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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Hong Sang-soo prova que tem algumas veias de cineasta escondidas …

Hugo Gomes, 30.11.17

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“O Woody Allen coreano“! De vez em quando é assim referido Hong Sang-Soo, um dos mais prolíferos cineastas do nosso tempo, que este ano [2017] leva com um recorde de três filmes concebidos, entre eles, “The Day After”, o seu regresso à imagem monocromática desde The Day He Arrives (2011), mais uma confirmação das suas descendências rohmerianas.

Trata-se de uma história de arrependimentos, um colapso entre realidades diferentes, que nos remetem à fragilidade dessas mesmas. E à sua maneira um trabalho metafísico, uma ficção científica que tem como vetor a criatividade narrativa do coreano, exercendo assim um filme pessoal e requintado. A história de uma editora de livros e dos seus affairs, é trabalhada como um comédia de maus-entendidos, ao bom jeito francês, conservando a personalidade de Sang-Soo. Porém, essa personalidade é imutável, e após as melhorias narrativas e técnicas em “Right Now, Wrong Then”, visto como o seu melhor trabalho desde então, o coreano conforma-se novamente com um estilo desinteressado e preguiçoso.

Onde “The Day After” vinga é no gosto insatisfeito do realizador em reinventar a narrativa, deformando o linear e, neste caso, incentivar um verdadeiro caos temporal. As personagens também questionam essa realidade, e questionam ainda mais a resposta de Kwon Hae-hyo, “a realidade existe porque é sentida”. Hong Sang-Soo sente o filme que está a fazer, é-lhe querido, e como tal grande parte da sua filmografia, invoca a mulher como um súbito interesse na libertação (novamente a actriz Kim Min-hee). Mas o espectador, será que sente esta jornada? Ou apenas se rirá das running gags que o nosso coreano parece cometer de forma deliciosa?

A verdade é que Hong Sang-Soo, por mais interessado que esteja na criação e recriação narrativa, é um conformista a um estilo sem estilo, o que facilita a sua prolificidade, mas nunca a sua “genialidade”. Fiquemos então com o plano em que Kim Min-hee assiste de tal forma reconfortante a neve que porventura começa a cair. Um plano que nos mostra o quão bom seria se Hong Sang-Soo tivesse esse amor à técnica. Por isso, esta não existe. Porque ele, simplesmente, não sente.

Delírios na Terra do Nunca

Hugo Gomes, 28.11.17

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«Tu estás livre e eu estou livre, e há uma noite para passar». 

Francisco e Maria conheceram-se naquela mesma noite. Agora, dançam ao som de cantigas de outros tempos num terraço em Lisboa

«Porque não vamos unidos. Porque não vamos ficar na aventura dos sentidos.». 

Foi há poucas horas que discutiam sobre a posse de um isqueiro. Um isqueiro encontrado no meio da rua, sem dono, passando directamente das possessões de “meu”, “teu” e por “nosso”. 

«Tu estás só e eu mais só estou. Tu que tens o meu olhar». 

Francisco e Maria sob o ritmo daquela canção, não se tocando fisicamente, mas criando um elo através do olhar, uma cumplicidade que os levará ao fim da noite. 

«Tens a minha mão aberta, à espera de se fechar nessa tua mão deserta». 

A festa, a saída, aquele encontro entre muitos que termina a dois. Por fim, estas duas figuras são guiadas para os aposentos, sob as promessas do consumo daquela atração que “cresceu” numa pista de dança.

O dia fez-se, Maria acorda primeiro que Francisco, mas não o abandona, ao invés confronta-o a sair da sua cama, da sua casa, por fim, da sua vida. Francisco passou uma noite, uma “aventura dos sentidos” como cantarolava aquela música de António Variações naquele discreto arraial. A partir dali, a nossa personagem nunca mais viu Maria. Nunca a procurou, nem nunca precisou, o que aconteceu foi uma experiência, não um romance. Romance? Que importa tal coisa neste “Verão Danado”?

