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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Nostalghia": A imigração de Tarkovsky

Hugo Gomes, 29.02.16

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Citando Andrei Tarkovsky no seu livro “Esculpindo o Tempo”: a nostalgia é um estado mental que afeta sobretudo os russos que se encontram longe da sua terra natal. Sob esta premissa, o realizador apostou numa primeira “aventura” espiritual fora do território da União Soviética, partindo assim para Itália, filmando entre a região de Toscana e Roma. Inicialmente contando com o apoio da Mosfilm (produtora russa que sempre o acolhera desde então), Tarkovsky viu o seu financiamento misteriosamente negado por esta durante as rodagens desta sua 6ª longa-metragem. Felizmente, a Televisão Pública da Itália e a Gaumont [estúdio francês] tudo fizeram para que o realizador conseguisse terminar as filmagens a tempo. Como resultado desta “traição”, Tarkovsky induziu em “Nostalghia”, uma prolongada renúncia ao país que o viu nascer, como se vê nos primeiros minutos da fita: “Fala italiano, se faz favor“. Até nos breves momentos em que é falada a língua russa, esta é imposta como um dialecto maligno, cujo vocabulário transporta o protagonista para a mais derradeira solidão. Uma solidão mental, física e sobretudo espiritual.

No entanto, até mesmo esta revolta tem os seus ares nostálgicos: os poemas de Arseni Tarkovsky [pai do realizador], são lidos e mais tarde defendidos com garra pelo seu "rebento”. “O Poema é intraduzível, a Arte é mesmo assim“. Para lá da traição russa, Tarkovsky parece sobretudo insurgir-se contra os atentados cometidos à própria arte, referindo-se a esse estado como uma alienação não “ouvida” pelos meros mundanos, mas compreendida pelos seus congéneres, os homens e mulheres ligados ao ramo artístico, os marginais de uma sociedade cada vez mais preocupada com o materialismo.

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É essa relação de cumplicidade que se transcreve na narrativa desta "Nostalghia'', a viagem de um poeta russo a uma cidade italiana em busca de informação de um compositor local. Este exilado fascina-se automaticamente pela trágica figura de um “louco”. Um homem ostracizado pelos restantes habitantes devido a ações no seu passado, que procuravam a salvaguarda dos seus entes queridos de um iminente apocalipse. A redenção da alma, a procura espiritual e as ligações inerentes entre homem e Deus, unirão estes dois indivíduos evidentemente divergentes, mas ambos, há sua maneira, com a mesma determinação para salvar o Mundo através do sacrifício (fica a nota que a seguinte e última obra de Tarkovsky tem como título “Offret” = “Sacrifício”).

Sob o registo do martírio (outro estado continuamente presente na filmografia do realizador), “Nostalghia” comporta-se como um prolongamento de “Stalker” [a anterior obra], que refletia sobre a existência humana e os desejos íntimos e inalcançáveis, assim como sobre a penitência da alma. Ambos são reconhecivelmente próximos quando invocados certos elementos visuais, como, por exemplo, a água e a abundância dela que diversas vezes transmitem os estados emocionais das personagens, recortando a paisagem desolada e ruinosa que serve de palco para reflexões do tamanho do Mundo ou debates que provocam mais questões do que dão respostas sobre a verdadeira definição de Humanidade. Tal como “Andrei Rublev”, o confronto oratório é impulsionado por tal elemento, a relevância da água que reluz nas paredes e nas faces das personagens, comportando-se como reservatórios de sentimentos, sabedorias e de revelações.

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Estes diálogos são testemunhados por um outro ser também emprestado de “Stalker”: o cão. A pureza provavelmente procurada por Tarkovsky e sem o seu conhecimento encontrado no canídeo. Este comporta-se como um visitante pouco notado, mas inquietado com o destino das personagens (como se pode verificar numa importante sequência de auto-incineração, em comparação com a indiferença dos restantes humanos). Último exemplo de unificação entre os dois trabalhos é o fascínio de Tarkovsky pela Sinfonia Nº 9 de Beethoven e o seu uso exclusivo para o verdadeiro clímax.

