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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Conspiração Macedo

Hugo Gomes, 30.10.17

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Para João Monteiro, existiu uma “conspiração”, uma tentativa de fazer esquecer aquele que, para além de ter desafiado um regime e uma religião, insurgiu-se com a forma de fazer cinema em Portugal. António de Macedo, um dos nossos raros exemplos de cineastas do cinema de género, foi esse rebelde, um corpus de estudo neste filme que visa procurar as causas do seu (in)voluntário afastamento, assim como a rendição de certos e velhos inimigos (António-Pedro de Vasconcelos).

Monteiro, um dos programadores do MOTELx, encontrou na figura assombrosa de Macedo um motivo para as inúmeras edições da sua mostra, com foco na secção Quarto Perdido, que consistia em “vasculhar” em arquivos por filmes que Portugal esqueceu, muitas vezes não por querer, mas sob derivações de forças maiores. Depois do trabalho terreno, Monteiro comprimiu toda a sua investigação e concebeu-a num formato de documentário. Um formato sem forma, assim por dizer, de molde televisivo com rigor jornalístico, mas esquivo no que refere à linguagem cinematográfica. Mas, em todo o caso, o objetivo não foi a construção de um documento expressivo com “garra” de transgredir toda uma arte. Falemos de “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo” como um exemplar recheado de uma certa motivação de ativismo, com ansiedade de ser sobretudo ouvido, neste caso, visto e refletido.

Não é só o legado de Macedo que está em causa aqui. Monteiro, seguindo esta via, questiona todo um Cinema que foi direcionado por uma única vaga de pensamento. Até certa altura culpa-se os “godardianos”, os seguidores fundamentalistas do cineasta francês, de tamanha importância histórica (vamos ser fatuais), cuja imagem tornara-se iconoclasta, divindade acima de cinéfilos esclavagistas. Macedo tem palavras fortes para todo este movimento e a Jean-Luc Godard em particular, neste seu holofote. E refletindo nesse “todos querem ser um novo Godard” percebemos no estado que o nosso cinema parece ter atingido atualmente, um pensamento meta indiciado por um filme tão disforme, quase centralizado a um lado pedagógico, sobre um dos realizadores mais interessantes e dedicados que Portugal soube alguma vez produzir. 

Até as bruxas desejam ser amadas ...

Hugo Gomes, 27.10.17

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Anna Biller é fascinada pela cinematografia extinta, pela vibe anterior à década de 70s, e este "The Love Witch", fruto de uma carreira refém a essa mesma natureza, é um tremendo exemplo disso. Por entre as invocações de um satanismo trash, ou da bruxaria envergada pelo artificialismo risivelmente voluntário de um Ken Russell, Biller apresenta-nos a caricata personagem, Elaine (Samantha Robinson), uma jovem infortunada no campo amoroso que recorre à feitiçaria como apelo a um “príncipe andante”.

Com uma interpretação deliciosamente caricata e voluntariamente canastra, a protagonista assume de imediato a voz da emancipação feminina, fazendo-o através de um contexto historizado, algures entre a ficção preconceituosa indiciada pelo termo de paganismo (claras insinuações à dominância da igreja cristã) e do papel da mulher vitimizada por esta prolongada e injustificável inquisição. Obviamente que "The Love Witch" brinca com essa dualidade de versões em prol de uma ambiguidade dissolvida na trama, e também, é bem verdade que todo aquele discurso contra a opressão feminina tem um tanto reflexivo como de satírico (separando-o da comparação óbvia com "Goddess of Love", de Jon Knautz).

Mas se "The Love Witch" não consegue “libertar-se” dessa pretensão de ser algo mais que um mero produto de referência cinematográfica, é naturalmente visível que essa incompatibilidade de nuances atribui ao dito tributo um certo elo com o humor involuntário. Porém, a comédia descrita pelas etiquetas de género, camufla-se com a tragédia pessoal de Elaine, obcecada com o romance fabulista, como a certa altura diz: “como nos contos de fadas”, que visa oposição a um mundo atual, devidamente condenado à dependência sexual. E se a sexualidade é uma arma transgressiva na conquista dos seus parceiros, Elaine é acima da sua submissa passividade que demonstra e que se orgulha proclamar, um símbolo de insurreição da “domesticação”.

