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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Viajamos para Famalicão! Arranca a 2ª edição do Close-Up, Observatório de Cinema

Hugo Gomes, 13.10.17

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"El espíritu de la colmena" (Victor Erice, 1973)

Numa viagem, no seu sentido mais poético e elusivo, o que menos importa é o destino. São os trilhos, essas veias sanguinárias que nos transportam para uma experiência à mercê da vivência. E são as experiências que vão este segundo episódio do CLOSE-UP – Observatório de Cinema de Vila Nova de FamalicãoDe 14 a 21 de outubro, a ocupar os mais diferentes espaços da Casa das Artes, e tendo como mira o sucesso da edição anterior, o CLOSE-UP apresentará mais de 40 sessões de cinema, workshops direcionados a escolas e famílias, uma produção própria (de Tânia Dinis) incluída no panorama no feminino de produção portuguesa, e a exposição fotográfica de André Príncipe (realizador de Campo de Flamingos, Sem Flamingos), intitulada de “O Perfume de Boi”, a ter lugar no foyer.

O primeiro dia será marcado pelo filme-concerto de “A Man with a Movie Camera”, de Dziga Vertov, devidamente sonorizado pelos Sensible Soccers (encomenda do CLOSE-UP). O gosto da melodia pop do grupo a tentar provar cadência para com uma das obras mais influentes da História do Cinema. Como qualquer viagem, digna do seu nome, o CLOSE-UP será dividido por diferentes etapas (secções) que nos acompanharão ao longo destes sete dias de pura reflexão cinematográfica. O Tempo de Viagem revela-nos uma metáfora sobre a maturação, o crescimento induzido por esses caminhos dados a lugares incertos. Andrei Tarkovsky é a “rock star” desta secção com “Nostalghia, a sua “aventura” em Itália. O existencialismo procurado por um poeta russo em terras toscanas e romanas funciona como um sacrifício que nos guia quase em modo retrospectivo e introspectivo ao cinema do seu cineasta. Wim Wenders é outro importante signo deste mesmo espaço, não fosse ele um dos grandes “caminhantes” do road movie.

Em “Fantasia Lusitana” esperam-nos quatro longas-metragens portuguesas em oposição a um programa de nove curtas, incluindo uma sessão dedicada a Tânia Ribeiro com a estreia de “Armindo e a Câmara Escura”. No lote nacional, destacamos principalmente as exibições da mais recente longa de Salomé Lamas, "El Dorado XXI", e de Luciana Fina, “O Terceiro Andar”. Vinda da nova vanguarda soviética, a cicerone Larisa Shepitko e Elem Klimov serão figuras relembradas nesta edição de Histórias de Cinema. Mas não serão as únicas. A partilhar o espaço está a dupla Peter Handke e Wim Wenders com “The Left-Handed Woman” e o sempre poético “The Wings of Desire”, bem como David Lynch, indiscutivelmente o realizador do ano, nem que seja pelo reavivar da série “Twin Peaks” que tanto deu que falar, no Observatório, representado pelo spin-off cinematográfico, “Fire Walk with Me”.

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Eldorado XXI (Salomé Lamas, 2016)

O resto da programação será constituído por sessões direcionadas para escolas e família, e ainda Infância & Juventude, que como o nome indica será um olhar coming-to-age; desse crescimento que por si deverá ser visto como uma viagem. E que melhor filme para transpor essas duas jornadas alusivamente interligadas que “American Honey” de Andrea Arnold? Claro que nem todas viagens são felizes e a juventude pode ser inconstante, inconsequente e até inconcebível, como o caso de “The Tribe”, de Myroslav Slaboshpytskyi, filme que, infelizmente, chegara demasiado tarde ao circuito comercial português, tendo em conta o seu historial de controversas passagens em festivais por esse Mundo fora. Nesta seção destacamos ainda o clássico de Victor Erice, “El espíritu de la colmena”.

A música e o cinema vão se fundir para criar um encerramento memorável, assim promete esta 2ª edição do CLOSE-UP, com três curtas de Reinaldo Ferreira, ou Repórter X + Dead Combo. A proposta parece indigesta, incompatível e sobretudo experimental, mas o cinema é um experimento que se transformou, como se pode verificar, na mais complexa das experiências. A viagem está marcada. 

José Pedro Lopes perdido nas florestas que delineiam as limitações do género

Hugo Gomes, 12.10.17

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José Pedro Lopes, produtor e realizador de inúmeras curtas nacionais que povoam o cinema de género, poderia ser mais um a tentar a sorte nos circuitos limitados (não com isto reduzido o valor do formato da curta-metragem), porém, o grande passo para a longa e a sua respetiva estreia comercial nos indica que há horizonte para novas histórias no nosso panorama. Baseando-se em folclore nipónico, A Floresta das Almas Perdidas inscreve-se num meio termo de slasher movie que redefine a normalização da violência que se vive em dias de exaustiva informação.

Existe por estes recantos florestais, ramificações de uma obra plena construida a pouco custos e a um know how a fazer inveja a tanto, dito, “cinema comercial”, mas por enquanto temos modéstia e quem sabe, os contornos para um futuro arranque do tão cobiçado terror à lusitana.

Vamos começar com a pergunta mais básica em relação ao Floresta das Almas Perdidas. Como surgiu a ideia para deste projeto? E o porquê da “apropriação cultural” da Floresta dos Suicídios?

