Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

My name is Bourne, Jason Bourne

Hugo Gomes, 27.07.16

MV5BMTk2NDU3MzAwNF5BMl5BanBnXkFtZTgwNjE1NjU5NzE@._

Prevejo que aquilo que o leitor pretende realmente saber é se esta quarta estância é ou não o esperado regresso do "velho" Jason Bourne (e não outro esquecível e oportunista spin-off como “The Bourne Legacy”). Com Paul Greengrass de novo detentor da batuta e Matt Damon, o "corpo ao manifesto" de mais uma conspiração global, a resposta é claramente - sim.

Sim, eis o modelo de ação milenar que a saga tão bem apresentou-nos em três bem sucedidos filmes. Até porque em 2002, Doug Liman assinava a adaptação do livro de Robert Ludlum (e remake de uma mini-série televisiva de 1988), tendo um resultado que saiu dos eixos da matéria prima, mas que primou numa vintage sofisticação. “The Bourne Identity” evidenciava de uma acção de realismo formatado, de tons cinzento que depressa o divergia dos embriões da moda “Matrix” que o início do século lançava sem exaustão, e "bebendo fortes golos" dos ditos thrillers conspirativos da década de 70.

A outra razão da dita inovação foi de uma mera questão de timing, Matt Damon, sob a pele de um mortífero homem sem memória, enfrentava os mais diferentes inimigos, todos eles vindos ou fruto das políticas de segurança nacional e da fragilidade do mesmo. Vivíamos em tempos pós-11 de Setembro, o centro daquele vórtice de heróis da "pesada" directos dos 80s e 90s perdeu o seu "quê" de invencibilidade, eram agora um alvo como tantos outros (falo obviamente dos ataques ao Pentágono, que gerou uma alarmante ideia de vulnerabilidade num país que sempre apresentará ideia diferente). Ou seja, sob uma forte atmosfera de medo e paranóia, a estreia de “The Bourne Identity” e a sua recepção foi um meio para despoletar outros ensaios de ação cada vez mais focados neles próprios, por outras palavras, tornaram-se mais ambíguos, críticos e menos dados a maniqueísmos geopolíticos.

A saga “Bourne’” funcionou como uma distorcida variação da Guerra Fria, há quem encontre aqui uma certa veia do “The Manchurian Candidate” e a ferocidade de um Charles Bronson, quer em “Death Wish” ou no subvalorizado “The Mechanic”. Com a vinda de Greengrass à realização e o seu modo de filmagem guerrilheira, tivemos direito a dois dos mais duros e credíveis filmes de ação do nosso tempo (“The Bourne Supremacy” e "The Bourne Ultimatum").

Voltando a este quarto filme, somente intitulado de Jason Bourne, onde o nosso "anti-herói" envolve-se (ou novamente) na intriga que nunca o abandonara desde 2002. O 11 de Setembro e as políticas de medo já lá vão, mas nunca nos abandonaram, por um lado a insegurança mantêm-se, mas existem outras preocupações que o filme Greengrass quer manter-se actualizado, e uma delas chama-se "Caso Snowden". Desde a revelação dos ficheiros da NSA pelo ex-analista de sistemas que uma das grandes questões levantadas pelo Homem em relação à sua gradual dependência da tecnologia é a preservação da privacidade e os jogos orquestrados nas nossas sombras. A informação torna-se no ouro deste novo milénio e nisso "Jason Bourne" consome mais uma vez para embarcar em mais um conjunto de sequências de ação e de neo-espionagem.

A gestação de nove anos deu-nos uma réplica dilacerada pelos habituais lugares-comuns, o filme de Paul Greengrass pode bem ser moderno, mas é repetitivo e a inovação diversas atribuída à saga não encontra lugar em todo este plano global. Porém, aquilo que não se pode acusar neste "Jason Bourne" é de moleza, o filme continua a apresentar-nos um ritmo gratificante, sempre interagindo com o realismo e ampliado por um realização hand-cam de enorme carácter. Depois disto, temos ainda uma Alicia Vikander a roubar qualquer cena em que surge (não percam esta "rapariga" de vista, por favor).

