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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um dia foi "Ben-Hur"

Hugo Gomes, 31.08.16

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Ben-Hur (Timur Bekmambetov, 2016)

Não, de maneira nenhuma precisaríamos de outra versão cinematográfica de "Ben-Hur", a história ficcional cruzada com um dos mais importantes capítulos bíblicos, mas visto que temos que “gramar” com mais um … cá vamos então! Tudo começou com um livro escrito pelo devoto General Lew Wallace que chegou ao grande ecrã, pela primeira vez, em 1925. Durante o espaço (desde a sua criação literária a este “embrião” de épico que assistimos em 2016), surgiu a epopeia de 1959, um colosso filme de William Wyler que revelou-se numa mostra de grandeza de uma Hollywood agregada a majors e produções sem precedentes. 

Protagonizado por Charlton Heston, que viria a tornar-se no galã de épicos de longo fôlego, esse “Ben-Hur” fez História dentro do circuito cinematográfico da altura, arrecadou uns impressionantes 11 Óscares, um feito que seria mais tarde “batido” por James Cameron e o seu trágico naufrágio ao som de Celine Dion. Obviamente que este novo “Ben-Hur” não irá triunfar com a mesma dezena de estatuetas (uma piada fácil que fora optada pela imprensa norte-americana), porém, seria de esperar um outro tipo de tratamento em relação às tão famosas adaptações. 

Sim, heresias à parte, este equívoco de Timur Bekmambetov é o mais tolerável das versões cinematográficas por um simples facto – é em comparação com os outros três o menos evangélico, cristalizado, e o mais ambíguo no que requer ao retrato “demonizado” dos romanos, os perfeitos antagonistas e … pagãos, como é referido no filme de 1925. Claramente, que essa faceta “humanitária” deriva de um século (hoje vivido), em que questionamos e pensamos sobre o fundamento da religião e das ideologias dos de crença oposta. Nesse termo, são pequenas as provocações (tal como sucedera em “Exodus”, de Ridley Scott), mas é evidente que esta tentativa de afastar-se o quanto possível do cristianismo intolerante das obras anteriores é, não um feito, mas um esforço que faz com que “Ben-Hur” seja readaptado às mais diferentes audiências. Aliás, esse vetor de pensamento é evidente no, por fim, vislumbre de Jesus Cristo (aqui interpretado por Rodrigo Santoro), uma figura ocultada pelas produções anteriores porque simplesmente seria blasfémia atribuir uma cara ao Nazareno em uma história ficcional do século passado. 

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Ben-Hur: A Tale of the Christ (Fred Niblo, 1925)

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Ben-Hur (William Wyler, 1959)

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Ben-Hur (Timur Bekmambetov, 2016)

Todavia, vamos ser sinceros, mesmo que fraudulento e movido com a maior das preguiças (a edição é uma lástima), este “Ben-Hur” ganha aos pontos à adorada versão Wyler pela naturalidade (ou pela aproximação) nos desempenhos. Afastando-se do exagero overacting, e do charlatão Charlton Heston. Mas perde, novamente na comparação, no ponto menos improvável – qualidade de produção – “Ben-Hur” de 1959 continua imbatível nesses termos; numa realização orgânica, uma edição monstruosa e quase sem falhas (a corrida continua, depois destes anos todos, no auge da ação cinematográfica) e os cenários construídos que atribuem uma textura impressionável. Agora, com o de 2016, face aos avanços tecnológicos, temos um produto estival, demasiado corriqueiros e igualmente desastrado. Quanto à famosa e mortal corrida no coliseu … nada a fazer … uma sequência “engasgada” onde ninguém parece perceber bem o quê. 

Certamente, não iríamos apostar num “novo clássico”, mas o filme de Timur Bekmambetov não deixa dúvidas – o épico morreu em Hollywood – e ninguém parece importar com qualidade produtivas (atualmente o único a operar efetivamente em grandes produções hollywoodianas é Christopher Nolan, fica a provocação). Uma afronta para atores (Toby Kebbell condenado a outro “flop” de Verão), aos envolvidos (penso que ninguém se orgulhará proclamar que fez parte da produção) e ao público que cresceu a “venerar” a versão de William Wyler e que encontra aqui um tremendo e prolongado videoclipe narrado por Morgan Freeman. Ah! Já me ia esquecendo, quanto à evangelização, este “Ben-Hur” tem outro ponto contra, possui o final mais moralmente “tosco” das mencionadas três versões.