Queria explorar como o mal surge em todo o lado, de forma oportunista. Sempre que há uma calamidade, existe que tira vantagem disso. Ou numa grande perda. Aqui a minha ideia era ter alguém que se alimentava dos sentimentos de um suicida e da sua família de luto. Inspirei-me em filmes como o “Whristcutters” (do Goran Dukić) e o “Audition” (do Takashi Miike).

No que toca a lugares conhecidos pela prática do suicídio existem por todo o mundo, mesmo aqui em Portugal. Claro que a floresta de Aokigahara é uma referência no contexto que criamos – mas estas personagens estão e lidam claramente com problemas portugueses.

O cinema de género é uma raridade em Portugal. Como foi, ou pensa, contornar um desafio tão grande na nossa cinematografia?

Em termos de contexto, ‘A Floresta’ não foi feita para provar nada cá dentro, nem para contrariar ninguém. Quanto muito, como fã do género fantástico, queria contribuir nesse género global. Queria ver histórias portugueses no meio desse grande género que descobre filmes nos quatro cantos do mundo.

No nosso país há uma dificuldade grande em financiar filmes de género, e talvez ainda maior em coloca-lo e distribuí-lo. Mas é um pouco inerente ao género em sim: o terror sempre foi peregrino e sempre assustou. É o tipo de filmes que vemos em adolescente para chatear os pais, e que continuamos a ver em adultos para baralhar os amigos.

Acho que quem faz terror cá ou lá fora não pode muito pensar no mercado local, mas sim no internacional. Todos os anos tens filmes de terror que viajam o mundo com abordagens muito culturais. Esperar conceber um filme para ser um sucesso no mercado nacional é esperar bater o cinema de Hollywood em algo que eles tem toda a vantagem.

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Em A Floresta das Almas Perdidas nota-se uma gradual artificialidade, principalmente no genérico estilizado. Será que aqui influências do cinema de Argento? Esse neo-expressionismo do género?

Apesar de ‘A Floresta’ ser um filme muito estilizado e visual, diria que é mais sobre contenção e sobre implosão. O Dario Argento vejo-o como mais explosivo. As minhas influências foram mais o cinema de realizadores como o Takashi Miike e o Kim Ki-Duk, situado entre o horror e o drama, sem grandes linearidades.

A Floresta’ é sobre a chegada à idade adulta de um assassino, sobre a maturação do mal. Por outro lado, é sobre a tristeza e a fatalidade das vítimas. O terror está mais no coração das personagens do que naquilo que vemos.

Ao contrário de muitas obras do género, principalmente vindo dos EUA, o antagonista não possui um devido motivo para a sua violência. Será que aqui se concentra uma reflexão do fascínio pelo mórbido e violência, normalmente anexada, à juventude de hoje?

Creio que em certa forma a ausência de motivo é o motivo mais comum para quem faz mal aos outros no mundo real. O cinema procura razões e desculpas para o mal para não nos assustar demasiado. Mas a verdade é outra – quem faz mal aos outros faz-lo por uma opção de vida. Tens pessoas que passam por vinte vezes pior e que mesmo assim não faria mal a ninguém.

O lado da juventude é truculento. O filme faz muitos referências às idiossincrasias da juventude atual, das redes sociais e da abordagem superficial das coisas. No entanto, acho que o lado mórbido é desprovido de época. Este tipo de maldade já está connosco à décadas. Acho que também a insensibilidade provocada pelas nossas tecnologias não está só na juventude – existe um hábito de acusar os jovens de viverem muito online e se relacionarem com os seus telemóveis, mas isso é um problema que atinge todas as idades.

Floresta das Almas Perdidas é também um desafio para a pequena produtora Anexo 82. Fale-nos das dificuldades de financiamento e até mesmo de produção.

A Floresta’ foi maioritariamente financiado pela produtora Anexo 82, sendo que contou com um apoio da Fundação GDA e alguns patrocínios privados e apoios. O segredo para fazer o filme com pouco foi pensá-lo de forma a ir de encontro ao que conseguíamos fazer. Foi um sacrifício grande mesmo assim – um que eu não sei se voltaria a fazer.

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Sobre o casting? Como sucedeu a escolha de Daniela Love para o papel de psicopata?

A Daniela já tinha participado numa curta-metragem nossa chamada “Videoclube”. Nela ela era também cheia de referências e irreverência. A Carolina de ‘A Floresta’ é o lado obscuro dessa personagem, e desde muito cedo que a Daniela foi a escolha para o papel.

Como vê o cinema português de hoje, desde os apoios até à variedade estilística.

Creio que não é o meu lugar fazer essa apreciação, nem sou a pessoal ideal para o fazer.

Quanto a novos projetos?

Estamos de momento a terminar uma curta-metragem do Coletivo Creatura, um filme de animação chamado “A Era das Ovelhas”. A seguir a isso vemos analisar o resultado de ‘A Floresta das Almas Perdidas’ e concluir o que fazer a seguir. Temos vários projetos – uns a procura de desenvolvimento ou outros de financiamento – mas só depois de ver o impacto deste é que saberemos o melhor a seguir.

Vicente Alves do Ó: "O Cinema continua como um parente pobre da televisão em Portugal."

Hugo Gomes, 10.10.17

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Ricardo Teixeira em test screen para "Al Berto" (2017)

Vicente Alves do Ó regressa à poesia, aos poetas e aos inspiradores. Cinco anos depois de “Florbela”, a poetisa de “amar perdidamente”, o realizador decide aventurar-se num projeto mais pessoal, mais intimista e emocional – “Al Berto”. A vida de Alves do Ó cruzara com este desafiador por natureza, este artista que olhou de frente para a hipocrisia da época e fez estremecer o conservadorismo embebido da cidade de Sines num pós-25 de Abril. Falei com o realizador sobre o projeto, a sua experiência e sobre o seu olhar à mudança eternamente esperada da sociedade portuguesa.

