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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Por ordens do mercado, o medo deve chamar-se "Annabelle: Creation"

Hugo Gomes, 09.08.17

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A popularidade desta boneca amaldiçoada em “The Conjuring” levou-a a bordo num franchise próprio. Aí, Annabelle, anteriormente reduzido a adereço secundário converte-se no centro de uma artimanha de jump scares e provocações satânicas num malfadado filme de 2014, sendo que uma sequela / prequela desse mesmo fenómeno foi visto com alguma desconfiança, principalmente com a vinda de notícias de um “Universo Partilhado”. As brisas positivas chegaram com a entrada de David F. Sandberg na cadeira de realização, o sueco que havia demonstrado perícia em trabalhar a luz e a escuridão na sua curta, e mais tarde convertida a longa, “Lights Out”. Se é bem verdade que este “Creation” supera aos pontos os acidentes cometidos pelo anterior “Annabelle”, é também verdade que se trata de mais um caso de um prolongado síndrome nas grandes produções de terror. Mas vamos por partes.

“Annabelle: Creation” recorre às típicas camadas do old dark house, as assombrações como ponto de criação para um dispositivo narrativo que mais tarde ou mais cedo assemelhará a um “comboio-fantasma”. Mas é logo nesta declaração a um subgénero tão antigo, que este segundo capítulo arrecadou o seu primeiro ponto favorável. Quando deparamos com uma visita guiada pela casa, esse cenário que nos acompanhará ao longo do filme, somos induzidos por uma câmara que topografa espacialmente esse imóvel-décor. Assim, o espectador consegue ter uma visualização mental de onde encontra-se cada assoalhada, cada compartimento, cada quarto escuro e proibido, isto, acima da “cegueira” cometida no primeiro “Annabelle”, onde encarávamos uma protagonista correndo desalmadamente por “sabe-se lá onde”. As audiências são assim, visitantes em plena descoberta do espaço.

Apresentado o espaço, personagens e subenredos, seguimos então para os jumpscares, pelos sustos que saltitam e pelas personagens que se comportam como verdadeiras cobaias do medo. Sandberg é dotado na sua inclusão da escuridão, o jogo de luzes e sombras que salienta a sua dose de terror atmosférico – e mais, notável conhecedor do chamado “terror invisível” que tão bem Jacques Tourneur usufruiu nas suas incursões do fantástico. Aqui, a boneca é um acessório máximo dessa … sugestão.

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Contudo, o carris oleado e devidamente meticuloso da sua proposta, depressa descarrila e é então que entramos no referido “síndrome” (que contagiou todas as produções de James Wan): o terceiro ato, essa apropriação do caos, literalmente falando. "Annabelle: Creation” esgota a sua porção de sustos e truques e cede ao desespero. É tudo ou nada, o espectador habituado à construção desta atmosfera depressa se vê encurralado numa rodopiante perseguição sobrenatural. Há que fugir aos demónios que já não se dão ao trabalho de “brincar connosco”, ao invés disso, é a dependência do CGI (esse maldito “parasita” do género), a música que denuncia os “surpreendentes” sustos e do Universo Partilhado que atualmente se insere. O resultado, um final com um cameo “especial” (a verdadeira Annabelle, essa boneca de pano, faz a sua, por fim, aparição), que nada acrescenta e com um sentido muito, mas muito duvidoso.

Annabelle: Creation”, uma sequela/prequela que supera o seu antecessor, reúne o que de melhor e de pior se faz no chamado “terror de estúdio”. Quanto a isso, há que reconhecer o talento por detrás de Sandberg, nele sim, encontramos um certo vínculo perdido no género.

"Meteorlar": a existência humana reduzida a fenómeno cósmico

Hugo Gomes, 08.08.17

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Poderá um apelo silencioso ser ensurdecedor? Poderá a Arte levar-nos a esse SOS sem a evidência gritante de um assumido panfleto? E a experimentação, terá lugar como recorrente decifrador de tais mensagens? A começar, é bem verdade que existe um vínculo de ativismo nas imagens trabalhadas de Gürcan Keltek, que expressa poeticamente o conflito turco-curdo, genocídios silenciosos que meio mundo ousa em ofuscar e a limpeza étnica que urgentemente chama-nos às armas. Mas é nesse experimento, de conduzir algo concretamente violento e desumano, desde as imagens-arquivo até à frontalidade do seu tema, que encontramos a transformação de uma bela peça. Confusos? “Meteors” não ostenta um teor de histerismo, pronto a ser consumido pelas audiências conduzidas em julgamentos fáceis. Ao invés disso, é nesta “mercadoria” monocromática que encontramos um descodificar da raiz do “mal”, ou diríamos antes, da nossa natureza, violenta, negra e ao mesmo tempo bela e pacífica.