Tecnicamente, o filme corresponde a esse desafio de alusão fílmica, prestando uma clara e polivalente homenagem através da ausência de virtuosismo nos desempenhos, assim como o visual alicerçado aos decores e fotografia contagiada por suaves cores em conformidade com expressionismos estéticos de ocasião, ou dos flashbacks, em jeito de onirismo, através de planos fechados como um interrompido fade out em escarlate. Aliás, todo o filme é uma fantasia, uma farsa por entre metas que consolida com um casamento de mentira, tal como o “príncipe” e o “faz-de-conta” numa recriação medieval.

Anna Biller é a nossa ilusionista, fazendo-nos acreditar num passado diluído na atualidade. Na nossa “boa” atualidade. Um desconecto e artesanal mimo aquele que deparamos.

Há vida depois da morte?

Hugo Gomes, 26.10.17

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Let’s the game (re)begin!” A saga de terror mais lucrativa regressa passados 7 anos, sob os moldes de reboot, acima do seu vendido teor de homenagem. Iniciado em 2004, “Saw”, do na altura desconhecido James Wan, consolidou-se como uma instantânea obra de culto, pelo arriscado passo do fascínio pelo serial-killer em tempos que a consciência moral debatia-se com a violência do género, colocando e recolocando tais temáticas a séries restringidas, longe do mediatismo industrial, e com um argumento em existência com o seu twist final.

Sim, parece uma tendência “shyamaliana”, algo que veio a transfigurar-se caricaturalmente na marca do realizador de “The Sixth Sense” e “The Village”, que Wan apropria, devolvendo o fator surpresa a esse dispositivo narrativo. Poderia ser um fracasso, mas não foi. Ainda hoje, o público que experienciou em tempo real “Saw” como um OVNI / incontornável thriller do ano, relembra o twist como impulso de deslumbramento, e consequentemente a estrutura óssea dos capítulos seguintes. Capítulos, esses, que se foram desenvolvendo com uma periodicidade anual e assídua (Halloween era a meta de estreia), dando no seu total um franchise composto por 7 filmes (8, se incluirmos este “Jigsaw”), impressionante exemplo de como os baixos custos consistiam sobretudo em surpresas de box-office.

O suposto último capítulo deu-se em 2010, uma manobra estratégica de “matar dignamente” o “menino” que tem erguido a produtora Lionsgate. O resultado, esse, foi decepcionante e “Jigsaw” foi “definitivamente” enterrado. Rest in Peace.

Porém, no cinema, nada morre, e é quase regido aos mandamentos de Lavoisier (“nada se perde, tudo se transforma”). Neste caso, o franchise converte-se num lutador exausto pronto para o segundo round, contornando os espinhos narrativos deixados pela ronda anterior. Agora sob a batuta dos irmãos Spierigs (“Predestination”, “Daybreakers”), este “Jigsaw”, que muito bem poderia intitular-se de “Saw: Legacy”, é um espécime que deambula na sua sala de troféus, as armadilhas em modo “jogos sem fronteiras” motivadas por falsos moralismos e falsos profetas. O argumento não há que saber, é o gore arrancado de um causa-efeito, com personagens de papelão a jogarem numa perfeita sala mortuária.

E quanto ao twist final? Sim, o “surpreendente” final está lá, como manda a lei “saweana”, automatizada e devidamente questionada. Porém, não recomendável a tal, porque no fundo nada faz sentido. Aliás, a existência deste filme não faz sentido algum. Todavia, sabendo que as verdades devem ser ditas (neste caso escritas) a todo o custo, a dupla de realizadores apresenta um trabalho mais proporcionado, mais sereno e sóbrio, do que as confusões reféns das montagens rápidas à lá MTV que a saga sempre nos apresentara (sim, James Wan foi o responsável pela tendência, as sequelas apenas usaram hipérboles desse mesmo estado).

