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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Os trópicos como estado de alma do cinema português

Hugo Gomes, 31.03.16

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Bom dia, Paulo Rodrigues“. O cinema tem a tendência de se apaixonar no verão como fosse uma consolidação com uma juventude perdida, até porque a velhinha sétima arte já caminha para fora dos 120 anos de longevidade. Contudo, contrariando o vórtice de cinema para adolescentes que a indústria parece manter ligado a todo o custo, em “John From”, a segunda longa-metragem de João Nicolau (“A Espada e a Rosa”), somos induzidos a uma brisa de sentimentos quase proustianos.

É sim um filme de adolescentes, mas a motivação é mais adulta que a própria inconsequência atribuída a esse cinema de nichos alargados. “John From” é sobretudo um olhar à jovialidade como algo exótico, longínquo e distante do nosso meridiano. Para tal, João Nicolau incutiu no seu próprio bairro (Telheiras) uma metáfora prolongada e sensorial, onde o amor de verão de uma adolescente altera por completo o seu redor. Mas tal premissa é seguida palavra a palavra, a conversão de um mundo onírico que espelha num quotidiano acorrentado por um tédio, a Melanésia orientada como um estado de espírito.

Sim, é um romance de “teenagers” incompreendidos, daqueles amores impossíveis que tão bem poderiam ser imaginados por um Shakespeare, mas não, é um exercício visual, modesto e simples, onde Nicolau volta a evidenciar o seu fascínio pela natureza, pelo estado selvagem indomável e sobretudo pela metamorfose quase cíclica incutida na sua própria definição de “coming-of-age”.

É um conjunto de rituais que preenchem um filme tão misterioso, onde a névoa desse misticismo apropriado não chega a transcender para fora do ecrã. Aliás, esse niilismo em consenso com o seu simplismo indiciam uma obra que tinha tudo para prevalecer, mas falta-lhe aquele “ingrediente” que teima em não existir em muito do cinema autoral português. No entanto, o mero exercício é alcançado. “John From” é acessível sem ser gratuito.

“The red capes are coming, the red capes are coming”

Hugo Gomes, 23.03.16

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Tudo indica que o signo do ano 2016 são os super-heróis, contando num total de 6 produções correspondentes a três estúdios (sendo dois os prováveis campeões nestas “andanças”) no sector. Este é um período para citar a tão popular expressão: “ou vai, ou racha”. Mas o início desta corrida pelos comics já se demonstrou produtiva, até porque “Deadpool” é um êxito garantido de bilheteira, cuja fórmula promete abalar o próprio método de produção deste subgénero.

Enquanto isso seguimos para o crucial “Batman V Superman: Dawn of Justice”, o filme que colocará a junção DC Comics / Warner Bros na primeira fila, tendo como grande concorrente a Marvel / Disney, que infelizmente tem demonstrado através dos últimos filmes que as ideias estão a escassear e que a homogeneidade poderá vir a ser um “cancro” nesta linha de montagem. Quanto à DC / Warner, o percurso não começou da melhor maneira. Christopher Nolan recusou prolongar o seu Cavaleiro da Trevas, tendo encerrado a trilogia por completo, mas acabou por aceitar o cargo de produtor deste reiniciado franchise. Por sua vez, o primeiro capítulo deste universo partilhado, Homem de Aço (Man of Steel), contrariando os números obtidos no box-office, não agradou totalmente os fãs (chegando até criar ódios dentro da legião).

Em causa estava certamente a negra e trágica atmosfera, a seriedade que este Super-Homem adquiriu, deixando de lado o estilo mais “camp” e descontraído de Christopher Reeve, o humor que tem predominado este tipo de produções tornou-se numa ausência. Para além das debatidas decisões no argumento que explicitaram um herói mórbido, desequilibrado, e dotado por uma conduta duvidosa à mercê das questões. Em todo o caso, o filme foi um fracasso artístico; a dupla Zack Snyder / Christopher Nolan falharam o teste dos fãs, mas nada que impedisse o regresso para um segundo round.

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Assim chegamos a “Batman V. Superman”, onde o Cavaleiro das Trevas entra em cena com Ben Affleck como a nova cara deste tão admirado herói. Como havia sido divulgado durante a campanha de marketing, este “épico” de quase três horas seria uma arriscada ofensiva de trazer para o grande ecrã o tão cobiçado “joint”: A Liga da Justiça (visto que George Miller não o conseguiu). Por isso, era mais que provável que esta sequela direta de Homem de Aço fosse uma exaustiva inserção do espectador neste mesmo universo, “disparando” easter eggs em tudo o que é lado.