Existe uma questão sistemática aqui que facilmente condensa todo o comportamento humano, o ser social e ao mesmo tempo desassociado, o eterno sonhador do alcance divino, e provavelmente cósmico. Contudo, neste mesmo sistema, a integração encontra-se de costas voltadas com a desintegração, a luta enviesada na opressão e o agressor tão próximo da vitima, palavras-chave que desenham uma espécie de círculo invisível em constante turbilhão, a órbita que este documentário indicia em toda a sua narrativa, uma linha contínua simultaneamente desconectada em seis partes. A Morte está presente neste mesmo "círculo" montado, operando como um núcleo-vetor da circunferência impregnada em imagens de arquivo e da encenação ficcional induzida num tom fabulista.

A fábula parte dos caçadores de cabras-monteses do Monte Nemrut, orquestrando a luta desigual entre homem e bicho, o primeiro esperando e espreitando como fera indomável, onde a posse de pólvora o separa do reino animal. O cabrito indefeso sucumbe então face às balas “não se sabe donde”. Estes primeiros minutos transmitem por completo o nosso status, os nossos sonhos existencialistas de chegarmos aos “aposentos dos deuses”, obter a capacidade de decidir a morte e a vida num ápice. Nesse aspecto, só com a morte somos capazes de deter. Consequentemente, o espectador é levado a um bombardeio, mísseis de um inimigo “invisível” castigam severamente quem ousa estar no seu caminho. Há um paralelismo entre estas duas situações, o caçador que recusa o duelo “animalesco” com a sua presa, e a artilharia de longo-alcance que deseja desconhecer por completo as suas vítimas. Sim, queremos ser deuses à força, porém, só uma "dádiva" conhecemos. Estringindo as famosas palavras de J. Robert Oppenheimer:I am become Death, the destroyer of worlds.

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Todavia, os verdadeiros deuses observam-nos e pedem para parar, e esse sinal é nos introduzido sob a forma de uma chuva de meteoros, recebidos sob pânico pelos mortais, onde as luzes e o sonoro tanto se assemelham ao tal fogo inimigo. É nos ditos que o conflito pausou por momentos perante esses objetos cósmicos, belos encadeamentos que nos revelam simplesmente aquilo que ignoramos constantemente – somos pequenos – não na escala universal, mas mundial. O satírico poeta britânico Samuel Butler (1612 – 1680) previa esses alertas de outros mundos, a imponência que nos fragiliza, o nosso ego, principalmente, esse antropocentrismo prejudicável. Inserido no primeiro canto de Hudibras, escreveu o seguinte:

“This hairy meteor did denounce

The fall of sceptres and of crowns ;

With grisly type did represent ‘

Declining age of government,

And tell with hieroglyphic spade,

Its own grave and the state’s were made.”

 

É certo que tais visões soam longe do profético e aproximam-se da inutilidade que o rumo do conflito seguiu. Gürcan Keltek sabe perfeitamente desse ato que só enriquece esta sua visão montada.

Aliás por entre a recolha de imagens que nos exibem um povo “unido pelo barulho que faz”, que enumeram os seus contactos mortuários como prémios de uma vivência por um fio, existe uma tendência de encenar, colocar uma aproximação do espectador com o real, as memórias de um Ocidente desmoronado a assistir ao desmoronamento do Oriente. Assim, essa fenomenologia passa pelos olhos da atriz Ebru Ojen, que se insere nesta partitura da mesma forma que Emmanuelle Riva integrou o pesar de Hiroshima, no belo filme de Alain Resnais. Deste lado ouve-se: “tu nada viste sobre o Curdistão” de igual tom e sonoridade. E sim, nada vimos, nem antes, nem depois de “Meteors”. Todavia, foi nesta viagem que percebemos o quanto nada vimos sobre nós, a nossa real existência.

