Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As santas "martíres"

Hugo Gomes, 23.05.15

image-w1280.jpg

Muitos filmes tentaram abordar o tema, mas de momento ”Las Elegidas” detém a proeza de conseguir uma exposição de um problema tabu com toda a frontalidade e controvérsia. Mas atenção. Fá-lo sem com isso ter de recorrer à exploração gráfica. David Pablos concentra aqui uma história de ouro, não no sentido da originalidade ou complexidade, mas sim no desafio em recriar uma trama que mantém-se a léguas do já visto e revisto na forma de melodrama ou novela.

A prostituição infantil é um dos problemas mundiais que deve ser sobretudo combatido, porém, “Las Elegidas” não se comporta como um panfleto moralista com fins pedagógicos ou instrutivos. Ao invés disso, o filme joga a sua ambiguidade, sempre pressionada, para refletir e mobilizar as audiências com a invocação simples do drama. Talvez seja este um dos motivos pelo qual a obra funcione como uma dolorosa experiência visual e emocional.

No seio deste retrato social, seguimos uma adolescente, Sofia (Nancy Talamantes), que se encontra apaixonada por Úlisses (Óscar Torres), um rapaz um pouco mais velho que ela. A jovem é feliz, contudo, está longe de saber que o seu namorado provém de uma família de mafiosos. Família essa que tem como principal negócio o rapto de adolescentes e a prostituição das mesmas. Apanhada nesta teia corrompida, Sofia é agora obrigada a ser uma mercadoria sexual. Gradualmente vai perdendo a esperança de um dia poder rever a sua família, enquanto Úlisses prepara outra vítima para o seu legado familiar.

David Pablos recria um México pastiche, mas não totalmente plástico na sua conceção. A ferocidade com que aborda o tema e o desafio com que executa, algo fora dos parâmetros maniqueístas e facilmente moralistas, torna “Las Elegidas” numa experiência de outra dimensão. O choque é unânime, visto que Pablos não arreda pé nessa sua frontalidade e sem se conduzir pelo grafismo, usufrui do poder da sugestão como uma arma de destruição massiva. O repúdio do público perante esta manobra é suportada ainda pelo som, o qual tem aqui uma importância fulcral na conjuntura emocional. Os desempenhos suportam igualmente o peso da narrativa.

Incisivo, negro e diversificado no seu olhar, o difícil mesmo é sair do visionamento com indiferença. Poderoso!

Juventude ... para quê te quero?

Hugo Gomes, 18.05.15

youth_05369_picture_by_gianni_fiorito.jpg

“Intellectuals have no taste”

É verdade que todos esperavam que Paolo Sorrentino fosse reciclar o estilo vencedor de “La Grande Bellezza” num filme próximo, e ei-lo: “Youth” (“La giovinezza”), o seu olhar luxurioso à segunda juventude de cada um, onde Michael Caine e o “ressuscitado” Harvey Keitel compõem um par de amigos de longa data (a caminhos dos 80) que passam férias num requintado hotel situado nos Alpes. Entre spas e saunas, “Youth” converte-se gradualmente numa poesia industrializada sobre a velhice e a confrontação com o passado, num registo que por si já parece “velho” no grande ecrã.

Mas Sorrentino revela-se ainda, aquilo que já fora considerado na obra anterior: um VJ, apostando num filme sob um visual estilizado e de uma riqueza acolhedora. Se o realizador filma bonito, isso já se sabia, mas em “Youth” revela-se mais livre, confiante e sim … egocêntrico. Porém, nem tudo o que vemos é realmente dispensável. É fácil emocionar com “Youth” (até certo momento uma das personagens expressa o quão subvalorizado estão os sentimentos) com toda aquela revisão dos nossos medos íntimos desconhecidos, mas sobretudo devemos louvar o facto do nosso realizador, que é também o argumentista, acertar com as suas cartadas nos diálogos, surgindo frases deliciosas, alguns dos quais incutindo uma filosofia popularmente identificável, talvez mesmo concentrando aí a única sinceridade da obra.

Existe ainda outra aposta vencedora neste novo filme de Sorrentino, o seu humor digno de “buddy movie“, como que – de certa maneira – Caine e Keytel fossem reencarnações antípodas de Jack Lemmon e Walter Matthau. A química transmitida por ambos pode ser demasiado rígida para os parâmetros estilísticos do filme, mas mesmo assim eles respondem com exatidão aos requisitos. Salienta-se ainda as participações de Paul Dano, que demonstra novamente o seu talento de difícil reconhecimento, sendo o responsável por uma das sequências que revela o quanto “infantil” podem-se também tornar essas filosofias de Sorrentino, que aqui reflete sobre os horrores da vida na personificação de uma óbvia personagem histórica.

