Um bando de "creeps" ...
Richard P. Rubenstein, George A. Romero e Stephen King na rodagem de “Creepshow” (1982)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Richard P. Rubenstein, George A. Romero e Stephen King na rodagem de “Creepshow” (1982)
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Para cumprir a última vontade de Tomaso, o apelidado anjo do Palácio de Carditello (que contribuiu para a restauração e preservação do respetivo monumento), os "imortais" enviam a sua mais indecisa "marioneta", Pulcinella (Polichinelo), para encaminhar uma cria de búfalo, criada por ele, ao seu novo lar.
Nesta jornada por uma Itália fragmentada pelo enraizamento do neo-realismo e da fantasia gótica - “Bella e Perduta” - o cineasta Pietro Marcello ecoa uma prolongada alusão político-social de um país à beira do colapso identitário que, tal como a sua personagem corcunda, se encontra à mercê dos propósitos impostos pelos seus amos. É um surrealismo que aspira ao misticismo, com uma veia documental contagiada por toques fabulistas e de teor poético, funcionando numa fantasia cruzada e trabalhada sob uma maquete de experimentalidade. Porém, nada de realmente bizarro é concentrado nesta pintura a óleo viva, e sim, um claro paradoxo com o real representativo. Uma crítica subliminar que se desenvolve conforme o seu espectador e que se manifesta em conformidade com os seus ideais.
Embora a política seja o evidente combustível desta demanda pela forma, que muitas vezes prevalece sobre o conteúdo, é um regresso à figuração imposta pelo poeta Luís de Camões e o seu mais pujante trabalho - “Os Lusíadas” - onde a personificação de figuras pagãs serve como propósito a uma crítica estabelecida. Nesse sentido, é fácil identificar o búfalo e a sua infortunada sorte numa questão de "classes", neste caso, a mais baixa, o indivíduo comunitário que preza o seu destino nas mãos dos seus dirigentes políticos (os "imortais") como se fossem diretamente extraídos das distopias de Orwell. Sarchiapone, o nome pelo qual é batizado o nosso bovino, mesmo que nome é coisa que não lhe é designada, exclama que neste mundo "ser búfalo é uma arte", um artifício subestimado que poucos querem deter ou sequer sentir fascinados. Mas a crença em viver na dependência das massas e da força que estas podem adquirir é de uma coragem incontestável.
“Bella e Perduta” (“Bela e Perdida”), um título que tenta aludir ao monumento deixado pelo seu "anjo da guarda", também se identifica com os sonhos vencidos pelas massas que ainda se dignam a lutar pelos seus ideais, mortais frente a imortais omnipresentes, pelo meio marionetas a interpretar pontes de contacto entre os diferentes patamares. Político e fantasioso, não é todos os dias que nos oferecem estes dois ingredientes numa "cajadada só". Um filme a ver por dois motivos: conteúdo e forma.
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Vindo do futuro, James Cameron parece ter feito upgrade aos seus então erigidos códigos de cinema de ação. Tal como havia feito num franchise “emprestado” - “Alien”, de Ridley Scott - transformando-o na musculosa sequela que fora “Aliens” (1986, que por cá obteve o subtítulo de Reencontro Final), Cameron volta a casa, mais precisamente, à ficção científica que havia concretizado em 1984 (“The Terminator”) e constrói um enredo digno de nota, a ação cinematográfica merecedora de registo poético e acima de tudo do estatuto de espetáculo, o filme-evento que hoje em dia perdemos .
Depois de ter catapultado o “Mister Universe” para o estrelato lá para os lados de Hollywood (Arnold Schwarzenegger), o cineasta remexe nos modelos contraídos em “The Terminator” e oferece-nos uma “faca de dois gumes” quanto ao seu conceito de “continuação”. Utilizando as viagens de tempo como argumento necessário para estas novas possibilidades de exploração, “Terminator 2” é bigger and louder, mas nem por isso menos sóbrio, aliás consegue incutir uma humanização acentuada nas suas personagens, inclusive na inesperada relação entre o messiânico John Connor (aqui Edward Furlong a motivar a personagem) e o seu anterior assassino e antagonista, o “Terminator” que é Arnold, a servir do mais perfeito anti-herói dos anos 90. A sua ligação tem de paternal como fraternal, e essa mesma afetuosidade serve como apelo para os preceitos frenéticos que Cameron implemente, aliás nem tudo são “bonecos para destruição”, existindo sim, um verdadeiro objetivo, uma humanidade a ser preservada, e melhor, personagens com que o espetador se possa preocupar nestes trilhos apocalípticos.