Pedro Cabeleira concentra nesta sua primeira longa-metragem, um filme instintivo que resulta numa jovialidade embelezada de teor hedonista. A festa que nunca termina, e as ressacas intermédias que transformam o espectador no vivente desta alegoria jubilante. O jovem realizador não pretendeu um retrato geracional, tal como declarou em entrevista [ler aqui], as suas pretensões são simples, possivelmente fúteis ao olhar, e nelas recolhe uma complexidade “danada”. Um estado de espírito que há muito não perseguíamos, a mais notável sensação do início de uma experiência, qualquer que seja a sua natureza. O erotismo trazido por esses caminhos extra-sensoriais, a “gula” de conhecer as personalidades “passageiras”, o de se focar nas “criaturas da noite”, essa fauna que se alimenta, de forma vampírica, das sequências festas.

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O geracional é involuntário, “Verão Danado'' é a marca da sua equipa, do “sangue” e dos “verdes anos” depositados por esta. Sei, as aspas não foram coincidências, dois filmes tão queridos da nossa cinematografia, de Pedro Costa a Paulo Rocha, ambos que entraram em Lisboa como estranhos pedintes, maravilhando uma prisão de concreto e um quotidiano que se afasta das suas anteriores idealizações. Aqui, Cabeleira remete o conto do rural para a cidade, mas as consequências são todas menos saudosas, há uma prisão sim, mas o nosso protagonista (Pedro Marujo) não anseia evadi-la. Pelo contrário, quer imergir no psicadélico desta jornada em estado de passividade.

Mas para os que não acreditam na folia, “Verão Danado” não é um filme refém dessas fantasias draculeanas, do desejo interminável de permanecer jovem para todo o sempre. Entre ressacas que prestam serviço a elipses narrativas, Cabeleira forma um circulo de uma geração à deriva, recém-licenciados em busca do seu primeiro trabalho ou dos sonhos que teimam em não coexistir com as suas realidades. Mas ao invés da pedagogia de um “Morangos com Açúcar” e da ideia de formação encetada, “Verão Danado” abrange a experiência-simulacro. O espectador é um mero festeiro pronto a esquecer do Mundo que o abandonou, ou que simplesmente não o compreende. Pela noite adentro, sob a estética (existem traços do cuidado visual de um Gaspar Noé) que sobrepõe a câmara em plena demanda, como alguém que procura o foco de interesse num convívio fora do controlo.  

A verdade é que o cinema tem ido cada vez mais ao encontro dos mais jovens e, com isso, rejuvenescido. E esse rejuvenescimento não é um factor que deva ser ignorado, nem sequer desprezado. Verão Danado exibe os dotes dessa tremenda juventude… até Nuno Melo, quando surge, cobiça esse tão inexistente elixir. Ó tempo, porque não voltas atrás?

A joia que surge no meio do carvão

Hugo Gomes, 28.11.17

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No universo de Guillermo Del Toro (assim o chamaremos) existe toda uma coletânea de simbolismos, elementos fantásticos e criaturas mitológicas que operam conjuntamente como uma metáfora político-social. Talvez seja por isso que adereçamos a este seu mundo fértil de décors e caracterizações uma profundidade alusiva que muitas das variações fantásticas atingidas pelo cinema  – sublinhando as adaptações das série infanto-juvenis que seguiram moda no rescaldo do sucesso de Harry Potter e afins – nem sequer sonharam obter.

Em “The Shape of Water” deparamos, indiscutivelmente, com esse cunho autoral, até porque o Cinema do mexicano é reconhecível, e muito mais a sua colaboração com o ator Doug Jones, o verdadeiro “homem das mil faces”, um exímio herdeiro do legado Lon Chaney. Existem esses recortes, aqui e ali, empréstimos de outras experiências que o cineasta viveu nos seus “anos loucos” por terras de Hollywood, como as transladações de “Hellboy” e de “Blade” ao grande ecrã, orquestradas numa diluição de mundos secretos com o realismo formalizado que o espectador indicia como déjà vu.