Mas não devemos presumir que “Nostalghia” é uma sequela não assumida de “Stalker”, essa última obra-prima de Tarkovsky em terras russas. Ao contrário da obra referida, esta viagem à Itália é esperançosa e vinculada numa fé tremenda e abalável (1+1=1 como se pode visualizar estampado nas paredes preenchidas por “quartos” de parede invisíveis). É um filme que encurta ainda mais a relação procurada pelo autor com a entidade divina que o comanda, confiando cegamente em julgamentos incompreensíveis e em rituais endereçados pelo preconceito natural. Novamente referindo “Andrei Rublev” (1966), “Nostalghia” tenta alcançar o seu estado de pureza e é nessa genuidade que Tarkovsky inicia esta jornada. As primeiras imagens, passadas num convento e mencionando a Nossa Senhora do Parto de Piero Della Francesca, são de uma beleza quase irrespirável. Em certos momentos, o nosso cineasta parece fazer uso das correntes artísticas que crescem na cinematografia italiana, com Fellini e a sua definição de neo-realismo “à cabeça” (o parto de pássaros é uma sequência tão dita “felliniana”).

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À 6ª longa-metragem, Andrei Tarkovsky reafirma-se como um senhor do tempo e a utilização deste como uma passagem que transporta o espectador a viver o filme e não somente vê-lo. O ambiente rodeia-nos e faz-nos esquecer por momentos que existe um mundo exterior à nossa espera. O realizador não só ilustra, como torna esse dito interior numa solidez quase real. É em filmes como este, dotados de uma beleza capaz de converter qualquer agnóstico num crente (nem que seja pela divindade transcrita nas artes), que ao vê-lo (ou revê-lo) nos sentimos sobretudo… nostálgicos, infinitamente nostálgicos.

"Andrei Rublev": A pintura a fresco de Tarkovsky

Hugo Gomes, 17.02.16

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Andrei Rublev, considerado o maior pintor iconográfico da Rússia, é atualmente uma figura de difícil desmarque de Andrei Tarkovsky. Não pelo facto de a obra ter sido bem-sucedida dentro da comunidade cinéfila e de apresentar particularidades hoje raras no subgénero da cinebiografia, mas porque a história narrada deste artista funde-se cada vez mais com o cineasta e poeta.

O paralelismo entre a Rússia do século XV e a de Tarkovsky é evidente. Tão visíveis, que as autoridades soviéticas tudo fizeram para impedir o seu visionamento além-fronteiras. Felizmente, essa tentativa foi um fracasso, tendo a obra sido projetada numa sessão in extremis no Festival de Cannes em 1969, sete anos depois do Festival de Veneza ter condecorado a primeira longa-metragem do realizador – “Ivan’s Childhood” – com o tão cobiçado Leão de Ouro, tornando Tarkovsky num herói junto aos seus conterrâneos. Desde os tempos áureos de Eisenstein, não se vira um cineasta russo a ser tão apreciado no Ocidente. “Andrei Rublev” é uma produção épica, centrada não no próprio pintor, mas na sociedade em que vivia: o Reino Russo em plenas mudanças sociopolíticas (um pouco como os anos 60 na União Soviética, em plena De-Estalinização por Nikita Khrushchev).

A obra também visa uma estreita relação entre o Homem e Deus, entre o Mortal e o Eterno, o Carnal e o Divino (o pintor foi canonizado em 1988), o estado da alma e a preservação desta frente ao pecado comum. Uma demanda à pureza que Tarkovsky constrói como degraus para o seu protagonista, constantemente desafiado por esta análise que é tudo menos glorificante. Até porque Rublev era um herói nacional, explorado agora por um cineasta com intenções para além do habitual retrato heróico, que tanto agradava o regime soviético. A nossa personagem é um homem obcecado pelo seu estatuto na sociedade, mas a sua pureza está longe de ser evidenciada. Andrei Rublev é um ser ambíguo, entre o pedante e o vulgar, um génio que cedo é declarado, mas sempre duvidando pelas “fintas” do realizador em relação aos pontos vitais da sua biografia. Por exemplo, em momento algum deparamos com o nosso protagonista em plena fase de criação, ou seja, a pintura nunca é aqui mostrada. Nem sequer os feitos ilustres que são citados pelos seus historiadores. Tarkovsky não quer ser um trovador, antes uma testemunha. A forma como esboça o cenário que o rodeia é, por si, o auge da sua pintura: não se limita à miopia do personagem destacado, mas mostra o lugar que o artista ocupa no Mundo.

