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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Até as bruxas desejam ser amadas ...

Hugo Gomes, 27.10.17

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Anna Biller é fascinada pela cinematografia extinta, pela vibe anterior à década de 70s, e este "The Love Witch", fruto de uma carreira refém a essa mesma natureza, é um tremendo exemplo disso. Por entre as invocações de um satanismo trash, ou da bruxaria envergada pelo artificialismo risivelmente voluntário de um Ken Russell, Biller apresenta-nos a caricata personagem, Elaine (Samantha Robinson), uma jovem infortunada no campo amoroso que recorre à feitiçaria como apelo a um “príncipe andante”.

Com uma interpretação deliciosamente caricata e voluntariamente canastra, a protagonista assume de imediato a voz da emancipação feminina, fazendo-o através de um contexto historizado, algures entre a ficção preconceituosa indiciada pelo termo de paganismo (claras insinuações à dominância da igreja cristã) e do papel da mulher vitimizada por esta prolongada e injustificável inquisição. Obviamente que "The Love Witch" brinca com essa dualidade de versões em prol de uma ambiguidade dissolvida na trama, e também, é bem verdade que todo aquele discurso contra a opressão feminina tem um tanto reflexivo como de satírico (separando-o da comparação óbvia com "Goddess of Love", de Jon Knautz).

Mas se "The Love Witch" não consegue “libertar-se” dessa pretensão de ser algo mais que um mero produto de referência cinematográfica, é naturalmente visível que essa incompatibilidade de nuances atribui ao dito tributo um certo elo com o humor involuntário. Porém, a comédia descrita pelas etiquetas de género, camufla-se com a tragédia pessoal de Elaine, obcecada com o romance fabulista, como a certa altura diz: “como nos contos de fadas”, que visa oposição a um mundo atual, devidamente condenado à dependência sexual. E se a sexualidade é uma arma transgressiva na conquista dos seus parceiros, Elaine é acima da sua submissa passividade que demonstra e que se orgulha proclamar, um símbolo de insurreição da “domesticação”.

Tecnicamente, o filme corresponde a esse desafio de alusão fílmica, prestando uma clara e polivalente homenagem através da ausência de virtuosismo nos desempenhos, assim como o visual alicerçado aos decores e fotografia contagiada por suaves cores em conformidade com expressionismos estéticos de ocasião, ou dos flashbacks, em jeito de onirismo, através de planos fechados como um interrompido fade out em escarlate. Aliás, todo o filme é uma fantasia, uma farsa por entre metas que consolida com um casamento de mentira, tal como o “príncipe” e o “faz-de-conta” numa recriação medieval.

Anna Biller é a nossa ilusionista, fazendo-nos acreditar num passado diluído na atualidade. Na nossa “boa” atualidade. Um desconecto e artesanal mimo aquele que deparamos.

O "menosprezo" da importância do cinema de investigação

Hugo Gomes, 25.10.17

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Quem é Bárbara Virgínia? (Luísa Sequeira, 2017)

Há uma vertente que levemente tem surgido no panorama do documentário português, uma vertente jornalística, não a de mera entrega de informação, mas de investigação. Essa no qual poderá denotar o pessoal (identitário) ou coletivo (demanda para a divulgação, preservação de memória). Este tipo de documentários, que se prolongam ou evitam o cinema como mera lente de documentação de imagens (que porventura poderá anexar-nos a memórias etnográficas e épicas), não são de todo bem vistas na comunidade-nicho da cinefilia. Há quem os acuse de aligeirar o poder e possibilidades (de momento infinitas) de Cinema, desde a sua narrativa até ao estilo intrínseco e extrínseco, porém, e tendo em conta a muita da seleção presente de um Doclisboa, poderemos considerar esta “básica” forma de fazer documentário num registo outsider e porque não, na maioria dos casos, mais experimentais e concisos na sua abordagem.

Como exemplo desse cinema-investigação, Catarina Mourão elevou-se numa busca ínfima de autodescoberta com “A Toca do Lobo”, onde seguiria o paradeiro do avô da realizadora, figura que não conhecera por completo mas que deixou marcas. A realizadora / documentarista apresenta-nos um objetivo claro na sua proposta (“descobrir quem é este homem”), convite claro que o espectador retém no seu arranque, a viagem, essa, vinculada num híbrido entre a investigação propriamente dita e a deambulação pelas memórias pessoais. Em todo o caso, porque não reconhecer “A Toca do Lobo” como um objeto no limiar do intimismo e da retribuição social.

De estética pessoal, mas de caráter mais urgente, está “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira, outra investigação [presente nesta edição do Doclisboa] que regista um pedaço de História portuguesa, neste caso Bárbara Virgínia, a multifacetada artista que se tornou na primeira mulher realizadora nacional, atualmente “apagada”, é o corpus de estudo que despoleta uma tremenda jornada de conhecimento pessoal com vista maioritária para o público e memória futura na “salvação” deste personalidade. O objetivo neste caso encontra-se no título (Quem é Bárbara Virgínia?). O espectador tem com isto a certeza do que vai encontrar, a proposta é clara. Quanto à forma como a mensagem é emitida, essa tem a sua razão de divergir dos moldes, digamos, televisivos. Luísa Sequeira consegue sobretudo uma investigação com uma apresentação intimista, até porque esta procura torna-se, para todos os efeitos, bastante pessoal (apercebemos o quanto a imagem de Bárbara Virgínia transgride da meta de estudo para a transferida pessoalidade numa determinada sequência, a anunciada morte de Virgínia e a reação da nossa documentarista perante tal).