Curiosamente, este BVS (vamos chamar assim) é superior ao seu antecessor, mesmo sendo deveras trapalhão na sua narrativa. Em causa está sobretudo o esforço dos envolvidos em trazer alguma credibilidade e verosimilhança a um mundo alternativo, fantasioso e fértil, mais fiel aos comics e contrariando a insípida e replicada Gotham da trilogia de Nolan. Existem também surpresas neste novo catálogo de “bons e maus da fita”, entre as quais Ben Affleck a revelar-se num Batman / Bruce Wayne mais maduro e emocional. Arriscado será afirmar, mesmo soando em heresia, que o infame ator (que deu vida a um dos super-heróis martirológicos do grande ecrã que fora Daredevil) consiga vestir o fato com mais dinamismo do que o próprio Christian Bale e Michael Keaton juntos.

O outro “brinde” é a genialidade com que Jesse Eisenberg entrega-se na pele de Lex Luthor, o tão conhecido arqui-inimigo do nosso Homem de Aço. Dois elementos que compensarão uma produção que visa repetir os erros do costume, ou seja o fascínio pela destruição inconsequente (que toma principalmente o terceiro e último acto como refém), as personagens secundárias descartáveis, algumas entradas diretas para futuros capítulos sem propósito para o enredo atual e a enfurecedora banda-sonora de Hans Zimmer, mais omnipresente que o próprio filme.

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Pois bem, não vamos mentir, BVS é um filme com verdadeiros problemas na sua execução, mas que sim, vai conquistar “multidões”, nem que seja pelo seu inegável visual ou pela facilidade com que Zack Snyder tem em arranjar taglines como “Tell me do you bleed? You will“. Contudo, esta é uma obra que temos a tendência, ou a tentação, de gostar, até porque é um blockbuster que esconde mais do que aquilo que mostra, e essa ocultação deriva da prolongação da sua mensagem altamente teológica. Enquanto que em Homem de Aço as comparações deste Super-Homem com o nascimento e percurso de Jesus Cristo fossem evidentes, as Estações da Cruz, a Procissão e o Caminho do Calvário são reproduzidos sob o seu contexto nesse ambicioso capítulo, acrescentando-se ainda o seu Pilatos, neste caso Lex Luthor, que constantemente patenteia um discurso ateu de contornos profanos.

Curiosamente, existe outra metáfora escondida que é visualizada no primeiro encontro de Bruce Wayne / Batman e Clark Kent / Super-Homem. Durante a festa organizada pelo vilão de serviço, é possível deparar-nos com o quadro “O Balanço do Terror”, de Cleon Peterson. O artista contemporâneo de Los Angeles considerou o seu referido trabalho, numa simbolizada luta entre poder e submissão, cuja violência é um ciclo interminável. São dois lados que se confrontam intrinsecamente (e socialmente) no nosso herói de capa vermelha, que se esboça na ideologia formatada deste “episódio-piloto”.

Entre a barafunda total (o previsível abuso de CGI) e o “bem esgalhado”, “Batman V Superman: Dawn of Justice” suscitará paixões, ódios e até mesmo alguma indiferença entre o público. Porém, a experiência não é totalmente nula. Há sim pequenas surpresas que fazem adivinhar o pretensiosismo da DC / Warner em não ficar a “comer poeira” do seu concorrente. Veremos como se sairá neste batalha campal de milhões de dólares investidos.

Um 'conto' à maneira de Natalie Portman

Hugo Gomes, 18.03.16

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A primeira longa-metragem sob a batuta de Natalie Portman resume-se a um esforço hercúleo de uma estrela de Hollywood em “abraçar” as suas origens, enquanto procura dignidade artística dentro da indústria cinematográfica. Transcrevendo assim a autobiografia de um dos maiores escritores de Israel, Amos Oz, num registo que acaba por esboçar a sua infância como a relação com a progenitora, “A História de Amor e Trevas” (“A Tale of Love and Darkness”) é uma obra orquestrada pelas palavras do seu autor (readaptado pela própria realizadora).

Essa dita verborreia corresponde com etimologia ao visual descrito pelo filme, a fotografia pálida transmite convenientemente o estado espírito do protagonista, e essa relação entre a escrita e a imagem indicia os propósitos herdados pelo pai de Oz – “toma atenção à ligação entre palavras“. Falando em ligação, é evidente o paralelismo do crescimento do escritor, o menino de ontem, com o conflito israelo-palestino, um cenário bélico e de desolação que contribuirá para a afirmação do homem do amanhã.