Richard … já estou a caminho!

Hugo Gomes, 29.08.16

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Gene Wilder e Richard Pryor em "Stir Crazy" (Sidney Poitier, 1980)

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Blazing Saddles (Mel Brooks, 1974)

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Young Frankenstein (Mel Brooks, 1974)

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Willy Wonka & the Chocolate Factory (Mel Stuart, 1971)

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See No Evil, Hear No Evil (Arthur Hiller, 1989)

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Gene Wilder e Kelly LeBrock em "The Woman in Red" (Gene Wilder, 1984)

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Gene Wilder e Zero Mostel em "The Producers" (Mel Brooks, 1967)

 

Gene Wilder (1933 - 2016)

Fomos soldados ...

Hugo Gomes, 24.08.16

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Sei que existe o senso colonialista dentro de nós, mas este não é um filme colonial, nem sequer de guerra. É um romance à distância, a da condição do soldado confinado à sua própria solidão, aquela prisão invisível induzido por politicas de outros. É a extrema luta de manter sóbrio perante um mundo bêbado que nos assiste. Obrigado Ivo M. Ferreira, conseguiste despertar em mim os meus anteriores sentimentos de soldado, não uma máquina implacável de guerra, mas um homem "barricado" nos seus pensamentos, na saudade de uma outra vida que não seja aquela, mesmo sabendo que pouco sabemos como vivê-la.

Terá sido a crítica injusta para "Suicide Squad"?

Hugo Gomes, 07.08.16

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Jared Leto em "Suicide Squad" (David Ayer, 2016)

 

Atenção: a crónica que segue não deve ser vista como uma defesa ou ataque ao filme “Suicide Squad”.

Mais uma vez, a imprensa norte-americana não ficou impressionada com outro arranque da DC Comics no seu expansivo universo cinematográfico. Um pouco por todo lado fala-se e reflecte-se sobre uma eventual "campanha negra" que parece condenar Suicide Squad e os seus congéneres.

Nessas provas confirmamos desde os incontáveis artigos que prevêem um fim de um franchise (dias antes da estreia do filme em salas) até às críticas de teor difamatório que dão a entender que o filme de David Ayer é um dos piores (se não o pior) do seu género. Por outro lado, a histeria em massa deu resultado a uma petição para acabar com a Rotten Tomatoes, o site agregador de críticas, tendo em conta a negatividade que o Esquadrão e o anterior “Batman V Superman” obtiveram no meio crítico. Dentro dessa mesma "paranóia", assim por dizer, deparamos com uma teoria da conspiração de que a Marvel Studios em coligação com a Disney tem pago e manipulado a própria crítica de forma a causar um apelativo hype pós-estreia. Antes de avançarmos com teorias, histerias e julgamentos quanto ao filme, devo salientar um verdadeiro problema em todo este cenário, chama-se críticos, ou neste caso a falta deles. 

Primeiro, o que é um crítico de cinema? Um crítico é uma pessoa especializada para analisar, idealizar, debater e teorizar sobre cinema. Uma definição justa que o leitor deve aperceber, mas o que significa realmente tudo isso? A arte da crítica, antes de mais, não serve simplesmente para dizer se o filme em causa é bom, ou não é bom, o crítico deve se estabelecer como um guia, não no sentido de aconselhar o espectador o filme que deve ou não ver, mas o de apresentar as ferramentas necessárias para um eventual debate com o filme. Trata-se da ligação do espectador com o filme, o lançamento de questões, provocações e o incentivo da cinefilia envolta. Não é apenas um jogo de estrelas, sabendo que as estrelas, por sua vez, são atrativas, adereços quase inseparáveis do senso comum da crítica.

Aliás, o crítico não deve somente focar no cinema, mas também explorar as outras vertentes que o filme possa indiciar, entre os quais ciências políticas, sociais, psicológicas e emocionais. Existe também uma exploração das outras artes: literatura; pintura; artes plásticas; televisão e até música, sendo possível criar ou recriar ligações entre as mesmas, paralelismos ou simplesmente implementar uma visão "avant-garde" desses meios artísticos.

