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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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The Changeling: nunca desprezando o "barulho das casas velhas"

Hugo Gomes, 31.05.16

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Um curioso e discreto filme de Peter Medak que se converteu numa das maiores influências do género na viragem da década de 80. Convém salientar que esta variação canadiana da família dos “old dark houses” serviu de inspiração para Spielberg desenvolver o seu Poltergeist, e de momento encontra fãs de nome como Martin Scorsese, Alejandro Amenábar e a atriz Neve Campbel, esta última que sempre o referiu como o filme mais assustador que vira na vida.

Inspirado em factos verídicos decorridos na década de 60, The Changeling inicia à imagem de muitas obras do género, com a tragédia familiar, “capa” que endurecerá o nosso protagonista, Russel Hunter (George C. Scott), desafiando-o a encontrar novo rumo numa nova cidade. Professor de música e compositor, Hunter depara-se com uma pechincha imobiliária, uma mansão vitoriana que mais tarde ou mais cedo acabará por revelar “comportamentos bizarros”. Diz o caseiro que “casas velhas tendem em fazer barulhos”, ou mais alarmante ainda, a secretária da imobiliária que avisa Hunter num tom quase sentenciado “Aquela casa não é adequada para viver. Ninguém foi capaz de viver nela. Não quer pessoas.”. O nosso protagonistas deparará então com o segredo que tal mansão mortalmente reserva, da mesma forma com o espírito aprisionado que expõe uma surpreendente conspiração política.

Em termos políticos existe quase um lisonjear do “espírito purista e purificador dos republicanos” devido sobretudo à pormenorizada saliência da posição partidária do antagonista [democrata], mas fora isso, The Changeling é por seu direito, uma obra atmosférica centrada em adensar esse mesmo ambiente, mesmo nas andanças do derradeiro climax que dissipa tal matéria cénica. Medak recorre habitualmente a travellings que vão mapeando todo o cenário - a mansão, luxuosa assim por dizer - que mentalmente instala-se no espectador, colocando-o sempre a par de cada divisão, fulcral insistir numa falsa sensação de narrativa paralela no interior das suas assoalhadas. Devido a esse pormenor técnico, as escadas, que servem por inúmeras vezes de ponto de união entre o mundo dos mortos e dos vivos, assumem como uma referência de respeito e de perigo iminente.

Astuto e conduzido pela versatilidade do seu argumento, que oscila para territórios de um thriller sob o quê de whoddunit, The Changeling parte do principio que as assombrações em mansões é, falsamente, algo de novo e fresco a explorar, tomando de assalto a sapiência perfumada do seu protagonista para nunca padronizar o espectador. Por fim, Peter Medak, em conjunto com Paul Schrader e o seu Hardcore, reciclaram o veterano George C. Scott para géneros tão distintos daqueles que sempre fora associado. Resultado, o ator galardoado por Patton seria novamente requisitado ao território do terror, cinco anos depois com Firestarter e cinco anos mais tarde no terceiro capitulo de The Exorcist, uma obra cada vez mais reavaliada.

Salve-se quem puder nesta trapalhada temporal!

Hugo Gomes, 29.05.16

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Se a primeira versão “artificial” de “Alice in Wonderland” não fascinou de todo, apesar do sucesso comercial, este segundo filme, que requisitou somente o título de outro livro de Lewis Carroll, é uma autêntica “trapalhada” estrutural. Agora sem Tim Burton e com James Bobin, o mesmo realizador das duas longas-metragens dos “The Muppets”, “Alice Through the Looking Glass” arranca com uma Alice (Mia Wasikowska) emancipadora, mulher brava e maruja que faz corar qualquer “gentleman” do Império Britânico.

Depois de um gosto a “Marco Polo” (só um gostinho), a nossa protagonista encontra-se novamente forçada “a qualquer coisa“, o resultado é uma ida ao Outro Lado do Espelho e um regresso ao tão batido País das Maravilhas para salvar um velho amigo. Com viagens no tempo à mistura e os mesmos vilões de sempre, este é um filme de teor fantástico que nunca usufrui dessa mesma camada. Demasiado dependente dos efeitos especiais que servem de farinha para uma fraca composição de ingredientes, como um inexistente senso de aventura, personagens de uma descartabilidade vergonhosa e um argumento, apesar das suas luzes, tão previsível como uma grelha televisiva domingueira. Neste boom de cores e pirotecnia, apenas Sacha Baron Cohen é levado a sério numa personagem caricata.