O filme tende apresentar de forma quase orgástica a criação do “Estado Livre de Israel” (que no entretanto a narrativa cruza), ao mesmo tempo que “afia as facas” para uma catarse ambígua que determina um inimigo comum de dois povos rivais. Aqui a Europa é vista como uma terra maldita, lares de colonos e nazistas que deixaram à mercê um povo ao abandono de uma nação prometida. É sabido que Portman respeita a ideologia e o contexto histórico de cada palavra proferida por Oz. Todavia é certo, que esse escape através da língua de outro seja visto como uma desculpa para visualizar um lado da guerra, e assim incutir a tentativa de complexidade poética do lado biográfico da fita.

A atriz, que também protagoniza sob algumas dificuldades no dialeto, encarou imensos obstáculos até à concepção deste projeto, mas esse percurso “espinhoso” atribuiu a esta realizadora o seu “quê” de pretensiosismo. Aliás, essa ambição de interpretar os pensamentos de Amos Oz assumem-se como uma gratificante virtude e ao mesmo tempo um pecado carnal para o filme. Portman é uma “workaholic” empenhada, porém, esse dito compromisso se intromete nas “asas” que “A História de Amor e Trevas” poderia adquirir, para além de constantemente ceder a um ensaio narcisista da atriz / realizadora. Nota-se essa vontade de emancipação induzida nas trevas do ego, bem que longe de se tornar na maior “borrada” de um curriculum declara como uma obra atualmente menosprezada, provavelmente valorizada daqui a um par de anos. Talvez aí a ânsia de um estatuto artístico interrogado seja por fim encontrado.

Por enquanto, Natalie Portman estreia na realização dirigindo ela própria num dos seus melhores desempenhos recentes. “A História de Amor e Trevas” é um filme que queremos gostar a todo o custo. Infelizmente, é demasiado quebradiço e presunçoso para que nos atinja com o seu objetivo emocional. Esforçado, mas …

Posto Avançado do Progresso: Períodos desconhecidos recontados sob descrença!

Hugo Gomes, 15.03.16

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É sabido que Portugal tanto invoca e de maneira gloriosa, os tempos da expansão colonialista o qual apelidamos generosamente de “Descobrimentos”, nomeadamente as conquistas ao desconhecido continente africano, mas pouco se fala da "manutenção" dessas colónias assim declaradas. Enquanto a História nacional tenta apagar desse registo de "ouro" de tão negro período, Hugo Vieira da Silva, um realizador que tem dado nas vistas desde a sua estreia além-fronteiras em 2006, com "Body Rice", apela ao retorno a esses capítulos esquecidos, propositadamente, do nosso currículo enquanto país, e o faz através da inspiração do pequeno conto de Joseph Conrad - "An Outpost of Progress" - publicado em 1897.

Esta transcrição de uma alusiva ficção para outra, indicia-nos um mundo infinito que traduz na mística vastidão da floresta tropical do Congo, hoje descrito como um dos locais terrestres menos explorados e, séculos passados, um lugar povoado por fantasmas e outras fantasias apenas existentes em folclore e na imaginação. Porém, em "Posto Avançado do Progresso", os fantasmas são os portugueses, os dois colonizadores que chegam a um entreposto comercial congolense munidos pelos seus fatos brancos que reluzem nas sombras, trazendo consigo ordens e ideologias que não são deste Mundo. Mesmo assim, a dupla protagonista diverge, quanto às suas doutrinas e à respetiva relação com os nativos.

João de Mattos (Nuno Lopes) acredita numa superiorização de "raças" e a urgência de transportar para África o muito da civilização moderna dita europeia, enquanto Sant'anna (Ivo Alexandre) demonstra fascínio por estes mesmos "selvagens", assim como um afeto por estas terras amaldiçoadas. Essas referidas diferenças serão confrontadas com o próprio magnetismo do Congo, assombrando as suas almas com alucinações e distúrbios para além do visível. Outro contraponto do "Posto Avançado do Progresso" é a imagem exposta dos colonizados, que traduzem uma organização hierárquica diferente daquilo que os portugueses julgam possuir, duas verdades desafiadas que só o espectador aperceberá das particularidades e das limitações dos homens ocidentais em entender a cultura que forçosamente tentam integrar e moldar.