O que é hoje elogiado, amanhã será criticado e depois esquecido“, afirma o também pintor iconográfico Feofan Grek (Nikolay Sergeev) durante o seu confronto verbal e ideológico com Andrei Rublev, interpretado pelo ator-fetiche de Tarkovsky (Anatoly Solonitsyn), numa das sequências mais relevantes e filosóficas do filme. O debate centra-se numa premonição apocalíptica quanto ao destino da civilização e nas comparações inevitáveis com o destino de Jesus Cristo no Novo Testamento. Neste longo frente-a-frente é evidente a determinação de Rublev em atingir um objetivo celestial, encontrando conforto nas escrituras e a liberdade dos pensamentos na própria pintura. Todo este caminho, que teima ser o correto da eventual santificação, levará o pintor a um poço de arrogância e a consequências maiores. Consequências, essas, que coincidiram com um ponto de viragem histórico no destino da Rússia, a invasão dos Tártaros e a limpeza étnica levada a cabo por estes. Será possível reencontrar o tão destacado conforto perante a perda de esperança na Humanidade?

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A análise de Tarkovsky a esta etapa histórica é profunda, mas não carece de espectacularidade. “Andrei Rublev” comporta-se, mesmo assim, como um épico dignamente soviético, mostrando um trabalho esforçado na caracterização, nos cenários, na fidelidade histórica e nos seus conteúdos sociais e políticos. Mesmo sendo um filme, Tarkovsky parece enviar os seus atores à Idade Média, salientando-o com diálogos centrados na religiosidade e crença, na superstição e na preocupação prioritária da alma ao invés da entidade física.

Outro ponto que “Andrei Rublev” parece favorecer é a denúncia subliminar da opressão da mulher na Idade Média, sem nunca ceder ao panfleto forçado nem ao politicamente correto hoje investido nas produções globais. Essa denúncia encontra-se fundida na reconstituição épica e nas transcrições das escrituras, que sugeriam uma dominação dita masculina e redução da Mulher na imagem do Pecado Original (basta ver os casos de Maria Madalena e o da tentação de Eva, invocada em forma de serpente). “É tradição a Mulher russa sentir-se oprimida” como é citado a certa altura, no seio de um debate sobre o uso do véu e o pecado oriundo de rituais pagãos.

Andrei Rublev é um “outsider” da sua condição de cinebiografia, apesar de se basear sobre os mesmos propósitos, que é o de documentar, mas até mesmo este registo está acima de qualquer episódio biográfico. Tarkovsky trouxe-nos uma obra complexa, motivada pelo olhar do espectador que se deslumbra por um mundo sólido que não é o seu. É como o quadro “A Subida do Calvário” pintado por Pieter Bruegel (1525 – 1569): um panorama que se modifica perante a nossa interpretação e sensibilidade.

Choose youth ...

Hugo Gomes, 08.02.16

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Baseado no primeiro livro do escritor Clemens Meyer, “Enquanto Sonhamos” (“Als wir Träumten”) é a jornada de um grupo de jovens (Dani, Paul, Rico, Pitbull e Mark) que tentam manter-se imutáveis face às mudanças do mundo, até porque a ação desta história decorre logo após o fim do RDA, período em que o destino destes “prodígios” se alterou. Derivado a isso, temos uma juventude inconsequente, iludida por promessas ultrapassadas de um país que já não existe, e cujos espectros teimam em ser invocados. Constantemente mergulhados num submundo de drogas, álcool e violência, este “quinteto de cordas” é caoticamente conduzido à delinquência e a consequências maiores que marcarão para sempre as vidas de uma anteriormente aclamada geração de ouro.

Do ascendente cineasta Andreas Dresen (que com o seu “Halt auf freier Strecke”, venceu um prémio na secção Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2011), “Enquanto Sonhamos” apresenta um registo narrativo que perpetua um constante confronto cronológico (os diferentes espaços temporais são conotados através do tratamento da sua fotografia). Tendo elementos base (por vezes encarados como lugares-comuns) sobre a autodestruição juvenil, o realizador parece partilhar a mesma visão destes jovens protagonistas, cujos atos irreversíveis são ilustrados como fantasias eufóricas percutidas pela música techno. Para quem julgava existir aqui um formato quase “Trainspotting”, o erro poderá ser fatal, até porque Dresen “veste” o seu filme com uma moralidade subliminar em relação às suas personagens, mais que um acolhimento dito ambíguo que a intriga poderia suscitar.

O erro, é que com isto perde-se uma agressiva análise crítica de uma geração perdida, com reflexões a uma nação reunificada, rejuvenescida mas ainda traumatizada pelas memórias passadas, e ganha-se mais um episódio coming of age erguido com admiração incontestável deste universo. Depois temos um ligeiro maniqueismo que infesta a caracterização das personagens, que por mero infortúnio (ou não) dificilmente se sobressaem da esquematização, nunca trespassando a mera promessa. Tinha potencial!