Contudo, existe algo interessante nesta, para muitos, enésima produção de adrenalina: é que Jason Bourne faz até um certo mapeamento da situação europeia através dos seus locais de rodagem. Iniciando com a Islândia, passando pela Grécia (sob motins), chegando à Alemanha e atravessando uma Inglaterra receosa, quatro localidades que traduzem todo um recente historial da velha Europa, o continente em constante metamorfose política, social e económica. Todavia, não estou aqui para dar lições ou debates sobre a nossa vivida actualidade, isso terá que ficar para outro dia!

I know who I am. I remember everything."

9 Anos de Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 25.07.16

CTFQcM5uiQZGdDva4LBtif.jpg

The Big Lebowski (Joel & Ethan Coen, 1998)

Vejam como o tempo corre! São nove, os anos que comemoro de longevidade deste espaço que parece cada vez mais fazer parte do meu “eu”. E como cheguei aqui? Um pouco … bem … não quero mentir … muita da teimosia minha em manter vivo este estaminé, mesmo sob as críticas que recebia, nunca baixei os braços e tudo fiz para mantê-lo o mais profissional possível. A minha paixão cinematográfica, que condiz com o meu lado crítico, aquela minha faceta que gosta de criticar tudo e todos, a minha curiosidade de descobrir e explorar os cantos e recantos. O meu compromisso, a rotina criada, a interação que quero manter. E por fim, um agradecimento a quem acreditou em mim e aos meus assíduos leitores que me acompanham há quase uma década.

Agora o porquê da natureza deste discurso, bem, os dias não têm se tornado mais fáceis, e os anos indiciaram menos empatia a este espaço. Pois, o mundo está a evoluir, a blogosfera está a adaptar-se, é um autêntico campo de vida ou morte. As redes sociais apoderam-se destes espaços e mesmo sob o meu esforço em readaptar o Cinematograficamente Falando … a novas gerações, é difícil em confrontação com o meu “eu primitivo”. Aquele que acredita na cinefilia, cada vez mais abalada e desprezada, aquele que acredita que o lugar dos filmes são nas salas de projecção, na “magia” dos festivais de cinema, na continuação do formato físico de home video e nas tertúlias cinematográficas como grandes poços de sabedoria ou confirmação da nossa.

Estes nove anos foram um tremendo alcance, uma luta para manter este espaço vivo. Porém, terão que acontecer algumas mudanças, mudanças que possam tornar este Cinematograficamente Falando … mais expressivo. A ver vamos.

Contudo, um muito obrigado a todos vós, que me acompanham e que nunca deixaram de o fazer. 

CONFORME SEJA AS VOSSAS ESCOLHAS, BONS FILMES!

Quem tem medo do escuro?

Hugo Gomes, 21.07.16

Lights-Out_Feature.webp

“Lights Out” é mais um exercício de terror sob o modus operandi de um “The Babadook” ou “Mama”, ou seja, a sua base seguiu-se de uma curta, um mecanismo de susto que culminou numa prolongada ideia para uma longa. No caso de “Babadook”, o projeto tinha “pernas” para atingir o seu pico, mas ficou-se pelo interesse inicial, em relação a “Mama”, a sua situação é semelhante a esta criação de David F. Sandberg, os grandes estúdios levaram a melhor e injetaram a sua dose de cobertura mercantil. Mesmo tendo na produção nomes como James Wan (“The Conjuring”) e o Roger Corman do novo século – Jason Blum (atualmente podemos referi-lo como o grande mentor por detrás dos êxitos do díptico “The Conjuring” e “Insidious”) – “Lights Out” é um produto que resiste à sua ideia de medo, infelizmente esticado por subenredos e pelos conflitos emocionais que este tipo de produção tresandam. 

A curta, produzida em 2013, rendia os seus dois minutos de duração com uma sugestão primitiva de medo, a escuridão. Quem tem medo do escuro? A resposta, muitos, mas muitos possuem uma fobia ao turn off das lâmpadas, o desaparecimento da luz, a dominância do escuro, sentimos receio naquilo que se esconde por entre as sombras. Desde o tempo dos homens primitivos que o tememos e é normal, mesmo nos dias de hoje, como homem civilizado, ainda demonstramos esses receios, que em conjunto com a nossa natureza supersticiosa, geram os mais labirínticos medos. 