É verdade que este vencedor do Leão de Ouro no último Festival de Veneza, um feito para um cinema cada vez mais “série B” ou da infame etiqueta “cinema de género”, é uma obra pretensiosa, com os truques baratos da award season, para além de prolongar os lugares-comuns definidos por este cinema querido, mas é dentro dessa capa de vulgaridade que Del Toro faz das suas para implantar uma rebeldia ao bem-estar do espectador. Pequenos, mas eficazes atos de ativismo que tornam “The Shape of the Water” numa fábula adulta e não tão inocente como aparentemente se julga. Obviamente que todo este dispositivo fabulístico segue numa demanda pela despersonalização de um mundo tão nosso, desde a criatura até ao ar agridoce desta América fechada e pintada sob tons de pseudo-medievalismo, tudo servindo como catarse para um plano maior.

Falar da nossa natureza humana e a atualidade que nos atinge com subjetividade, sem com isso deixar que a mensagem não seja percetível, é tarefa capaz para a “forma desta água”. Identificamos esses mesmos elementos paralelos, reconhecidos e experienciados, e apercebemos a trajetória que nos conduz a uma lição “dickeana” da seriedade humana (Philip K. Dick e não Charles Dickens): o que distingue os seres humanos dos animais? O que nos torna humanos? Mas ao invés da singela imagem de androides replicantes, agora vulgarizados por um cinema de entretenimento ansioso pelo estatuto de adulto (“Blade Runner 2049” sofreu com essa saturação e a queda do dito cinema maduro que teima em marcar presença na principal indústria), temos um protótipo de criatura da Lagoa Negra, a mitologia que se mistura com elementos invertidos de Hans Christian Andersen (sim, “A Pequena Sereia” representada por uma muda Sally Hawkins em missão do encanto ao seu “príncipe”) e os factos históricos distorcidos a perpetuar uma sensação de paralelismo.

A desigualdade, discriminação e a incompreensão pelo próximo, matéria evidente em todo este contexto. Sim, por mais rico que seja o ambiente próspero de Del Toro, ele torna-se previsível e percetível para o espectador. Não existem leituras agravantes e, possivelmente, é nesse sentido que “The Shape of Water” vinga de muitas construções fantásticas e de ficção científica que ultimamente têm sido produzidas, não existindo a pretensão de esconder ou de confundir com intelectualidade. Neste caso, o Mundo é aberto e apto para todos o usufruírem, quer como crítica sociopolítica, quer como a fábula adulta pelo qual tem sido vendido.

Se Del Toro é um artesão formidável na construção desse imaginário materializado, já a música de Alexandre Desplat acompanha esse processo e salienta os já proclamados tons fabulistas deste amor interespécies, que na verdade se refere ao mais antigo dos contos humanos. Dentro daquilo que tem sido produzido lá para os cantos de Hollywood, “The Shape of Water” é uma gema, um brilho reluzente de um cineasta que nos fascina através da criança que vive dentro de nós. Simplesmente honesto.

Iris Bry: "Certas mulheres tornam-se feministas sem fazer nada por isso"

Hugo Gomes, 24.11.17

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Para a ‘novata’ Iris Bry, a sorte bateu-lhe à porta quando o seu primeiro papel no cinema é num filme de Xavier Beauvois, o aclamado realizador “Des Hommes et des Dieux”, que se aventura numa outra Guerra numa outra França em “As Guardiãs” (“Les Gardienners”).

Adaptado do livro de Ernest Pérochon, este é um filme sobre as mulheres a assumirem o papel dos seus ausentes maridos, que são forçados a travar uma guerra global. A atriz reconhece que estas ditas mulheres tornaram-se verdadeiras feministas, porém, sem elas realmente o saberem, exibindo a força de um sexo sempre assumido como “fraco”, aqui capazes de equilibrar e fortalecer uma comunidade em risco de “desabar” perante conflitos bélicos a quilómetros de distancia.

