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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Cinema pessoal em modo “cumshot”

Hugo Gomes, 26.06.15

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Love” é um plano antigo, um projeto de sonho que ousa desafiar as próprias convenções do cinema, aquele que é politicamente aceite, e resgatar muito de um teor, agora reduzido à indústria pornográfica, ao serviço do storytelling. Esta ideia permaneceu em Gaspar Noé anos antes do trabalho que o consagrou como um dos mais irreverentes e controversos cineastas do nosso tempo – “Irreversible”. Aos atores Vincent Cassell e Monica Bellucci foi feita uma proposta para protagonizar este “sexo com sentimento“, como o realizador apelida, numa altura em que ambos constituíam um casal, com probabilidades de auferir uma requisitada intimidade às eventuais perfomances. Porém, a dupla recusou, tendo “Love” ficado residido no limbo cinematográfico.

Limbo, esse, que fora retirado recentemente, mas antes Noé havia experimentado novas formas narrativas e estéticas com o não muito consensual “Enter the Void”. A proposta de uma trip narcótica em mistura com esoterismo tibetano serviu de objecto de estudo e incentivo para o avanço deste projeto (agora protagonizado por desconhecidos) que se revelou muito pessoal. “Love” arranca com uma amostra daquilo que havia sido prometido enquanto produto choque, o que se resumiria vulgarmente de filme pornográfico em 3D. O sexo parece real, de certa forma sujo e “ordinário”, afastando-se de qualquer indicio de encenação. Neste caso, Gaspar Noé consegue o seu “quê” de atenção e supera os limites estéticos estabelecidos pelo cinema erótico.

Mas “Love” é um filme que apresenta mais do que uma simples exploração do foro sexual e do muito publicitado ménage-à-trois, funciona como um romance vinculado a memórias autobiográficas. Sim, leram bem, uma biografia complementada sob uma liberdade criativa e ficcional em concordância com toda uma coleção de fetiches que operam num júbilo masturbatório, para ele e não para o espectador. Noé acaba por abordar a sua veia mais romântica, entregue numa bandeja de perversão para “inglês ver“, até que por fim essa mesma capa dissipa e a lamechice extrema é realçada e desmesurada no seu requinte visual.

Temos uma estética retirada através dos estudos feitos por “Enter the Void” – as suas concepções aqui reaproveitadas em prol de uma nova trama, e a narrativa enxertada por falsas elipses e malabarismo temporal. Aliás, tais referências autorais são assumidas com os inúmeros easter eggs que acompanham o regresso ao passado de Murphy (Karl Glusman), um homem que viveu intensamente uma paixão, cuja ruptura é ainda tida como um dos seus maiores arrependimentos. Electra, nome dessa sua “Vénus“, é novamente ouvida após uma tremenda ausência, abrindo “portas” para emoções e recordações não sentidas há muito tempo.

Gaspar Noé interage com a lei de Murphy (“qualquer coisa que possa correr mal, ocorrerá mal, no pior momento possível“) para basear nesta matriz que vai ao reencontro do seu pessimismo e arrependimento – o tempo destrói tudo de Irreversível – o não retorno emocional e físico das suas personagens e a aura fantasmagórica que permanece no final da sessão. No final, acabamos todos por ser criaturas taradas por experiências, que quando submetidos a uma derradeira fragilidade, julgamos saber amar. 

"Inside Out": mas quem traduziu para “Divertida-Mente”?

Hugo Gomes, 22.06.15

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Não se deixem iludir pelo grafismo e o conceito em si. “Inside Out” está longe de ser mais um título direcionado para o público mais jovem. O seu alvo principal é outro, os graúdos e mesmo aqueles que estão a viver a pele de pais. Um coming-to-age pleno, o novo produto da Pixar remete-nos ao interior da mente de uma pré-adolescente desafiada pelas constantes mudanças que só a vida proporciona. No “quartel general” intrínseco a essa mesma jovem, Riley, encontramos um sistema computorizado onde cinco emoções prevalecem no comando (Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Repulsa), representados por “bonecos” arquétipos providos de personalidades correspondentes ao gene emocional.

Tendo em conta que as personagens principais são caracterizadas como emoções humanas, é evidente que este “Inside Out” aposta num conteúdo mais emocional e, nesse sentido, Peter Docter (o mesmo realizador de “Up”) cria um verdadeiro comboio de sentimentos onde sobretudo apresenta uma compaixão e empatia pelas suas personagens e pelo espectador.

Sim, a Pixar consegue regressar à sua velha forma, à aposta em conceitos irreverentes moldados em fórmulas clássicas e conservadoras que a animação familiar possui no cinema. É que depois das constantes “quedas” desde “Brave – Indomável”, o estúdio do “candeeiro saltitante” proporciona novamente personagens cativantes rodeadas por um elaborado humor slapstick, alternado com insinuações ou referências mais adultas (existe uma subtil sugestão sexual de Riley tendo em conta o género de personagens que “comandam” a sua mente).

A fantasia livre que se encontra dentro da mente de Riley pode variar entre o fértil e a pura preguiça disfarçada (este desequilíbrio foi também um dos problemas do anterior “Up”), mas no conjunto resulta como um prolongado simbolismo do cérebro humano. Mas voltando ao ponto inicial, é nas emoções que “Inside Out” revela-se poderoso, um choque nada contido que poderá causar no espectador as mais variadas sensações.