O não-ativismo de "Dunkirk" contra o ativismo do Mundo

Hugo Gomes, 04.08.17

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O mais recente filme de Christopher Nolan [ler crítica], pode ser tudo, desde a magnificência com que tem sido descrito pela imprensa mais imparcial até à maior “nojeira” das história do cinema bélico pela outra quota, e quem escreve estas palavras é um assumido opositor a “Dunkirk”, mas desta vez saio… e contrariando as hipóteses… em defesa da obra. Sim, leram bem, não de forma a reconhecer a sua “majestosidade” (até ao final do texto continuo a prevalecer na ideia de um filme desorganizado e manipulador), mas devido às acusações que “Dunkirk” tem disso submetido nos últimos dias. Até porque os tempos evocam uma resposta da diversidade cultural e de género, e sucessivamente a sua representação em meios que outrora os ignoravam. Porém, há que separar o “trigo do joio”. Existe sim, uma distinta vertente política correcta que cada vez mais se distingue com esse “senso de justiça”.

O que vos trago é a panóplia de notícias que tendem a provar uma negligência por parte de Nolan à importância do outro lado do Império Britânico neste seu retrato à maior das evacuações militares. Segundo o colunista indiano, Mihir Sharma (Bloomberg View), tendo como base um artigo da The Times of India, a Índia, na altura colónia inglesa, obteve um papel relevantíssimo na Segunda Guerra Mundial, nessa defesa da Coroa Britânica contra a ameaça nazi. O mesmo colunista em conformidade com outras provas históricas e afirmações de historiadores, clama que o episódio de Dunquerque foi igualmente representado pelas tropas coloniais indianas e paquistanesas. As mesmas informações levam a acusações de que Nolan ignorou os factos por diversos motivos, quase todos ligados ao chamado “privilégio branco” ou até mesmo a um cego patriotismo, e não, na maior das hipóteses, à educação escolar que se vive nas escolas britânicas, fruto dessa imagem de “bom Império”. Um pouco à imagem da nossa que continua a vender-nos a ideia que os “portugueses sempre foram bons colonizadores”. Assim sendo, será Christopher Nolan uma vítima do ensino britânico, ou o privilegiado que se vende?

Se é ou não, a questão não serve de todo como um martelo-pneumático para demolir aquilo que o realizador construiu, uma reconstituição longe do romantismo a uma das grandes manchas do historial das Forças Armadas Britânica, e… também, o injetar de uma certa glória na derrota, quase como statment nacionalista. Esta última, servido de acha para outra fogueira, a da metaforização do Brexit, muito em consideração às declarações do conservador político Nigel Farage (um dos “cabecilhas” da saída do Reino Unido da União Europeia), que veio a público expor a sua admiração pelo filme. Neste caso, é como se o gosto de um indivíduo direcionasse todo um filme para um vertente política e ideológica à sua imagem. Como se, nesse sentido, o fascínio de Adolf Hitler a “Metropolis”, de Fritz Lang, o conduzisse a uma ideologia nazista nos seus frames (se existir ou não, como tem sido constantemente teorizado o papel do Expressionismo Alemão na conceção dos ideais do nazismo, nenhum dos casos motiva a queda de um filme como uma peça rica da História cinematográfica).

Porém, tirando estas criminações, do outro lado do Oceano, num país que elegeu Trump como presidente, continua-se a derramar tinta em discursos político-sociais da escassez de representações culturais no retrato de Nolan, até mesmo incriminações de misoginia, pela igual ausência da Mulher em todo este enredo. Perpetua-se a valorização do ativismo, por vezes forçado, frente aos propósitos de um filme. E voltando ao início, Dunkirk poderá ser um trabalho impaciente, desleixado e demasiado egocêntrico para se posicionar entre os melhores do seu género, mas posicioná-lo no contexto atual sabendo que a “História está morta” era a proposta encarada pelo realizador… uma afronta a um Mundo cada vez mais sedento por exemplaridades coletivas no Cinema e na propagação de um conceito de um “mundo ideal”. Para ser sincero, tudo soa mais histerismo que qualquer outra coisa.