Tive o prazer de falar com a jovem atriz, deslumbrada por um primeiro papel que foi mero acaso e pelas mulheres que se resumiram como verdadeiras Amazonas do século XX.

Esta é a sua primeira experiência na atuação. Como correu toda esta experiência?

Efetivamente sim, esta é a minha primeira experiência, principalmente porque eu não estava predestinada a fazer Cinema, nem sequer fiz a escola de Teatro nem tinha o sonho de ser atriz. Foi bom porque foi um primeiro filme com um primeiro papel e com um realizador como Xavier Beauvois, para além de uma produtora incrível, um famoso diretor de fotografia. E o mais incrível foi ter sido encontrada por uma diretora de casting na rua, que me pediu para ir a um casting. Disse que sim, um pouco por curiosidade, pois tinha uma outra profissão um pouco diferente antes disso. Fui e dois ou três meses mais tarde estava envolvida nesta aventura.

Sendo este um filme preenchido por mulheres fortes, o qual têm de sobreviver na ausência dos homens, como se enquadrou com esse tema?

Nós abordamos o assunto de uma forma histórica. Tudo isto realmente aconteceu durante a Guerra. As mulheres tiveram de assumir todos os trabalhos dos homens, tanto nas cidades como no campo. O Xavier tinha um historiador com ele a toda a hora, principalmente durante a escrita do guião, mas depois também, durante as filmagens. Na verdade, este filme é adaptado de um livro que o realizador não quis que eu lesse, pois ele achava que isso iria-me condicionar.

Depois foi seguir a ideia histórica, os homens estão na frente [da Guerra], as mulheres devem-se desenrascar sozinhas. Informei-me sobre o assunto. Li um livro de uma historiadora, Françoise Thébaud, “Les femmes au temps de la guerre de 14-18”, mas não fiz um trabalho intenso de pesquisa, deixei-me surpreender. Claro que com a ausência dos homens, para as mulheres foi muito difícil, mas este é um filme onde a ação não é desencadeada forçosamente pela Guerra. É um filme sobre a Guerra, sem ser sobre a Guerra [em si, dos combates]. Mas quanto a mim, sinceramente, fui para os sets para me deixar surpreender pela aventura das filmagens..

E historicamente, sim, é incrível, depois dessa Guerra muita coisa mudou entre homens e mulheres, pois o nosso direito de voto chegou logo depois. As mulheres deixaram de ter de fazer apenas “as suas coisas”. Elas fizeram um trabalho gigantesco nesse período. Não temos dados certos, mas é um facto que muitas dessas mulheres nos trabalhos rurais morreram de tuberculose. Nos monumentos aos mortos, em toda a França, em todas as vilas, há estátuas ao soldado desaparecido da Primeira Guerra Mundial, mas às mulheres, não existe rigorosamente nada. Existem [memoriais] a algumas enfermeiras, duas ou três figuras femininas, mas nada mais.

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E como se preparou para esse papel?

Fisicamente, treinamos como tratar dos animais, conduzir as carroças, cortar a madeira, etc. Treinei durante três meses antes das filmagens para dar credibilidade, mas para o papel em si… o guião mudava todas as semanas e para o Xavier o guião é um trabalho constante. Na verdade, não tivemos discussões de horas e horas com o Xavier para saber mais sobre a psicologia da Francine. Não é de todo a sua maneira de trabalhar. Ele sabia que era a minha primeira experiência nos sets, e como tal dava-me confiança. Ele dirige muito bem os atores. Mostra-nos aquilo que devemos dizer, fazer, transmitir.

Resumindo, houve duas partes da preparação: uma primeira física e uma segunda mental, de reflexão sobre a personagem.