Em relação ao filme, a iniciativa e da construção de uma “trilogia de poetas”, o porquê de aventurar-se em Al Berto?

Esta ideia de uma “Trilogia dos Poetas” nasceu durante a produção da “Florbela”, e não antes. Não foi uma ideia pré-concebida, ao contrário foi crescendo com este retomar ao gosto da Poesia. Esta com enorme importância na minha vida, assim como no meu crescimento, e não só. A escolha dos três poetas foi feita, pura e simplesmente por ligação emocional, nada mais que isso. E Al Berto fazia todo o sentido integrar esta mesma trilogia, visto que foi dos poetas que mais me marcou até porque convivi, conheci e trabalhei com ele.

Não poderia contorná-lo, até porque em dimensão emocional foi evidentemente mais enriquecedor para mim que “Florbela”. Al Berto estava intrinsecamente relacionado com a minha vida, com a do meu irmão, com Sines, etc. Foi a primeira personalidade notável a ler um texto meu, lembro de recitar um poema da minha autoria no Teatro de Sines e Al Berto, assim como o João Maria [o irmão de Vicente Alves do Ó], encontravam-se no público. Tinha 19 anos.

E quanto à escolha deste período na vida do artista?

Agora em relação a este período, que de certa forma desafia o esquematismo da biografia, e tal como fizera com Florbela, é encontrar um período transformador, catártico, revelador, inspirador, na vida desta pessoa que irá despoletar tudo o resto que se conhece. Como Al Berto se tornou na figura que hoje o público conhece? Eu tinha esta história para contar. Primeiro, era algo que o grande público desconhecia, até mesmo que as pessoas que lidavam com ele conheciam, apercebi-me disso rapidamente. Para além de ser um período muito complexo. O 25 de Abril é fresco, a liberdade, o direito de expressar-se livremente, a democracia, encontravam-se igualmente frescos, e neste período há uma reação a essas mesmas mudanças que entra em choque com uma juventude inquieta que simplesmente quer viver. Depois quis demonstrar o amor entre dois homens, que continua sendo um tabu, até porque ainda hoje a homossexualidade é encarada como um algo perfeitamente sexual e nunca um sentimento amoroso. Esse elemento, o Amor, é bem mais complexo do que as pessoas julgam. Aliás, é mais difícil aceitar a possibilidade de amor entre dois homens do que o teor sexual da homossexualidade.

Em relação ao casting. Porquê a escolha de Ricardo Teixeira para interpretar essa personalidade tão querida para si?

Conheci-o no ginásio [risos]. Sim, pouco tempo depois de ter terminado o guião. Quando dei por encerrado o argumento de Al Berto deparei com um autêntico problema: quem iria interpretar o poeta? Isto preocupava-me profundamente porque eu conheci perfeitamente o Al Berto, sei de cor a sua aparência, a sua voz, os seus gestos e maneirismos, sabia perfeitamente os pormenores do seu ser, aliás o meu jeito livre foi adquirido graças a ele, e eu devo-lhe muito da minha personalidade. Ele morreu há 20 anos, por isso existem registos vídeo e áudio. Eu teria que encontrar alguém parecido, para não dizer idêntico, a esse homem.

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Vicente Alves do Ó

Mas não desviando do assunto, estava a treinar no ginásio quando de repente passa por mim o Ricardo, na sua, com fones nos ouvidos e de cabelo comprido. A minha reação foi simplesmente de espanto, apesar de ter a sensação que a sua cara não me era estranha. Ricardo pertencia aos Silly Season, uma companhia de teatro. Meti conversa com ele de forma a conseguir ouvir a sua voz, o timbre do Al Berto era inconfundível, suave e grave, e quando o Ricardo falou comigo fiquei determinado a contratá-lo. Imagem e voz eram as qualidades que precisava para o meu Al Berto. Contudo, depois disto, o Ricardo seguiu para o casting e juntei-o logo com o José Pimentão, que iria interpretar o meu irmão, para ver como resultava em termos de química. Obviamente que o resultado foi positivo. Quanto ao resto dos atores foram aparecendo. 

O espaço entre terminar o argumento e começar a filmar foram dois anos, e nesse tempo fui construindo o meu elenco. Procurei jovens atores em teatro. Por exemplo, Raquel Rocha Vieira impressionou-me numa peça. “Quem é esta miúda?” pensei eu espantado. Mas concretizei este processo com o elenco jovem; quanto aos adultos, foram atores que fui gradualmente convidando.

A produtora não fez nenhuma exigência no casting?

Não, a minha produtora não fez qualquer exigência com o grupo mais jovem, pelo contrário, incentivou-me a trazer “caras novas” para o Cinema, de forma a renovar os “rostos do Cinema”, para não termos a tendência de repetir os atores. Julgo que a mais conhecida dos jovens é a Gabriela Barros, que faz televisão, porém, só também a descobri numa peça de teatro.

A atriz Rita Loureiro interpreta em "Al Berto" a sua própria mãe. A escolha para este papel derivou de algum traço afetuoso para com a atriz ou foi uma espécie de “recompensa” por ter integrado a sua primeira longa-metragem?

Obviamente, para além de admirá-la como atriz, e ter sido a minha primeira protagonista [“Quinze Pontos na Alma”], eu olho para ela e apercebo-me nela algo de muito semelhante com a minha mãe. É um sentimento quase maternal, e acrescentaria também fetichista, visto que ela já participou em três filmes meus. Tento mantê-la perto de mim [risos], daqui a uns anos alguém irá se debruçar dos porquês e os quês dela aparecer tanto na minha filmografia.