O crítico não deve ter medo de ousar, de exprimir uma ideia tendo em conta que o mundo aponta para outra. Deve-se sobretudo ser imparcial, directo, intelectual e sempre disposto a entender perspectivas para trabalhar a sua própria ideologia. Reavaliar trabalhos e sempre conduzir um olhar por entre os tempos, assim como possuir um paladar diversificado do gosto cinematográfico. Isto é a definição clara e simplista de um crítico profissional, alguém que respira cinema e que faz desse ar uma linguagem audível e perceptível.

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Roger Ebert

Agora o que um crítico nunca pode fazer é acorrentar-se a um sistema de avaliação consoante o seu mero júbilo, o seu prazer sem razão crítica. Infelizmente, é isso que temos evidenciado nessa "mão cheia de profissionais", muitos daqueles que criticaram “Suicide Squad” usaram o argumento de "not fun" sem qualquer fundamento para ir mais além… Como se isso resumisse a uma crítica e como se o entretenimento fosse a razão crucial para existir o cinema.

Os EUA têm essa tendência, uma escola que fora valorizada com a fama crescente de Roger Ebert, um crítico que se seguia sobretudo pelos seus padrões morais e pelo polegar, e cujo seu modo de operação conquistou verdadeiramente as massas. Há sim, com isto, um medo de serem complexos, o de pensarem sobre as imagens, um receio sobretudo de analisar, e nessa fobia, a de afastar da perceção e emotividade com o público. Como funciona este formato de crítica norte-americana? Uma preocupação extrema com os gostos do próprio público. Ebert, por exemplo, tinha sempre notas de quais os filmes que as crianças ou mais novos DEVEM ou não ver. Ou seja, um filme apto para um grande número de audiências era por si, à partida, um grande filme para inúmeros críticos norte-americanos que enchiam manchetes de colunas de jornais com expressões como "a fun ride" ou "two thumbs up"

Raramente saem da camada, dificilmente aprofundam a questão e, claro, evitam os case studies. É apenas a opinião do momento, que não terá grandes efeitos para o posteriori, que não edificam os filmes, nem os descrevem sobre filosofia cinematográfica. Existe uma maior preocupação em criar chamariz do que propriamente trabalhar em teses, o de enfrentar principalmente a "chuva de opiniões" que a internet suscitou. Claro que poderei estar a generalizar! Dentro desse seio "surpreendentemente" valorizado, há exemplos que se destacam, mas quando se referem a blockbusters e neste caso, super-heróis, existe um evidente clubismo e oportunismo de marketing, visto que em terra de Hollywood, são as majors que comandam. Depois existe a noção de que a crítica move mercados, e gera sucessos de bilheteira (uma ideia errada que tem condicionado a própria opinião crítica).

Quanto à conspiração, a Marvel tem sido "vergonhosamente" beneficiada pela crítica, mas não por "pagamentos ilícitos" nem nada disso e sim pela incompetência, pela falta do olhar crítico e sobretudo pela natureza destes "profissionais" o qual são enviados aos visionamentos de imprensa. A verdade, é que os critérios utilizados nos filmes da DC não tem sido os mesmos para os da sua concorrente, a prova disso é o de ignorar o formulaico sistema de industrialização (fórmulas podem fazer um filme, mas nunca Cinema), o argumento fraco e ilógico de “Civil War” (por exemplo), assim como as suas perversas ideologias políticas. Infelizmente, isso foi deixado de parte por essa suposta "comunidade pensante". No fundo, muitos deles [críticos] não passam de wannabes que estão num cargo equivocadamente, limitados a uma visão cada vez mais refém da própria industrialização e da massificação da internet.

Agora, a importância dada pelo mesmo público a este tipo de críticas tem sido, também ele, um absoluto exagero. A crítica não deve ser vista como uma voz imperativa, mas sim como um incentivo a um debate. Se um crítico mencionar “Suicide Squad” como o pior filme de sempre, há que aprofundar os seus argumentos, entendê-los e seguir a sua perspectiva para perceber a nossa. Por vezes ao entrarmos na "pele" de um outro advogado podemos aperfeiçoar o nosso ponto-de-vista. Se um crítico aclama que “Suicide Squad” é o melhor filme do Mundo, os mesmos processos acima referidos devem ser feitos.