Por outro lado, eis que também surge Jane Fonda (no melhor papel em anos), que encoraja, ao lado de Keitel, a inserção de um dos diálogos mais acutilantes e frontais deste “Youth”, um debate irónico sobre um tema bem atual , a proclamada morte do cinema e a “vingança” da televisão no futuro. Sim, há muito por onde gostar nesta obra de fragrâncias vaidosas, nem que seja para matar as saudades de uma certa “beleza”. Desde o desempenho de Michael Caine, ao bom regresso de Harvey Keitel, passando pelo hedonismo, até chegar ao glorioso momento final, acompanhado por uma música que assombra a narrativa: “The Simple Songs“.

"Youth" pode não ser a obra que se esperava de Sorrentino depois de “La Grande Bellezza”, e até seja de (mais) fácil apelação, mas para todos os efeitos é pura e sedutora viagem ao ego de um realizador contra o Mundo.

O Dia em que se reencontrou a Humanidade!

Hugo Gomes, 16.05.15

Son-of-Saul.jpg

Do estreante realizador húngaro László Nemes, Saul Fia (O Filho de Saul) é uma autêntica adversão aos lugares-comuns impostos pelo popularmente apelidado cinema de Holocausto. Aqui, sob uma câmara que dificilmente descola do protagonista, o espectador é inserido numa descida aos “infernos”, num retrato tenso e perturbador que nunca invoca o explícito, mas que investe numa jornada em busca da humanidade restante em cenários desoladores, um pouco como uma alusão à filosofia incutida por Primo Levi no seu bestseller - Se Isto É um Homem.

Em Saul Fia, seguimos Saul (Géza Röhrig), um membro do Sonderkommando, prisioneiros judeus encarregues do “trabalhos sujos” no campo de concentração de Auchswitz, como forma de prolongarem as suas respetivas vidas. Saul tornou-se num espectro, isente de compaixão e de solidariedade com os demais com que partilha o trágico destino, a palavra de ordem, aquela que acate todo os dias é a pura lei da sobrevivência. Contudo, num incontável dia, um acontecimento o marca, e nesse determinado momento, o nosso protagonista indiferente aos horrores que o envolve é submetido a uma demanda a essa mesma escuridão que tanto evita, de forma a concluir o seu último ato de humanismo, aquilo que o diferenciará dos demais encarcerados.

Se o espectador ousa pensar que Saul Fia é o enésimo arquétipo dos territórios comuns do cinema de Hollywood referente a tal tema, então deve-se dizer que esta é a sala errada. Descrito como um anti-Lista de Schindler, Lászlo Nemes (sob um argumento da sua autoria) escusa de procurar um final feliz no centro desta "selvajaria", ao invés disso, invoca um pedaço de História morta (sucumbida, mas bem presente nas nossas heranças) para salientar um ensaio existencialista puro e duro da nossa regressão ao instinto primitivo. Um instinto que todos conhecem bem e que faz estremecer neste atmosférico cenário.

O fulgor épico, falsamente enxertado, bem poderia ingressar numa das páginas da Divina Comédia de Dante Alighieri, porém, neste caso, sem Virgil nem outro guia, Saul enfrenta sozinho esta injustificável gruta de Minos. Saul Fia funciona como um realismo vincado que transborda a narrativa e que desvia-nos do olhar mediático que o cinema por vezes parece indiciar na desolação de outrem. Assim sendo, o espectador está à mercê da sua imaginação, do seu julgamento e da intima interpretação quanto à Humanidade perdida e novamente achada, ingloriamente desafiada pelas nossas próprias convenções. Os horrores persistem, e a nossa consciência é que tais afrontas existem e decorrem na sala ao lado, a metros do nosso protagonista e na interação deste com as audiências, não diretamente (sem quebrar a quarta barreira), mas confessando-nos, suplicando pela nossa cumplicidade.

Uma primeira grande obra distinta, invejável e corrosiva na sua filosofia interiorizada. Com filmes assim, contornando todos os possíveis clichés, é normal o Holocausto continuar a assombrar-nos para toda a eternidade. Poderoso!

Adrenalina para lá da Cúpula do Trovão

Hugo Gomes, 15.05.15

Mad_Max_Fury_Road-128602368-large.jpg

Uma das maiores e alucinadas surpresas do cinema da última década chegou em 2015: um "reboot" de "Mad Max" que transcendia o mero entretenimento e a lógica comercial do "blockbuster" para alimentar um franchise. Foi através da sua inicial trilogia pós-apocalíptica, entre 1979 e 1985, que lançou Mel Gibson como o derradeiro anti-herói de um mundo sem amanhã, que o realizador George Miller criou a sua imagem de marca.