No final, são poucos aqueles que não deixam ser dominados pela Alegria e ao mesmo tempo pela Tristeza. Um sorriso estampado nas nossas faces, consolidando com a triste beleza da derrota. A nossa derrota para com o tempo, onde as nossas preciosas memórias se desvanecem no horizonte longínquo da nossa mente. Como é tão raro encontrar uma animação vinda de um grande estúdio como este a fazer-nos sentir … simplesmente mortais.

A Blast: um palco de emoções e conflitos sociais chamado Grécia

Hugo Gomes, 15.06.15

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Num momento em que a Grécia encontra-se na ribalta dos órgãos de comunicação com um eventual rumo na sua direção política, o filme A Blast, a segunda longa-metragem de Syllas Tzoumerkas, parece fazer todo o sentido no panorama atual ao ilustrar uma desesperada emancipação. Deparamos com uma obra cuja temática é a austeridade, e obviamente a situação vivente da Grécia de hoje, mas enganem-se quem julga que tudo se contenta em “pintar” um retrato pessimista e decadente.

A Blast é sim, uma motivação desarmante e de vórtice emocional acentuada, tudo isto integrado num crescendo quase musical, que salienta a isenção do sentimento de esperança e muito mais a vontade de se “despir” dos anexos das nossas vidas passadas. De certa forma alienado, cru e duro, o filme de Tzoumerkas é uma verdadeira montanha russa emocional que concentra numa coragem em nunca ceder ao moralismo nem a sermões indevidos. Frases como “tu és um fardo!”, dirigidas a um pai pela própria filha, revelam a extrema força de culpar um passado irresponsável, ao invés de assumir as culpas e arrecadar os erros cometidos por esse legado. Contudo, são frases como essas que evidenciam essa irreverência, urgente no seu ato e apenas conseguido para quem vive dentro desse mesmo “aquário” social.

Nesse biótopo construído e desconstruído à medida que a narrativa evolui para um tudo menos “moral relief”, deparamos com uma atriz (Angeliki Papoulia, que também será vista em The Lobster, de Yorgo Lanthimos) capaz de oferecer com tamanha garra, a alma para esta vertiginosa viagem, onde os julgamentos por parte do espectador são sobretudo ignorados. Aliás este é um dos poucos filmes em que a sua protagonista pouco ou nada importa na exposição sentimental, e é nessa dita disposição que o público consegue aceder, que a controversa instala. Fria, animalesca, individualista ou libertadora, a perspetiva altera mas as imagens ficam com tal agressividade que até dói. Eis um filme avassalador e pujante.

O Apocalipse é canino!

Hugo Gomes, 03.06.15

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Depois dos macacos chega a vez dos cães se revoltarem contra uma sociedade humanamente omnipresente e, de certa perspetiva, totalitarista (perante estes seres de quatro patas). Segundo o filme de Kornél Mundruczó, num futuro próximo, a Hungria será um dos países que decretará uma lei que obriga ao registo de qualquer cão de raça indefinida ou cruzada. Caso não exista esse registo, o destino do animal é o abate.

Tal como “Mommy”, de Xavier Dolan, “White God” brinca com a temática das leis para conduzir-se num cenário de desolação social com graves falhas na concepção das relações afetivas. Talvez seja por isso que a história de fundo, a qual frisa a aproximação entre uma adolescente e o seu respectivo pai, seja tudo menos emocional. De tal forma que a grande preocupação do espectador durante a narrativa encontra-se na infeliz jornada de Hagen, um rafeiro à mercê da sorte num mundo onde os humanos são os verdadeiros selvagens.

Este cão irá mais tarde liderar uma revolta canina, onde os outrora “melhores amigos do Homem” convertem-se nos seus derradeiros inimigos, lutando pela vingança de uma imperdoável traição. Ao chegar a esse crucial ato, “White God” vende-se como um desinspirado filme de terror sob contornos “slasher”, mas antes disso somos dirigidos a um autêntico Oliver Twist canino, numa alusão à exposição dos imigrantes nas sociedades que desejam integrar.

Nesse aspeto, Kornél Mundruczó consegue uma (des)ventura feroz e agressiva que contrai inesperadas emoções. A coordenação dos “atores” caninos, assim como o seu realismo, tornam “White God” num exemplar cinematográfico visualmente arrebatador (a última sequência é exemplo disso). Mas por detrás de um conceito interessante e inédito, evidenciamos falhas a nível de argumento e no propósito das personagens. Falhas essas que são salientadas no seu terceiro ato, a dita rebelião assassina. Uma das consequências desses buracos do argumento é a falta de química entre a estrela canina e a protagonista humana, onde a suposta cumplicidade parece cair de paraquedas nas proximidades dos créditos finais. Por sua vez ,a tão acentuada relação entre pai e filha adquire uma relevância íngreme, pouco justificável em função da narrativa definida.

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A realização por parte de Kornél Mundruczó também não auxilia em nada, embora a intensidade transmitida por uma câmara hiperativa nas sequências mais violentas seja claramente bem sucedida. Porém, os momentos que apelam à captação da linguagem corporal dos seus atores (humanos) tornam-se ineficazes e sem objetividade nos planos. Talvez o resultado deste “White God” (alusão ao filme de Samuel Fuller, “White Dog”) tenha ficado aquém das expectativas geradas pela conceção e pelo visual, assumindo-se como um filme construído em torno de medos sociais enraizados. Profere-se um cinema de veia realista e de carácter violento, mas esquece-se das suas personagens em prol do idealismo da idolatrada revolta.

Já agora, em jeito curiosidade, 274, o número de animais utilizados nas sequências deste “White God”, fez com que a obra entrasse no livro de recordes como o filme com mais cães integrados.