Nota-se que houve uma evolução psicológica na sua personagem ao longo do filme…

Nós não filmamos as cenas da Francine cronologicamente, mas quase. A primeira cena que filmamos foi a chegada da Francine à quinta de Le Paridier, a última foi a cena do baile, em que ela canta. Por isso, era a vontade do Xavier em fazer evoluir a personagem. Nós fizemos duas sessões de filmagens, para filmar o verão e o inverno. E esta segunda parte das filmagens concentrava-se nos momentos em que a Francine está grávida.

Se pegarmos simplesmente na história de Francine do filme temos um bom exemplo como pela força das coisas, certas mulheres tornam-se feministas sem fazer nada por isso, apenas tornam-se pela força das circunstâncias, como as mães solteiras, que têm de tratar de tudo sozinhas. A grande particularidade da Francine e do seu filho é que ela diz que quer tomar conta dele sozinho e quer-lhe dar o seu nome. E isso era algo importante na época porque as mulheres queriam dar um nome mais importante aos filhos para poder aceder a condições melhores.

Novos projetos no cinema?

De momento nada. Oficialmente, nada assinado. Vamos ver. O filme ainda não estreou, estreia só em dezembro [2017, em França]. Espero chegar a um novo projeto e um novo papel antes [dessa estreia]. Veremos o que vai acontecer. É tudo incerto [para já]

Algum realizador com quem queira trabalhar?

Demasiados (risos). Posso dar alguns nomes, como Bouli Lanners, Dennis Villeneuve … Em França há imensos… adoro Ozon, a Maiwenn, são muito ecléticos e não têm nada a ver uns com os outros…

Cada um com o seu "Guimarães"

Hugo Gomes, 23.11.17

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Centro Histórico resulta como mais um "filho" do Programa Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura (o outro foi 3x3D, que reunia Peter Greenaway, Jean-Luc Godard e Edgar Pêra), e um dos principais espelhos do seu intuito primário, o invocar das "histórias que a cidade tem para contar". Neste filme coletivo foram reunidos quatro realizadores, os portugueses Pedro Costa e Manoel De Oliveira, o finlandês Aki Kaurismaki e o espanhol Victor Erice, todos eles debruçando os seus estilos narrativos na cidade "génese" de Portugal, uma experiência sob tubo de ensaio cénico.

Assim começamos com o segmento "O Tasqueiro" de Kaurismaki, um exercício de humor melancólico tão próprio do autor que nos remete a um taberneiro com problemas de iniciativa. O realizador de Le Havre consegue em pequeno tempo de antena invocar um espírito lusitano abalado pela austeridade, que não se encontra presente no cenário exposto mas na inerência das suas personagens. Que tão bem que os “bonecos” produzidos por Kaurismaki ficam na realidade portuguesa do século XX!

Pedro Costa é o primeiro português a entrar em cena com “Sweet Exorcist”, um segmento que afasta-se claramente do contexto do projeto, mas que aproxima à marca do tão prestigiado autor. É, como o título indica, um exorcismo recorrente a espíritos malévolos, estes oriundos de um passado não tão distante, a Guerra Colonial. Ventura (ator-personagem fetiche dos últimos devaneios de Costa) defronta essas assombrações que o vão cercando numa perpétua claustrofobia: "viveste muitas mortes Ventura".

Já no terceiro tomo, “Vidros Partidos”, o espanhol Victor Erice centra-se nas memórias de uma fábrica ao abandono, os fantasmas divagam por entre os quadrantes deste realizador "medium", que comunica com os espíritos por quem o tempo abandonou. Assim, Manoel de Oliveira, o nosso português mais que tudo na cinematografia lusitana, tem a honra de fechar o Centro Histórico com a piada turística sob a coordenação do seu neto e ator-fetiche Ricardo Trêpa, “O Conquistador Conquistado”, repensando na cidade-mãe como a atual subjugadora de um longo negócio chamado turismo. E é através do monumento em honra do seu padroeiro - D. Afonso Henriques – que chegamos à genésis de um país que irá viver "muitas mortas" (citando o trecho de Costa).

 

E se fosse comigo?