Pedro Cabeleira: "Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa."

Hugo Gomes, 03.08.17

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Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

O verão de 2017 faz-se danado! E é com orgulho que a primeira longa-metragem de Pedro Cabeleira tem a sua estreia mundial num dos mais prestigiados festivais de cinema da Europa, Locarno, sob o signo da secção Cineastas do Presente. É uma obra estival que não respira a brisa marítima, mas inspira com tamanha euforia a noite que se abre envolvendo-nos como um só organismo.

Mais do que um retrato de uma juventude perdida num extenso limbo, mais do que a frustração destes seres incapazes de alcançarem os seus respectivos estados adultos, mais do que uma fustigada moldura dos “rapazes da noite”, “Verão Danado” é um filme para descobrir sobre o que nos mantêm jovens e essa ilusão de eterna juventude, embebida como se não houvesse amanhã.

Tive o prazer de falar com Pedro Cabeleira, realizador de um projeto que coloca em xeque não só a sua carreira ainda “verde”, mas a de uma produtora nos seus primeiros passos e de uma distribuição em plena grande aposta.

Para começar, como se sente pelo facto de ter uma primeira obra a estrear num Festival de nome como o de Locarno?

É uma sensação prestigiada, uma experiência nova e, talvez, uma aventura. Até porque nunca estive num festival destes. Mas vou sem grandes expectativas, o meu objetivo, para além de ser o de apresentar o meu filme, é sobretudo descontrair, uma recompensa por estes anos de trabalho na longa-metragem. É bem verdade que esta ida a Locarno talvez traga alguma atenção ao meu filme, porque possivelmente serão mais pessoas a vê-lo, e possivelmente mais se interessarão, o que motivará a outra parcela a querer descobrir o que é isto e integrar tais sensações. Acredito que o papel mais importante dos festivais é levar estas pessoas interessadas em Cinema a descobrirem novas paixões, fazer com que os filmes sejam falados e reconhecidos.

Mas para além de si e da sua carreira, Verão Danado será sobretudo importante para a vossa produtora Videolotion e assim, para a distribuidora FILMIN, que aposta numa estreia em sala.

Verão Danado” representa os “primeiros passos”. Vai ser o nosso primeiro filme, contudo, em termos institucionais não é bem nosso, é da OPTEC e a Videolotion funciona como uma produtora associada. O “Verão Danado" foi produzido no seio desta produtora, portanto, vai ser um passo importante para nos dar a conhecer ao mundo e tornar possível que novos projetos adquiram instantaneamente força. Quanto à Filmin, será sobretudo uma experiência, visto ser a primeira vez que estrearão um dos seus projetos em sala.

Há muito em jogo neste lançamento?

Sim, mas se correr mal este lançamento, ninguém morre, mesmo que para a FILMIN seja crucial resultar. É muito importante que estas plataformas de VOD não estejam em rutura com as salas de cinema, mas sim existir uma espécie de sinergia. Tal como a Amazon que, ao contrário da Netflix, lança os seus projetos em sala. A FILMIN obtém uma posição saudável enquanto plataforma VOD. Efetivamente apoiam o Cinema enquanto formato. Existem filmes que devem ser vistos em grande tela. No nosso caso, nós concebemos o “Verão Danado” a pensar na sua projeção numa sala de cinema e não num ecrã de computador. Desde o visual até ao som, tentamos concretizar uma experiência mais imersiva que o assistir num computador, rodeado por infinitas distrações. No geral, o Cinema e o VOD são formatos diferentes e por isso, contraem linguagens divergentes. Para a FILMIN, este filme tem que correr bem para que a distribuidora possa continuar a lançar as suas apostas em grande sala e restringir o VOD ao pós-lançamento, uma espécie de proteção às estreias cinematográficas.

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Sim, em relação a esse pensar no grande ecrã, em “Verão Danado" é evidente esse trabalho sensorial. Apostou muito, sobretudo, na atmosfera do filme.