Contudo, não imaginaria outra pessoa para fazer o papel de minha mãe. Se a Rita não pudesse fazê-lo, juro que tirava a personagem do filme.

Nós portugueses sempre tivemos a ideia de que o 25 de Abril nos tornou tolerantes e livres da noite para o dia. Essa desmistificação encontra-se presente no seu filme, a sociedade de época ainda “abraçada” aos valores conservadores e ao medo da mudança.

Era a sociedade da época, como tu dizes, eu não precisei de inventar. Queria combater a hipocrisia, a cristalização daquele momento [25 de Abril] como perfeito. O português tem dificuldade em encarar a verdade, sempre a mascará-la, uma hipocrisia impressionante.

O 25 de Abril não foi perfeito, mas se foi a melhor coisa que nos aconteceu? Foi dentro daquilo que tínhamos. Mas algo que temos que ter em conta é que muitas pessoas não alteraram a sua mentalidade, aliás mantiveram aquelas mesmas ideias que tinham no exato dia 24 de abril, o conservadorismo, a intolerância, o medo da modernidade e das diferenças, estas ainda se encontravam nestas pessoas. Ainda existe a ideia de que um dia marca a diferença nas emoções de uma pessoa, a ideologia, a política, a religião … não, nada muda. E a prova está naquilo que se abateu sobre esses jovens, as pessoas não sabiam lidar com aquela diferença, com aquela liberdade, e ao invés disso responder com o instinto, primário e tradicional. Não paravam para pensar que as suas lutas pela liberdade dava direito a que aquele estilo de vida existisse.

O paradoxo é esse, elas querem a liberdade, mas não a liberdade total. Para mim era importante falar nisto, porque isto estava tão presente naquela altura, assim como está hoje. Agora vivemos numa sociedade mais “politicamente correta”, em que estes temas continuam a ser varridos para “debaixo do tapete”.

Considera o politicamente correto de hoje como uma espécie de máscara?

O politicamente correto é uma máscara, sim. Porém, hoje confunde-se o frontal em ser desrespeitoso, e há uma linha que separa ambos os lados. Penso que da mesma forma que tentamos desmontar o politicamente correto, também devemos diferenciar cada coisa. Acima de tudo, questionar o que é a Liberdade de Expressão? Onde acaba e começa o desrespeito pelo próximo.

Adiante, se eu retratasse Sines neste filme como uma cidade maravilhosa, progressista, artística e tolerante com os ideais do 25 de Abril … estava a ser igualmente hipócrita. Por outro lado, é uma forma de olhar o interior do nosso país. As histórias envolventes do 25 de Abril são retratadas quase exclusivamente em Lisboa. E o resto do país? Não tem histórias para contar? Aliás, não só o 25 de Abril, mas muitas das histórias cinematográficas parecem restringidas a esta bolha.

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Al Berto (2017)

Há bocado falava dos “rostos habituados do Cinema Português”, é verdade que muitos dos atores alternam entre o cinema e a televisão, mas a questão é, para si, qual a diferença de fazer Cinema e Televisão?

O Cinema e a Televisão são duas plataformas completamente distintas, apesar de hoje existir muitos a fazer cinema na televisão e televisão no cinema. Julgo que tudo isso irá ser debatido cada vez mais, até porque as plataformas estão cada vez mais a transformar, a aproximar um do outro, e aí entra o streaming, os “netflixes” da vida. Só espero que não acabem com as salas. Podes estar a ver a melhor série do Mundo, mas nada bate a experiência que é ver um filme em sala, uma verdadeira comunhão.

Em relação à televisão, contextualizando-o no caso português, possui mais dinheiro, mais tempo e até liberdade. Mas recordo que existe um preconceito de quem faz televisão não pode fazer cinema e assim vice-versa, apesar de hoje, este cenário encontra-se melhorado. E acredito plenamente que as televisões generalistas vão-se extinguir. Quanto ao Cinema, apesar da evolução, continua como um parente pobre da televisão em Portugal.

É sabido que o Vicente Alves do Ó dá aulas de cinema, utiliza os seus filmes como práticas ou exemplos de ensinamento?

Eu não obrigo ninguém a ver os meus filmes, nem sequer a seguir-me, mas aconselho os meus alunos a espreitá-los. Acho que algo crucial no ensino é ter professores que se encontram no ativo, que se debatem constantemente sobre a prática e não apenas na teoria, isso é verdadeiramente importante. Muitas vezes uso a minha experiência para focar nas determinadas áreas do ensino, no que toca à escrita, à rodagem, à realização, ao estilo, na pós-produção.

Costuma ler críticas?

Leio tudo, tudo e tudo. Mas já passou o tempo em que me preocupava com as críticas, ficava desmerecido com as más e só apetecia desaparecer. Aos poucos comecei a fortalecer e hoje, leio, só que não me chateio. Para quê? Quando estou a rodar e a trabalhar no filme, ele é meu por direito, mas depois de terminá-lo, passa a ser de quem o vê, da sua interpretação, do seu gosto. Más críticas tornam-me mais forte, e se não gostam do meu trabalho, temos pena. Continuarei a realizar os meus filmes.

Novos projetos? Tenho conhecido que o seu próximo chama-se “Golpe de Sol”, quer falar-nos sobre esse projeto?

Só posso dizer que acabamos as quatros semanas de rodagem, muito discretas e para os próximos dias começarão a sair mais algumas informações.

