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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Equinox Flor: os delicados tons do mais "japonês dos japoneses"

Hugo Gomes, 29.10.14

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Yasujiro Ozu teve não só voz no trajeto geracional como também na ténue emancipação feminina, mulheres que o autor as colocou nas diferentes frentes, desafiando, principalmente, todo um legado tradicionalista.

A verdade é que nessa transição entre a modernidade globalizada e o primórdio Japão que teima em desvanecer, o realizador internacionalmente consagrado pela A Viagem a Tóquio (Tokyo Monogatari) regressa com a sua paleta, neste caso a primeira a cores, concretizando um quadro divergente com o mesmo uso de tons. Mesmo com a sofisticação, continuamos a presenciar as duradouras marcas autorais, a linguagem fílmica, imutável e intransmissível (planos filmados a pouco centímetros do chão, a implementação do “falso-raccord” na montagem e a quase ausência de expressividade dos seus personagens), que o seguirá até ao final dos seus dias.

Tal como a estilizada dança kabuki, os palcos são os mesmos como as próprias “marionetas”, atores afáveis ao estilo de Ozu que emprestam as suas almas em prol dos seus contos (é como visitasse-mos os mesmos amigos sob circunstâncias diferente). E para quem está habituado às jornadas de simplicidade transcritas pelo realizador, encontrará neste seu leque de atores (ou diríamos antes, “entre amigos”) uma comodidade calorosa. Como é bom presenciar cada esquina, sala de estar, bar de saké com estes mesmo homens e mulheres ao serviço de Ozu, as suas rotinas, a sua conversa fiada e cinematograficamente inútil (tendo em conta os parâmetros do mainstream imposto por Hollywood) que nos remete a algo deveras simples mas genuíno. O realizador não tem bonecos, nem personagens, mas sim pessoas.

A Flor do Equinócio (Higanbana / Equinox Flower) seja talvez o filme mais moderno de Ozu, aquele que evoca a nostalgia, mais uma vez, para ser o alicerce ensaísta das novas mudanças. Repetidamente os casamentos arranjados são tema de conversa e a conduta direta para a intriga. Aqui, somos remetidos ao patriarca Wataru Hirayama (Shin Saburi), desafiado pela própria filha que organiza casamento sem o seu consentimento. Hirayama, defensor dos valores tradicionais japoneses, porém, apologista do amor livre entre jovens, opõem a esta decisão, não por desacreditar na causa da sua filha mas sim, como preservação da sua autoridade. Estas desavenças entre pai e filha levarão a Ozu criar material necessário para culminar o subliminar, a referida mensagem de desconstrução da sociedade conservadora nipónica por parte das gerações mais novas.

Este é o cinema guiado pelo signo do autor japonês, apoiado por um drama rotineiro que qualquer espectador (conforme seja a sua sociedade e crença) identifica, o humor singelo e autêntico que contagia e por fim, como parece ser habitual na grande parte das suas obras, o clímax emocional, que implode na narrativa de forma crescente sem que o público aperceba. Sendo este o seu primeiro trabalho a cores, Yasujiro Ozu não perdeu, de maneira alguma, o seu delicado toque.

Cinema, porque sim!

Hugo Gomes, 26.10.14

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Reza a lenda que foi um casaco sobre a câmara a servir como uma forma de protesto para João César Monteiro. O resultado dessa sua revolta, e nem menciono a expressão verbal captada pelas televisões, foi acompanhado por um mediatismo canibal que posicionou o seu “Branca de Neve” como; a) o grito sufocado de um autor contra o sistema, b) a demasiada liberdade dos cineastas portugueses, c) a auto-destruição do próprio Monteiro, tendo sido esta a sua última obra. Conforme seja a opção, avançamos assim adiante.