Quando estava a pensar no filme e a construir a ideia, uma das perguntas que sempre colocava era qual a validade disto em grande. Existe sempre uma sensação oposta de ver um grande plano num grande ecrã e um grande plano num pequeno. O Cinema é um formato muito específico, dá-te a oportunidade de explorar ‘coisas’ que, por exemplo, em vídeo não são possíveis. Quando estava a filmar “Verão Danado”, refletia constantemente na sensação de que determinada cena ficaria em grande. Houve uma tentativa de distanciar este filme noutro formato, por isso requisitou-se um cuidado especial com as sequências de “festas”, porque eram sobretudo estas cenas que imaginava serem importantes a níveis imersivos para a experiência do filme, apesar de todo ele ter sido pensado para o grande ecrã. A sala de cinema é uma espécie de aquário. 

Mesmo que a tela seja a barreira física, o nosso espírito é absorvido para esse meio, tudo graças a esse efeito-aquário do Cinema e do som que ecoa por toda a sala, literalmente, a envolver-nos. Depois, o filme aposta em sensações muito primárias, relembro a festa em que o nosso protagonista experimenta MD pela primeira vez. A festa torna-se assim, algo quase equiparado a uma orgia, e nesse tempo, o fascínio pelas luzes, pelo psicadélico, pela construção de uma atmosfera, adereça-nos. Isso foi pensado para servir igualmente de uma experiência coletiva para com os espectadores, emocionalmente da mesma maneira que as personagens da tela.

Mas é verdade que o filme arranca com um retrato rural, quase como um engodo. O Pedro tentou enganar o espetador dando-lhe a sensação de “eis mais um retrato da nossa portugalidade” para depois passar a um jogo de estéticas de um mundo marginalmente festeiro e jovial.

Em relação ao início do filme, aqueles são na realidade os meus avós e a minha terra natal. Portanto nós acabamos sempre por filmar o que nos apaixona. E eu sou uma pessoa apaixonada pelos meus avós, assim como também sou apaixonado pelo sítio de onde vim, do sítio de onde cresci e isso para mim faz parte do meu imaginário como realizador. Assim como o cinema é uma oportunidade de mostrar ao mundo aquilo que te fascina, o que te faz apaixonar.

Outra vertente deste começo no rural para depois a ação deslocar-se para Lisboa, foi obtida para conseguir especificar a perspetiva do filme. A perspetiva de quem é de fora da capital, alguém “marginal” que integra esse quotidiano lisboeta. É um contraste de culturas, e o nosso protagonista encontra em Lisboa todo um rol de experiências novas, que não eram possíveis na sua terra natal. Nesse sentido, o filme consegue criar uma empatia com muitos que passaram, ou que passam pelo mesmo, gente de fora que chega a Lisboa e que se depara com uma dinâmica diferente, uma energia não sentida anteriormente, um meio underground, a multiculturalidade, uma descoberta.

Criei o “Verão Danado” como uma escadaria ao apogeu folião de Lisboa. Arrancamos na ruralidade, para a seguir penetrar num mero jogo de football a decorrer na Mouraria. Até dar-mos com uma sucessão de festas, festas e festas, um novo mundo que se abre gradualmente e nos prende a esse magnetismo.

Mas no meio desses festejos e trips, tenta expor um pouco a situação de muitos, mas muitos jovens de hoje. A vida pós-licenciatura, a dificuldade de não conseguir um emprego à imagem daquilo que passou anos e anos a estudar. Existe uma certa frustração entrelinhas neste filme celebrativo?

Sim, diria que o filme tem um lado de frustração. O dos jovens recém-licenciados não conseguirem arranjar trabalho pelo qual estudaram anos a fio, e por um lado esse problema advém da pressão que os pais cometem para que os seus filhos sejam, sobretudo, licenciados. Existe uma ideia de credibilidade numa licenciatura, como um papel que garanta ofícios, e os pais acreditam solenemente nisso e por isso temos imensos jovens a tirarem cursos, mais para poderem satisfazer as inseguranças dos seus progenitores do que propriamente pelas respetivas necessidades. Muitos deles são iludidos com essa ideia e chegam a Lisboa, por exemplo, forçados a tirarem esses cursos, o que motiva, durante o seu processo, um desinteresse e uma referida frustração no pós, quando estes se apercebem do quão difícil é arranjar trabalho.