O "menosprezo" da importância do cinema de investigação

Hugo Gomes, 25.10.17

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Quem é Bárbara Virgínia? (Luísa Sequeira, 2017)

Há uma vertente que levemente tem surgido no panorama do documentário português, uma vertente jornalística, não a de mera entrega de informação, mas de investigação. Essa no qual poderá denotar o pessoal (identitário) ou coletivo (demanda para a divulgação, preservação de memória). Este tipo de documentários, que se prolongam ou evitam o cinema como mera lente de documentação de imagens (que porventura poderá anexar-nos a memórias etnográficas e épicas), não são de todo bem vistas na comunidade-nicho da cinefilia. Há quem os acuse de aligeirar o poder e possibilidades (de momento infinitas) de Cinema, desde a sua narrativa até ao estilo intrínseco e extrínseco, porém, e tendo em conta a muita da seleção presente de um Doclisboa, poderemos considerar esta “básica” forma de fazer documentário num registo outsider e porque não, na maioria dos casos, mais experimentais e concisos na sua abordagem.

Como exemplo desse cinema-investigação, Catarina Mourão elevou-se numa busca ínfima de autodescoberta com “A Toca do Lobo”, onde seguiria o paradeiro do avô da realizadora, figura que não conhecera por completo mas que deixou marcas. A realizadora / documentarista apresenta-nos um objetivo claro na sua proposta (“descobrir quem é este homem”), convite claro que o espectador retém no seu arranque, a viagem, essa, vinculada num híbrido entre a investigação propriamente dita e a deambulação pelas memórias pessoais. Em todo o caso, porque não reconhecer “A Toca do Lobo” como um objeto no limiar do intimismo e da retribuição social.

De estética pessoal, mas de caráter mais urgente, está “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira, outra investigação [presente nesta edição do Doclisboa] que regista um pedaço de História portuguesa, neste caso Bárbara Virgínia, a multifacetada artista que se tornou na primeira mulher realizadora nacional, atualmente “apagada”, é o corpus de estudo que despoleta uma tremenda jornada de conhecimento pessoal com vista maioritária para o público e memória futura na “salvação” deste personalidade. O objetivo neste caso encontra-se no título (Quem é Bárbara Virgínia?). O espectador tem com isto a certeza do que vai encontrar, a proposta é clara. Quanto à forma como a mensagem é emitida, essa tem a sua razão de divergir dos moldes, digamos, televisivos. Luísa Sequeira consegue sobretudo uma investigação com uma apresentação intimista, até porque esta procura torna-se, para todos os efeitos, bastante pessoal (apercebemos o quanto a imagem de Bárbara Virgínia transgride da meta de estudo para a transferida pessoalidade numa determinada sequência, a anunciada morte de Virgínia e a reação da nossa documentarista perante tal).

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Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (João Monteiro, 2016)

Porém, talvez de caráter urgente acima da sua pessoalidade, temos “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, de João Monteiro, uma contagem de linguagem televisiva que visa em projetar o legado de Macedo e apurar as causas do seu “desaparecimento”. Obviamente que este documentário completamente destilado por entre footages e talking heads possui um propósito de preocupação pública e patrimonial, mas se o considerarmos como um objeto cinematográfico de requinte, a sua pobreza não o exaltará como algo mais. Contudo, o objetivo de Monteiro é mais do que simplesmente integrar uma teoria estilística, social e cinematográfica, é como um apelo, um ato ativista, esse, que poderá originar consequências futuras, quem sabe, a revalidação absoluta de Macedo, não simplesmente como tentador do cinema de género em Portugal, mas como cineasta. Estes três exemplos recentes de documentário português, uma minoria perante a divulgação dos festivais, formam um cinema de causa-efeito, a investigação como uma narrativa que não deve ser sobretudo desprezada.

O outro cinema, com exceção de alguns casos que conseguem através dos seus meios desbravar a sua linguagem, apresenta-se como máscara, escondendo a incapacidade e o amadorismo de muitos “documentaristas” pretensiosos, em busca do caminho fácil do estatuto autoral. Esse anti-cinema não deve ser sobretudo erguido como o Cinema, assim como o cinema na sua forma mais clássica, universalmente empática, não deve ser rebaixado a anti-cinema.  

Um “loser” à moda alfacinha

Hugo Gomes, 21.10.17

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Ramiro é aquilo a que poderíamos apelidar cinematograficamente de «loser», uma personagem à deriva da sua sorte, encostada às “cordas” do passado, da glória que lhe nunca passou, nem sequer o esforço que detêm para a atingir. A certa altura, o protagonista-título confessa aos seus amigos que acabara de descobrir a sua passividade (“Sou uma pessoa passiva”), sequência-chave que revelará por completo a sua anti-tour de force, até porque o seu talento, diversas vezes mencionado por outros, nunca fora devidamente reconhecido, assim como conquistado. O seu proclamado bloqueio criativo é simplesmente fruto desse autodesprezo.