Al Berto, o “menino de olhos tristes” que quis ser poeta

Hugo Gomes, 09.10.17

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Tens os olhos tristes, e todos os homens com olhos tristes são poetas”. Assim é nos dito inicialmente, no meio do encontro de duas personagens, que o espectador, até então, desconhece as suas identidades e paradeiros, mas apercebe-se instantaneamente da teatralidade dos seus diálogos proclamados com tamanha serenidade e espera. Com a frase feita, pronunciada e ouvida, o espectador é informado automaticamente da natureza de uma das suas personagens. O Poeta, o eremita da sua verdade, refém das palavras que nascem do seu interior com fins de expressar a alma da maneira como lhe convém. Porém, “Al Berto”, de Vicente Alves do Ó, está longe dessa recolha de talentos pelo qual se tornaram cinebiografias.

A personalidade-protagonista nunca recita uma estrofe, a sua criação é sugestiva na mente do público, visto que não é esse o objetivo inicial do realizador de “Florbela”, a adaptação da poetisa de “Amar Perdidamente” que soa como um rascunho em comparação a este relato de foro mais emocional, pelo ponto de vista do seu narrador (Alves do Ó). É sabido que Vicente (o chamaremos assim) conviveu com este amante da liberdade, dos ideais do 25 de Abril que não se viveram na sua totalidade na população de Sines. Até certo ponto, a existência de Al Berto cruza com a existência do nosso Vicente, direta e indiretamente, nesta última estância e como parte umbilical deste filme, o romance com o irmão de Alves do Ó, um “amor entre homens” acima da sexualidade “profana” aos olhos dos “pacóvios conservadores”.

Mas do Al para Berto nota-se um espaçamento, uma distância e nela, se materializa com toda esta época induzida como um espectro da sua sugestão. O afastamento para com o espectador dá-se por vários motivos, pela rigidez planificada que nunca encontra lugar no onirismo libertino nem da sujidade do intimismo dito queer (referenciando os lugares-comuns detidos nesse subgénero), ou, pelos conflitos internos do telefilme com a própria matéria cinematográfica, uma linguagem empestada por um crescente academismo. 

Outro ponto que remete Al Berto para o “feliz” fracasso, é a quantidade de secundários nunca desenvolvidos, subjugados pela sombra da personagem-título e do seu romance protagonista, o carisma requisitado de Ricardo Teixeira que ofusca qualquer justificação para que o produto saia do seu umbiguismo. A juntar a ausência de lirismo que não disfarça a teatralidade destes atores e situações, Al Berto funciona como um gesto, narcisista para uns, honesto para outros, dando forma a um exercício falhado.

Vossa Excelência, a "Rainha de Espanha" ...

Hugo Gomes, 06.10.17

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Dezoito anos depois das peripécias tragicómicas de “La niña de tus ojos”, Fernando Trueba regressa a essas familiares personagens, a essas caras que cresceram com ele e na indústria espanhola. Penélope Cruz, por exemplo, transformou-se neste período de tempo numa estrela global. Em “La reina de España” (“A Rainha de Espanha”) seguimos a chegada de Hollywood a terras de Franco, a criação dos grandes épicos históricos espanhóis e a formação de grandes estrelas castelhanas; de Espanha para o resto do Mundo.

Sim, Trueba (do oscarizado “Belle Époque" e “Chico & Rita”) consegue neste filme recuperar um certo tom de júbilo, enquanto olha satiricamente para o cinema norte-americano e os seus acréscimos. A obra é fustigada pela sua crítica política, multifacetada, polivalente, mas completamente insaciável. Infelizmente, é essa característica que transforma a 'Rainha' num filme demasiado trocista e sem a devida credibilidade no seu discurso. É possível verificar as diferenças estéticas entre a sequela e o original. “A Rainha de Espanha” funciona como uma representação da atual indústria espanhola (sem querer generalizar), a perda da sua identidade técnica e cinematograficamente linguística e o abraçar para dos códigos rotineiros do cinema mainstream ocidentalizado, ou simplesmente,  o mero telefilme.

É um filme que aposta sobretudo no seu conteúdo, acima da sua forma e, nesse aspeto, Trueba conduz-nos a uma revisitação cansada, ilibada pela culpa do oportunismo, mas que nem sempre encontra na homenagem um trunfo cinematográfico. Penélope Cruz revela-se na estrela formada, o astro que em 18 anos conquistou meio Mundo, mas hoje, "afagada" por uma chama vencida.

Talvez num terceiro filme, se Fernando Trueba permitir, Cruz seja convertida numa espécie de Gloria Swanson, uma diva decadente iludida pelo glamour de outros tempos. Mas por enquanto, fiquemos com esta "brincadeira franquista", o mais recente pronto e esquece do cinema espanhol.

Fernando Trueba: "Nesta indústria, se um realizador tem um Óscar, ele é ouvido com mais atenção"

Hugo Gomes, 04.10.17

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Fernando Trueba

Para o realizador espanhol Fernando Trueba, Portugal é uma terra familiar, uma espécie de segunda casa. Foi exatamente aqui que concretizou a sua obra-chave, “Belle Époque”, filmada integralmente no nosso país. Essa “Bela Época” garantiu o Óscar a Trueba, que desde então tem vindo a tentar a sua sorte nos mais diversos géneros e estilos cinematográficos, entre eles, a animação, onde novamente figurou na gala das muy cobiçadas estatuetas com “Chico & Rita”. Porém, neste caso, ficaria somente pela nomeação.