No seio desta corrida contra ao tempo – impedir um derradeiro evento futuro, apelidado de “Dia do Julgamento”, de ocorrer – encontramos um vilão formidável, T-1000, um Robert Patrick tão inexpressivo como qualquer máquina industrializada, tecido pelos mais avançados e desafiantes efeitos visuais da altura (sendo deslumbrantes ainda hoje) e pelo rico trabalho prático de Stan Winston (também ele designer da imagem do dito Exterminador), que se concentra como a pura raiz do mal, frio e calculista, ausente de carisma humanizada. Um jogo de gato e rato complementado com uma das mais cobiçadas heroínas do nosso tempo, Sarah Connor, uma Linda Hamilton que demonstra o quão possível é que uma mulher protagonize a ação ao lado dos ícones do género. Relembramos que James Cameron é um dos autores desta inserção da imagem da Mulher no panorama da ação, visto que havia cinco antes [“Aliens”] pegado nos “rascunhos” deixados por Ridley Scott e definir Ellen Ripley (Sigourney Weaver), no mais perfeito modelo de “mulher de armas” desde então.
São estes os ingredientes que nos levam, literalmente, à loucura numa jornada com o pé constantemente pressionado no pedal do acelerador. Pois é, com sequências de pura ação que ficaram para a História, uma heroína inesquecível, cúmplice de um anti-herói imitado vezes sem conta e um vilão que nos faz temer, a não esquecer de uma intriga astuta, avassaladora e envolvente sem nunca vergar pelo ridículo ou a pura risibilidade. Eis um modelo acima do anterior “The Terminator”, este T-2, como é carinhosamente chamado, assume-se como uma pequena “peça de arte” no sistemático regime do entretenimento cinematográfico. Incrivelmente um dos filmes mais entusiásticos da sua década (e uma das suas mais conhecedoras influências), a provar que James Cameron deveria licenciar cursos de como fazer sequelas, e como deveria ter, com todo o respeito, estabelecer o estatuto de artesão do cinema de ação, talvez um dos maiores da sua classe.
“Terminator 2: Judgment Day” bem poderia funcionar como o brinquedo jubilante para autores como Philip K. Dick ou Isaac Asimov, enquanto isso cai na apropriação no cinema mais circense, porém, um bom pedaço de circo.
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Enquanto um dos mais notórios dos “enfants terribles” de Hollywood, Oliver Stone, espatifou o seu retrato narcotráfico mexicano com um onírico romance hedonista em Savages, Denis Villeneuve demonstra como se faz uma vertiginosa viagem aos horrores dessa realidade presente e muitas vezes negada. Sicário é isso, um filme forte em emoções mas sem nunca oferecer o que se pretendia neste tipo de produções. Nisso, o realizador já havia sido claro no seu registo ascendente, até mesmo o mais mainstream dos seus trabalhos – Prisoners (2013) – evidenciou uma capacidade de transcender o tema proposto e apostar num furacão de complexidades humanas bem salientado pela sua sensibilidade dramática.
Porém, em Sicário registamos o seu filme mais frio, calculista mas nem por isso isento de emotividade, essa, transmitida pela personagem de Emily Blunt, que compõe a ponte direta com o espectador, funcionando como os olhos desta jornada interminável. México é aqui convertido num palco de guerra, um Médio Oriente à porta da apelidada “terra de oportunidades”, e cuja sua entranha opera como uma crítica ácida a ambos lados, sem nunca vergar pela costura politicamente correcta ou pelo optimismo sonhador. Iniciando com o de bom se faz no cinema de acção dos últimos anos, uma sequência dotada pela vibração energética e com um realismo “à lá Michael Mann”, Sicário começa aqui a transcrever a mista porção de fascínio / repudia para com a violência, quer física, quer espiritual.
Os eventos aqui demonstrados levarão Kate Macer [a personagem de Emily Blunt] a voluntariar numa missão de alto risco a uma das cidades mexicanas mais fustigadas pelo narcotráfico e com a pobreza geral, um cenário que espelha um panorama social, porém, visto sob uma protecção física. Nesse ponto de vista, Villeneuve demonstra o que aprendeu com o cinema iraniano, mais concretamente com o de Abbas Kiarostamis e o seu “mundo no interior automobilístico”. Todavia, durante este combate a uma “hidra de inúmeras cabeças”, Kate começa a evidenciar ilegalidades e amoralidades nesta mesma guerra, factores que a fazem questionar sobre a sua posição, os seus ideais enquanto autoridade e a natureza de toda esta operação deveras orquestrada nas sombras.