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Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (João Monteiro, 2016)

Porém, talvez de caráter urgente acima da sua pessoalidade, temos “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, de João Monteiro, uma contagem de linguagem televisiva que visa em projetar o legado de Macedo e apurar as causas do seu “desaparecimento”. Obviamente que este documentário completamente destilado por entre footages e talking heads possui um propósito de preocupação pública e patrimonial, mas se o considerarmos como um objeto cinematográfico de requinte, a sua pobreza não o exaltará como algo mais. Contudo, o objetivo de Monteiro é mais do que simplesmente integrar uma teoria estilística, social e cinematográfica, é como um apelo, um ato ativista, esse, que poderá originar consequências futuras, quem sabe, a revalidação absoluta de Macedo, não simplesmente como tentador do cinema de género em Portugal, mas como cineasta. Estes três exemplos recentes de documentário português, uma minoria perante a divulgação dos festivais, formam um cinema de causa-efeito, a investigação como uma narrativa que não deve ser sobretudo desprezada.

O outro cinema, com exceção de alguns casos que conseguem através dos seus meios desbravar a sua linguagem, apresenta-se como máscara, escondendo a incapacidade e o amadorismo de muitos “documentaristas” pretensiosos, em busca do caminho fácil do estatuto autoral. Esse anti-cinema não deve ser sobretudo erguido como o Cinema, assim como o cinema na sua forma mais clássica, universalmente empática, não deve ser rebaixado a anti-cinema.  

Um “loser” à moda alfacinha

Hugo Gomes, 21.10.17

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Ramiro é aquilo a que poderíamos apelidar cinematograficamente de «loser», uma personagem à deriva da sua sorte, encostada às “cordas” do passado, da glória que lhe nunca passou, nem sequer o esforço que detêm para a atingir. A certa altura, o protagonista-título confessa aos seus amigos que acabara de descobrir a sua passividade (“Sou uma pessoa passiva”), sequência-chave que revelará por completo a sua anti-tour de force, até porque o seu talento, diversas vezes mencionado por outros, nunca fora devidamente reconhecido, assim como conquistado. O seu proclamado bloqueio criativo é simplesmente fruto desse autodesprezo.

Mas Ramiro não é de todo um desprezível, é dotado de uma boa índole, o espectador crê isso através dos seus atos minuciosos, na sua teimosia controlável que nos leva aos seus próprios demónios, o medo; o medo de falhar, automaticamente, o medo de tentar.

É fácil simpatizar com este Ramiro, nem que seja pela interpretação derivante do ator António Mortágua, um laço de empatia com uma audiência que se lança nas prateleiras de um alfarrabista em busca de preciosidades. O que encontramos é “livros esquecidos”, estilos não vingados, enredos antiquados com o intuito de agradar aos “velhos do restelo” ou os reféns das “coisas que outros amaram”. Porém, e utilizando esse mesmo lugar, “Ramiro” enquadra-se num cinema português desadequado, não pela inutilidade estilística, mas como oposição às novas vagas que tendem em: a) manejar a experimentação narrativa e visual no qual diversas vezes disfarça a pura incapacidade; b) a sedução pelos formatos wannabe hollywoodescos, de forma a repudiar toda uma História da nossa cinematografia.

Tal como a personagem, Manuel Mozos cria um filme passivo na sua positiva afirmação, até porque é em “Ramiro” que evidenciamos um cinema lúcido, intrinsecamente português-alfacinha e discretamente irónico, mesmo sob as influências de João César Monteiro e dos seus constantes e castiços trocadilhos. Talvez tenha sido a experiência com Miguel Gomes, outro influenciado pela natureza do anterior “João de Deus”, o catalisador para esta invocação. Porém, Mozos não pretende o mero tributo. O filme concentra-se sobretudo numa saudação, a vénia a uma iminente emancipação, assim como a transformação de Ramiro após a perda do seu mentor.  

Eis um pequeno achado do cinema português, um “livro” poeirento e esquecido na mais oculta das prateleiras que resulta na mais graciosa das descobertas. Sem alterar o curso do nosso cinema, temos aqui filme e não pretensões.  

Arnaud Desplechin entre fantasmas e géneros. Uma conversa em torno de Ismael

Hugo Gomes, 17.10.17

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Arnaud Desplechin dando direções a Marion Cotillard na rodagem de "Les fantômes d'Ismael" (2017)

Arnaud Desplechin é um dos nomes mais frutíferos do cinema francês, e um dos cada vez mais prestigiados. A prova está na escolha de um filme como “Les fantômes d'Ismaël” (“Os Fantasmas de Ismael”) para integrar a abertura do mais mediático dos festivais de cinema, Cannes. Um filme multifacetado que reúne todo um conjunto de géneros e nuances ao serviço de uma só ficção, um experimento artístico que entra em contradição com o elenco e a produção estrelar. Desplechin foi o padrinho da 18ª Festa do Cinema Francês, a qual lhe dedicou uma retrospectiva que visa refletir sobre a sua obra, as suas influências e referências. 

O realizador falou-me do seu mais recente filme e de que maneira ele desafia o costume de géneros implantados por Hollywood e globalizados até aos dias de hoje.

No papel, Os Fantasmas de Ismael é um filme muito complexo e multifacetado. Como concebeu ou surgiu a ideia, digamos assim, deste seu novo trabalho?