O Cinema é moldável, e como tal a nossa perspectiva, o nosso argumento, e a nossa visão cinematográfica. Aliás, até mesmo os Cahiers du Cinéma tiveram que se desculpar por não terem apercebido a tempo do génio de John Ford. Por outras palavras, nem os críticos são perfeitos.

Hollywood para toda a velocidade para Bollywood

Hugo Gomes, 01.08.16

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Furious 7 (James Wan, 2015)

Era uma vez …

Estamos em 2015, depois de uma tresanda de anúncios e trailers dos próximos “filmes-fenómenos”, chega por fim o nosso filme. Para muitos dos que partilham a sala de cinema comigo, este é o mais esperado do ano, quiçá em anos. Sala bem composta onde o público marcava presença através de sussurros, conversas alheias, gargalhadas ocasionais e vozes que se confundiam com o ambiente em que se vivia, porém, o silêncio toma forma no preciso momento em que o nosso filme arranca.

Depois de um prelúdio onde nos é apresentado o “vilão de serviço”, Jason Statham ocupando o tempo do espectador com o seu monólogo protector, somos amparados com os créditos iniciais até estes desvanecerem na estrada com a passagem de um 1970 Plymouth Barracuda, dentro desse veículo duas das mais amadas personagens do nosso público dão entrada, “estão bem vivinhos da silva” pensam alguns. Michelle Rodriguez parece confusa nesta sequência “Come on Dom so where are you taking me?”, Vin Diesel no lugar do condutor responde com uma frase pseudo-profunda, uma filosofia de camionista que se enquadra como uma declaração de amor pela vida existente “They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”.

Bem, pela descrição já podem adivinhar qual é o filme em questão, no caso de não reconhecerem, eu passo então a explicar. Trata-se de “Furious 7”, que por cá sob o título de “Velocidade Furiosa 7”, o sétimo capítulo de um franchise que tem conquistado milhões e milhões de fãs. O vórtice desse sucesso é um cocktail de elementos que tanto agradam o grande público, “good-looking guys”, heróis maçudos e viris, mulheres esculturais com roupas reduzidas, sequências de acção que incluem perseguições automobilísticas e combates corpo-a-corpo, assim como uma ciência envolto de automóveis personificados e de topo de gama.

Sim, a fórmula é vencedora, os atores contribuem para isso, muitos deles cumprindo o check-in com somente as respectivas presenças e os realizadores, meros artesãos ao serviço de um grande estúdio, tentam a custo ter “mão” numa industrialização em série. Os objetivos estão definidos, “Furious 7” não é uma obra intimista, experimental, nem aspirando ser mais do que um “arrasa-quarteirões” (blockbuster), é em todo o caso, e não querendo reduzir o conceito de cinema em “castas”, um filme de povo, um entretenimento popular. Hollywood está mais que habituado em criar esse tipo de produções, “crowd pleaser" assim chamados, mas não é o único a fazê-lo.

Sendo óbvio que todas as produções locais e nacionais têm os seus sucessos de bilheteiras e as suas fórmulas triunfantes (relembramos que em Portugal “coisas” como “Crime do Padre Amaro” e “Pátio das Cantigas” detém o recorde de espectadores), apenas um mercado cinematográfico é capaz de rivalizar, e em certos casos superar, em número o comércio de Hollywood. Trata-se de Bollywood, cujo “B” não é silencioso, mas é referente a Bombaim (oficialmente Mumbai), a maior e mais importante cidade da Índia, a “terra dos sonhos” para grande parte da população indiana, onde todos os anos milhares de produções são lançadas tendo como grande objectivo atingir o público e "amealhar" os seus quinhões de rupias.