Sandberg sob um preciso e tão simples ato recriou o choque com o mundo noturno, onde a “escuridão” abraça-nos e nos deixa indefesos. Um jumpscare, assim descrevendo o minimalismo do “Lights Out” original, transformou-se numa autêntica salada de referências vincadas ao moralismo cristão (um indivíduo que ouve música metal é visto como um marginal social e incapaz de tomar responsabilidades), comumente presente nas produções norte-americanas, e nos elementos “apropriados” do J-horror

Tudo funciona de forma disforme, mas o exagero do referido e anterior minimalismo contrai um efeito inesperado, em certas alturas, muitas mais nas réplicas referenciais, “Lights Out” é uma comédia involuntária. E é pena que tal resulta nessa forma, o esforço de “assustar” não desgruda dessa comédia inequivocamente lançada e no desespero dos lugares-comuns. Infelizmente é essa a ordem do dia, até porque existe aqui indícios de transformar “Lights Out”, mais do que mero produto corriqueiro. Como por exemplo, Teresa Palmer é uma protagonista forte, o suficiente para a destacar fora do rótulo de sósia de Kristen Stewart, e a entidade antagonista, ao contrário de muitos que se converteram em ícones do terror, é necessariamente desprezível para que desejamos a sua “aniquilação”.

Porém, esses curiosos elementos não salvam “Lights Out” de ser um valente “apagão” de ideias de terror, é um exercício que se faz e desfaz nos momentos em que as luzes reacendem na sala de projeção. Quem tem medo do escuro? Não com filmes destes.

César Mourão em "A Canção de Lisboa": "Atenção, eu sou um ator e não um comediante"

Hugo Gomes, 15.07.16

98ccc8a01ade9e591b9775659d2e43d978c03fc0.jpg

O Cinematograficamente Falando … falou com o ator César Mourão sobre mais um capítulo da chamada “Trilogia dos Clássicos“, desta vez, e novamente como Vasco Santana, em “A Canção de Lisboa” (Pedro Varela, 2016). Nesta conversa descontraída, Mourão falou sobre o legado do ator que tem “incorporado” no grande ecrã em dois filmes e a sua experiência na comédia e nesta nova versão do clássico dos clássicos portugueses. 

É a segunda vez que desempenha um papel anteriormente interpretado por Vasco Santana. Sente que de certa forma tem sido responsável por carregar o legado do ator?

É impossível ser Vasco Santana, porque simplesmente Vasco Santana é Vasco Santana e ponto final. Apenas faço o trabalho que me pedem da melhor forma possível, é um orgulho interpretar uma personagem já fora desempenhada por Vasco Santana, mas não pode haver comparação. Até porque são duas “coisas” completamente distintas. Se me perguntarem se adorava ter o reconhecimento que o Vasco Santana teve, claro que adorava, mas isso requer muito trabalho, empatia com o público e também sorte.

Então quer dizer que evitou ao máximo “imitar” Vasco Santana?

Sim, a ideia, aliás, era exatamente essa. O objetivo não era fazer uma comparação, não o de imitar Vasco Santana, portanto, foi completamente fugir a esse conceito. 

Os filmes como o clássico “A Canção de Lisboa” são ainda hoje vistos como exemplares respeitados da comédia portuguesa. É difícil fazer comédia em Portugal?

Penso que a comédia em Portugal é bem aceite pelo público. O público gosta da comédia, não só em Portugal, mas como também no resto do Mundo. Atenção, eu sou um ator e não um comediante, trabalho, sim, com  a comédia e felizmente tenho conseguido viver com ela. O que é fantástico, porque é sinal de que o público compra bilhete para ir ver-nos no teatro ou no cinema, ou seja, o público quer realmente ver-nos.

image-w1280.webp

O facto de se declarar como um ator e não um comediante, significa que aceitaria fazer, por exemplo, um papel dramático, ou algo fora daquilo a que o público está habituado a vê-lo?