La Reina de España” (“A Rainha de Espanha”), a sua mais recente obra, é uma continuação de um dos seus grandes êxitos, “La Niña de tus Ojos”, a história de cineastas espanhóis em terras de Hitler que suscitou uma sátira sob o signo nostálgico da Sétima Arte, no seio do assombrado clima do nazismo. Nesta sequela, o alvo é Hollywood fora de Hollywood, as primeiras colaborações dos EUA com Espanha através do cinema, o regresso das personagens que escaparam às garras de Adolf Hitler, e que agora residem sob a ameaça do regime de Franco. Mas a sátira continua, da mesma maneira que o amor por Portugal subsiste em Fernando Trueba. Tive o privilégio de conversar com o realizador.

Queria começar a conversa por dizer que Fernando Trueba é um realizador bastante querido para Portugal, até porque o Óscar que recebeu com “Belle Époque” (1992) foi, em certa parte, português.

Sim, claro, porque muita da equipa era portuguesa, assim como o filme foi filmado integralmente em Portugal. No momento em que recebi o Óscar, agradeci sobretudo aos meus colegas portugueses, também franceses e espanhóis, porque tinham alguns dessa nacionalidade na nossa equipa.

E agora regressa ao país para apresentar a sua mais recente obra.

6 Anos antes de “Belle Époque” já havia concretizado um filme em Portugal, “El Año de las Luces”, que foi rodado em Ponte de Lima. Mas aí a equipa era totalmente espanhola, havia sim gente que trabalhou direta ou indiretamente no filme, mas era sobretudo gente local, que ajudava na produção, na decoração, afins, e havia um ator português.

Falando em regressos, como foi este revisitar o destino de Macarena Granada?

Não foi um regresso a Macarena Granada, mas sim ao seu universo, porque para além dela retornaram outros personagens, oito para ser mais exato. Na altura que realizei “La Niña de tus Ojos” não pensava em fazer uma segunda parte, mas depois de terminar o filme de 1998 muitos questionaram-me se a personagem do realizador [Blas Fontiveros] havia morrido, o que teria sucedido a ele. Eu inicialmente respondia: “Não sei, só sei o que está no filme”. Passado pouco tempo o meu discurso alterou para “sim mataram-no”. Percebi então que as pessoas gostavam da precisão, de factos concretos.

Certo dia, já nem me lembro se estava a pé ou no meu carro, mas sei que comecei a questionar, “porquê matá-lo? Que mal ele fez? Ele era apenas um realizador, não estava envolvido em nenhuma conspiração contra Hitler”. Então imaginei o seguinte: durante aquele período de ascensão do nazismo na Alemanha, Espanha está em guerra [guerra civil] e ninguém reclama por ele, e assim é esquecido na História e tentaria voltar a um país irreconhecível num tremendo conflito. Pensei nisto, mas não com a intenção de escrever uma continuação, foi antes uma insinuação.

O que aconteceria com Macarena? Será que ela se tornaria uma estrela de Hollywood? Sim, ganharia o Óscar e teria um tremendo sucesso mundial. E os outros? Os outros continuariam lutando pelas suas vidas e carreiras, trabalhavam e envelheciam.  Foi com esses “e se” que o filme começou a construir-se na minha cabeça. Supor o destino destas personagens, e à medida que suponha comecei também a imaginar gags, sequências cómicas e divertidas que entretanto poderiam suscitar esse regresso a Espanha e a estas velhas personagens. No intervalo destes dois filmes, falava com os atores e perguntava: “e se eu fizesse uma segunda parte de “La Niña de tus Ojos”? Vocês entrariam?” Todos aceitaram. Todos. Passados alguns anos, dei por mim a trabalhar nesta “A Rainha de Espanha”.

O primeiro obstáculo era decidir onde decorria e quando. Cheguei à conclusão que o melhor período era a época dos americanos, quando estes chegariam de Hollywood para filmar as suas grandes produções – entre 1956 a 1964. E, ainda melhor, o primeiro filme americano nas terras espanholas, nada melhor, visto que “La Niña de tus Ojos” decorria em ’1938 e eu filmei-o em 1998, este aconteceria em ’1956 e filmaria-o 18 anos depois (para corresponder exatamente a esse espaço de tempo decorrido. É uma “tontaria” mas funciona). Seria um daqueles épicos históricos que só Hollywood sabia fazer, o derradeiro filme, aquele que ligaria novamente todas as personagens. 

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Fernando Trueba dirige Penélope Cruz em "La Reina de España" (2016)

Uma das personagens de “A Rainha de Espanha” clama a certa altura que “Hitler era o protagonista, Franco o ator secundário”. Podemos referir este filme como uma crítica política?

Eu vou realizar uma comédia, e se esta for boa contará com elementos que condizem com a realidade, a crítica como chamamos, o comentário social, tudo isso estará imposto no filme. Acredito que todas as comédias resultam, de certa forma, em críticas, até mesmo as dos irmãos Marx. “Duck Soup”, por exemplo, na sua maneira mais absurda, era um autêntico comentário social.

Mas atenção, por mais político e crítico que o filme seja, o objetivo de realizar e escrever um filme não é a iniciativa de construir uma crítica política. No meu caso, eu não quero fazer crítica, antes disso vou contar uma história da melhor forma possível e é nela, no caso de ser bem sucedida, que se vai concentrar a referida crítica. No filme colocamos a nossa personalidade, o nosso ponto-de-vista, o amor ao cinema, muita coisa importante, mas automaticamente não assumimos a crítica política. Eu não faço críticas políticas, faço filmes.

