Entre “génios” e os “que sabem fazer”
Joana (Ivana Baquero, a Pan do “Labirinto do Fauno”) apresenta o seu trabalho na aula de argumento sob os olhares atentos do professor e dos colegas. Entre a audiência encontram-se ainda dois “intrusos” – alunos do terceiro ano entusiasmados por ouvir a ideia da protagonista. Essa dupla é formada por Miguel (Afonso Pimentel) e o apelidado Génio (João Jesus), cuja alcunha é questionada por uma outra colega ao instrutor (Gonçalo Galvão Teles), que responde: “Só pergunta quem o não é“. A história de Joana é ouvida e, a seguir, contestada por Miguel e Génio: enquanto o primeiro fornece uma intriga refém de um eventual twist, a dita “mente brilhante” da argumentação sugere um enredo abrupto que deixa os espectadores às escuras. De seguida o professor dirige-se à colega que expôs a alcunha do rapaz e responde “vês porque é que lhe chamam génio?”.
O curioso é que das três versões ouvidas nesta sequência do filme realizado por Luís Galvão Teles ao lado do seu filho Gonçalo, a de Joana é a mais criativa, ousada e, como se costuma carinhosamente afirmar num ambiente universitário, um pensamento “out of the box“. Já na do suposto Génio, a banalidade e a superficialidade são evidentes. Esta particular sequência remete-nos a um problema vivido em grande parte das Escolas de Cinema do nosso país: o sufoco da criatividade e a formatação de mentes para as quais são criadas arquétipos cinematográficos dispostos a executar o que aprenderam no meio de ensino e nunca pondo em causa tais veias académicas. O resultado, como diria Tarkovsky, é a formação de meros ilustradores e não futuros cineastas.
Se esta determinada cena tinha como propósitos criticar a forma como as universidades combatem a criatividade pessoal, isso não fica claro, mas garante-se que em “Gelo” encontramos um modesto filme que reúne elementos de ficção científica, dirigindo-as para um território mais emocional e intimista e invocando questões sobre a imortalidade e a condição humana. A nossa história, aquela aqui contada, mostra duas jovens completamente distintas, Catarina e Joana, até certo ponto ligadas. O espectador, porém, terá que desvendar tal vínculo enquanto é atirado para uma conspiração científica, uma corporação – Vida Futura – que tem como objetivo prolongar a vida humana através do ADN de um homem congelado há mais de 20.000 anos. Em paralelo, uma rapariga parte para Lisboa para estudar cinema, pelo caminho conhece um rapaz instintivo e misterioso que lhe fala sobre o destino e vozes intransmissíveis.
“Gelo” é uma obra tecnicamente capaz (basta olhar para a fotografia de João Ribeiro, que este ano ainda nos presenteia com “Cartas da Guerra”), apoiado num elenco de igual aptidão. O argumento, esse, escrito pela dupla Galvão Teles e por Luís Diogo (para que possamos perdoar-lhe do inenarrável “Pecado Fatal”), teve a proeza de evitar o explícito e o espalhafatoso que este género poderia suscitar. Todavia foi incapaz de fugir aos eventuais buracos argumentativos, e um deles é a inevitável imposição da coprodução, a protagonista espanhola que é estampada na intriga de maneira ilógica.
Mas “desligando” dessas “recaídas de joelhos”, é uma experiência cativante, a de encontrar neste “Gelo” um fresco sopro de vida no cinema português. Nunca recorrendo ao pornográfico “mainstream” nem ao protótipo televisivo que culmina êxitos de bilheteira nacionais, nem sequer afasta-se das audiências com inquisições intelectuais. É simplesmente um exercício de narrativa que se explora nos cantos e recantos obscuros da nossa cinematografia. Agora se perdurará, isso será outra questão, talvez respondida numa qualquer história elaborada por “génios”.