Claro, adorava. Como já havia referido sou um ator, não um comediante. A minha formação é de ator, por isso apreciaria interpretar qualquer papel em qualquer registo. Por exemplo, em “A Canção de Lisboa”, existem leves toques de algo mais romântico, mais sério, principalmente nas minhas cenas com a Alice [personagem de Luana Martau]. Mas em Portugal, por vezes, ficamos rotulados com uma determinada característica ou interpretação. Mas como ator, cá estou eu para aceitar os desafios. 

Para si, qual é a fórmula de sucesso desta trilogia? Sabendo que o sucesso em "A Canção de Lisboa" ainda é uma incógnita?

Modéstia à parte, acho que este também vai ser um sucesso. Agora, quanto ao êxito, este é resultado de um verdadeiro trabalho por detrás, da dedicação, e tal pode ser verificado neste filme. “A Canção de Lisboa” é um filme sério, digno, que respeita sobretudo o público-alvo, o público que realmente pretendemos atingir. Não é um filme pretensioso, nada disso. É apenas um filme bem escrito, com dedicação e empenho, esse é sim, o segredo do sucesso. O resto é o público gostar ou não.

Se a trilogia se prolongasse para mais um ou outro filme e se esse filme contasse uma personagem anteriormente interpretada por Vasco Santana, aceitaria participar?

Adoraria, desde que o roteiro ou guião fosse do meu agrado, e tudo o que estivesse à volta também for do meu agrado. Obviamente, que fosse também bem tratado. Portanto, desde que eu gosto, porque não …

Quanto a novos projetos?

Não tenho. Mas atenção, é por opção. Tenho a “Commedia a La Carte”, o qual será para o resto da vida, ainda tenho esperanças de começar um espetáculo no Teatro da Trindade. Os meus projetos são feitos no imediato, é aqui que eu estou, é aqui que eu vou, fazendo sempre “coisas” novas. Convites? É esperar por eles e ver o que daí sai. 

Liga dos Cavaleiros Extraordinários

Hugo Gomes, 09.07.16

images-w1280.jpeg

Eis uma obra que coloca à prova a masculinidade, a sua natureza e a razão de tremenda existência. Hoje visto como um forçado sinónimo ao machismo, sexismo ou até homofobia, a masculinidade é um ato de afirmação de um homem perante os outros. O respeito, a dignidade, o exemplo de ser um indivíduo à altura de tal representação, tudo fragmentos que compõem o ego do género masculino. 

“Chevalier” incendeia essa mesma capa, esse estatuto de cobiça alcançável, ao mesmo tempo que atribui o seu quê de misticismo, pois, a masculinidade é um mito, e tais lendas são exorcizadas por Athina Rachel Tsangari. (sim, uma mulher a dirigir um filme onde não existe réstia presencial do lado feminino). A realizadora havia concretizado em 2010, o singular “Attenberg”, um filme de duas raparigas assexuadas em busca da sua própria identidade, em “Chevalier”, a jornada não é exclusivamente identitária, mas sim social, o regresso ao nosso lado animalesco, onde ansiamos cumprir os requisitos de “macho alfa”.

Contudo, mesmo sendo uma “ela” a apresentar este caricato enredo de um grupo de amigos, ou “camaradas” (a camaradagem é também ela uma manifestação da tão referida masculinidade), adeptos de pesca submarina que decidem jogar um prolongado jogo de competição, “Chevalier” (= Cavaleiro), onde o objetivo é avaliar individualmente cada um para eleger o mais “cavaleiros dos cavaleiros”, este é sobretudo um filme que transpira a “mão masculina” em todo os esporos. Tal como fizera o brasileiro Gabriel Mascaro, em “Boi Neon”, a respetiva masculinidade é desconstruída, neste caso, a comédia bromance serve de veículo para essa análise. A sátira de “Chevalier” é leve, mas eficaz, o ridículo é interiorizado no realismo das situações e nunca expande para o modo spoof nem sequer das comédias tresloucadas ao dispor do burlesco.

Os desempenhos funcionam na sua perfeita harmonia, visto que os atores se voluntariam como “cobaias” na própria teorização das respectivas essências de homem. Adereços que tornam o filme numa proposta imperdoável. Por isso, fica o aviso, quem não o vir – menos 10 pontos. Não percebeu? Menos 10.