Caso idêntico é o de Wang Bing, o documentarista chinês que tanta estima tem no Doclisboa e que fora impedido de gravar o seu último trabalho, possibilitando-o apenas organizar o material que havia recolhido. Este é o seu “filme-protesto”, uma “colheita” de somente uma hora e meia de duração, o que parecia boa notícia para quem estava habituado aos seus pastelões isentos de edição. Contudo, termina por ser um grito silencioso e penoso de alguém que claramente deseja a atenção de todos nós, mais do que expandir a sua mensagem (se é que a tem). Sim, mesmo tendo uma hora e meia, “Fu Yu Zi” (“Father and Sons”) é aborrecido, monótono e com todos os adjectivos associados a esse mesmo sentimento. Porquê? Porque invoca um exaustivo novo-realismo, cada vez mais na moda cultural e onde tudo se resume a dois ou três planos – cujo um deles se arrasta por 80% da narrativa.

Nesse mesmo plano somos confrontados com uma criança a viver em condições desumanas, mas que mesmo assim tem ao seu dispor uma televisão e um telemóvel. A primeira é perceptível graças ao imparável som que emana; a segunda, só não vê quem é cego. O plano em questão é fixo e de conjunto (academicamente falando), onde a dita criança assiste e “remexe” no seu telemóvel. E, somente isto. Por uns bons quarenta minutos. Até que, em certo momento, surge outra criança no plano, o irmão, como claramente se percebe. Mas ele limita-se a reunir-se ao “velho residente” e ambos acabam por continuar a rotina já retratada (citando João César Monteiro – “queriam telenovela?“).Esta sequência é tão longa que chegamos mesmo a presenciar o anoitecer em tempo real.

Por fim chega o suposto pai das crianças, o trabalhador que seria o protagonista deste novo filme de Wang Bing, o “herói mártir”, se não fossem as ameaças do seu respectivo patrão que impediram do cineasta “recolher” mais filmagens. Continuando, é então que o pai chega à ação e termina com o desligar de luzes, assim como o filme. Rápido? Nem por isso, basta lançar um olhar para o relógio para nos apercebermos que passaram hora e meia de duração.

Tempo, foi aquilo que insinuaram no início da sessão no Doclisboa. Sob um jeito metafórico, filosófico ou esotérico, uma coisa é certa: esse tempo não será devolvido. Agora, ou aceita-se ou dispersa-se da elite. A verdade é que Wang Bing já não se esforça, nem mesmo para protestar, mas talvez o problema seja do próprio festival em colocar um chamado “filme-protesto” em plena competição internacional de longas-metragens. Com “Fathers and Sons”, Bing continua a fabricar reality shows sobre a miséria humana e a vender-nos como se de um Van Gogh se tratasse. Obviamente, é o sistema de autor a funcionar como marketing cinematográfico. Quer queiram, quer não.

"Maidan": julgados em praça pública

Hugo Gomes, 24.10.14

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O bielorrusso Sergei Loznitsa regressa ao cinema documental após um hiato que consistiu no trabalho de duas longas-metragens de ficção (“My Joy”, “In the Fog”). O seu retorno dá-se com o mediatismo dos tumultos da Praça de Kiev (Maidan como é chamada), que decorreram entre dezembro de 2013 a fevereiro de 2014, conduzindo ao exílio do Presidente da Ucrânia, Yanukovych. Este é um documento visual, recontado por uma câmara estática e isento de qualquer discurso político, mesmo que o cineasta demonstra em demasia um certo afecto pela causa popular sem questionar as ambiguidades das suas exigências. O que assistimos em cerca de 130 minutos de filme é um portento de imagens expressivas que evidenciam as diferentes fases de uma manifestação, começando por um comício digno de uma "Festa do Avante", até desesperada, e de certa forma triunfante, revolta popular.

Um conflito que é marcado pela densidade emocional que Loznitsa tece na sua edição e selecção de imagens, onde os discursos dos ativistas conduzem o espectador a uma consolidação com os manifestantes de Kiev e a música evocada por estes, convertem-se automaticamente em elipses arrepiantes (o hino da Ucrânia revelou-se simbiótico com o papel cinematográfico de Maidan). Contudo, este é um filme observacional e experiencial (há quem lhe traça um vertente wisemaniana) o qual não se espera um teor crítico nem investigação ao tema, apenas uma recolha de uma câmara infiltrada que testemunha e que aufere às audiências um lugar de primeira fila no centro dos fortes ventos de mudança e a abertura de um novo capítulo, ainda longe do desfecho, da História da Ucrânia.