Nesse sentido, Hugo Vieira da Silva induz nas personagens africanas algo mais que apenas apreços etnográficos ou meramente decorativos, e sim em figurações da civilização europeia, dando a entender e a preservar a realeza africana, vista e discutida como uma "casta" inferior, mas eventualmente comparada à hierarquização portuguesa. Esse método reduz-se na referência literária e social da época ou simplesmente histórica, desde Padre António e o misticismo envolto até citações ao escritor Almeida Garret - "O meu nome é Ninguém" - Posto Avançado do Progresso funde dois mundos distintos, divididos pelo Mar Mediterrâneo, porém, intrinsecamente cúmplices do próprio rumo mundial.

A desordem é somente um engodo para que os "intrusos", aqueles que proferem o direito pelas terras "achadas", se percam na vastidão daquele indomável mundo, não pertencente a nativos, nem a forasteiros. E é nesse caos que personifica numa entidade fantasmagórica, abanando dois mundos e afrontando as convenções anteriormente estabelecidas. As alucinações, a possessão selvagem, o desespero, o "progresso" nunca cumprido nem nunca encontrado, elementos que deambulam nas selvas congolenses como animais sedentos pelas suas presas.

Os fatos dos portugueses, sobrenaturalmente cintilantes, perdem o seu brilho, assim como a razão destes viajantes protagonistas. Hugo Vieira da Silva transforma este relato sobre a animalidade do "homem branco" numa demanda cinematográfica cujas referências e homenagens estão presentes como fenómenos. Desde Luis Buñuel, passando pela comédia slapstick muda de um Laurel and Hardy, ou até mesmo a atmosférica sexualidade e estranheza do cinema de João Pedro Rodrigues, tudo amontoa num biótopo criado e erguido pelo mistério, o contra-campo e a sugestão.

Depois de "Swans", Vieira da Silva cumpre um retrato compulsivo da nossa ligação inerente com África, o continente arrancado da nossa História através do conflito bélico, mas que mesmo assim produz em nós, um amor proibido, nunca esquecido, mesmo com o decorrer de Gerações. O cinema tem contribuído para esse fascínio, para essa essência magnética, Hugo Vieira da Silva apenas reafirma essa dileção.

Jane Austen conheceu George A. Romero algures!

Hugo Gomes, 13.03.16

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Seth Graham-Smith reinventou o conhecidíssimo clássico literário de Jane Austen, Pride and Prejudice (Orgulho e Preconceito), provavelmente com o intuito de colocar mais "ação" nos recorrentes conflitos da aristocracia britânica do século XIX. O resultado foi Pride and Prejudice and Zombies, um livro que respeitou a estrutura dramática da célebre obra da escritora, ou seja o eventual "quem casa com quem" encontra-se imaculado mas submetido a uma "ligeira" diferença - as personagens vivem aqui um intenso apocalipse zombie.

Assim sendo, toda a donzela tem que "orientar" face a um confronto com os respetivos mortos-vivos (obviamente tendo o casamento como principal objetivo). Os seus dotes vão para além da dança, da boa etiqueta e da conversa de "chacha", as artes orientais de defesa e o manuseamento de mortais armas são tópicos acessos na educação destas garotas de berço de ouro. Um cruzamento fantasioso que em boas mãos resultariam num entretenimento dignamente "camp", mas tal não aconteceu. Esse cobiçado teor "trash" é um estatuto que forçosamente o filme assume, porém, o contratempo é real … tudo é encarado de forma demasiado séria.

Os enredos matrimoniais desta nobreza decadente e fútil ostentam uma dramatização de difícil escapatória, um empate para o segundo plano, esse que envolve "demónios comedores de cérebros humanos", que no fim acaba por perder-se no seu dito entusiasmo, adquirindo assim um severo tom constrangido. Pride and Prejudice and Zombies  (o título português troca insolitamente Zombies por Guerra) tenta ainda invocar as afluências feministas do trabalho da escritora com um ativismo misândrico, o "rebento" desta relação é uma equivoca sobrevalorização da Mulher apenas adereçado a belas esculturais munidas de adagas e sabres. Novamente os produtores a confundir "guerreirices" com feminismo propagandista.

Tudo indica que Burr Steers (Charlie St. Cloud) desejava adaptar (mais uma vez) o clássico integral de Austen para o grande ecrã e que este projeto foi a única solução para concretizar a sua entrada em tal matéria, só que artes marciais e zombies estavam no contrato, sendo que não haveria outro "remédio" do que embarcar esses acessórios. Melhor destino teve a anterior obra de Seth Graham-Smith, Abraham Lincoln: The Vampire Hunter, que nas mãos de Timur Bekmambetov desfrutou de uma produção mais confiante e uma seriedade que funcionou no seu contexto. Quanto a Pride and Prejudice and Zombies, banhada é a palavra mais correta.  