Mas Ramiro não é de todo um desprezível, é dotado de uma boa índole, o espectador crê isso através dos seus atos minuciosos, na sua teimosia controlável que nos leva aos seus próprios demónios, o medo; o medo de falhar, automaticamente, o medo de tentar.

É fácil simpatizar com este Ramiro, nem que seja pela interpretação derivante do ator António Mortágua, um laço de empatia com uma audiência que se lança nas prateleiras de um alfarrabista em busca de preciosidades. O que encontramos é “livros esquecidos”, estilos não vingados, enredos antiquados com o intuito de agradar aos “velhos do restelo” ou os reféns das “coisas que outros amaram”. Porém, e utilizando esse mesmo lugar, “Ramiro” enquadra-se num cinema português desadequado, não pela inutilidade estilística, mas como oposição às novas vagas que tendem em: a) manejar a experimentação narrativa e visual no qual diversas vezes disfarça a pura incapacidade; b) a sedução pelos formatos wannabe hollywoodescos, de forma a repudiar toda uma História da nossa cinematografia.

Tal como a personagem, Manuel Mozos cria um filme passivo na sua positiva afirmação, até porque é em “Ramiro” que evidenciamos um cinema lúcido, intrinsecamente português-alfacinha e discretamente irónico, mesmo sob as influências de João César Monteiro e dos seus constantes e castiços trocadilhos. Talvez tenha sido a experiência com Miguel Gomes, outro influenciado pela natureza do anterior “João de Deus”, o catalisador para esta invocação. Porém, Mozos não pretende o mero tributo. O filme concentra-se sobretudo numa saudação, a vénia a uma iminente emancipação, assim como a transformação de Ramiro após a perda do seu mentor.  

Eis um pequeno achado do cinema português, um “livro” poeirento e esquecido na mais oculta das prateleiras que resulta na mais graciosa das descobertas. Sem alterar o curso do nosso cinema, temos aqui filme e não pretensões.  

Arnaud Desplechin entre fantasmas e géneros. Uma conversa em torno de Ismael

Hugo Gomes, 17.10.17

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Arnaud Desplechin dando direções a Marion Cotillard na rodagem de "Les fantômes d'Ismael" (2017)

Arnaud Desplechin é um dos nomes mais frutíferos do cinema francês, e um dos cada vez mais prestigiados. A prova está na escolha de um filme como “Les fantômes d'Ismaël” (“Os Fantasmas de Ismael”) para integrar a abertura do mais mediático dos festivais de cinema, Cannes. Um filme multifacetado que reúne todo um conjunto de géneros e nuances ao serviço de uma só ficção, um experimento artístico que entra em contradição com o elenco e a produção estrelar. Desplechin foi o padrinho da 18ª Festa do Cinema Francês, a qual lhe dedicou uma retrospectiva que visa refletir sobre a sua obra, as suas influências e referências. 

O realizador falou-me do seu mais recente filme e de que maneira ele desafia o costume de géneros implantados por Hollywood e globalizados até aos dias de hoje.

No papel, Os Fantasmas de Ismael é um filme muito complexo e multifacetado. Como concebeu ou surgiu a ideia, digamos assim, deste seu novo trabalho?

Tudo começou com linhas separadas, nada de relacionado entre si, que depressa evoluiu para a história de um cineasta que tenta escapar ao seu próprio filme. Contudo, durante o desenrolar do guião, que ainda não era bem um argumento, vi o filme de Miguel Gomes, “Mil e uma Noites”, e recordo que no início tínhamos o próprio realizador a fugir do filme. Pensei, “era quase isto que eu queria, mas mesmo assim vou avançar, a minha ideia será diferente”. Então a minha ideia tornou-se em algo assim, um realizador que escreve um filme sobre as memórias do seu irmão, convertendo-o numa história de espionagem, isolando-se numa casa vazia onde debate os seus fantasmas e recordações com o seu produtor. Foi assim o primeiro rascunho.

Depois de terminar “Trois souvenirs de ma jeunesse” (“Três Recordações de uma Vida”), cujo elenco foi composto praticamente por desconhecidos e principiantes, decidi que com este novo filme iria trabalhar com um elenco de luxo, estrelas do cinema francês. Ou seja, com a experiência que adquiri a dirigir inexperientes, queria testá-la em trabalhar com experientes.