Falando com Petra Costa e Lea Glob, sobre o trágico bailado do "Olmo e a Gaivota"

Hugo Gomes, 02.07.16

Sem_týtulo-BIekCyQpC-transformed.jpeg

Lea Glob e Petra Costa

Por entre a realidade filmada em jeito documental e a encenação não como um dispositivo fictício, mas antes uma ferramenta para compreender esse mesmo veio de veracidade, “Olmo e a Gaivota” é um dos filmes mais fascinantes a chegar aos nossos cinemas este ano. As autoras desta obra, a brasileira Petra Costa e a dinamarquesa Lea Glob, falaram com o Cinematograficamente Falando … sobre esta colaboração não voluntária que resultou numa catarse sobre o cinema propriamente dito, sem limitações a géneros nem estilos. No seio de “Olmo e a Gaivota” esconde-se ainda temáticas a merecer da nossa consideração, algumas delas fazendo parte da luta de Petra, os direitos das mulheres e a soberania destas pelo seu próprio corpo. 

Começo com a pergunta mais básica, como surgiu este projeto?

Petra Costa: Este projeto surgiu através do Dox Lab, num festival da Dinamarca. Todos os anos são convidados dez realizadores não-europeus para co-dirigir com dez europeus. Eu fui convidada para trabalhar com a Lea, tinha até um certo interesse no cinema dinamarquês e queria conhecer um pouco mais sobre ele. Tínhamos uma semana para decidir que tipo de filme iríamos conceber, mesmo antes de conhecer-nos pessoalmente. Vim com dez ideias que tinha guardado desde então, uma delas era a documentação de um dia na vida de uma mulher onde nada acontece, mas que tudo acontece na sua cabeça. Entretanto, a Lea sugeriu: “e que tal pegasse-mos numa mulher real“. Ela estava mais interessada em fazer documentário e no meu caso, ficção. Ela queria ir para a Amazónia e eu para a Dinamarca

Sim, vamos pegar numa mulher real, mas se for atriz, pegaríamos na vida real dela, e eu conheço uma atriz“. A atriz que falava era Olivia Corsini, que estava no momento a fazer uma turnê no Brasil através da companhia teatral francesa Théâtre du Soleil e que tinha visto o meu primeiro filme [“Elena”]. Ela havia sugerido fazer um filme comigo, então falei-lhe da ideia. A Lea gostou. Fizemos uma reunião através do Skype com Olivia que demonstrou automaticamente interesse. Todavia, ela disse “estou grávida“, e foi aí que decidimos alargar um dia para nove meses. 

Lea Glob: Foi um convite através do CPH:Dox, a escolha seguiu do comité do festival, por isso não tivemos decisão nenhuma com a formação deste par. Enquanto isso, eu tinha visto Elena, e encontrei similaridades com a minha curta [“Mødet med min far Kasper Højhat”], ambos falavam de histórias pessoais que tinham como temática o suicídio. Esse era o primeiro filme da Petra, e no meu caso, tinha acabado de formar na Escola Nacional de Cinema da Dinamarca, eu sou europeia, ela não, por isso julgo que quem decidiu esta dupla encontrou uma espécie de ligação, algo em comum.

O facto de trabalhar com uma atriz, seria a melhor forma de trabalhar ambos os lados, o lado ficcional e o lado verídico, neste caso documental? 

LG: Absolutamente, tal era essencial. Aliás ela era bastante dada a trabalhar desta maneira, isso nota-se ao longo do filme. Ao trabalhar com atores assim tornaríamos-nos realizadoras mais livres e chegaríamos facilmente à intensidade do material.