 

"To succeed in polite society, a young woman must be many things. Kind... well-read... and accomplished. But to survive in the world as WE know it, you'll need... other qualities."

Bill Plympton: "os EUA estão 50 anos atrás da Europa em termos de aceitar ideias diferentes no setor da animação"

Hugo Gomes, 10.03.16

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Cheatin' (Bill Plympton, 2013)

Bill Plympton chega a Portugal, em alturas da MONSTRA, para apresentar o seu último trabalho, “Revengeance”, para além de dirigir uma masterclass direcionada a todos aqueles cuja animação é uma arte a ser seguida. Um dos animadores independentes de maior renome dos EUA conversou sobre o futuro da animação, das diferentes perspectivas e das dificuldades de vingar neste meio fora dos grandes estúdios do género e do seu envolvimento no “The Prophet”. Contudo, ainda teve tempo para falar-nos sobre Kanye West!

Já esteve presente na edição de 2010 da Monstra. Este é o segundo ano que vem a Lisboa em alturas do Festival, certo? Como é regressar à capital portuguesa?

Para ser honesto, Lisboa é uma das minhas cidades preferidas. No dia de folga, fui para a praia, comi peixe num restaurante mesmo encostado ao mar. Excelente vinho, um ótimo sol, boa arquitetura, pessoas simpáticas, isto é um paraíso. Por isso desejei voltar.

Sendo independente, como consegue financiamento e produzir os seus filmes? Sabemos também que recorre várias vezes ao Kickstarter.

Já tinha usado o Kickstarter antes, na restauração do clássico “The Flying House”, a curta-metragem de Windsor McCay. Pedíamos 10 mil dólares e conseguimos 19 por ele. Sim, fiquei feliz. No caso de “Cheatin”, comecei por pedir 75 mil dólares e alcancei os 100 mil, foi de loucos, o que é bom. Por isso, devo dizer que amo o Kickstarter.

Enquanto para “Revengeance”, o meu novo filme, o qual vou mostrar alguns clipes no festival, começámos com os 80 mil, e chegamos aos 90. Sendo uma excelente maneira de evitar uma ida a Los Angeles para fazer Pitching Sessions com executivos de Hollywood.

Primeiro, porque não sou um grande nome. Ninguém sabe quem eu sou. Segundo, eu não tenho um grande estúdio. Terceiro, os meus filmes não são animados por computador como os que são direcionados a crianças. Eles são bastante adultos, independentes e penso que eles não vão “dar-me” dinheiro Por isso é bem melhor eu dirigir-me aos meus fãs, pessoas que realmente gostam do meu trabalho. Como tal, o Kickstarter é importante no desenvolvimento dos meus projetos.

Não sei se sabem muito sobre Kickstarter, mas esta plataforma não se resume a somente filmes ou animações, serve também para jogos, restaurantes, músicos, teatros, dança, bem como todas as artes. É por acaso um óptimo recurso para diferentes artistas criarem algo único.

E como consegue distribuí-los?

Esse é o problema. Nos EUA é muito difícil, simplesmente porque os americanos com tanta Disney e Pixar julgam que a animação é apenas restringida a crianças. Isso incomoda-me visto que na Europa tal não é um problema. Eles aceitam animações para graúdos. No Japão a mesma situação, aliás, eles possuem uma mente aberta em relação ao que a animação poderá ser. Mas por exemplo, quando terminei “Cheatin” mostrei a um dos meus amigos, que é distribuidor, a julgar que eventualmente poderia gostar de distribuí-lo. Ele olhou para mim e disse: “Sabes Bill, existe nudez no teu filme”, assustador (ironia), o que é de doidos até porque existe bastante nudez em quase metade dos filmes de Hollywood.

Não entendo o porquê de não existir nudez na animação. Porque esta tem que ser uma “arte para crianças”? É um problema que eu tenho com os EUA, tornando-se prejudicial para a distribuição dos meus filmes. No entretanto, distribuo-os através dos meus próprios meios: pela internet, DVDs. Acabo por fazer algum dinheiro, mas nada que me torne rico como os distribuidores de outros tipos de filmes. Isso acaba por ser um problema!