Hugo Gomes, 22.11.17

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Ruben Östlund filma os seus filmes com uma certa intenção, uma provocação no qual tenta debater-se com a consciência moral do espectador. Se em “Force Majeure”, especificaria o medo como uma catarse ao rompimento de uma relação, em “The Square” somos ainda levados ao extremos nessa encruzilhada de decisões. “E se fosse consigo?” – mais do que um programa pedagógico, Östlund perpetua uma tragédia cómica minada de experiências que vai de encontro aos nossos próprios medos, provavelmente o maior dos medos sociais, o de agir na altura certa.

Em paralelo com a avalanche de “Force Majeure”, em “The Square” (“O Quadrado”) assistimos a uma particular sequência de uma arte performativa levada ao extremo, a besta que encarna no homem-artista e a manada indefesa que encarna numa multidão intelectualmente homogénea. A situação torna-se tão drástica que nós próprios [espectadores] questionamos a nossa experiência, a impotência nos nossos ativismos, e o desprezo pelo próximo como um mecanismo de defesa. Nessas ditas situações, “O Quadrado” envolve-nos com uma tese psicológica desafiadora, um filme revoltante … silenciosamente revoltante que poderá dizer mais de nós que qualquer divã. E esse quadrado, engenho simetricamente perfeito que reflete a igualdade de quem o penetra, um produto de museu no qual Östlund manipula como objeto de estudo a outra das questões da sua obra. Até que ponto a arte pode ser considerada arte? Ou simplificando, o que é a arte?

E toda essa arte tem consequências, assim como os atos do protagonista, Christian (Claes Bang), que concentram todos esses confrontos invocados numa só persona. Aquele, e já referido, medo social, âncora das nossas relações afetivas assim como comunicativas, que elevam a um certo grau de passividade. Até porque existe dentro de nós um certo Christian, que se esconde em plataformas para expressar os seus sentimentos mais primários, no sentido em que essas emoções são eventualmente subvalorizadas por uma comunidade artística, pensante que anseia atingir o pedestal da racionalidade, quer do real, quer do abstrato.

O Quadrado” é um exemplar de um filme subjugado ao debate dele próprio, pronto para o diálogo com o espectador, entre espectadores e sobretudo depois do seu visionamento. São as questões sugeridas pela obra que nos tornam aptos para as suas interpretações; porém, Östlund tenta acima de tudo obter essa função, fugindo da pedagogia infantil e da essência solipsista que invade a comunidade arthouse, mas foge, também, da objetividade.

O Quadrado” prolonga-se até não possuir mais uma questão nova a indicar, torna-se com o tempo obtuso, fácil e previsivelmente moralista, como se toda esta galeria resumisse a uma fábula, citadina e moderna que exorciza a realidade como a vemos. Depois vem a obsessão de Östlund pelas escadas, a técnica e como filmá-las, uma tese na qual não procuramos aqui dar respostas, mas que preenche em demasia uma obra sobretudo comunicativa que oscila pelo simples ilustrativo.

Injustiça à Liga

Hugo Gomes, 15.11.17

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Não se consegue salvar o Mundo sozinho”, nem sequer levar um franchise às costas. “Justice League” adivinhava-se a léguas como um ser atribulado, desde a perda do seu realizador Zack Snyder, que abandonou por motivos de tragédia familiar, mas encontrava-se igualmente pressionado pelos estúdios, o que obrigou a diversos reshoots.

O resultado está aqui: a reunião da equipa mais desejada é um blockbuster automatizado, sem estilo e colado a cuspo de forma a cumprir os requisitos mercantis. E é pena meus amigos, visto que, tal como acontecera com “Suicide Squad”, andam por estas bandas personagens que realmente nos cativam o interesse. É uma barafunda, mas um caos virtuoso. Ou pelo menos aparenta ser, escondendo as suas mazelas e o orgulho ferido, isto após o “tira tapete” a Snyder com o seu Batman V Superman” (um filme que continuamos a defender). A anarquia mesclada com a genica de alguém que tinha algo para mostrar é hoje abalada pela passividade deste ser escorregadio, com escassos vislumbres de reanimação – nem sequer de sofisticação.