Tudo começou com linhas separadas, nada de relacionado entre si, que depressa evoluiu para a história de um cineasta que tenta escapar ao seu próprio filme. Contudo, durante o desenrolar do guião, que ainda não era bem um argumento, vi o filme de Miguel Gomes, “Mil e uma Noites”, e recordo que no início tínhamos o próprio realizador a fugir do filme. Pensei, “era quase isto que eu queria, mas mesmo assim vou avançar, a minha ideia será diferente”. Então a minha ideia tornou-se em algo assim, um realizador que escreve um filme sobre as memórias do seu irmão, convertendo-o numa história de espionagem, isolando-se numa casa vazia onde debate os seus fantasmas e recordações com o seu produtor. Foi assim o primeiro rascunho.

Depois de terminar “Trois souvenirs de ma jeunesse” (“Três Recordações de uma Vida”), cujo elenco foi composto praticamente por desconhecidos e principiantes, decidi que com este novo filme iria trabalhar com um elenco de luxo, estrelas do cinema francês. Ou seja, com a experiência que adquiri a dirigir inexperientes, queria testá-la em trabalhar com experientes.

Depois do primeiro rascunho, não como veio, mas dei por mim a imaginar uma personagem a passear na praia, batizei-a instantaneamente de Carlotta, que abordada uma mulher desconhecida. Carlotta pergunta se Ismael está com ela. Ela responde que não e sucessivamente Carlotta afirma “é porque ele não gosta de nadar”. “Como sabe?” e a mulher responde “porque eu sou a mulher dele”. E a partir daí trabalhei com o facto deste realizador ser viúvo, ou pelo menos a acreditar que o é durante 20 anos, e que de um momento para o outro, enquanto tenta refazer a sua vida amorosa, Carlotta regressa à sua vida. Neste sentido, esta personagem tenta esquecer o seu antigo amor voltando a uma relação e este encontro inesperado leva-a ao dilema; continuará com o luto, voltar para a sua antiga mulher, ou seguir com o seu novo amor?

Foi a partir desta sequência, a qual imaginei e reproduzi no filme, que tive completamente a certeza de que história queria contar, de que personagens iria retratar e quais situações iria abordar.

Relembro que em Cannes, nas notas de produção, declarou que concebeu este filme da mesma maneira que Pollock concebeu as suas figuras.

Bem, há uma cena em que a personagem de Mathieu Amalric refere que “Pollock não é abstrato, são apenas imagens comprimidas”. Pretendia pegar em todo o tipo de ficções e comprimi-las de forma dar-me uma única ficção, a apologia das ficções. Um experimento, diria eu, diferentes géneros, diferentes histórias, unidas a dar origem a um só género e a uma só história. E essa experiência não ficou apenas na idealização do filme em papel. Aliás, a rodagem foi parte desse experimento, em cada semana eu virava-me para os meus atores e dizia: “nova semana, novo filme”. Ou seja, estava sempre a rodar um novo tipo de filme a cada semana.

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Mathieu Amalric em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

De certa forma, o filme não é uma rebeldia contra o sistema de catalogação de géneros imposta, principalmente, por Hollywood?

Diria que sim. Este “Fantasmas de Ismael” é uma revolta a esse sistema de géneros, porém, o meu próximo filme não o será. Aliás, isso faz parte da minha natureza, em cada projeto converte-se numa oposição ao trabalho anterior. Mas pensando bem, e olhando para os meus filmes anteriores, sempre fui um pouco contra a etiqueta do género. Por exemplo, o “Rois et reine” (“Reis e Rainhas''). Será um drama ou uma comédia? Um slapstick ou um melodrama? Sempre tentei criar uma unificação desses géneros nesse filme, principalmente em conformidade com a perspetiva de diferentes personagens. Em “Os Fantasmas de Ismael'' quis algo em grande. Diria pretensioso, mais que dois géneros, uma multiplicidade de tons que originam um só.

Falando em filmes anteriores, tendo em conta as referências de Vertigo, de Hitchcock, neste “Os Fantasmas de Ismael”. A sua filmografia é pontuada com uma busca identitária por parte das personagens, e até, quem sabe, de si próprio. Procura conhecer-se através da escrita e na conceção destes filmes?

Possivelmente. Quando escrevia “Os Fantasmas de Ismael”, de certa maneira, procurava qual a forma que estas personagens seriam. Não tive a certeza absoluta que Ismael seria um viúvo, tudo veio com o tempo, uma busca por essa identidade, e isso reflete se nas minhas personagens. Nunca gostei de personagens assertivas naquilo que são, prefiro aquelas que têm dúvidas acerca delas próprias. Em cada escrita de um guião, esta torna-se numa jornada em decifrar a identidade destas, um processo criativo e psicológico. E falando em psicológico, sempre gostei de personagens multifacetados, ambíguas para ser mais exato, e aqui a melhor prova é a personagem de Marion Cotillard. Ela é um “pequeno demónio” quando tenta reaver o seu marido. Contudo, na segunda metade do filme ela tenta reaver outro amor, o do pai. Então como se pode ver, ela passa de demónio a um anjo, mas não é uma mudança, são as duas faces que convivem num só indivíduo. Eu sou um adepto deste tipo de personagens. Personagens de várias faces.

Uma sequência que particularmente me fascinou foi a dança indominável de Marion Cotillard ao som de Bob Dylan. A seleção da música foi voluntária, ou foi mero fruto do acaso? [risos]

[risos] Quando escrevia o argumento do filme, imaginei essa sequência e automaticamente propus a música do Bob Dylan, “It Ain't me Baby”, sobretudo por causa da letra. É curioso uma música destas ser tão cruel, aliás, como grande parte do trabalho de Dylan. “Tu precisas de alguém para te proteger e defender, abrir-te todas as portas e janelas, não sou eu, baby, não sou eu”. O que significa, em perspetiva da Marion’, que Ismael não estará lá para a protegê-la, defendê-la, ou seja, não estará lá para ela. Ela é a “rapariga errada” para ele, e ele sabe-o.