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Furious 7 (2015)

É um tipo de cinema hoje atribuído ao maneirismo, ao senso comum que lhe cataloga num profundo estereótipo, numa receita que parece hoje estar presente na moda até mesmo na nossa própria cultura: um rapaz, uma rapariga e uma árvore o qual serve de cenário para um evento de dança. Essa descrição tem sido mais que suficiente para que os amantes de cinema mais ocidental (e mesmo oriental) evitem o contacto para com esta indústria de sucesso, porém, ainda pouco explorada. Mas existe uma razão para esta invocação e ainda mais o paralelismo entre o último “Velocidade Furiosa” e as modernas produções bollywoodescas. Como diria Miguel Gomes na sua trilogia “Mil e uma Noites”, “ou existe paralelismo, ou é puramente abstracto". Mas o abstracto é algo dado a vertigens“. Para entendermos a relação entre estes dois pontos, devemos regressar aos primórdios do cinema, em alturas em que a Sétima Arte dava os seus primeiros passos e que a Índia desafiada por este novo “diamante bruto“, explora uma plataforma a fim de reivindicá-la como sua.

Ao contrário do que se possa julgar, a Índia foi um dos primeiros países a obter contacto com o engenho dos irmãos Lumière (em 1896). Tecnicamente, não era um país absoluto nessa altura, mas sim uma colónia inglesa, um facto que levou o subcontinente a produzir excertos fílmicos aos estilos dos primeiros ensaios da dupla criadora primeiro que muitos outros locais. O primeiro fragmento cinematográfico puramente indiano surgiu em 1899 com “The Wrestlers”, a filmagem de um combate de wrestling local. Todavia, só em 1913 chega a primeira longa-metragem, o início do Bollywood propriamente dito, com o mudo “Raja Harishchandra” (realizado por Dadasaheb Phalke), atualmente perdido.

Eram filmes populares que seguiam de acordo com o agrado do público, compondo dramas familiares vinculados por uma Índia tradicional e religiosa. Assim, as produções tornaram-se cada vez mais abundantes, até que em 1930 chegaram a ser filmados mais de 200 filmes por ano, mas existia uma ausência nestas populares histórias de grande ecrã, algo que evitava uma entrada na verídica alma desses seres bailantes – a voz. Em ’31, Bollywood aprende a cantar com Alam Ara (de Ardeshir Irani), a popularidade levou as autoridades a conterem as multidões em certas regiões e a partir daí seguiram ciclos que fermentavam ainda mais fama deste cinema, assim como a vanglória da exacta indústria.

Na década de 40, a tendência cinematográfica de Bombaim propaga-se para as regiões de Tamil, Telugu e Kannada, convertendo o cinema indiano numa arte polivalente, poliglota (detendo várias línguas e dialectos), assim como culturalmente diversificada (tendo em conta a cultura interior das suas respectivas religiões). Mesmo apresentado com histórias e intrigas popularmente identificáveis com a sua população, Bollywood teve que procurar influências para erguer-se de maneira pujante, e esses mesmos teores vieram de Hollywood, nomeadamente os seus musicais dos anos 20 e 30, das suas estrelas e claro do próprio modelo de star system. O cinema indiano replicou a sua Hollywood.

Contudo, a década 50 foi bem mais complicada e crucial para a Índia, mas os resultados foram satisfatórios. Com a luta pela independência, Bollywood revitalizou-se, ficou mais forte e firme no comércio local como global, a chamada Idade de Ouro desta indústria e nota-se que nesse momento Hollywood vai perdendo a sua pujança, o seu brilho e a sua credibilidade. É também neste período que entra em cena os autores; Adoor Gopalakrishnan, Ritwik Ghatak, Aravindan, Satyajit Ray, Shaji Karun, que contribuíram para a fama e de alguma “dignidade cinéfila” do cinema indiano no resto do Mundo. Duas décadas depois, à imagem do que sucedia nos EUA, Bollywood “contrata” os seus filmes violentos, predominando a temática dos gangsters e outros anti-heróis, como forma de desafiar e contornar a censura estabelecida na indústria desde os anos 30.

Os anos 90, os dramas familiares dominam as apostas cinematográficas na Índia, o estereótipo é formado: filmes longos, recheados de canções e dança sincronizada, enredos de heróis apaixonados por raparigas prometidas, vilões maniqueístas e a árvore como um tremendo símbolo de paz interior e da relação sempre acentuada entre Homem e Natureza. Bollywood praticava esta fórmula no limiar da exaustão, mas tirando os seus maneirismos reconhecíveis, não era de todo um cinema que diferenciasse daquelas cujas inspirações embebeu. Aliás, Bollywood era uma autêntica máquina produtiva de cópias exactas de Hollywood, de forma a não render ao mercado americano e tornar vivo o seu próprio cinema, uma possível essência revolucionária ainda resida da sua “prisão colonial“.