A personagem de Blunt evolui para uma figura frágil, uma mulher num mundo de homens que por sua vez não ostenta a “girl power” e a igualdade que uma Hollywood guiada por um feminismo mercantil parece constantemente requisitar. Não, Kate não é simplesmente uma mulher no filme, e sim uma humana, a moralidade que falta neste negro conto injectado com uma ambiguidade sem igual. Humana! Até porque os outros “parceiros” no combate ao narcotráfico, Josh Brolin e Benicio Del Toro, parecem carecer tais nobres e quebradiças emoções, se o primeiro comporta como um negligente e sexista chefe de operações, um contraste invocado para com a personagem de Blunt, o segundo é o autêntico anti-herói desta complexa ambivalência social.
É o trio de desempenhos que coincidem em si num equilíbrio dependente, registando não apenas sentimentos humanos vividos, entre os quais primários como o medo e o rancor, mas a transposição simuladamente realista dos actos das suas respectivas personagens. Outro factor que nos demonstra a preocupação de Villeneuve (e do argumentista Taylor Sheridan) na criação de protótipos humanos é a sua tentativa de preencher até mesmo as figuras menos relevantes desta trama, escolha que o levará a atribuir uma dimensão atenciosa a uma personagem paralela que até às últimas questionará o espectador sob a sua verdadeira importância. Tal cenário fabricado a essa mesma figura trará uma pesarosa consciência ao filme, que ao invés de relatar "bonecos" alude histórias de vida.
Para sermos exactos, este Sicário é tudo um pouco, um obra fabulista, um ensaio de realidade fincada, com toques variáveis de descrição dessa mesma realidade cinematográfica, um panfleto sem ser evidentemente um, ou um olhar sem julgamentos a um panorama conhecedor, contudo, mirado sob um receio pessimista (tal como é verificado no seu sublime e subliminar final, transcrevendo uma catarse aos sonhos de paz mundial que teimamos a prometer e a acreditar).
Eis um monstro criado na berma da porta, e tal besta dominante presenciada numa omnipresente banda sonora de Jóhann Jóhannsson. Sicário é sim uma das mais poderosas incursões deste tema no grande ecrã, um filme falado numa linguagem mista e atormentada pelo seu próprio dialecto. Assustador, agressivo sem fugir das regras da subtileza e verdadeiramente humano, coletivamente falando.
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Depois do arranque com “Photo”, em 2012, um filme que orquestrou as memórias de um Portugal regido ao salazarismo e que resultou num ensaio mais feliz que o seu primo de grande produção “Night Train to Lisbon”, Carlos Saboga regressa ao seu esforço de realizador emancipador (e com cunho produtivo de Paulo Branco) com um outro olhar ao nosso país em pleno anos 40: “A Uma Hora Incerta”.
Nesta sua nova obra, o tema dos refugiados é invocado refletidamente num período onde a Fantasia Lusitana parece cada vez mais vincada numa nação de fronteiras encerradas. A Segunda Guerra era vivida lá fora sob horrores inimagináveis ao povo português, mas o cerco construído entre nós, o sistema político que tentava levar um país à obscuridade, corrompia qualquer ligação exterior, quanto mais fugitivos de uma guerra inexistente, segundo os livros portugueses. Esse factor torna-se na combustão para esta intriga de um inspector da PIDE (Paulo Pires) fascinado por uma “desertora” francesa (Judith Davis), uma obsessão que se torna a sua respectiva salvação.
“A Uma Hora Incerta” instala-se como uma produção de baixo-orçamento, o qual se referencia na limitação da sua variedade cénica que como tudo converte-se numa imagem aludida à saúde que o nosso país apresentava no seu predilecto esconderijo da Guerra. Eis um filme que nos fala da ignorância social estabelecida pelos nossos líderes políticos e pela ligação fortalecida com os órgãos religiosos, pelo meio indiciamos a repressão sexual, o constrangimento que tem muito de bíblico como de um erotismo digno de “buraco de fechadura”.