Quanto à dança, pedi à Marion que dançasse selvaticamente, como fosse groove, ou rock, então eu trouxe outro CD, e nele estava o “Going Home” dos “Ten Years After”, com todas aquelas guitarras elétricas, e lhe propus, se conseguisse reproduzir o ritmo com Bob Dylan … ela respondeu-me automaticamente: Bob Dylan!? Eu consigo fazer «groovy»”. E é por isso que adorei trabalhar com Marion. Neste exemplo nota-se o seu talento, o facto de conseguir transformar aquela música numa sequência selvagem bem à sua medida.

Em relação a Mathieu Amalric? Tem sido quase o seu “ator-fetiche”, um co-trabalhador. Normalmente escreve uma nova personagem a pensar nele?

Não, cada filme, cada caso. Neste caso, encontrava-me bem perdido com o argumento, ainda não sabia exatamente o que pretendia e como pretendia e quem se iria encaixar nas personagens. Porém, enviei uma edição inacabada do argumento a um amigo e questionei-o em relação quem iria interpretar o papel de Ismael. Ele virou-se para mim surpreendido e disse: "Estás a brincar? Isto foi escrito para Amalric!”. [risos] Não tinha percebido quando escrevia, mas durante a rodagem constatei que Amalric era exatamente o indicado para este papel. Porque ele, assim como eu, gastamos todos os “truques”, todas as nossas façanhas para o concretizar. Ele foi feliz, patético, humorístico, violento, intrigante, burlesco, romântico, dramático … usou todo um conjunto de faces, tons, nuances, que quando terminamos o filme, ele veio ter comigo e disse: “bolas! Tu deste-me tanto neste filme, era mesmo isto que pretendia enquanto ator”. Agradeço-lhe muito por este filme, porque ele conseguiu exatamente unir todas essas distinções e colher uma totalidade interpretativa.

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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

E em relação à abertura de Cannes? A experiência?

Um misto de sentimentos. Por um lado fiquei bastante contente com o facto de Thierry Fremaux ter selecionado o meu filme para o Festival, mas a surpresa chegou quando percebi que fora o escolhido para abrir o certame. Fiquei perplexo. Contudo, acabei por descobrir que a noite de abertura é péssima para o Cinema. Eu tenho um ritual em Cannes, quando o meu filme é apresentado no Grand Lumiére Theatre costumo dar uma saudação aos cinéfilos que se encontram na bancada de cima. Naquela noite, tentei fazer isso e fiquei surpreso quando deparo com um amontoado de pessoas vestidas a rigor e nenhuma das “caras conhecidas”, os cinéfilos que costumo “ver” no Festival. Foi então que percebi que na abertura de Cannes não há cinéfilos, apenas convidados, e isso é péssimo para os filmes, principalmente para um filme como o meu “Os Fantasmas de Ismael''. A abertura não tem nada de relacionado com Cannes, é um evento completamente burguês, uma passerelle de vestidos e uma recepção muito fria. Foi uma experiência muito violenta.

Quanto a novos projetos?

Terminei o primeiro rascunho do próximo filme que vou trabalhar. Entrarei em território desconhecido na minha carreira, uma produção singular que bravamente entra num universo hitchcockiano. Não sei ao certo como aconteceu, mas apaixonei-me por um artigo de jornal. Um homicídio, para ser mais exato. Mais uma vez, apaixonei-me por aquele relato e devido a isso quero apenas focar nos factos … somente nos factos.

Este meu filme será um objeto completamente seco, despido do lado ficcional, mas ao mesmo devedor do estilo imposto por um The Wrong Man, de Hitchcock. Contudo, e frisando, muito mais seco. Comparo até com o livro “In Cold Blood” (“A Sangue Frio”), de Truman Capote, a apenas narração do real, do facto, não havendo espaço para imaginação e pelo suposto. Retratarei a condição da mulher nos dias de hoje, por isso espero criar uma atmosfera bem sociopolítica, nada parecido do que fizera anteriormente. Espero começar a filmar já neste Inverno.

A Festa do Cinema Francês vai-lhe dedicar uma retrospectiva da sua carreira. Isto, de certa forma, não o motiva a refletir sobre a sua carreira? Aliás, existe algo que se arrependa de ter feito, ou que nunca devia ter feito em relação à sua filmografia?

Estranho que pareça, nunca pensei na minha carreira, apenas no meu próximo projeto. Primeiro de tudo, porque nunca vejo os meus filmes.

Nunca viu os seus filmes?!

Depois de terminados, nunca. Até mesmo em Cannes, deixo passar os créditos iniciais e de seguida desapareço, melhor, escapo da sala. No final, sorrateiramente entro na sala, e recebo os aplausos. [risos] Já vi os meus filmes tantas vezes, mas tantas vezes na sala de montagem, que não tenho curiosidade nem gosto de revê-los no grande ecrã. Acho tudo uma questão de conforto.

O que realmente acredito é que depois de terminado, o filme deixa de ser meu passa a ser de quem vê, por isso não me vejo a pensar como poderia melhorar, ou o que poderia não fazer. Nada disso, não os vejo, o filme é vosso, façam o que quiser com ele.

Mas é muito emotivo ir às retrospectivas e aperceber até que ponto os meus filmes vão e de que maneira tocam em diferentes gerações. Lembro-me de ir a Beijing, numa retrospectiva, e encontrar jovens com os seus 20 e tal anos a afirmar que os meus filmes, de certa maneira, mudaram para todo o sempre. É emocionante ouvir tais palavras de alguém que é tão jovem, e de saber o quanto significa os meus filmes. 