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Pather Panchali / Apu: Song of the Little Road (Satyajit Ray, 1955)

A “infiltração” indiana em terras do Tio Sam!

Porém, foi na passagem para o novo século que o cinema de Bollywood começou a “dar nas vistas” no Ocidente. As imigrações de vários artesãos de Bombaim para Hollywood contagiaram um mercado que parecia inabalável. A partir daí, foi uma ascensão. Na verdade, a própria internet teve também contributo na difusão de Bollywood no Mundo:

  • Em 2001, a Índia tem o seu candidato ao Óscar presente entre os nomeados para Melhor Filme Estrangeiro, “Lagaan” (de Ashutosh Gowariker), num ano em que a estatueta “caiu nas mãos” do destemido “No Man’s Land” (“Terra de Ninguém”, Danis Tanovic).
  • Baz Luhrmann dirige “Moulin Rouge!”, um dos últimos grandes êxitos musicais do cinema norte-americano, com claras influências a Bollywood. Basta verificar na forma como a música enquadra-se na ação e sob uma certa independência transpira para fora desta, recriando cenários oníricos invocados no intuito de acentuar as emoções das suas personagens. O caso mais “gritante” é a dança entre Nicole Kidman e Ewan McGregor num espaço rodeado de nébula e uma Paris de miniatura).
  • A visão reconhecivelmente “bollywoodiana” trazida pelo indiano Tarsem Singh, evidente na maioria das suas obras, de “Cell” (“Cela”, 2000) a “Mirror Mirror” (“Espelho Meu, Espelho Meu! Há Alguém Mais Gira do Que Eu?”, 2012). Visualmente enriquecidos, quer em termos cénicos, quer em termos de guarda-roupa.
  • As apropriações culturais no cinema de Hollywood visto em produções como o oscarizado “Slumdog Millionaire” (“Quem quer ser Bilionário?”, 2008), dirigido a meias por Danny Boyle e a “bollywoodesca” Loveleen Tandan. A “peregrinação” de Mira Nair para a “Meca do cinema“, a sua estadia gerou produtos como “Vanity Fair” (“A Feira das Vaidades”, 2004) e “The Namesake” (“O Bom Nome”, 2006).
  • A co-produção entre os EUA e Índia em “Marigold” (de Willard Carroll, 2007), uma homenagem ao cinema de Bollywood que fracassou dando origem a um “branqueamento” de uma Índia fabulista. "Marigold" também serviu de título para o êxito de John Madden em 2011 (“The Exotic Marigold Hotel”) e a sequela de 2015.
  • O crescente sucesso de produções de Bollywood no mercado norte-americano, chegando ao ponto de figurarem no Top 20 do box-office dos EUA.

 

Velocidade Furiosa: uma nova produção bollywoodiana?

Obviamente que todo este fenómeno de influências, alusiva ao eterno retorno de Nietzsche, é uma questão de globalização. Esses efeitos transmitem cada vez mais uma sensação de utopia quanto a referências e marcas culturais como também étnicas. Mas, voltando ao início da questão, os blockbusters norte-americanos que nos dias de hoje vendem milhões de bilhetes em todo o Mundo, muitos deles quebrando invejáveis recordes, falam gradualmente uma língua “bollywoodiana“. O mesmo deparamos com uma Bollywood a citar a veia do seu antípoda. A descoberta do CGI, por exemplo, motivou uma crescente afluência para produções mais arriscadas a nível de conteúdo.

“Velocidade Furiosa 7” não é mais que um arquétipo bollywoodesco construído para público ocidental, a esta altura o leitor deixa escapar um grito de espanto, decidindo recorrer à memória em busca de performances musicais e cantantes entre Vin Diesel e Dwayne “The Rock” Johnson. Pois, o paralelismo invocado não está no evidente, mas sim no seu subliminar íntimo.