PC: Na grande maioria dos documentários, uma das grandes questões é ter acesso ao personagem e a questão dos limites, se está ou não a invadir a vida daquela pessoa, ou se está usando ela num filme que supostamente poderá não ser tratada da forma como ela pretende. Mas a grande vantagem de trabalhar com um ator é que o desejo é recíproco, ela não quer contar uma história, ela quer ser usada, porque essa é a sua profissão, o seu desejo, a de estar ao serviço de uma história nem que para isso tenha que usar o corpo e a mente. Mas quando a história é na realidade a vida dela, o ângulo inverte mas continua no âmbito do desejo. 

still-12.jpg

Olmo e a Gaivota (Lea Glob e Petra Costa, 2015)

No caso de Petra, visto que já conta com duas longas-metragens, “Elena” e “Olmo e a Gaivota”, existe uma palavra que caracteriza esse seu cinema – intimidade. Enquanto que em “Elena”, o espetador sentia-se incomodado por invadir a sua intimidade, neste filme, estamos a invadir a intimidade de uma atriz, o qual em certas sequências Olivia pede mesmo para parar. Como sente em invadir a intimidade de outras pessoas?

PC: É um pouco mais que isso, porque é justamente nessas questões que estou a falar, quando é a sua própria intimidade vai da vontade, não existe um limite imposto. Mas essa tensão foi frutífera, é como se estivéssemos constantemente a jogar aquele jogo de cordas onde cada um puxa para o seu lado. Nós tentamos chegar um pouco mais fundo na intimidade dela, e ela, com clareza, deixava, depois há um momento em que colocamos visivelmente as nossas interações com ela. Nesse aspeto, tratou-se de revelar esse limite – as portas  – como as do banheiro que se fecham, neste caso conseguimos estar do lado dentro do banheiro [risos]. 

Em Olmo e a Gaivota, o que é que poderemos considerar ficção e documentário?

LG: Não existe resposta para isso [risos], nem sei se consigo responder corretamente a isso. Julgo que é a mais bela parte do filme, porque incentiva os espectadores, mas não se trata de um jogo do que é falso ou real. Diria antes que é uma “onda” de interação, sim diria antes disso, e como tal gosto do filme por causa disso, porque faz-me sentir que fizemos algo certo naquilo.

PC: Sim, essa é a questão que motiva o filme, que analisa todas as cenas, é como se fizéssemos um filme hermafrodita, qual seria a parte masculina, qual seria a feminina. O filme é precisamente a tensão entre os dois géneros.

Quais as grandes influências para a condução deste filme?

LG: O teatro, assim como a peça de Anton Tchekhov, foram bastantes importantes para o tom do filme.

PC: Primeiramente o teatro, Olivia integrava o Théâtre du Soleil, por isso temos registos dos seus ensaios e encenações. Temos ainda influências do cinema francês, não da Nouvelle Vague, mas da facção Rive Gauche, como Chris Marker, Alain Resnais e Agnès Varda, que usualmente abordam as questões da identidade, da memória, mais do feminino. O livro de Virginia Woolf, “Miss Dalloway”, que foi para nós essencialmente um guia, visto que era para ser um dia na vida de uma mulher, mas que fez com que olhássemos para a vida de Olivia através da moldura deste livro.  

No final, “Olmo e a Gaivota” resultou num retrato de um romance. Uma romance entre dois atores, marido e mulher que teriam que lidar com o maior dos fardos. O filme captou esse amor na sua integral forma, relembro da sequência musical [“Mi Sono Innamorato di Te”], por exemplo. Tal fator [o romance] já estava prescrito na ideia ou foi uma oportunidade que surgiu durante o processo?

LG: Diria que foram os dois casos. Visto que temos uma história sobre gravidez e era normal termos um amor, uma relação amorosa, que poderíamos aprofundar. Bem, eu penso que sou a pessoa mais romântica da “equipa” [risos] o que fez também abordar esse tópico. 

É bom sentir o amor, e existe bastante neste filme. Petra também mencionou que tal transmitia uma empatia entre os dois, não apenas como marido e mulher, mas também como atores, o que permitiu-nos segui-los, o qual tornaram uma relação gentil. Eles são gentis juntos, e isso foi bom. Quanto às canções, como também muitos outros gestos, surgiram através deles. Foram tudo ideias deles. 

PC: Sim, penso que isso está muito presente na sua relação. Talvez tenhamos provocado mais o outro sentido, do que mostrar mais amor. O amor surgiu naturalmente, assim como demonstraram as “fraturas” desse relacionamento.

Quanto a novos projetos? Regressarão como equipa ou separadamente?