Viajamos para Famalicão! Arranca a 2ª edição do Close-Up, Observatório de Cinema

Hugo Gomes, 13.10.17

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"El espíritu de la colmena" (Victor Erice, 1973)

Numa viagem, no seu sentido mais poético e elusivo, o que menos importa é o destino. São os trilhos, essas veias sanguinárias que nos transportam para uma experiência à mercê da vivência. E são as experiências que vão este segundo episódio do CLOSE-UP – Observatório de Cinema de Vila Nova de FamalicãoDe 14 a 21 de outubro, a ocupar os mais diferentes espaços da Casa das Artes, e tendo como mira o sucesso da edição anterior, o CLOSE-UP apresentará mais de 40 sessões de cinema, workshops direcionados a escolas e famílias, uma produção própria (de Tânia Dinis) incluída no panorama no feminino de produção portuguesa, e a exposição fotográfica de André Príncipe (realizador de Campo de Flamingos, Sem Flamingos), intitulada de “O Perfume de Boi”, a ter lugar no foyer.

O primeiro dia será marcado pelo filme-concerto de “A Man with a Movie Camera”, de Dziga Vertov, devidamente sonorizado pelos Sensible Soccers (encomenda do CLOSE-UP). O gosto da melodia pop do grupo a tentar provar cadência para com uma das obras mais influentes da História do Cinema. Como qualquer viagem, digna do seu nome, o CLOSE-UP será dividido por diferentes etapas (secções) que nos acompanharão ao longo destes sete dias de pura reflexão cinematográfica. O Tempo de Viagem revela-nos uma metáfora sobre a maturação, o crescimento induzido por esses caminhos dados a lugares incertos. Andrei Tarkovsky é a “rock star” desta secção com “Nostalghia, a sua “aventura” em Itália. O existencialismo procurado por um poeta russo em terras toscanas e romanas funciona como um sacrifício que nos guia quase em modo retrospectivo e introspectivo ao cinema do seu cineasta. Wim Wenders é outro importante signo deste mesmo espaço, não fosse ele um dos grandes “caminhantes” do road movie.

Em “Fantasia Lusitana” esperam-nos quatro longas-metragens portuguesas em oposição a um programa de nove curtas, incluindo uma sessão dedicada a Tânia Ribeiro com a estreia de “Armindo e a Câmara Escura”. No lote nacional, destacamos principalmente as exibições da mais recente longa de Salomé Lamas, "El Dorado XXI", e de Luciana Fina, “O Terceiro Andar”. Vinda da nova vanguarda soviética, a cicerone Larisa Shepitko e Elem Klimov serão figuras relembradas nesta edição de Histórias de Cinema. Mas não serão as únicas. A partilhar o espaço está a dupla Peter Handke e Wim Wenders com “The Left-Handed Woman” e o sempre poético “The Wings of Desire”, bem como David Lynch, indiscutivelmente o realizador do ano, nem que seja pelo reavivar da série “Twin Peaks” que tanto deu que falar, no Observatório, representado pelo spin-off cinematográfico, “Fire Walk with Me”.

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Eldorado XXI (Salomé Lamas, 2016)

O resto da programação será constituído por sessões direcionadas para escolas e família, e ainda Infância & Juventude, que como o nome indica será um olhar coming-to-age; desse crescimento que por si deverá ser visto como uma viagem. E que melhor filme para transpor essas duas jornadas alusivamente interligadas que “American Honey” de Andrea Arnold? Claro que nem todas viagens são felizes e a juventude pode ser inconstante, inconsequente e até inconcebível, como o caso de “The Tribe”, de Myroslav Slaboshpytskyi, filme que, infelizmente, chegara demasiado tarde ao circuito comercial português, tendo em conta o seu historial de controversas passagens em festivais por esse Mundo fora. Nesta seção destacamos ainda o clássico de Victor Erice, “El espíritu de la colmena”.

A música e o cinema vão se fundir para criar um encerramento memorável, assim promete esta 2ª edição do CLOSE-UP, com três curtas de Reinaldo Ferreira, ou Repórter X + Dead Combo. A proposta parece indigesta, incompatível e sobretudo experimental, mas o cinema é um experimento que se transformou, como se pode verificar, na mais complexa das experiências. A viagem está marcada. 

José Pedro Lopes perdido nas florestas que delineiam as limitações do género

Hugo Gomes, 12.10.17

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José Pedro Lopes, produtor e realizador de inúmeras curtas nacionais que povoam o cinema de género, poderia ser mais um a tentar a sorte nos circuitos limitados (não com isto reduzido o valor do formato da curta-metragem), porém, o grande passo para a longa e a sua respetiva estreia comercial nos indica que há horizonte para novas histórias no nosso panorama. Baseando-se em folclore nipónico, A Floresta das Almas Perdidas inscreve-se num meio termo de slasher movie que redefine a normalização da violência que se vive em dias de exaustiva informação.

Existe por estes recantos florestais, ramificações de uma obra plena construida a pouco custos e a um know how a fazer inveja a tanto, dito, “cinema comercial”, mas por enquanto temos modéstia e quem sabe, os contornos para um futuro arranque do tão cobiçado terror à lusitana.

Vamos começar com a pergunta mais básica em relação ao Floresta das Almas Perdidas. Como surgiu a ideia para deste projeto? E o porquê da “apropriação cultural” da Floresta dos Suicídios?