De certa forma, Sergei Loznitsa aludiu na praça de Kiev o cinema soviético de Eisenstein, onde o colectivo como uma personagem destemida, mártir dotado de sacrifícios para um bem comum (evitando a transformação epifânica do cinema de Pudovkin, visto falarmos em mestres soviéticos). Apesar de não existir grandes reflexões sociais neste retrato vivo, não é difícil ficar impressionado com a força destas imagens.  

Isto (não) é triste, isto é “Fado Camané”

Hugo Gomes, 23.10.14

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Num dos retalhos do documentário de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, Mudar de Vida” (que integrou a programação do último Indielisboa e a primeira edição do MUVI Lisboa), vemos o produtor musical José Mário Branco - que sempre havia “condenado” o fado, considerando-o numa obra salazarista de “calar um povo oprimido” ou simplesmente vaidade burguesa - a trabalhar com o fadista Camané na gravação do seu álbum “Sempre de Mim” (2008). Estranho, não? O que parece ser hipocrisia é explicado pelo anterior músico de intervenção como uma alteração do seu próprio juízo. A ideia demoníaca foi drasticamente abalada com o contacto e a descoberta da voz do fadista Camané, desde o seu timbre até à sua identidade perfeccionista em busca do tom irrepreensível e dos poemas cantados mais belos que se dão pelo nome de letras.

No novo filme de Bruno de Almeida, “Fado Camané”, somos remetidos ao “fadismo” do próprio artista, desde o seu próprio processo criativo (as imagens da gravação do álbum anteriormente mencionado, ao lado de José Mário Branco), até à dissecação do homem por detrás da arrepiante e emocionante voz, através de uma entrevista efetuada pelo jornalista João Bonifácio para o jornal O Público. Sobre tons cinza e de imagens propositadas de baixa resolução, a obra busca criar uma modesta aproximação do espectador com a sua figura central, convidando-o a conhecer a mesma através do seu vórtice artístico, a sua cumplicidade para com a melodia libertada da guitarra portuguesa e a coordenação de seu novo produtor musical.

Aqui não somos remetidos aos segredos de Camané e o porquê a sua razão de ser fadista como algo mais de teor pessoal e intimista como se adivinhara, mas sim, o avistar a sua complexidade como figura incontornável do fado, o observar a sua atividade na recriação e o processo vocal para a complementação da sua arte. Ponto curioso é que a certo momento, durante a entrevista, o jornalista o questiona de se “aprende-se a sentir“. Mais tarde, Camané canta o tema “O Bicho de Conta”, respondendo indiretamente à pergunta exposta.

Nesses termos, “Fado Camané” é uma obra humilde ao mesmo tempo que tece pretensão limitada quanto aos seus esquemas de alcance. Mas a voz de Camané continua a arrepiar, a invocar deuses frágeis melodicamente acorrentados. Talvez seja ele um dos últimos da sua espécie, visto que depois de Amália Rodrigues são poucos aqueles que ousam transgredir as fronteiras tradicionais do fado cantado. Como aclama o próprio a meio do documentário – “eu não quero ser Amália, eu quero ser o Camané, e eu canto como o Camané“.

"As Cidades e as Trocas": e as baldrocas da transição

Hugo Gomes, 20.10.14

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Pelo vistos a temática de “As Cidades e as Trocas” era de construir um registo silencioso da transformação social e arquitetónica que tem como base a globalização e a exploração empresarial, utilizando como amostra de ensaio uma pequena região de Cabo Verde.