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Então para si, a animação é mais que um divertimento para crianças. É isso?

Absolutamente. Sabes, quando era criança adorava animações, desde Bugs Bunny até ao Daffy Duck, passando pelo Roadrunner, mas quando cheguei à fase adulta desejava ver ideias maduras, ideias que refletissem aquilo que eu pensava, a minha imaginação, e ninguém o fazia. E pelos vistos era impossível alguém o fazer. Penso que os EUA estão 50 anos atrás da Europa em termos de aceitar ideias diferentes no setor da animação. Eu espero que mude e que possa contribuir para essa mudança. Espero que chegue o dia em que os EUA aceite por fim essas novas visões na animação.

Você começou a sua carreira como cartoonista?

Sim, ilustrador.

De que maneira é que isso influenciou o seu trabalho?

Muito. Em primeiro lugar no humor. Eu fiz demasiados “cartoons” para revistas adultas; Hustle por exemplo, quase todos com conteúdo sexual, até porque é isso que motiva dinheiro. Como também fui ilustrador para artigos de revistas, e como tal eu adoro a técnica, a anatomia, adoro criar formas, uma “coisa” rara no cinema de animação independente, visto que existem muitas pessoas com excelentes ideias mas sem talento para o desenho. Como podem ver, eu adoro desenhar, adoro fazer mãos, faces, distorções, penso que isso é o ki do meu sucesso.

O que pode dizer sobre “Revengeance”, o seu novo filme.

Eu não escrevi a história. Foi escrita por um sujeito chamado Jim Lujan. Ele chegou a mim através de uma conferência que eu dei na Comic-Con e tornamo-nos grandes amigos. Divertimo-nos imenso e coisas do género. Ele deu-me uns DVDs para que eu pudesse ver o seu trabalho, aliás, eu recebo imensos quando vou à Comic-Con.

Três anos depois, num dia chuvoso em Nova Iorque, estava aborrecido e peguei num dos seus DVDs e vi. Foi fantástica a maneira como as suas personagens tinham uma noção de humor bastante idêntica à minha, assim como as minhas narrativas. Ele fez as vozes, o que é ótimo, visto que sabe fazer boas vozes, música, escrever as suas próprias histórias, mas mesmo assim pensei que ele precisava de ajuda. Porque os desenhos que ele fez eram péssimos. Bastante crus, aliás. Como tinha tempo e talento para fazer a animação, virei-me para ele e disse: "Tu escreves a história e se eu gostar, animo-a”.

Três meses depois, ele entrega-me o argumento e foi realmente algo divertido, muito bom, com diálogos sólidos, personagens com uma psicologia bem definida, ao jeito do film noir com toques de Tarantino western. Quase como um pulp fiction. Há dois anos para cá, comecei a desenhar, mas tive que interromper, julgo que comecei a trabalhar no “The Prophet”, em alguns anúncios, e mais alguns projetos para que pudesse fazer dinheiro. A boa notícia é que terminei ontem, fiz o último desenho de “Revengeance”.

E quantos desenhos tem o filme?

Cerca de 20 a 30 mil. Algo parecido. Mas foi feito de uma maneira bastante peculiar, foi desenhado com “sharpie pen”, que é diferente do lápis, o qual se podia apagar. Dá um look diferente, e até bastante rápido com isto. As personagens tornam-se bastante simples, quase primitivas, quase como "childlike”, muito ingénuas. É um estilo diferente e único. Mas penso que as pessoas vão gostar, é bastante diferente do meu estilo.

Nos anos 60, você enviou desenhos para a Disney mas acabou por ser recusado. Se atualmente o convidassem para integrar a equipa, aceitaria?

Dependia do negócio. Eu sinto inveja com o tipo de distribuição que eles têm, o tipo de marketing, a promoção, e a reunião de grandes talentos a cooperar para fazer um grande projeto.

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The Prophet (Roger Allers, 2014)

Mas já chegou a ser convidado pela Disney, certo?

Sim, já o fizeram, mas apenas como animador. De momento gostaria de trabalhar como argumentista, realizador ou até mesmo ter envolvimento com a produção e história do filme. Mas julgo que eles têm medo de mim, sentem-se repugnados pela quantidade de sexo e violência, pelo surrealismo. É tipo: ”ele é um psicopata”. Mas na realidade sou muito normal, muito do tipo pacífico. Eu somente deposito toda a minha loucura nos meus filmes. Frisando. Sim, gostava que um dia a Disney, ou até a Pixar, trabalhassem num filme meu. Talvez no futuro, quem sabe.