A Western Fiction

Hugo Gomes, 02.02.16

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Facilmente pode-se supor The Hateful Eight como uma [espécie] de sequela não oficial de Django Unchained (2012), mas este cold western está mais próximo da primeira longa-metragem de Tarantino - Reservoir Dogs - do que propriamente da vingança esclavagista sob toques de Sergio Leone. Todo o conceito de filme de cerco é novamente praticado através de um registo de oito personagens, todos eles odiosos, de difícil empatia para com o espectador, que confrontam os seus destino, acidentalmente ou não, cruzados.

Uma teia de ilusões, desenganos e duplicidades, desvendada após o arranque dos primeiros acordes de Ennio Morricone, o seu primeiro western composto num hiato de 40 anos, tendo como resultado um novamente "tarantinesco" da pior espécie (alusivo à forma detestável que as personagens emanam), um recheado de referências e marcos cinematográficos que se compõem numa inteira pauta musical e que tocam expelindo uma só sinfonia. Essa sintonia é sangrenta, é certo, mas é com uma oitava obra que Tarantino incute o possível filme mais político da sua carreira (cada personagem corresponde a um ideal político e partidário). Ouve-se falar de um statement autoral ao estado político-social dos EUA após o fim da Guerra Civil, uma nação que se reconstrói mas cujas cicatrizes ainda estão longe de serem saradas. Neste aspeto é possível encarar a ligação com o referido Django Unchained, o western que ao contrário deste The Hateful Eight decorre antes da dito conflito interno “estadunidense”.

O curioso é que Tarantino não acode por ninguém, todos os seus "peões" merecem obviamente a morte, e das mais violentas possíveis, e visto estarmos a falar de um realizador diversas vezes acusado de glorificar a violência, esse destino trágico em cada uma destas figuras é digna de nota, aliás, indiciados por um imprevisível reacionarismo. Voltando ao ponto anterior, mais acusações surgirão, até porque o nosso cineasta é um severo juiz, um pouco como Minos da Divina Comédia de Dante, não reconhecendo partidos, ideais, raças nem sexo, tudo é julgado sobre os mesmos parâmetros e igualdades.

As acusações a serem suscitadas são as mais óbvias - misoginia - em consequência de um mundo politicamente correto e demasiado sensível criado pela globalização ardente das redes sociais. Mas até essa suposta misoginia é merecida, até porque Jennifer Jason Leigh desempenha uma personagem tão ou mais odiável que tudo o resto, funcionando também como um importante macguffin enviesado num eventual whoddunit (quase como um conto de Agatha Christie) que fermenta aos poucos nesta intriga, que o próprio cita, carpenteriana.

Tarantino já havia referido que The Thing estava na lista das mais evidentes influências, mas por sua vez é Sam Peckinpah (muita da inicial fonte inspiradora de Carpenter) que serve de carimbo no cenário. Mas nem tudo é deixado por acaso, Kurt Russel no elenco é a prova viva dessas mesmas requisitadas referências, o ator vive situações paralelas daquelas que viveu há 33 anos com o magnifico filme de John Carpenter, um easter egg que o próprio Tarantino proporcionou.

Mas o grande "presente" de The Hateful Eight encontra-se na perceção e na construção dos diálogos, monólogos, e tudo o resto, ou seja o nosso cineasta demonstra mais uma vez que é um exímio guionista e sob esses propósitos somos confrontos com outra sua faceta, o de diretor de atores, e que bem é em assumir tal papel. O resultado disso é mais que visível, um dos melhores desempenhos de Samuel L. Jackson dos últimos anos, visto ser um ator cada vez mais em uso e em plena direção de um claro esgotamento de imagem, e uma imperdível Jennifer Jason Leigh, a ser recuperada por vias de um "Tarantino style", parece que em conjunto com Anomalisa, este 2015 foi um ano de ressurreição para uma atriz esquecida na própria indústria que a acolheu.

Novamente, Quentin Tarantino demonstra razões suficientes pelo qual é declarado um dos mais talentosos do seu ramo a operar atualmente. O resultado é uma pintura barroca pincelada ao seu próprio jeito e melhor … mesmo sob lúdicos momentos assumidamente tarantinescos (aquele fascínio quase visceral e pueril pelo Cinema) … The Hateful Eight é até à data o seu trabalho mais maduro. Um autêntico tour de force!

"Bringing desperate men in alive, is a good way to get yourself dead."