Quanto ao primeiro adjectivo, a história de incesto de Lot revela-nos o vector acrescente, onde a jovem atriz Joana Ribeiro dá cartas com uma interpretação calorosa e um misto de ingenuidade sexual com níveis elevados de complexidade de Electra. A juntar a isto, uma montagem profissional em conformidade com uma fotografia de Mário Barroso, que expele essa salada de sentimentos e sensações que este “A Uma Hora Incerta” evoca. Possivelmente uma curiosa experiência na produção nacional, apenas há que dar uma oportunidade e abraçar os nossos “defeitos” enquanto povo.
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Quando me perguntam se sou uma cineasta feminista, respondo que sou uma mulher e que também faço filmes."
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"Ah, little lad, you're staring at my fingers. Would you like me to tell you the little story of right-hand/left-hand? The story of good and evil? H-A-T-E! It was with this left hand that old brother Cain struck the blow that laid his brother low. L-O-V-E! You see these fingers, dear hearts? These fingers has veins that run straight to the soul of man. The right hand, friends, the hand of love. Now watch, and I'll show you the story of life. Those fingers, dear hearts, is always a-warring and a-tugging, one agin t'other. Now watch 'em! Old brother left hand, left hand he's a fighting, and it looks like love's a goner. But wait a minute! Hot dog, love's a winning! Yessirree! It's love that's won, and old left hand hate is down for the count!" Robert Mitchum (The Night of the Hunter, 1955) Charles Laughton
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"O cinema precisa de ser falado" e é com obras como esta [João Bénard da Costa: Outros Amarão as coisas que eu Amei] que o diálogo entre o espectador e o grande ecrã faz-se em reflexo com o amor de outra pessoa. Manuel Mozos (Xavier, 4 Copas) incute essa paixão partilhada que dificilmente perde o seu inflamável calor da veneração, através de um envolvente registo poético que transfere a vida de um dos mais célebres (porém, ele próprio não assume), cinéfilos do nosso país. Se é bem verdade que a sua partida [em 2009] deixou a cinefilia mais pobre, aqui neste documentário preenchido de memórias, a sua riqueza identitária deixou uma herança bonificada, pronto a ser explorada.
Programador, crítico e diretor da Cinemateca-Portuguesa Museu do Cinema [a sua casa-mãe], João Bénard da Costa é uma figura incontornável para quem efetua a veneração cinematográfica no nosso país, ele foi um homem ligado ao misticismo do passado sempre em mudança e imutavelmente estampado através do retrato, as figuras que permanecem imortalizadas enquanto os nossos restos se converterem em cinzas e integram o substrato térreo. Porém, tal como se evidencia neste seu retrato, o corpo é simplesmente e dura descartabilidade, mas é a alma que vagueia por uma eternidade desconhecida mas sugestiva através do poder das imagens.
Nesse termo, "João Bénard da Costa: Outros Amarão as coisas que eu Amei" faz todo o sentido existir, e a decisão de Manuel Mozos em não construir uma singela biografia, e sim uma jornada pelo valor estético e as suas ligações primordiais com um esoterismo, não religioso, mas artístico. É pois, um filme sobre a arte, o argumento desse amor, e essa tentação cinematográfica sempre presente como um fantasma visitante, tal como é exaustivamente comparado com The Ghost and Mrs. Muir (Joseph L. Mankiewicz, 1947), um dos assumidos filmes prediletos de Bénard da Costa. É um reflexo sobre a vida além morte, com claros vislumbres à jornada de um homem feito, um eterno declarante da 7ª Arte, até aqui exposto como a forma mais viável de tornar imortal a respetiva imagem, outrora sombra de um ser vivente.
Essa constante autoanálise, uma narrativa intercalada entre a linguagem própria do cinema (Ordet, de Carl Theodor Dreyer, o seu "favorito" Johnny Guitar, de Nicholas Ray, e até mesmo a mentira prolongada da cinematografia de Lubitsch) e os seus escritos lidos pelo seu filho, funciona como uma das pinceladas que contribuem para este esplendoroso retrato, o retrato de Bénard da Costa, o seu íntimo hino de amor ao cinema partilhado por todos. Até porque, tal como indica o título - Outros Amarão as Coisas que eu Amei - Costa não está, nem esteve sozinho. Esta relação com o Cinema permanece intacta, cada vez mais amada, mesmo que as memórias tende em tornar-se mais distantes, mas com imagens projetadas em tela, que tudo torna-se numa razão de existência. Do Cinema com Amor!
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