O resto é pura e simplesmente “mais do mesmo“, sem a graça, sem a ousadia do conto original (há quem ainda confunda o livro de “Alice in Wonderland” como uma proposta infantil, esquecendo das suas raízes alusivas), nem sequer a frescura de outrora. Eis uma sequela desnecessária, que ficará marcada num futuro próximo como a última contribuição do ator Alan Rickman.

Na balada de Sónia “guerreira” Braga

Hugo Gomes, 24.05.16

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Aquarius” responde-nos com exatidão às nossas mesmas expectativas. Derivada da situação atual da política brasileira, o “impeachment”, o golpe de estado, é possível fazer leituras desse género neste grande regresso de Sônia Braga ao cinema. Mas vamos por partes.

Clara (Braga) é uma jornalista e escritora conceituada que vive no apartamento que a viu nascer e crescer, situado no outrora grandioso Edifício Aquarius. Porém, ela é a última habitante dessa estrutura visto que todos os outros foram aliciados e persuadidos por uma construtora com planos para o mesmo edifício. Mas Clara é “sangue-quente”, temendo deixar para trás todo um conjunto de memórias vividas naquele mesmo local, mesmo sendo pressionada pela construtora, ela resiste e insurge-se contra os mesmos naquele “edifício-fantasma”. Em “Aquarius” existe um forte sentimento de que algo antagónico, uma catástrofe, está iminente. Kleber Mendonça Filho desfruta das mais variadas nuances de diferentes géneros para germinar o seu “aquário”, uma metáfora evidente sobre a corrupção e o envolvimento furtivo dos lobbies na sociedade que não restringe à mera canção do “coitadinho”, nem ao agora vendido registo do “favela movie“.

O filme cenicamente é interligado com o anterior “Som ao Redor”, onde o pano de fundo ganha imersão nas suas personagens; aqui, o edifício abandonado – e por vezes “abalroado” por forças amorais e corrompidas (existem sim ataques à indústria pornográfica, o jogo de “favores” e até mesmo à “infestação” do evangelismo como golpe dominador político) – adquire a relevância de uma personagem. Sônia Braga complementa esse ambiente “vivo”, tornando-se na alma de um ser inanimado. Que alma é esta?

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Mas por detrás desta Clara, a já maior heroína do cinema brasileiro, existe um “grande homem”, Kleber Mendonça Filho, que injeta nesta viagem repartida em três capítulos uma subversiva carga política. A acidez da crítica poderá ser comparada com a mera metáfora. Aliás, são estas alusões que nos sentimos seguros face a eventuais propagandas, até porque Mendonça Filho sabe difundir uma mensagem, sem a utilização do óbvio, nem sequer de cair nos devaneios do onírico. Essa frontalidade, nada inquisidora, encontra-se no próprio espaço de Clara, como é evidente na sua sala em determinada cena, onde o filme acumula tamanhas “provocações” ao Brasil “politicamente correto” que muitas entidades desejam construir. Entre a invocação, sem raiz aparente, surge a menção da homossexualidade, a amamentação (um ato completamente natural que tem sido atacado como um atentado ao pudor) e ainda a limpeza de bebés (uma rara imagem de cinema realista), que fundidos tornam num quadro de sacrilégio para esta cultural tão moralista, este “aquário” social estabelecido.

“Aquarius” é tudo num só, menos um “filme” no seu sentido mais simplista. É uma força de expressão filmada em estado de fúria, mas cuja cólera é registada com sapiência. Ao mesmo tempo é uma “mensagem numa garrafa”, uma obra para perdurar para futuras gerações, assim como a cómoda que acompanhou toda uma árvore geracional de Clara. Um retrato subliminar do estado brasileiro que por sua vez conserva a riqueza da cultura de Recife e imortaliza Sônia Braga como a maior das divas do Brasil. Será muito cedo para falar em obra-prima? Muito bem, arrisco em declará-lo como tal. Que venha então a primeira pedra.

Para Kristen Stewart, a minha "personal shopper"!