Depois do primeiro rascunho, não como veio, mas dei por mim a imaginar uma personagem a passear na praia, batizei-a instantaneamente de Carlotta, que abordada uma mulher desconhecida. Carlotta pergunta se Ismael está com ela. Ela responde que não e sucessivamente Carlotta afirma “é porque ele não gosta de nadar”. “Como sabe?” e a mulher responde “porque eu sou a mulher dele”. E a partir daí trabalhei com o facto deste realizador ser viúvo, ou pelo menos a acreditar que o é durante 20 anos, e que de um momento para o outro, enquanto tenta refazer a sua vida amorosa, Carlotta regressa à sua vida. Neste sentido, esta personagem tenta esquecer o seu antigo amor voltando a uma relação e este encontro inesperado leva-a ao dilema; continuará com o luto, voltar para a sua antiga mulher, ou seguir com o seu novo amor?

Foi a partir desta sequência, a qual imaginei e reproduzi no filme, que tive completamente a certeza de que história queria contar, de que personagens iria retratar e quais situações iria abordar.

Relembro que em Cannes, nas notas de produção, declarou que concebeu este filme da mesma maneira que Pollock concebeu as suas figuras.

Bem, há uma cena em que a personagem de Mathieu Amalric refere que “Pollock não é abstrato, são apenas imagens comprimidas”. Pretendia pegar em todo o tipo de ficções e comprimi-las de forma dar-me uma única ficção, a apologia das ficções. Um experimento, diria eu, diferentes géneros, diferentes histórias, unidas a dar origem a um só género e a uma só história. E essa experiência não ficou apenas na idealização do filme em papel. Aliás, a rodagem foi parte desse experimento, em cada semana eu virava-me para os meus atores e dizia: “nova semana, novo filme”. Ou seja, estava sempre a rodar um novo tipo de filme a cada semana.

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Mathieu Amalric em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

De certa forma, o filme não é uma rebeldia contra o sistema de catalogação de géneros imposta, principalmente, por Hollywood?

Diria que sim. Este “Fantasmas de Ismael” é uma revolta a esse sistema de géneros, porém, o meu próximo filme não o será. Aliás, isso faz parte da minha natureza, em cada projeto converte-se numa oposição ao trabalho anterior. Mas pensando bem, e olhando para os meus filmes anteriores, sempre fui um pouco contra a etiqueta do género. Por exemplo, o “Rois et reine” (“Reis e Rainhas''). Será um drama ou uma comédia? Um slapstick ou um melodrama? Sempre tentei criar uma unificação desses géneros nesse filme, principalmente em conformidade com a perspetiva de diferentes personagens. Em “Os Fantasmas de Ismael'' quis algo em grande. Diria pretensioso, mais que dois géneros, uma multiplicidade de tons que originam um só.

Falando em filmes anteriores, tendo em conta as referências de Vertigo, de Hitchcock, neste “Os Fantasmas de Ismael”. A sua filmografia é pontuada com uma busca identitária por parte das personagens, e até, quem sabe, de si próprio. Procura conhecer-se através da escrita e na conceção destes filmes?

Possivelmente. Quando escrevia “Os Fantasmas de Ismael”, de certa maneira, procurava qual a forma que estas personagens seriam. Não tive a certeza absoluta que Ismael seria um viúvo, tudo veio com o tempo, uma busca por essa identidade, e isso reflete se nas minhas personagens. Nunca gostei de personagens assertivas naquilo que são, prefiro aquelas que têm dúvidas acerca delas próprias. Em cada escrita de um guião, esta torna-se numa jornada em decifrar a identidade destas, um processo criativo e psicológico. E falando em psicológico, sempre gostei de personagens multifacetados, ambíguas para ser mais exato, e aqui a melhor prova é a personagem de Marion Cotillard. Ela é um “pequeno demónio” quando tenta reaver o seu marido. Contudo, na segunda metade do filme ela tenta reaver outro amor, o do pai. Então como se pode ver, ela passa de demónio a um anjo, mas não é uma mudança, são as duas faces que convivem num só indivíduo. Eu sou um adepto deste tipo de personagens. Personagens de várias faces.