Porém nesta obra cooperativa entre os documentaristas Luísa Homem e Pedro Pinho – este último até responsável há dois anos por um interessante - “Um Fim de Mundo” – o que supostamente seria uma tarefa simples para qualquer académico saído da universidade, é convertido num extenso registo cuja objetividade é pretensiosa e, simultaneamente, vaga demais. Se uma narrativa visual de um documentário como este equivalesse a uma linguagem e se “As Cidades e as Trocas” falasse, o resultado seria um jeito demasiado divagado e recorrente a pormenores fúteis de uma inutilidade exagerada, quase como uma transcrição do louco da Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, porém sem paraíso à vista.

Pois bem, a dita viagem silenciosa é descrita como um anexo de filmagens sem o uso necessário de edição nem sequer de seleção. Homem e Pinho enfrentam o espectador com vários planos inúteis como, por exemplo, uma sequência demorada em que é focada a transmissão de um filme numa velha televisão ou os inúmeros showcases musicais, integrais e quase aleatórios, que pouca emoção transferem às mesmas imagens. Tudo evidencia um medo enorme em editar, em construir um fio condutor narrativamente visual. É como se os seus envolvidos tivessem medo ou simplesmente estima em “dispensar” conteúdo filmado.

Uma das características que revelam um grande realizador encontra-se na montagem, na escolha do material e a disposição desta, e é essa mesma edição que funciona como o idioma do filme, a comunicação com o espectador. Visto o documentário ser dos géneros mais criativos do Cinema, é esse “dialeto” que se deve manter. Para dizer a verdade, “As Cidades e as Trocas” reunia excelente material filmado, só faltava mesmo a direção deste … e assim a mensagem ficou dispersada no oblívio. Um pretensioso desperdício de duas horas e tal!

“Vocês Ainda Não Viram Nada” … e ao mesmo tempo viram tudo

Hugo Gomes, 06.10.14

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Com o seu penúltimo filme, Alain Resnais, como se presenciasse a sua eventual morte, evoca fantasmas para um último reencontro com a melancolia e a tristeza que forma o teatro. O resultado é um ensaio artístico da interpretação, culminando e dissecando a condição de ator para uma última estância, por vias de um exercício de estilo através de uma reinvenção trágica de "Eurydice", da autoria de Jean Anouilh.

Um funeral encenado, tão pessoal e fantasmagórico cuja beleza que transborda é, por si, inegável. Espíritos eruditos que culminam a arte em prol de uma forma poética de narrativa, cada vez mais fundindo, como peças de serralharia, a veia teatral com a beleza artificial do cinema. É aquele tipo de cinema que deixaria orgulhoso o próprio Manoel de Oliveira de “Mon Cas” / “Meu Caso” (1986), segundo este – "quando mais perto o cinema está da realidade, mais longe estão da arte". Neste caso, a arte é a sua coluna vertebral e o que encontramos aqui não são devaneios egocêntricos, nem a liberdade de expressão direta dos recantos mais obscuros da alma de um artista, mas sim a própria alma, a dedicação e a paixão de um autor que tão bem sabe "fabricar" híbridos e lhes aufere vida.

“Vous n'avez Encore Rien Vu” (“Vocês Ainda Não Viram Nada”) é das suas recentes criações experimentalistas, uma obra de exata precisão no seu timbre artificial que por momentos nos faz acreditar no cinema não como uma narrativa ficcional e novelesca, mas como um estimulante da nossa imaginação. É quase como um auto-tributo, Resnais requer a presença dos seus "heróis", atores verdadeiros a demonstrarem que são atores e não as personagens do momento, a interpretar nas suas próprias peles, ao mesmo tempo que exibem os multifacetados esconderijos intrínsecos (e que belos empenhos se dignificam a mostrar). Poderia ser perfeito esta espreitadela por entre as cortinas vermelhas, mas o final deixa quase tudo a perder, dando um sentido àquele artificialismo que havia concretizado desde então.

Exceto isso, temos uma bela melodia sobre a morte, o legado e o esquecimento, o cinema e o teatro de mãos dadas para mais uma vez sobressair das suas amarras, da narrativa convencional e desafiar, não a mente, mas a sensibilidade do seu espectador. Ouçam o canto dos defuntos. Que bela melodia fazem!