Queria explorar como o mal surge em todo o lado, de forma oportunista. Sempre que há uma calamidade, existe que tira vantagem disso. Ou numa grande perda. Aqui a minha ideia era ter alguém que se alimentava dos sentimentos de um suicida e da sua família de luto. Inspirei-me em filmes como o “Whristcutters” (do Goran Dukić) e o “Audition” (do Takashi Miike).

No que toca a lugares conhecidos pela prática do suicídio existem por todo o mundo, mesmo aqui em Portugal. Claro que a floresta de Aokigahara é uma referência no contexto que criamos – mas estas personagens estão e lidam claramente com problemas portugueses.

O cinema de género é uma raridade em Portugal. Como foi, ou pensa, contornar um desafio tão grande na nossa cinematografia?

Em termos de contexto, ‘A Floresta’ não foi feita para provar nada cá dentro, nem para contrariar ninguém. Quanto muito, como fã do género fantástico, queria contribuir nesse género global. Queria ver histórias portugueses no meio desse grande género que descobre filmes nos quatro cantos do mundo.

No nosso país há uma dificuldade grande em financiar filmes de género, e talvez ainda maior em coloca-lo e distribuí-lo. Mas é um pouco inerente ao género em sim: o terror sempre foi peregrino e sempre assustou. É o tipo de filmes que vemos em adolescente para chatear os pais, e que continuamos a ver em adultos para baralhar os amigos.

Acho que quem faz terror cá ou lá fora não pode muito pensar no mercado local, mas sim no internacional. Todos os anos tens filmes de terror que viajam o mundo com abordagens muito culturais. Esperar conceber um filme para ser um sucesso no mercado nacional é esperar bater o cinema de Hollywood em algo que eles tem toda a vantagem.

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Em A Floresta das Almas Perdidas nota-se uma gradual artificialidade, principalmente no genérico estilizado. Será que aqui influências do cinema de Argento? Esse neo-expressionismo do género?

Apesar de ‘A Floresta’ ser um filme muito estilizado e visual, diria que é mais sobre contenção e sobre implosão. O Dario Argento vejo-o como mais explosivo. As minhas influências foram mais o cinema de realizadores como o Takashi Miike e o Kim Ki-Duk, situado entre o horror e o drama, sem grandes linearidades.

A Floresta’ é sobre a chegada à idade adulta de um assassino, sobre a maturação do mal. Por outro lado, é sobre a tristeza e a fatalidade das vítimas. O terror está mais no coração das personagens do que naquilo que vemos.

Ao contrário de muitas obras do género, principalmente vindo dos EUA, o antagonista não possui um devido motivo para a sua violência. Será que aqui se concentra uma reflexão do fascínio pelo mórbido e violência, normalmente anexada, à juventude de hoje?

Creio que em certa forma a ausência de motivo é o motivo mais comum para quem faz mal aos outros no mundo real. O cinema procura razões e desculpas para o mal para não nos assustar demasiado. Mas a verdade é outra – quem faz mal aos outros faz-lo por uma opção de vida. Tens pessoas que passam por vinte vezes pior e que mesmo assim não faria mal a ninguém.

O lado da juventude é truculento. O filme faz muitos referências às idiossincrasias da juventude atual, das redes sociais e da abordagem superficial das coisas. No entanto, acho que o lado mórbido é desprovido de época. Este tipo de maldade já está connosco à décadas. Acho que também a insensibilidade provocada pelas nossas tecnologias não está só na juventude – existe um hábito de acusar os jovens de viverem muito online e se relacionarem com os seus telemóveis, mas isso é um problema que atinge todas as idades.

Floresta das Almas Perdidas é também um desafio para a pequena produtora Anexo 82. Fale-nos das dificuldades de financiamento e até mesmo de produção.

A Floresta’ foi maioritariamente financiado pela produtora Anexo 82, sendo que contou com um apoio da Fundação GDA e alguns patrocínios privados e apoios. O segredo para fazer o filme com pouco foi pensá-lo de forma a ir de encontro ao que conseguíamos fazer. Foi um sacrifício grande mesmo assim – um que eu não sei se voltaria a fazer.

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Sobre o casting? Como sucedeu a escolha de Daniela Love para o papel de psicopata?

A Daniela já tinha participado numa curta-metragem nossa chamada “Videoclube”. Nela ela era também cheia de referências e irreverência. A Carolina de ‘A Floresta’ é o lado obscuro dessa personagem, e desde muito cedo que a Daniela foi a escolha para o papel.

Como vê o cinema português de hoje, desde os apoios até à variedade estilística.

Creio que não é o meu lugar fazer essa apreciação, nem sou a pessoal ideal para o fazer.

Quanto a novos projetos?

Estamos de momento a terminar uma curta-metragem do Coletivo Creatura, um filme de animação chamado “A Era das Ovelhas”. A seguir a isso vemos analisar o resultado de ‘A Floresta das Almas Perdidas’ e concluir o que fazer a seguir. Temos vários projetos – uns a procura de desenvolvimento ou outros de financiamento – mas só depois de ver o impacto deste é que saberemos o melhor a seguir.

Vicente Alves do Ó: "O Cinema continua como um parente pobre da televisão em Portugal."

Hugo Gomes, 10.10.17

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Ricardo Teixeira em test screen para "Al Berto" (2017)

Vicente Alves do Ó regressa à poesia, aos poetas e aos inspiradores. Cinco anos depois de “Florbela”, a poetisa de “amar perdidamente”, o realizador decide aventurar-se num projeto mais pessoal, mais intimista e emocional – “Al Berto”. A vida de Alves do Ó cruzara com este desafiador por natureza, este artista que olhou de frente para a hipocrisia da época e fez estremecer o conservadorismo embebido da cidade de Sines num pós-25 de Abril. Falei com o realizador sobre o projeto, a sua experiência e sobre o seu olhar à mudança eternamente esperada da sociedade portuguesa.