Mas eu não queria verdadeiramente focar nisso, não pretendia um filme moralista de jovens martirológicos que não conseguem emprego e que porventura “bateriam com a cabeça nas paredes”. Quis sobretudo pegar nesse conceito e retirar esses lados morais, e substituí-los por um certo desleixo hedonista. Quis filmar jovens a divertirem-se, sem pensar no amanhã, evitar aquele rótulo de “geração à rasca” e de coitadinhos, até porque nunca iria tratar os meus personagens, de que tanto gosto, como “coitadinhos”. Soa como uma filosofia superficial, mas tendo em encontrar nessa superficialidade algo mais profundo, com base em sensações e experimentações primárias. De certa forma, vejo todo este mundo profissional e esta constante despreocupação dos jovens em não conseguirem arranjar um emprego enquadrado nos seus estudos, não como uma coisa alarmante, mas como um pedaço das suas jovialidades. Encaro todo este conceito como um descendente daquela temática do Vasco Santana e as suas tias em “A Canção de Lisboa”.

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Em entrevista com Pedro Cabeleira / Foto.: Mafalda Martins

É verdade que esta produção obteve um orçamento quase inexistente, e foi graças a essas limitações que “Verão Danado” tornou-se um filme mais instintivo do que subjugado a um argumento ditatorial, um como o cinema dos irmãos Safdie? Quer falar sobre essas atribuições durante a produção e rodagem do filme?

Se o filme tivesse um orçamento realista, vamos supor uns 300 mil, mas como a produção só dispôs de mil euros… bem. O que aconteceu verdadeiramente foi o seguinte: depois de terminar o curso sabia perfeitamente que teria algumas ajudas na execução de uma primeira obra, e o dinheiro conseguido com o orçamento serviu sobretudo para pagar algumas despesas extras, tais como o transporte, a alimentação dos atores, etc. “Verão Danado” foi ajudado em muitas outras formas, não a nível monetário, ou seja, tudo foi concretizado muito a nível de favores até porque os atores não estavam a ser pagos, o material foi a escola que emprestou, os décors também foram todos emprestados, a câmara pertencia a um amigo meu, basicamente foi tudo favores atrás de favores.

Quando sabes que estás a trabalhar sobre estes métodos de produção, tens que estar de mente aberta para saberes que te vais deparar com algumas fragilidades, ou seja, por qualquer momento há um décor que não pode ser filmado, um amigo que afinal não pode emprestar o material, ou um ator que à última hora não pôde aparecer. Não podíamos ter um argumento fechado, porque se tivéssemos, a produção seria uma ruína devido a estes contratempos e bloqueios. O filme tinha essa abertura, que facilmente nos levaria a  resolver essas fragilidades através de soluções criativas. E ao ter um filme assim, tínhamos espaço para sermos espontâneos, para improvisarmos, e eu ouvia os atores e o resto da equipa, estava perfeitamente ciente de qualquer mudança, ou ideia, porque acima de tudo queria realizar um filme com que as personagens dessem a entender que habitavam e coabitavam em Lisboa. Isso também só poderia ser possível tendo um elenco jovem. Mas apesar da experiência, eu não voltaria a trabalhar nestes moldes, também desejo uma produção mais contida [risos].

Em relação a influências? Houve quem apontasse veias de Gaspar Noé no seu trabalho.

Influências diretas não tive. Quando fiz este filme, tentei desligar-me de tudo o poderia soar a influências, e tentei filmar como um amador, até porque não queria começar a minha carreira com vícios de enquadramentos. Queria acima de tudo filmar sem uma planificação formal. Era importante para mim desviar-me do academismo escolar, daquela linha estética, posso gostar ou não, mas queria ter a certeza que ao filmar deste jeito, quase amador, poderia surgir dali o verdadeiro “eu”, aquilo que realmente sou enquanto realizador. Estava disposto a conhecer esse meu lado criativo.

Poderá ter saído algum ou outro lado muito semelhante a Gaspar Noé, nada contra, até gosto dele enquanto realizador, mas no meu subconsciente poderá ter sido possível, até porque ele trabalha muito bem esse ambiente de festa, essa atmosfera no qual tentei trazer para o filme. Mas no geral não queria utilizar referências, queria uma forma pura, e quando estás a filmar como um amador estás a descobrir-te. Poderia ter saído mal, mas eram essas as minhas pretensões. Filmas isso e filmas em excesso e é então que na sala de montagem inicias a tua auto-descoberta e deparas-te com o realizador dentro de ti. E este filme foi isso, a minha descoberta.