Uma sequência que particularmente me fascinou foi a dança indominável de Marion Cotillard ao som de Bob Dylan. A seleção da música foi voluntária, ou foi mero fruto do acaso? [risos]

[risos] Quando escrevia o argumento do filme, imaginei essa sequência e automaticamente propus a música do Bob Dylan, “It Ain't me Baby”, sobretudo por causa da letra. É curioso uma música destas ser tão cruel, aliás, como grande parte do trabalho de Dylan. “Tu precisas de alguém para te proteger e defender, abrir-te todas as portas e janelas, não sou eu, baby, não sou eu”. O que significa, em perspetiva da Marion’, que Ismael não estará lá para a protegê-la, defendê-la, ou seja, não estará lá para ela. Ela é a “rapariga errada” para ele, e ele sabe-o.

Quanto à dança, pedi à Marion que dançasse selvaticamente, como fosse groove, ou rock, então eu trouxe outro CD, e nele estava o “Going Home” dos “Ten Years After”, com todas aquelas guitarras elétricas, e lhe propus, se conseguisse reproduzir o ritmo com Bob Dylan … ela respondeu-me automaticamente: Bob Dylan!? Eu consigo fazer «groovy»”. E é por isso que adorei trabalhar com Marion. Neste exemplo nota-se o seu talento, o facto de conseguir transformar aquela música numa sequência selvagem bem à sua medida.

Em relação a Mathieu Amalric? Tem sido quase o seu “ator-fetiche”, um co-trabalhador. Normalmente escreve uma nova personagem a pensar nele?

Não, cada filme, cada caso. Neste caso, encontrava-me bem perdido com o argumento, ainda não sabia exatamente o que pretendia e como pretendia e quem se iria encaixar nas personagens. Porém, enviei uma edição inacabada do argumento a um amigo e questionei-o em relação quem iria interpretar o papel de Ismael. Ele virou-se para mim surpreendido e disse: "Estás a brincar? Isto foi escrito para Amalric!”. [risos] Não tinha percebido quando escrevia, mas durante a rodagem constatei que Amalric era exatamente o indicado para este papel. Porque ele, assim como eu, gastamos todos os “truques”, todas as nossas façanhas para o concretizar. Ele foi feliz, patético, humorístico, violento, intrigante, burlesco, romântico, dramático … usou todo um conjunto de faces, tons, nuances, que quando terminamos o filme, ele veio ter comigo e disse: “bolas! Tu deste-me tanto neste filme, era mesmo isto que pretendia enquanto ator”. Agradeço-lhe muito por este filme, porque ele conseguiu exatamente unir todas essas distinções e colher uma totalidade interpretativa.

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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em "Les fantômes d'Ismael" (2017)

E em relação à abertura de Cannes? A experiência?

Um misto de sentimentos. Por um lado fiquei bastante contente com o facto de Thierry Fremaux ter selecionado o meu filme para o Festival, mas a surpresa chegou quando percebi que fora o escolhido para abrir o certame. Fiquei perplexo. Contudo, acabei por descobrir que a noite de abertura é péssima para o Cinema. Eu tenho um ritual em Cannes, quando o meu filme é apresentado no Grand Lumiére Theatre costumo dar uma saudação aos cinéfilos que se encontram na bancada de cima. Naquela noite, tentei fazer isso e fiquei surpreso quando deparo com um amontoado de pessoas vestidas a rigor e nenhuma das “caras conhecidas”, os cinéfilos que costumo “ver” no Festival. Foi então que percebi que na abertura de Cannes não há cinéfilos, apenas convidados, e isso é péssimo para os filmes, principalmente para um filme como o meu “Os Fantasmas de Ismael''. A abertura não tem nada de relacionado com Cannes, é um evento completamente burguês, uma passerelle de vestidos e uma recepção muito fria. Foi uma experiência muito violenta.

Quanto a novos projetos?

Terminei o primeiro rascunho do próximo filme que vou trabalhar. Entrarei em território desconhecido na minha carreira, uma produção singular que bravamente entra num universo hitchcockiano. Não sei ao certo como aconteceu, mas apaixonei-me por um artigo de jornal. Um homicídio, para ser mais exato. Mais uma vez, apaixonei-me por aquele relato e devido a isso quero apenas focar nos factos … somente nos factos.