Em relação ao filme, a iniciativa e da construção de uma “trilogia de poetas”, o porquê de aventurar-se em Al Berto?

Esta ideia de uma “Trilogia dos Poetas” nasceu durante a produção da “Florbela”, e não antes. Não foi uma ideia pré-concebida, ao contrário foi crescendo com este retomar ao gosto da Poesia. Esta com enorme importância na minha vida, assim como no meu crescimento, e não só. A escolha dos três poetas foi feita, pura e simplesmente por ligação emocional, nada mais que isso. E Al Berto fazia todo o sentido integrar esta mesma trilogia, visto que foi dos poetas que mais me marcou até porque convivi, conheci e trabalhei com ele.

Não poderia contorná-lo, até porque em dimensão emocional foi evidentemente mais enriquecedor para mim que “Florbela”. Al Berto estava intrinsecamente relacionado com a minha vida, com a do meu irmão, com Sines, etc. Foi a primeira personalidade notável a ler um texto meu, lembro de recitar um poema da minha autoria no Teatro de Sines e Al Berto, assim como o João Maria [o irmão de Vicente Alves do Ó], encontravam-se no público. Tinha 19 anos.

E quanto à escolha deste período na vida do artista?

Agora em relação a este período, que de certa forma desafia o esquematismo da biografia, e tal como fizera com Florbela, é encontrar um período transformador, catártico, revelador, inspirador, na vida desta pessoa que irá despoletar tudo o resto que se conhece. Como Al Berto se tornou na figura que hoje o público conhece? Eu tinha esta história para contar. Primeiro, era algo que o grande público desconhecia, até mesmo que as pessoas que lidavam com ele conheciam, apercebi-me disso rapidamente. Para além de ser um período muito complexo. O 25 de Abril é fresco, a liberdade, o direito de expressar-se livremente, a democracia, encontravam-se igualmente frescos, e neste período há uma reação a essas mesmas mudanças que entra em choque com uma juventude inquieta que simplesmente quer viver. Depois quis demonstrar o amor entre dois homens, que continua sendo um tabu, até porque ainda hoje a homossexualidade é encarada como um algo perfeitamente sexual e nunca um sentimento amoroso. Esse elemento, o Amor, é bem mais complexo do que as pessoas julgam. Aliás, é mais difícil aceitar a possibilidade de amor entre dois homens do que o teor sexual da homossexualidade.

Em relação ao casting. Porquê a escolha de Ricardo Teixeira para interpretar essa personalidade tão querida para si?

Conheci-o no ginásio [risos]. Sim, pouco tempo depois de ter terminado o guião. Quando dei por encerrado o argumento de Al Berto deparei com um autêntico problema: quem iria interpretar o poeta? Isto preocupava-me profundamente porque eu conheci perfeitamente o Al Berto, sei de cor a sua aparência, a sua voz, os seus gestos e maneirismos, sabia perfeitamente os pormenores do seu ser, aliás o meu jeito livre foi adquirido graças a ele, e eu devo-lhe muito da minha personalidade. Ele morreu há 20 anos, por isso existem registos vídeo e áudio. Eu teria que encontrar alguém parecido, para não dizer idêntico, a esse homem.

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Vicente Alves do Ó

Mas não desviando do assunto, estava a treinar no ginásio quando de repente passa por mim o Ricardo, na sua, com fones nos ouvidos e de cabelo comprido. A minha reação foi simplesmente de espanto, apesar de ter a sensação que a sua cara não me era estranha. Ricardo pertencia aos Silly Season, uma companhia de teatro. Meti conversa com ele de forma a conseguir ouvir a sua voz, o timbre do Al Berto era inconfundível, suave e grave, e quando o Ricardo falou comigo fiquei determinado a contratá-lo. Imagem e voz eram as qualidades que precisava para o meu Al Berto. Contudo, depois disto, o Ricardo seguiu para o casting e juntei-o logo com o José Pimentão, que iria interpretar o meu irmão, para ver como resultava em termos de química. Obviamente que o resultado foi positivo. Quanto ao resto dos atores foram aparecendo. 

O espaço entre terminar o argumento e começar a filmar foram dois anos, e nesse tempo fui construindo o meu elenco. Procurei jovens atores em teatro. Por exemplo, Raquel Rocha Vieira impressionou-me numa peça. “Quem é esta miúda?” pensei eu espantado. Mas concretizei este processo com o elenco jovem; quanto aos adultos, foram atores que fui gradualmente convidando.

A produtora não fez nenhuma exigência no casting?

Não, a minha produtora não fez qualquer exigência com o grupo mais jovem, pelo contrário, incentivou-me a trazer “caras novas” para o Cinema, de forma a renovar os “rostos do Cinema”, para não termos a tendência de repetir os atores. Julgo que a mais conhecida dos jovens é a Gabriela Barros, que faz televisão, porém, só também a descobri numa peça de teatro.

A atriz Rita Loureiro interpreta em "Al Berto" a sua própria mãe. A escolha para este papel derivou de algum traço afetuoso para com a atriz ou foi uma espécie de “recompensa” por ter integrado a sua primeira longa-metragem?

Obviamente, para além de admirá-la como atriz, e ter sido a minha primeira protagonista [“Quinze Pontos na Alma”], eu olho para ela e apercebo-me nela algo de muito semelhante com a minha mãe. É um sentimento quase maternal, e acrescentaria também fetichista, visto que ela já participou em três filmes meus. Tento mantê-la perto de mim [risos], daqui a uns anos alguém irá se debruçar dos porquês e os quês dela aparecer tanto na minha filmografia.

