem devidamente portugueses. Consequentemente, mais força ganha a raiz cabo-verdiana que os educa, fazendo com que eles, não pertencendo a Cabo Verde nem a Portugal, pertençam somente àquele bairro. Só aquele clube de pessoas que coexistem, e que obviamente “enche-os” de histórias e memórias do arquipélago. E aí existe aquela continuação da cultura cabo-verdiana, os ingredientes todos à mão para fazer uma cachupa, o grogue à venda em qualquer café do bairro, a música cabo-verdiana, ou seja existe aí um prolongar dessa identidade cabo-verdiana.

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Djon Africa (2018)

Há pouco falava do facto de Miguel nunca ter estado em Cabo Verde. Toda aquela reação que evidenciamos na sua chegada à ilha foi encenação, ou puramente o registo de um momento de surpresa?

Algo que eu e a Filipa pretendíamos em “Djon Africa” era colocar o protagonista na sua terra-mãe, sem se sentir devidamente em casa. Por isso, nós fomos três vezes a Cabo Verde, estudar o terreno e preparar a viagem sem o Miguel. Quando ele chegou lá, foi no momento em que começamos a filmar, o registo em filme, o choque identitário com a terra que nunca conhecera verdadeiramente. Queríamos filmar essa surpresa, essas primeiras impressões.

Mas voltando à tua questão, ele é um estrangeiro. Miguel sempre será comparado com um cabo-verdiano europeu que foi deportado e que é mandado para Cabo Verde porque está impedido de residir na Europa. Não é o caso dele, mas tem os mesmos efeitos. Duvido que ele consiga viver em Cabo Verde caso isso fosse possível. Seria muito difícil, ele no fundo é muito europeu.

O vosso Cinema sempre interessou por causas de inclusão social. De certa forma acreditam que o mesmo pode servir de veículo para o mesmo?

Não acredito que o Cinema por si só possa mudar ou ser encarado como uma arma de mudança do que quer que seja. Não gostaria de sentir que o nosso cinema fosse impositivo ou panfletário de alguma coisa, mas é verdade que muitas vezes faz pensar e que nos dá a conhecer o outro lado. Por vezes o espectador repensa na sua posição, ao ver os dramas e os dilemas desta ou doutra vida. Acho que isso é a riqueza do Cinema, a sua mais valia. Não é obrigatório que assim seja para ter uma boa história, mas quando isso acontece…

Em relação à seleção de “Djon Africa” no Festival de Roterdão …

Estamos muito contentes. Acho que não houve nenhum português que fosse aceite a concorrer para os Tiger Awards e, infelizmente, no Instituto do Cinema, como vivemos de pontuações, não é um festival tão pontuado como os outros (gostava que fosse). Para mim e para a Filipa foi muito importante, até porque não vivemos de estratégias de entradas nem saídas de festivais e ter do lado de lá, o de Roterdão, um convite muito humilde e direto, viram o filme e gostaram imediatamente. Isso para nós foi demonstrativo de que o convite deles foi mesmo o de querer e não somente o de ocupar espaço na programação.

Sim, em Portugal um filme de sucesso tem que percorrer festivais.

Sim, continuamos a encarar os festivais como cruciais para a carreira de um filme. Primeiro, porque este leva a mais públicos, quer na projeção em festivais, quer no percurso posterior, visto que são os mesmo festivais a colocar um selo de qualidade no poster e no material de divulgação dos filmes. O reconhecimento dado durante a sua passagem nos demais festivais atraem não só o público, assim como distribuidores ou exibidores.

Novos projetos?

Estamos com uma longa-metragem escrita, que decorrerá no Norte de Portugal, nada terá de relacionado com o universo que costumamos trabalhar. Este projeto envolverá um personagem único que decide ficar numa aldeia e combater, o que chamamos, de fim da ruralidade. Temos ainda outro projeto documental, algo mais virado para nós, e será uma abordagem sobre nós próprios. Provavelmente com a ajuda do Miguel. Um filme que nos retrata….A nossa vida.

De certa forma, esta colaboração vossa com o Miguel Moreira relembra Pedro Costa com Ventura …

Não diria que é o nosso Ventura, mas o Miguel está bem presente em nós, ele tornou-se nosso amigo, uma pessoa próxima de nós, e acima disso tem um entendimento do mundo muito particular, bastante diferente da nossa. E isso deixa-nos apaixonados e interessados em ouvi-lo, conhecer o que verdadeiramente o rodeia, e curioso é que o rodeia não é tão diferente do que nos rodeia e sempre é com entusiasmo que ficamos a conhecer o seu ponto de vista.

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