Em relação às influências, conscientemente não usei nenhuma cinematográfica, mas utilizei referências literárias que eram o David Foster Wallace e o Pincher. Estes escritores usavam um leque variadíssimo de personagens, imensos gags, faziam espécies de comédias de costumes ao mesmo tempo que possuíam uma veia hiper-realista. David Foster Wallace por exemplo, falava do quotidiano de forma bela, e eu seguindo os seus passos, queria abordar com beleza o contemporâneo que hoje em cinema, é quase escasso. Tentei atribuir um lado estético a esta Lisboa, mantendo-me fora do cartaz turístico. Queria embelezar este quotidiano, estes seus personagens fúteis. Tal como o Foster Wallace e Pincher, tentei abordar esta comunidade, porém, não me sujeitando ao papel de crítico, ao invés disso, honrando-a.

Outra pretensão minha era a de criar um filme coral, não restringindo o filme a um punhado de personagens. É por isso que temos o Chico, que é um protagonista que não se impõe, que se deixa absorver pelos outros, pelo seu redor, por esta minha Lisboa. No fundo este seu redor acaba por tirar-lhe o protagonismo e atribuir ao filme um lado muito geracional. Mas a minha intenção não era fazer um retrato geracional, não era fazer um filme sobre a minha geração, era esse sentido coral que queria, e talvez esse efeito tocasse em inúmeros pontos que o transformariam num retrato dessa natureza.

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Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

Em relação a estas novas polémicas do ICA, o qual tem sido apontado como um impasse para muitos jovens realizadores. O que tem a declarar sobre o assunto?

Relativamente ao ICA, isso é uma conversa com “panos para mangas” e não vou tomar nenhuma posição política até porque este filme contou com financiamento do mesmo. O que posso dizer sobre o ICA é que o apoio à finalização foi crucial para conseguir acabar o filme. E em relação a esses tipos de apoio, julgo serem dos apoios mais justos, porque simplesmente não ligam a currículos, nem nada que apareça. Ou seja, o meu currículo não estava a ser avaliado, apenas o meu projeto, etc. Acontece é que o ICA sempre será um sistema falacioso, por mais que se tente lutar contra ou alterar as suas normas, as regras, as alinhas, ou o que quer que seja. O ICA será sempre e continuará a ser esse sistema falacioso. Percebo perfeitamente que não são apenas os mais jovens a fazerem filmes, os mais velhos também fazem e todos querem fazer, e todos eles precisam de dinheiro para o fazerem.

O que acontece é que se eu mudar alguma regra do ICA estarei sempre a puxar a “brasa à minha sardinha” e isso é  entrar em rutura com alguém que esteja numa diferente posição da minha. E eles tentarão mudar as regras também de forma a “puxar a sua sardinha”, sistematicamente. Se alterares uma alinha, estarás sempre a prejudicar alguém de certeza, e a beneficiar outro alguém. Para o bem de todos, tens que jogar esse jogo e sujeitas-te àquilo que o jogo te dá. Por exemplo, existe essa polémica de que não se devia contar os currículos dos produtores e somente os dos realizadores, mas vamos supor que alguém de mais de 60 anos com um número x de filmes, alguns estreados em festivais de nome como Cannes e que fez um n número de espectadores, seja inserido nessa avaliação de currículos de realizador. Logo a média é boa, e eu, sendo um jovem ainda na casa dos 20 com uma longa a estrear em Locarno e ainda não tenho nenhum número definido de espectadores, seria benéfico estar associado a um produtor de um currículo extenso. Caso contrário, não cumpriria a devida média.

É difícil, porque o ICA está a tentar objetivar coisas subjetivas. Tenta objetivar ideias, atribuir parâmetros para avaliar essas mesmas, quando estas são avaliadas de uma forma subjetiva. As pessoas identificam-se com os filmes de formas diferentes. Claro, o que se discute hoje é a SECA, as escolhas de júris, entre os quais, muitos deles estão ligados a distribuidoras como a NOS, etc. Esta novela da ICA não sairá daqui, e a única solução é procurar alternativas, nem que seja discutir estes assuntos no Parlamento. Mas eu não quero tomar uma posição política, porque hoje em dia vivemos numa aldeia global e existem muitos lados aonde podemos ir buscar financiamento. Para mim a luta do ICA é uma luta muito pequena e sinceramente não é algo que valha a pena. O nosso país é demasiado pequeno para nos concentrarmos neste tipo de conflitos.