Sempre falamos de política, e fazemos sempre críticas dessa natureza. Quando estamos com os amigos, ao jantar, no trabalho, etc., no filme apenas falo de política, mas como havia referido antes, o meu ponto-de-vista é salientado na obra. Ora aí tens a crítica política. Inicialmente eu não o faço, mas sim filmes. Contudo, e buscando a lógica desse teor político, se vou contar uma história decorrida na era franquista, como poderia não contornar a evidente crítica. Ser um testemunho da situação e invocar todos os elementos que coexistiam com a época.

Para além da crítica, há momentos puros de sátira, principalmente no seu retrato a Hollywood.

Sim, de alguma maneira é. Tentei ser realista em caracterizar as intuições de Hollywood em Espanha. Eles chegaram ao país com a ambição de concretizar aqueles épicos históricos, mas um histórico da palavra hollywoodiana, não os de coerência histórica. Também tínhamos a temática dos “black list”, argumentistas condenados pelas suas ideologias políticas e restringidos, de forma a sustentarem-se, a filmes menores. Muitos deles, por exemplo, seguiam para Itália para concretizar os peplums. Tentei condensar isso na minha personagem argumentista, lembras-te dele referir que trabalhou nesse país num filme sobre Pompeia? Pois, e que aceitou seguir para Espanha para concretizar o épico histórico representado em “A Rainha de Espanha”?

Estes “black list” eram contratados para trabalhar nas produções de Hollywood na Europa, apenas por questões financeiras. Eram mais baratos, ninguém nos EUA ousaria dar-lhes emprego, considerava-os numa ameaça. Eles tinham que trabalhar para sobreviver, aceitavam “trocos” e o nome deles nem sequer era merecedor de surgir nos créditos. Um deles, Dalton Trumbo (penso que fizeram um biopic recentemente dele), um notável escritor que fora uma das vítimas dessa condenação da lista negra, restringido a trabalhos que mais ninguém queria, ou sujeitos a pseudónimos. O mesmo fizeram com Donald Ogden Stewart, que fora o argumentista de “Philadelphia Story”, no qual venceu um Óscar, e que passou o resto da vida a trabalhar em Londres.

Isto tudo faz lembrar uma história. Quando foi reinstalada a democracia em Espanha, o partido comunista foi legalizado e assim organizada a primeira festa do partido. Eu não sou comunista, nem nunca fui, mas fiquei curioso acerca deste evento. Era o primeiro do país, um acontecimento, só por isso queria ir à festa. Cheguei lá e deparei-me com milhões de pessoas, políticos, artistas cantando, dançando, todas as artes unidas num só lugar. Aqueles artistas de esquerda, que anteriormente todos condenavam, ali a brindar a vitória da democracia e a legalização do seu partido. E no meio daquele “mar de gente” estava Melina Mercouri, a atriz que se tornou ministra da cultura da Grécia. Ela estava lá! E com ela, o seu  marido, Jules Dassin, o realizador de “Naked City” e que trabalhou com a atriz naquele filme famoso, o “Never on Sundays”, que penso ter vencido um Óscar. Um excelente realizador, sim, era excelente.

Mas bem, continuando … estava naquela festa, apertado devido à multidão, e começa a chover. Foi então que vi no horizonte aquele sujeito elegante de cabelo branco, do estilo Nicholas Ray [risos]. Ele passava pelas pessoas e ninguém o reconhecia, eu decidi então abordá-lo, “Oi, você é Jules Dassin!””Sim, sou, você conhece-me?”. “Eu conheço os seus filmes, quero um dia fazer cinema”. Lembro perfeitamente, estava a chover fortemente em Madrid, e eu ali ao lado de Dassin. Naquele momento ele disse que estava na “black list”, que teve que sair dos EUA para poder trabalhar. Imagina só, um realizador daquela categoria e não poder trabalhar por causa da sua visão política! E pior, ninguém sabia quem ele era naquela festa. Estávamos a falar de um realizador de Hollywood.   

Existe outra “farpa” lançada na Rainha de Espanha aos prémios da Academia. No seu filme, vocês apresentam a personagem de um realizador, de pala no olho, que conquistou mais de uma centena de Óscares. Visto como um grande em Hollywood, você o exibe como um calão, sem talento e desleixado. De certa maneira, encontramos aqui uma crítica aos Óscares e as escolhas destas? Por outras palavras, o que significa para si a estatueta?

Nesta indústria, se um realizador tem um Óscar, ele é ouvido com mais atenção, como se a estatueta fosse uma espécie de credibilidade, uma carta de apresentação. Em relação ao meu Óscar, curiosamente, “Belle Époque” foi o filme de língua estrangeira mais visto naquele ano nos EUA, e, não desprezando, até porque recebeu excelentes críticas. Mas não era o favorito à estatueta. Nesse período, o predileto era o candidato chinês, “Farewell My Concubine” [“Adeus, Minha Concubina”], de Chen Kaige, mas no final fomos nós os vencedores. Anos mais tarde, aconteceu o mesmo com o filme de animação, “Chico & Rita”. Éramos os favoritos, mas a estatueta foi parar ao “Rango”, que era de um gigante, a Paramount. Nós, por outro lado, tínhamos uma produtora tão pequena nos EUA.  

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"Chico & Rita" (Fernando Truba & Javier Mariscal, 2010)

Sim, há um lado movido por “influências” nos bastidores da gala do prémio mais cobiçado da Sétima Arte.