LG: Bem, ambas temos novas ideias, mas serão em separado. Não temos ideia de regressar a esta colaboração, quer dizer, se Petra pedir estarei disponível, assim vice-versa. As portas estão abertas e continuarão assim. Neste momento, estou a preparar um filme sobre a sexualidade, a interpretação de mulheres através de memórias erradicadas, como elas procedem a esse encontro. 

PC: Estou a trabalhar num filme ficcional que decorre nos anos 80, no Brasil, sob o ponto-de-vista de uma jovem rapariga, focando na maneira como ela interage com a diferença de classes e políticas. Também estou a trabalhar num documentário sobre a crise política brasileira. 

still-2.jpg

Olmo e a Gaivota (Lea Glob e Petra Costa, 2015)

Para Petra, gostaria de falar sobre a sua campanha “O Meu Corpo, as Minhas Regras“?

PC: Sim. Surgiu quando o nosso filme ganhou o Prémio de Melhor Documentário no Festival do Rio. Fiz um discurso em que dedicava o prémio a todas as mulheres, para que nenhuma sofresse de machismo no Brasil, desde a presidenta até à doméstica, e que todas tivessem a soberania sobre o próprio corpo, seja para mergulhar numa gravidez como a nossa personagem, com todos os direitos para isso, ou fosse para interromper, como já é legal na França e EUA há mais de quarenta anos.

Nessa noite fui dormir feliz, até porque tinha ganho um prémio (risos) e feito um discurso. Na manhã seguinte, acordo com uma invasão de milhares de comentários muito agressivos na minha página de Facebook, “sua abortista, você deveria morrer, é pena que a tua mãe te teve, fecha a perna, sua vagabunda“, um machismo que nunca tinha encontrado, pelo menos a este nível. O que demonstra um ódio crescente que o Brasil tem experimentado.

Então através disto fiz um video, pelo qual já tinha vontade de fazer, que tratasse das questões do filme que não estão claramente abordadas nela, que é a falta de interpretação de mulheres no cinema, a questão do corpo e do próprio aborto. Tinha alguns atores que tinham visto o filme e que tinha gostado, e então sugeri a ideia, eles gostaram e prosseguimos com a iniciativa. A ideia era pegar no figurino de Olivia, mulheres e homens engravidando até para colocar na mente das pessoas o que aconteceria se o sexo masculino pudesse mesmo engravidar. No Brasil, muitos colocavam a hipótese se o homem engravidasse o aborto já teria sido legalizado há muitos séculos. 

O vídeo surgiu disso, brincar com todas essas questões e ele viralizou, teve umas 14 milhões de visualizações e partilhas em diferentes páginas de Facebook. Acabou por virar uma “onda“, que fora a primeira “onda” feminista de grande impacto no Brasil. O país teve um movimento feminista nos anos 60 e 70, mas foram bastante reprimidos. Ou seja, eles afirmaram menos do que desafirmaram, virou quase “xingamento“, só em novembro do ano passado é que ser feminista deixou de ser “xingamento” no Brasil. 

Tudo também foi possível porque temos um forte antagonista que é Eduardo Cunha, presidente da Câmara, que é um dos políticos mais machistas que o Brasil presenciou, e também um dos corruptos, o qual vem retrocedendo diversas pautas que foram conquistados pelas mulheres. 

O que está a tentar dizer que o Brasil é no fundo um país conservador?

É um país contraditório, para muitos é a terra do samba, da mulher “pelada”, do homem cordial, da igualdade racial, mas isso é falso de certa forma, essas contradições é como se estivessem enterradas por ali. Somos um país que comemora a democracia, mas na realidade ela é uma fina camada de papel, que por baixo vai sendo corroída por ratos. Esses mesmos ratos, comeram, comeram, até que quebraram a coluna vertebral, e os ratos estão agora expostos, mas na verdade eles sempre estiveram ali. Talvez seja do facto do Brasil nunca ter tido uma Guerra Civil como os EUA ou uma grande luta pela independência. Nunca houve esse embate de ideais. 

Hoje assistimos a um país sob uma Guerra Civil retardada, uma parte, esclavagista, machista, oligarca e conservadora contra uma outra porção que luta pelos direitos humanos.