Contudo, não imaginaria outra pessoa para fazer o papel de minha mãe. Se a Rita não pudesse fazê-lo, juro que tirava a personagem do filme.

Nós portugueses sempre tivemos a ideia de que o 25 de Abril nos tornou tolerantes e livres da noite para o dia. Essa desmistificação encontra-se presente no seu filme, a sociedade de época ainda “abraçada” aos valores conservadores e ao medo da mudança.

Era a sociedade da época, como tu dizes, eu não precisei de inventar. Queria combater a hipocrisia, a cristalização daquele momento [25 de Abril] como perfeito. O português tem dificuldade em encarar a verdade, sempre a mascará-la, uma hipocrisia impressionante.

O 25 de Abril não foi perfeito, mas se foi a melhor coisa que nos aconteceu? Foi dentro daquilo que tínhamos. Mas algo que temos que ter em conta é que muitas pessoas não alteraram a sua mentalidade, aliás mantiveram aquelas mesmas ideias que tinham no exato dia 24 de abril, o conservadorismo, a intolerância, o medo da modernidade e das diferenças, estas ainda se encontravam nestas pessoas. Ainda existe a ideia de que um dia marca a diferença nas emoções de uma pessoa, a ideologia, a política, a religião … não, nada muda. E a prova está naquilo que se abateu sobre esses jovens, as pessoas não sabiam lidar com aquela diferença, com aquela liberdade, e ao invés disso responder com o instinto, primário e tradicional. Não paravam para pensar que as suas lutas pela liberdade dava direito a que aquele estilo de vida existisse.

O paradoxo é esse, elas querem a liberdade, mas não a liberdade total. Para mim era importante falar nisto, porque isto estava tão presente naquela altura, assim como está hoje. Agora vivemos numa sociedade mais “politicamente correta”, em que estes temas continuam a ser varridos para “debaixo do tapete”.

Considera o politicamente correto de hoje como uma espécie de máscara?

O politicamente correto é uma máscara, sim. Porém, hoje confunde-se o frontal em ser desrespeitoso, e há uma linha que separa ambos os lados. Penso que da mesma forma que tentamos desmontar o politicamente correto, também devemos diferenciar cada coisa. Acima de tudo, questionar o que é a Liberdade de Expressão? Onde acaba e começa o desrespeito pelo próximo.

Adiante, se eu retratasse Sines neste filme como uma cidade maravilhosa, progressista, artística e tolerante com os ideais do 25 de Abril … estava a ser igualmente hipócrita. Por outro lado, é uma forma de olhar o interior do nosso país. As histórias envolventes do 25 de Abril são retratadas quase exclusivamente em Lisboa. E o resto do país? Não tem histórias para contar? Aliás, não só o 25 de Abril, mas muitas das histórias cinematográficas parecem restringidas a esta bolha.

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Al Berto (2017)

Há bocado falava dos “rostos habituados do Cinema Português”, é verdade que muitos dos atores alternam entre o cinema e a televisão, mas a questão é, para si, qual a diferença de fazer Cinema e Televisão?

O Cinema e a Televisão são duas plataformas completamente distintas, apesar de hoje existir muitos a fazer cinema na televisão e televisão no cinema. Julgo que tudo isso irá ser debatido cada vez mais, até porque as plataformas estão cada vez mais a transformar, a aproximar um do outro, e aí entra o streaming, os “netflixes” da vida. Só espero que não acabem com as salas. Podes estar a ver a melhor série do Mundo, mas nada bate a experiência que é ver um filme em sala, uma verdadeira comunhão.

Em relação à televisão, contextualizando-o no caso português, possui mais dinheiro, mais tempo e até liberdade. Mas recordo que existe um preconceito de quem faz televisão não pode fazer cinema e assim vice-versa, apesar de hoje, este cenário encontra-se melhorado. E acredito plenamente que as televisões generalistas vão-se extinguir. Quanto ao Cinema, apesar da evolução, continua como um parente pobre da televisão em Portugal.

É sabido que o Vicente Alves do Ó dá aulas de cinema, utiliza os seus filmes como práticas ou exemplos de ensinamento?

Eu não obrigo ninguém a ver os meus filmes, nem sequer a seguir-me, mas aconselho os meus alunos a espreitá-los. Acho que algo crucial no ensino é ter professores que se encontram no ativo, que se debatem constantemente sobre a prática e não apenas na teoria, isso é verdadeiramente importante. Muitas vezes uso a minha experiência para focar nas determinadas áreas do ensino, no que toca à escrita, à rodagem, à realização, ao estilo, na pós-produção.

Costuma ler críticas?

Leio tudo, tudo e tudo. Mas já passou o tempo em que me preocupava com as críticas, ficava desmerecido com as más e só apetecia desaparecer. Aos poucos comecei a fortalecer e hoje, leio, só que não me chateio. Para quê? Quando estou a rodar e a trabalhar no filme, ele é meu por direito, mas depois de terminá-lo, passa a ser de quem o vê, da sua interpretação, do seu gosto. Más críticas tornam-me mais forte, e se não gostam do meu trabalho, temos pena. Continuarei a realizar os meus filmes.

Novos projetos? Tenho conhecido que o seu próximo chama-se “Golpe de Sol”, quer falar-nos sobre esse projeto?

Só posso dizer que acabamos as quatros semanas de rodagem, muito discretas e para os próximos dias começarão a sair mais algumas informações.

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