A influência tem muito poder. Existe muita gente que trabalha através disso, influência. E no seio desses prémios existe gente disposta a votar em filmes fora dos grandes estúdios. Por vezes até mesmo os independentes ganham, mas é raro. Nesse ano, “Chico & Rita” era um acontecimento, nunca tivemos uma animação espanhola entre os nomeados, e era o meu primeiro filme do género. Só o facto de ter estado lá, foi um feito.

E haverá um terceiro registo de Macarena Granada?

Por vezes penso, mas tem que passar no mínimo, dos mínimos, 10 anos, para poder dar um salto no tempo. Não é um projeto que tenho em mente, assim como não era plano concretizar um segundo filme. Todavia, existem muitos que me perguntam exatamente isso, e eu na brincadeira respondo que o terceiro filme decorrerá em maio de ’68, em Madrid. Enquanto França estava na sua revolução, em Espanha estávamos nos westerns spaghettis

Como última questão, e a mais “tricky”. “A Rainha de Espanha” está rodeada de uma certa polémica que envolve os direitos das personagens. Os argumentistas - Manuel Angel Egea e Carlo Lopez - o processaram devido à ausência dos seus nomes nos créditos destes filmes, e visto que estiveram presentes na criação de algumas das personagens “repetentes” de “La Niña de sus Ojos". O seu irmão, David Trueba, sai em sua defesa. O que tem a dizer sobre este assunto?

A verdade é que esses argumentistas não escreveram absolutamente nada. Eles escreveram um guião, sim, que venderam a um produtor e este ofereceu-me a mim. Eu li e não gostei, o produtor disse que eu poderia alterar o que quisesse e respondi exatamente isto: “aí está o problema, eu não gosto rigorosamente de nada. A única coisa que acho interessante é a época.A época dos espanhóis na Alemanha. Isso dava para fazer uma comédia, mas de resto nada, este guião vale um zero.” Aí o produtor questionou: “mas se reescreveres, farias o projeto?” Então aceitei nessas condições, demonstrei o meu interesse se pudesse escrever o guião do zero e ainda fiz mais uma exigência, queria Rafael Azcona.

Durante vários anos eu e o Rafael trabalhamos neste argumento e, acredite, eu nunca estava satisfeito. Tivemos um ano apenas dedicado à documentação, a prova que começámos do zero. Pesquisamos Riefenstahl, Goebbels, Guerra Civil Espanhola, os espanhóis que foram para Berlim, a biografia de Franco, etc., um trabalho de estudo. Partimos completamente do zero. Mas mesmo assim, não estava satisfeito, então vim para aqui [Portugal] e fiz o “Belle Époque”. Reescrevemos depois o guião mais duas vezes e, mesmo assim, não estava contente. Então foi a vez de Miami e lá fiz o “Too Much”.

O meu produtor só me perguntava, “não queres fazer o filme?”. “Claro que sim, a história é muito boa só que não consigo acertar no guião, quer dizer, adoro os dois primeiros atos, mas o terceiro … bem, simplesmente não gosto”. Nessa altura o meu irmão estava a começar a sua carreira, tinha publicado o primeiro livro e então foi sugerido: “porque não chamamos o teu irmão para a equipa, talvez precisemos de alguém novo e fresco para compor o terceiro ato”. O meu irmão embarcou na equipa e conseguimos, não só, escrever o terceiro ato, mas  redefinir todo o filme. Por exemplo, a personagem do tradutor, que para mim era o melhor do filme, não estava originalmente no roteiro. Foi graças a David que ele integrou o enredo.

O que quero dizer ao certo é que este ano vamos estar presentes frente a um juiz, e como conservo o guião, este irá ser submetido aos mais diferentes tipos de testes forenses, filológicos, estilísticos, e não vamos apenas a avaliar personagens e enredo. 

"Elis": a triste cantada dos “biopics”

Hugo Gomes, 02.10.17

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Consideravam-na um “furacão”, uma mulher que transformou a música brasileira para todo o sempre. Apontada como uma das grandes vozes femininas do Brasil, Elis Regina, o ícone, foi agora “vítima” da típica cinebiografia que é cometida por esse Mundo fora (este fenómeno dos biopics não é exclusivo de Hollywood), a vida retalhada em prol de um profundo anonimato cinematográfico.

É triste verificarmos o desperdiçar de vidas formidáveis, condensadas, esquematizadas e convertidas aos enésimos ciclos viventes. Por outras palavras, maioritariamente no cinema, ficamos com a sensação que grandes figuras são transformadas em enfadonhas e inexpressivas vozes. “Elis”, de Hugo Prata, é um mero telefilme, vulgarizado pelos lugares comuns, pela logística da narrativa forçada pelos factos verídicos e pelo estilo anacrónico e de disposição académica.

A rapariga que euforicamente descobre cantar no mesmo palco que Diane Ross cantara minutos antes, não possui a força, a vontade, nem a criatividade de transgredir o “certinho” formalizado do subgénero, nem mesmo Andreia Horta (que rigidamente limita-se à mimetização, ao alinhamento de tiques e manias em full playback) possui a capacidade de a salvar, nem mesmo invocar a forte presença que Elis fora. Infelizmente, é isto, uma biopic falhada, sem o mínimo interesse, nem para fãs, nem para aqueles que desejam conhecer a sua obra.

Mas nem nós poderemos ficar a rir dos nossos “irmãos”, a nossa grande diva musical, Amália Rodrigues, também ela fora “liquefeita” a igual tratamento. O problema não está no Cinema, portanto, está na ideia errada de como devemos retratar a vida de alguém na grande tela, ou simplesmente, o oportunismo de concretizar matérias fáceis e preguiçosas, que dão pelo nome de biopics. Triste ensaio este Elis.

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