Veremos as coisas por este prisma, antes que se condene o trovador ao invés da cantiga, “Justice League” irá fazer dinheiro … muito mesmo … não é o horror, a ofensa declarada ao cinema de entretenimento atual, nada disso. Estamos somente perante uma perda, estilística e progressiva, a um trilho que o poderia afastar da concorrente Marvel (que para ser sincero não tem ficado melhor com tempo, apesar da exceção do bravo “Thor: Ragnarok”). Tudo soa oleado, do mesmo óleo que o estúdio da Disney tem contaminado os seus produtos, um líquido espesso que branqueia aos poucos a sua negritude que tão bem serviria de contraste à rivalidade.

Assim, temos um Jason Momoa a servir barbaramente como Aquaman, um Ezra Miller a entender-se como um antídoto à seriedade contida na trupe, um Ben Affleck cansado do traje e um Ray Fisher com pouco palco, enquanto que Gal Gadot continua a usufruir graciosamente a sua limitação interpretativa. São os “misfits” honrosos que nos convidam a duas horas de ritmos inconstantes, consolidados a um terceiro ato desesperadamente estapafúrdio (contudo, há que relembrar que a DC tem-se preocupado cada vez mais com o elemento civil) e um vilão em CGI que manifesta preocupações quanto ao rigor do produto.

Cai bem dentro da saga, cai mal no panorama do Cinema enquanto entretenimento em evolução.  

"Que cinema mais velho", ouviu-se na plateia ...

Hugo Gomes, 11.11.17

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O maior de todos os críticos de arte, é incontestavelmente o tempo, e é graças à sua apreciação que muitas das criações do escultor Auguste Rodin foram consagradas até aos dias de hoje. Inevitavelmente, a figura por detrás do Pensador e da estátua de Balzac, serve de ensaio para uma cinebiografia encomendada, e para lugar de “tarefeiro” surge-nos um dos nomes mais subvalorizados do cinema francês, o veterano Jacques Doillon (“Ponette”, “Le Petit Criminel”), e como encarnação do artista, Vincent Lindon em mais uma fusão de homem à deriva.

À deriva nos sentimos desde os primeiros planos em que deambulamos no atelier de Rodin, com o ator a dar graças por este desempenho carrancudo e de sedução frívola. Tal como o ofício, “Rodin” [filme] vai-se construindo desde passos deliciados e cuidadosos até a arranques grosseiros e pesarosos, há uma essência de distorção da arte de esculpir, com a paciência mas sem a devida dedicação à criação que nasce perante os sonhos do Homem. Como biografia, “Rodin” é derrocada, emancipada do seu espectador, que poderá indiciar um tom de autodidatismo quase pedante. Esquecemo-nos da sua jornada e a História é citada como aquário de vida artificial. Até mesmo quando se é inserido um conflito em toda esta veia, desde a “rivalidade” com a sua paixão e igualmente escultora Camille Claudel (mais talentosa do que aquilo que o filme pressupõe), até à obsessão balzaquiana que vai auferindo uma certa instigação “truffautiana”, obviamente, endurecida como uma sugestão e não um vínculo avante.

Por entre ateliers, outdoors, mansões e noites de prazer, “Rodin” esbarra no vazio da sua própria demagogia. No final da sessão de apresentação à imprensa no Festival de Cannes, alguém grita de pulmões plenos, dirigindo aos créditos finais e de certa forma, se dirigindo ao Mundo: “que cinema mais velho!”. Mais do que isso, mais do que essa impressão em frente aos velhos do Restelo, “Rodin” é cinema obsoleto, quieto no seu tempo, sem a mínima noção de criação. O tempo, como crítico, nos dirá se a obra de Jacques Doillon será um dos persistentes, mas as apostas deste lado apontam para uma resposta negativa.