Tratava-se de uma fantasia "steam punk" que, gradualmente, evoluiu para uma parábola à volta do consumismo desenfreado e auto-destruidor, assim como a nossa dependência dos combustíveis fósseis, que à sua maneira criavam transvestidos psicopatas. Cada vez mais desencantada, a despedida (provisória, sabemos agora) de “Max, o Louco” foi com "Mad Max Beyond the Thunderdome" (1985), o terceiro e mais rendido às fórmulas "hollywoodescas", com a curiosidade de possuir a estrela Tina Turner como co-protagonista e assinante da música de saída (“We Don’t Need Another Hero”).

Enquanto a indústria não decidia se continuava ou não a jornada, George Miller avançava e inovava a carreira, já em Hollywood, com "The Witches of Eastwick", "Lorenzo's Oil”, "Babe: Pig in the City" e até as animações "Happy Feet", com alguns projetos pelo meio que acabaram por não avançar (como a sua versão de “The Justice League”). Até que se deu o regresso ao território sem lei com "Road Fury", 30 anos depois de termos deixado Mel Gibson e a sua "persona" deambulando por um horizonte longínquo e desértico, um reencontro não de todo (inicialmente) aplaudido pelos acérrimos fãs por causa da natureza do seu recomeço: é Tom Hardy o novo guerreiro da estrada, tendo como co-piloto Charlize Theron, que acabou por ter mais garra para o volante do que a figura central (mas já seguimos essa estrada). Para este regresso, George Miller apercebeu-se a tempo que era necessário reinventar a sua própria ideia de espetáculo, mal habituado por causa das matérias de super-heróis das já reconhecidas editoras Marvel e DC.

Mad Max é um “super-herói” nos termos naturais da palavra, mas é, acima de tudo, o nosso peregrino dos últimos redutos da humanidade, ambíguo e com a subsistência no topo das suas prioridades. E o seu mundo é feito de “armadilhas” instaladas como brindes à memória do espectador convicto desse mesmo apocalipse. Exemplo disso é o grande vilão ser interpretado por Hugh Keay-Byrne, o primeiro arqui-inimigo de “Mad Max” no filme inaugural de 1979. Contra todas as apostas, neste novo artesanal à escala industrial descobrimos um carinho pelo regresso a um cinema distante da toxicodependência do CGI (que existe, e muito, mas sem "sufocar" tudo à sua volta) e que abraçava de forma criativa os "stunts", explorando a magia da montagem para produzir uma energia explosiva.

mad-max-fury-road-861f306826be477892831f2088b2f0c9

Depois temos a Mulher. Mais do que mero ativismo político ou social, Charlize Theron partilha o protagonismo com Hardy, e, para ser sincero, de forma desigual, já que a atriz rouba qualquer cena que surja com a sua trágica “mulher de armas”, Furiosa. Tal como sucedera em “Snow White and the Huntsman”, Theron prova mais uma vez que nenhum papel é pequeno. Neste caso, as comparações que tem suscitado com a Ellen Ripley de Sigourney Weaver, esse símbolo da mulher de ação no Cinema, não são tão descabidas assim, visto que a sua personagem é uma emancipada, subjugada aos códigos do feminismo militante e intercalada com uma extrema necessidade de apelar ao lado mais emocional. George Miller conseguiu aqui, subtilmente, um hino ao retorno da ação no feminino através de uma manobra bem perigosa, mas com resultados felizes. Mad Max não é o único “herói acidental” aqui, desta vez é uma mulher que está ao volante.

Mas não nos fiquemos por questões de igualdades, nem de profundidade por vezes imperativas nos blockbusters dos dias de hoje. “Fury Road” é, sim, uma montanha russa, imparável, pomposa, mas sempre fiel aos códigos de série B. É entretenimento para massas, eficazmente direcionado a todos os que cresceram com o herói de Gibson ou pela ausência de limites na ação. É uma reciclagem das grandes perseguições, enraizadas na narrativa com uma força motora.

O resultado é talvez um dos dos filmes mais cativantes que o cinema produziu nos últimos anos ao nível “imagem-movimento” descrito nas prosas de Gille Deleuze. Uma proeza feita com uma narrativa simples, quase minimalista, numa viagem extrema de “ida e volta”. Esteticamente é um novo Mad Max, porém, o modelo continua a ser o antigo.