Este meu filme será um objeto completamente seco, despido do lado ficcional, mas ao mesmo devedor do estilo imposto por um The Wrong Man, de Hitchcock. Contudo, e frisando, muito mais seco. Comparo até com o livro “In Cold Blood” (“A Sangue Frio”), de Truman Capote, a apenas narração do real, do facto, não havendo espaço para imaginação e pelo suposto. Retratarei a condição da mulher nos dias de hoje, por isso espero criar uma atmosfera bem sociopolítica, nada parecido do que fizera anteriormente. Espero começar a filmar já neste Inverno.

A Festa do Cinema Francês vai-lhe dedicar uma retrospectiva da sua carreira. Isto, de certa forma, não o motiva a refletir sobre a sua carreira? Aliás, existe algo que se arrependa de ter feito, ou que nunca devia ter feito em relação à sua filmografia?

Estranho que pareça, nunca pensei na minha carreira, apenas no meu próximo projeto. Primeiro de tudo, porque nunca vejo os meus filmes.

Nunca viu os seus filmes?!

Depois de terminados, nunca. Até mesmo em Cannes, deixo passar os créditos iniciais e de seguida desapareço, melhor, escapo da sala. No final, sorrateiramente entro na sala, e recebo os aplausos. [risos] Já vi os meus filmes tantas vezes, mas tantas vezes na sala de montagem, que não tenho curiosidade nem gosto de revê-los no grande ecrã. Acho tudo uma questão de conforto.

O que realmente acredito é que depois de terminado, o filme deixa de ser meu passa a ser de quem vê, por isso não me vejo a pensar como poderia melhorar, ou o que poderia não fazer. Nada disso, não os vejo, o filme é vosso, façam o que quiser com ele.

Mas é muito emotivo ir às retrospectivas e aperceber até que ponto os meus filmes vão e de que maneira tocam em diferentes gerações. Lembro-me de ir a Beijing, numa retrospectiva, e encontrar jovens com os seus 20 e tal anos a afirmar que os meus filmes, de certa maneira, mudaram para todo o sempre. É emocionante ouvir tais palavras de alguém que é tão jovem, e de saber o quanto significa os meus filmes. 

Jackie Chan não faz reféns

Hugo Gomes, 14.10.17

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Deparamos novamente com o efeito “Taken”, ou, por outras palavras, quando o infortúnio “bate à porta” de indivíduos com habilidades e técnicas especiais. Desta feita não é Liam Neeson o protagonista deste “comeback”, mas outro cinquentão do cinema de ação: Jackie Chan, que interpreta um humilde gerente de um restaurante chinês em Londres que, por azar, encontra-se à hora errada no lugar errado. Um atentado terrorista levou assim a sua única filha, motivando-o a uma cega vingança pelos responsáveis, que se vem a saber mais tarde serem membros da reativada cédula da IRA (Exército Republicano Irlandês). O destino dessa personagem completamente amargurada e sob um luto silencioso entrelaça com o de um político com ligações passadas à organização (Pierce Brosnan).

Martin Campbell retorna ao território de conspiração e do thriller policial cuidadosamente alinhado com a ação que nunca se assume como o “prato principal”. É certo que no historial do realizador abatemo-nos com uma incapacidade, ou, por outras palavras, infantilidade de retratar cenários geopolíticos e situações limites consequentes de duplos gumes da mesma faca. Resultado, não tão agravado como sucedera com “The November Man – A Última Missão” (mencionando um dos mais recentes filmes protagonizados por Pierce Brosnan), um exercício maniqueista evidente que baila com a coerência que poderia ser suscitada no enredo.

Fora isso, é bem verdade que Jackie Chan, fora do território imposto por Hollywood (a comédia de ação que nunca lhe encontra sincronização), dá cartas como um mártir dramatizado completamente vencido pelo violento pesar. Entretanto, o filme foi feito de forma rotineira e inconsequente no tratamento de um História antiga, meramente replicada sob o rascunho dos nossos medos atuais. Contudo, em “The Foreigner" encontramos similaridades com um dos galardoados filmes de Cannes deste ano, “In the Fade”, de Fatih Akin. Mas fica a grande heresia da nossa parte: esta reunião de Jackie Chan com Pierce Brosnan é um exemplar muitíssimo mais sóbrio e coerente sob o seu género “refém”.  