Hugo Gomes, 16.05.16

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Obrigado Kristen Stewart por teres mudado o rumo da tua carreira. Depois do incrível ensiao de metodologias performativas que fora "Clouds Sils Maria", estás a demonstrar que és uma actriz e tanto! Receio estares a virar uma das minhas preferidas. Sim, "Personal Shopper", thriller algures entre assombração e a engenhosa auto-descoberta, é capaz de ser melhor que 90% da treta de filmes de terror que nos vendem nas salas de cinema. Aliás, ser vaiado pelos mesmos críticos que atribuem cinco estrelas aos Capitães Américas desta vida, é um tremendo elogio.

A Criada: feita para servir, obrigada a seduzir

Hugo Gomes, 16.05.16

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Chan-Wook Park (“Oldboy: Velho Amigo”) apropria-se do romance literário da britânica Sarah Waters para incutir um conto de erotismo e de técnica luxuriosa onde, novamente, a “scissor sister” volta a ter a sua relevância enquanto ligação terna entre um casal (sim, algo que nos faz suspirar por “A Vida de Adéle”).

No centro deste jogo de enganos, traições, ciúmes e artimanhas, digno de qualquer thriller hitchcockiano, “The Handmaiden” é uma espécie de “origami”, machucado, recortado, dobrado, aspirando uma forma que não é a sua, mas que no final o resultado é de pura beleza de criação. Uma beleza presente na direção segura e estilística de Park, que prolonga os “fracassos” omitidos na sua produção norte-americana, “Stoker”, ou na sedução captada pelos corpos nus, pelas sugestões sexuais e corporais que as nossas personagens transmitem com toda a satisfação.

O humor pautado e subliminar enche os frames desta narrativa contada em três vozes, duas perspetivas que se complementam a um só olhar (terceiro ato), por entre twists e quebra-cabeças emocionais. É certo que podemos acusar de plasticidade Chan-Wook Park frente ao verdadeiro sentido da intriga. Como uma decorada “casa de bonecas”, é essa conexão com o olhar do espectador que “The Handmaiden” adquire a sua atmosférica façanha; é negro e colorido quanto basta. Sedutor e traiçoeiro como ninguém, uma clara alusão à perversão e repreensão sexual na cultura japonesa que cria, ou apenas “educa” fetichistas de imaginações infinitas.

Com belezas ditadas de Kim-Tae-ri e da estrela sul-coreana Kim Min-hee (“Right Now, Wrong Then”), Chan-Wook Park recria uma das melhores obras de teor erótico dos últimos anos; corajoso ao apresentar em plenas terras da Riviera Francesa um filme que contrai um portento fascínio pela luxúria e pelo obsessivo prazer.

Este país não é para Daniel Blake

Hugo Gomes, 14.05.16

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Ken Loach continua a sua luta pelos direitos da classe operária, tentando denunciar um sistema falível de Segurança Social e o peão dessa sua experiência propagandista é Daniel Blake (Dave Johns), um carpinteiro de meia-idade sob graves problemas cardíacos que luta contra a burocracia em prol dos seus direitos enquanto cidadão. Neste caso, uns “trocos” para a renda semanal era mais que bem-vindo, mas uma realidade cada vez mais difícil perante uma sociedade que não integra nem deixa integrar. Não é mais uma citação de “este país não é para velhos”, trata-se sim da busca pelo orgulho do proletário, e toda a propaganda que é assim afinada, não validando, portanto, a emoção dita cinematográfica, quase emprestado aos grandes crowd pleasures de Hollywood.

No ano passado, assistimos igualmente na competição de Cannes “La Loi du marché”, de Stéphane Brizé, um filme muito apegado ao realismo que reduzia o ator Vincent Lindon ao desespero enquanto desempregado. Ao contrário dessa obra, Ken Loach apela à emoção como veículo de luta e o seu apoio neste teor contrai maravilhas para o espectador. Em simultaneamente com os vínculos de realidade formal que esboça nesta desesperante jornada de um homem que acima de tudo deseja ser tratado como tal e não, como é referido a certa altura, num cão.

Mais do que um ensaio precário à lá Laurent Cantent, “I, Daniel Blake” apresenta-nos outras importantes questões na nossa sociedade, entre os quais a apresentação da tecnologia não como um facilitismo, mas como um obstáculo para a população mais envelhecida, e o facto desses sistemas de Segurança Social apoiarem quase exclusivamente no informático. Existe particularmente uma sequência onde Daniel Blake revela uma cassete de música a uma criança, sendo que esta desconhece por completo tal formato físico. Isto tudo para dizer que os tempos constantemente mudam e não dão tréguas a quem continua presente no “século passado”. Emotivo e igualmente furioso.

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