A começar pelo mais vistoso, o filme de James Wan tem, sim, momentos de pura musicalidade, não na forma transcendente como os mais clássicos modelos de Bollywood, mas disfarçados na narrativa que intriga e que fielmente segue. Entre eles, a longa sequência de dança emanada em Dubai, pura passagem de folia, contágio sexual e eufórico, ou até a ilícita “race wars” que aparece no início. Nestas específicas cenas, o filme tende em sair da sua própria realidade e interagir com a sua veia video-musical, um pouco como Bollywood faz com as suas personagens que de um momento para outro se vêem envolvidos numa dança que afronta a narrativa linear o qual se “pendurava“.

Como já havia dito, o CGI e o abuso dos stunts são dois elementos constantemente similares com as duas indústrias. Enquanto rimos que nem perdidos da imaginação tresloucada dos profissionais indianos em recriar ação insurgente das regras da física, fiquemos energéticos em seguir sequências idênticas num “Furious 7", como se acreditássemos que os “carros pudessem voar“.

Mas os seus conflitos estão nas suas mensagens, a masculinidade que reina em ambos os lados, no caso do “Velocidade Furiosa” é evidente essa testosterona, o foco que o filme tende em dar a um homoerotismo constantemente desmentido e obviamente o “bromance” que se comporta como combustão para todo o enredo. Tirando o último ponto, o cinema bollywoodiano goza dessa “veneração” ao homem, principalmente ao herói, determinado, justo e aparentemente sem falhas de carácter. Ambos são resultados de um sexismo absorvido e vivido nas respectivas sociedades, relembro que nestes exemplos as personagens femininas são esboços vagos existentes a fim de cumprir as necessidades do messiânico herói (par amoroso, motivo de conflito, leitmotiv, demonstração de maniqueísmo).

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Bãhubali: The Beginning (S.S. Rajamouli, 2015)

O herói tende a ser um “outsider“, porém, revela-se num conservador moralista, no caso do “Velocidade Furiosa”. A personagem de Vin Diesel refere constantemente a criação de uma família, seguindo questões afetivas, ou as exibições de religiosidade, como se tal transmitisse os valores morais e éticos e a abundância do politicamente correto. Em Bollywood, face algumas exceções, é um cinema leve, censurado, cujo herói é o exemplo individual do bem, e tudo vindo dele é justamente o correto modelo a seguir. A religião, como havia referido, é tema recorrente e respeitado no cinema indiano.

Quanto à sexualidade, ambos são sugestivamente provocadores, mas não passam daí, em causa está a moralidade, o conservacionismo e como é óbvio, a censura causada pelos sistemas de avaliação. Os heróis são igualmente pólos atractivos para o sexo feminino, existe uma clara firmeza de que todas as mulheres do filme estão interessadas no protagonista. Contudo, esses mesmos seres heroicos são incuravelmente românticos.    

Por último, o nacionalismo, no caso da produção norte-americana, poderíamos apelidar de patriotismo, e eles não fazem questão de esconder tal teor nas suas obras. Nos filmes de Hollywood, nomeadamente este “Velocidade Furiosa”, todo o Mundo fala inglês, e o resto dele é inserido em estereótipos que automaticamente identificam a sua cultura ou país. Em Bollywood, existe uma sobrevalorização de tudo o que é indiano. Nestas produções, Britânicos e Paquistaneses são por norma “demónios” alicerçados à vilania.

 

Sob o signo da seleção natural!

They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”, a primeira frase de Vin Diesel no êxito de 2015 evidencia os caminhos que Hollywood segue actualmente, e sem querer focar no óbvio, as ideias começam sobretudo a faltar quanto mais a busca por novas linguagens cinematográficas e inovadores dispositivos narrativos. “Who cares“, a Hollywood moderna e recente é vista como um ponto de reciclagem, atenta a concepções e fórmulas que eventualmente surgem neste Mundo fora, Bollywood é só um molde de como é possível transformar algo, por vezes repugnado pelas audiências ocidentais, em “minas de ouro“.

Por outro lado, a popular indústria indiana cresceu à conta dessa “cruzada” pelas referências. Hoje encontra-se de olhos abertos para o seu redor, o mesmo que Hollywood. Pelos vistos os tempos das “ilhas cinéfilas” terminaram há muito.


Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Antoine Lavoisier