Viajamos para Famalicão! Arranca a 2ª edição do Close-Up, Observatório de Cinema

Hugo Gomes, 13.10.17

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"El espíritu de la colmena" (Victor Erice, 1973)

Numa viagem, no seu sentido mais poético e elusivo, o que menos importa é o destino. São os trilhos, essas veias sanguinárias que nos transportam para uma experiência à mercê da vivência. E são as experiências que vão este segundo episódio do CLOSE-UP – Observatório de Cinema de Vila Nova de FamalicãoDe 14 a 21 de outubro, a ocupar os mais diferentes espaços da Casa das Artes, e tendo como mira o sucesso da edição anterior, o CLOSE-UP apresentará mais de 40 sessões de cinema, workshops direcionados a escolas e famílias, uma produção própria (de Tânia Dinis) incluída no panorama no feminino de produção portuguesa, e a exposição fotográfica de André Príncipe (realizador de Campo de Flamingos, Sem Flamingos), intitulada de “O Perfume de Boi”, a ter lugar no foyer.

O primeiro dia será marcado pelo filme-concerto de “A Man with a Movie Camera”, de Dziga Vertov, devidamente sonorizado pelos Sensible Soccers (encomenda do CLOSE-UP). O gosto da melodia pop do grupo a tentar provar cadência para com uma das obras mais influentes da História do Cinema. Como qualquer viagem, digna do seu nome, o CLOSE-UP será dividido por diferentes etapas (secções) que nos acompanharão ao longo destes sete dias de pura reflexão cinematográfica. O Tempo de Viagem revela-nos uma metáfora sobre a maturação, o crescimento induzido por esses caminhos dados a lugares incertos. Andrei Tarkovsky é a “rock star” desta secção com “Nostalghia, a sua “aventura” em Itália. O existencialismo procurado por um poeta russo em terras toscanas e romanas funciona como um sacrifício que nos guia quase em modo retrospectivo e introspectivo ao cinema do seu cineasta. Wim Wenders é outro importante signo deste mesmo espaço, não fosse ele um dos grandes “caminhantes” do road movie.

Em “Fantasia Lusitana” esperam-nos quatro longas-metragens portuguesas em oposição a um programa de nove curtas, incluindo uma sessão dedicada a Tânia Ribeiro com a estreia de “Armindo e a Câmara Escura”. No lote nacional, destacamos principalmente as exibições da mais recente longa de Salomé Lamas, "El Dorado XXI", e de Luciana Fina, “O Terceiro Andar”. Vinda da nova vanguarda soviética, a cicerone Larisa Shepitko e Elem Klimov serão figuras relembradas nesta edição de Histórias de Cinema. Mas não serão as únicas. A partilhar o espaço está a dupla Peter Handke e Wim Wenders com “The Left-Handed Woman” e o sempre poético “The Wings of Desire”, bem como David Lynch, indiscutivelmente o realizador do ano, nem que seja pelo reavivar da série “Twin Peaks” que tanto deu que falar, no Observatório, representado pelo spin-off cinematográfico, “Fire Walk with Me”.

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Eldorado XXI (Salomé Lamas, 2016)

O resto da programação será constituído por sessões direcionadas para escolas e família, e ainda Infância & Juventude, que como o nome indica será um olhar coming-to-age; desse crescimento que por si deverá ser visto como uma viagem. E que melhor filme para transpor essas duas jornadas alusivamente interligadas que “American Honey” de Andrea Arnold? Claro que nem todas viagens são felizes e a juventude pode ser inconstante, inconsequente e até inconcebível, como o caso de “The Tribe”, de Myroslav Slaboshpytskyi, filme que, infelizmente, chegara demasiado tarde ao circuito comercial português, tendo em conta o seu historial de controversas passagens em festivais por esse Mundo fora. Nesta seção destacamos ainda o clássico de Victor Erice, “El espíritu de la colmena”.

A música e o cinema vão se fundir para criar um encerramento memorável, assim promete esta 2ª edição do CLOSE-UP, com três curtas de Reinaldo Ferreira, ou Repórter X + Dead Combo. A proposta parece indigesta, incompatível e sobretudo experimental, mas o cinema é um experimento que se transformou, como se pode verificar, na mais complexa das experiências. A viagem está marcada. 

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