No seu top 10 da Criterion, você menciona o filme “Brazil", de Terry Gilliam. Por norma, os críticos encontram influências desse cinema no teu trabalho. Concorda que existe realmente influência de Gilliam em si?

Bem, acho que todos os Monty Pythons tiveram influência no meu trabalho. Aquele humor surrealista, “deadpan” (performances de expressões vagas). Eu adoro esse tipo de humor. Aliás, tenho um filme, “Push Comes to Shove”, que é bastante “deadpan“, com personagens a fazer coisas estranhas com as suas cabeças, mas mesmo assim indiferentes a esse absurdismo. É por isso que os Monty Python são uma grande influência para mim, não somente Terry Gilliam.

Mas já conheceu Terry Gilliam?

Terry sempre foi um bom amigo. Conheci-o … julgo eu … na estreia de um dos seus filmes em Nova Iorque e convidaram-me à sessão e à festa, apresentei-me e tornamo-nos amigos desde então.

Nós tínhamos muitos amigos em comum, por isso telefonei-lhe e perguntei-lhe se queria produzir o filme “Idiots and Angels”. Ele disse que sim, que adorava, não perguntou por nenhum dinheiro, simplesmente “usa o meu nome da maneira que quiseres”. Sim, ele foi muito prestável. Aliás, ele adora apoiar outros artistas.

Mas essa perspetiva de animação adulta está aos poucos a mudar nos EUA. Basta ver a nomeação de “Anomalisa” aos Óscares.

Eu vi “Anomalisa”. Pena que não gostei tanto assim. Achei um filme único, bem especial até, mas para mim o problema foi ser demasiado lento. Eu, por outro lado, gosto de filmes mais visuais e entusiasmantes nesse sentido, mais surrealistas, coisas desse género. Mas fiquei bastante agradado pela sua nomeação ao Óscar, e por toda aquela publicidade que me fez inveja. Julgo que os meus filmes são tão divertidos como o dele, mas … hey… é Charlie Kaufman, por isso “devemos” dar-lhe imensa publicidade.

Mas é da opinião que os tempos estão a mudar para o setor da animação, incluindo mais diversidade?

Penso que vivemos tempos fantásticos no setor animado. Aliás, eu tenho vários estudantes nas minhas masterclasses. O futuro é brilhante para todos que gostam de animação e que tenham talento. Existem atualmente muitos estúdios a produzirem filmes e não só nos EUA, China, Japão, França, Espanha e Portugal. É uma excelente oportunidade para procurar trabalho, procurar sucesso.

Mas agora, eles trabalham para estúdios, como também são independentes, e isso é o que eu faço. Eles podem estar em casa com o seu iMac a fazerem grandes filmes, a partir somente da sua imaginação e isso é uma excelente oportunidade. Uma oportunidade que eu não tinha quando era jovem. Sempre julguei que era preciso ter “montes” de dinheiro, uma grande câmara, filmes da Kodak, grandes processos de filmagem, algo bastante difícil. Por isso, sim, são ótimos os tempos que se vivem atualmente.

O que é costume os estudantes perguntarem nessas masterclasses?

Perguntam-me por trabalho (risos), pedem para mostrar os seus filmes, que os avalie, mas sinceramente não gosto de fazer isso, porque tenho medo de dizer “coisas” negativas. Por vezes vejo algo brilhante como Jim Lujan, mas na maior parte das vezes, eles precisam de desenhar melhor, tornarem-se melhores artistas. Por vezes o storytelling não é bom. São jovens, é natural, como tal tenho medo de criticar demasiado o seu trabalho. Eles também perguntam questões como aquelas que vocês [jornalistas] costumam perguntar-me: “se tivesse uma oportunidade de trabalhar com a Disney, Pixar, ou qualquer outro”.

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Idiots and Angels (Bill Plympton, 2008)

Como foi trabalhar no filme “The Prophet” (“O Profeta”)?

Há cinco anos atrás, vieram-me perguntar se não queria “ilustrar” um dos segmentos animados do filme. Aliás, fui um dos primeiros a quem propuseram tal proposta. Um dos produtores dirigiu-se a mim e disse algo que nunca mais voltaria a ouvir: “nós temos muito dinheiro, tanto dinheiro que não sabemos o que fazer com ele” (risos). Porque havia muita gente do Médio Oriente que se encontrava interessado no projeto, e isto foi antes de Salma Hayek estar envolvida. Eles andavam atrás de animadores, tentaram arranjar um realizador e foi então que surgiu Salma Hayek.