Para terminar, tem alguns novos projetos?

Filmar um filme na minha terra, no Entroncamento, mas não quero abrir muito sobre ele, porque não quero criar expectativas para o caso de não conseguir cumprir o objetivo. Mas pretendo fazer um filme sobre as pessoas que ficaram lá.

Há que "repescar" a sequela maldita.

Hugo Gomes, 02.08.17

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A heresia das heresias … uma impensável sequela de “Psycho” em plena década de 80, aquela que viria ser definida como os anos de expansão do slasher movie, e sabendo que Hitchcock já nos havia deixado “há tempos”, camuflar uma das suas obras-chaves num arquétipo do popular subgénero de horror … era por si um anúncio aterrorizante. 23 foram os anos passados desde a sequência terrífica no chuveiro, aquele ataque cortante a Janet Leigh que o Cinema nunca mais esqueceu, que por sua vez abre esta continuação, uma “entrada em grande” ao “fantástico mundo de Norman Bates”, o psicopata que se instalou como um pioneiro do seu próprio modelo.

Com Anthony Perkins retornado ao seu papel mais célebre, Bates é aqui um “homem novo”, reabilitado após 20 anos de tratamento num hospital psiquiátrico. Segundo a opinião médica, o psycho está pronto para o exterior, mas o mundo que conhecera, alterou efetivamente em duas décadas. Violento, luxurioso e obscuro, esta sociedade transformou-se psiquiatricamente mais atormentada que o nosso “antagonista”. Este retrato quase geracional faz ponte com um curioso thriller de Richard Fleischer, “See No Evil” (1971), cuja abertura impele no espectador uma maligna presença que parece aguardar em cada esquina, a violência abraçada pelo Mundo em perfeita dicotomia – venerar como julgar – e um dos seus “filhos” a percorrer essas ruas da “amargura” com uma sede sanguinária.

Em “Psycho II”, as tentações encontram-se também elas em cada recanto à mercê de serem consumadas, mas Norman Bates resiste a essa influência, a esse vórtice anárquico. Ao contrário de muitos dos seus congéneres, o espectador não pretende ser cúmplice dos mais sanguinários atos. Ao invés disso, desejamos que Bates permaneça fora desses devaneios tão tentadores. Nesse sentido, Psycho II é uma contra-natura da própria expansão em que poderia previsivelmente inserir-se. É um caminho tormentoso que espelha uma sociedade perto da violência e que anseia estar longe dela, assim como a mente de Bates que constantemente cede aos vícios do seu profundo “eu”.

Para além de Perkins no seu precioso papel, existe outro retorno, o da atriz Vera Miles, a antiga “heroína” agora convertida numa obcecada vigilante, o outro lado do duelo de “forças” a ser motivado por esse constante enraizamento da brutalidade social, desafiando os antigos parâmetros morais que estariam bem presente na obra de 60. Por sua vez, Hitchcock mantém-se presente, obviamente não como o realizador, mas o seu espírito quase incontornável parece vingar-se na conceção deste projeto. O então realizador, Richard Franklin, apercebeu-se do peso do legado, descartando a reinvenção, e render-se a “tiques” deixados pelo mestre ao serviço de apoio estilístico a um filme que, por forças obscuras, fantasia em emancipar-se.

Segundo Quentin Tarantino, a sequela é superior ao tão referenciado clássico. Confirmar tal afirmação soa a atentado, mas é bem verdade que com este segundo filme, tendo a consciência do impensável, existe uma aposta em deslocar as personagens para a modernidade, ao invés da ação. Eis um estudo, uma obra sacrificada pela maldição da “sequelite”; porém, a merecer a redescoberta o quanto antes, mesmo sendo vítima do esperado whodunit que marca com toda a força o cinema de “facaria” da década de 80. Passaram-se 33 anos, ainda continua a ser incompreendido … por quanto tempo?

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