Depois seguiram-se três anos, nos quais não ouvi mais nada sobre o filme. Nesse período não me contactaram, mas depois deram-me a notícia: “bem, temos tudo preparado, Roger Allen está na direção e a Hayek está na produção”. E eu proclamei que queria fazer o segmento do “Prazer”, e automaticamente responderam: “não, tu vais não fazer o Prazer, coisa nenhuma”. O que foi mau, porque eu sou fã do prazer. Eles queriam que eu fizesse o capítulo “Comida e Bebida”, e sim, aceitei. Então fiz um storyboard, algo que eu julgava ser divertido, tendo como referência o livro e a personagem de Mustafá. Eles não gostaram, argumentaram que era demasiado divertido e estranho, então pediram para basear-me palavra a palavra do livro.

Não me importei e fiz a vontade. O resultado ficou bom. Muito expressionista, aliás. No ano passado, a Salma Hayek convidou-me para ir a Cannes para a antestreia do filme. Foi uma ótima experiência, numa festa bastante hollywoodesca que se seguiu ao visionamento.

Já conta com duas nomeações para os Óscares, de que forma isso mudou a sua carreira?

Sim, sim, fui nomeado outra vez, o que foi bastante divertido. Aliás, com uma nomeação pode-se fazer qualquer coisa. Todos querem-te conhecer, dialogar contigo, trabalhar contigo. E eles tem uma coisa chamada “Gifting Suite”, conhecem?

Sim.

É de loucos! Foi no Beverly-Hilton Hotel, situando-se nos três últimos andares do hotel, com muitas salas. Aí, tu chegas lá e dizes que estás nomeado ao Óscar. Obviamente mostras o cartão como comprovativo, entras nessas salas e levas tudo o que quiseres; roupas, casacos, sapatos, óculos, ipads, ipods, tudo o que quiseres. Basta apenas tirar. Porque o que eles querem é que tu uses isso na cerimónia. Tudo porque somente estás nomeado para o Óscar, é de loucos. A minha companheira, que era a minha produtora, obteve um colar de diamantes só para usar. São tempos loucos, que gostaria de reviver.

Fez um vídeo musical para Kanye West, pode-nos contar como foi essa experiência?

Ele cresceu em Chicago, e a mãe levava-lhe a essas compilações de curtas animadas. Curiosamente, ele lembrava-se dos meus filmes. Kanye gostava do meu trabalho. O que aconteceu é que o realizador francês Michel Gondry fez-lhe um vídeo, mas ele detestou, achou aquilo terrível. Por isso telefonou-me a meio da noite: “É Bill Plympton?” “Sim” “Daqui é Kanye West, e preciso de um vídeo musical”.

Só tinha uma semana para o fazer, por isso tinha que ser rápido, mas precisava de dinheiro e sabia quem era o Kanye West. Por isso aceitei. Tive que trabalhar bastante e até tarde, mas no final foi um sucesso. Teve estreia num grande programa da MTV. Mas o engraçado é que ele pagou-me com dinheiro do seu bolso, o que foi bom. Eu gosto do Kanye, ele veio para o meu estúdio, eu desenhava e ele olhava através do meu ombro e dizia coisas como: “eu sou mais bonito que isso, faz-me melhor”. Esse é Kanye West, é um génio, conhece música, arte e é bastante visual. Eu conheço pessoas que têm problemas com ele, mas ele foi simpático comigo, por isso …

O Horror dividido / O Horror por inteiro

Hugo Gomes, 09.03.16

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O ecrã literalmente é dividido! É o split-screen que vem dar o último golpe ao reinado da narrativa estabelecida, o espectador pode por fim escolher por quem torcer. Quer nos agressores automaticamente destroçados e rebaixados a vítimas, ou na vítima que torna-se no mortal opressor. Os papéis invertem, “Carrie” demonstra a crueldade da vingança como a do vingador, assim como Sissy Spacek consegue automaticamente passar da doce e ingénua menina que vive o seu sonho na infernal “bruxa” que muitos pintaram … ou diríamos mesmo, num S.Sebastião com uma última palavra.

Stephen King pode retorcer quantas vezes quiser, o seu desdém por esta adaptação assim como aquela de Kubrick que tanto nós sabemos são a prova viva que nem sempre os escritores possuem o paladar criativo que transcenda entre artes.

Viva o nosso grande De Palma!

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