Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Crimeia, mon amour

Hugo Gomes, 23.09.14

Name-Me-2-1240x620.jpg

Russos na Crimeia! Agora que já consegui a vossa atenção, vou então prosseguir. O que temos aqui não é nenhum filme de teor político sobre o mediático conflito que faz correr tinta nas diversas manchetes da imprensa internacional. Não, em “Name Me”, de uma estreante no território das longas-metragens, a russa Nigina Sayfullaeva, o que encontramos é um drama conflituosamente psicológico que nos remete ao caos como uma força impulsora. Força, essa, motivada por um voluntária, mas não inofensiva, “troca de identidades”. A história remete-nos a duas jovens moscovitas, as amigas inseparáveis Olya e Sasha, que seguem viagem para a região da Crimeia para conhecer por fim o pai de Olya. Mas, quando chega a hora da verdade, esta sente-se insegura quanto ao tão esperado encontro. Assim sendo, Olya pede a Sasha para “trocar de lugar com esta”, visto ser uma rapariga mais espontânea e menos inibida. No início toda esta situação torna-se divertida e gratificante, mas cedo Sergey [o pai] começa a desconfiar do sucedido e as consequências são assim desvendadas.

Acredito que este “Name Me” foi um filme concretizado sem a menor intenção de invocar uma crítica social e política, mas tal e qual como a suposta “brincadeira inocente” dos seus protagonistas, o inevitável é algo que não se consegue contornar e assim sucedem as sequelas. Há duas maneiras de “ler” este filme: a primeira como o enésimo drama da busca pela entidade paternal num conturbado coming-to-age; a segunda, com as personagens e as suas situações a surgir como espelho do panorama atual onde, por mais que a opinião pública discuta o tema, tudo se resume a um conflito ambíguo e de delicada abordagem. Name Me” é um filme vertiginoso em termos emocionais, filmado com um naturalismo que só salienta esses mesmos sentimentos e a dupla vencedora de atrizes (Alexandra Bortich, Marina Vasilieva) revela-se um duo explosivo, quer na interpretação, quer pela evolução a que as suas personagens são submetidas.

Por sua vez, Konstantin Lavronenko (de “The Return”, de Andrey Zvyagintsev), apresenta-nos uma figura negra de difícil interação com o espectador. Porém, a tarefa não é impossível e, quando o consegue, impossível é mesmo largar essa compaixão. Estes “três peões” formam um triângulo aguçado que tendem a comprimir gradualmente sob um cenário que se demonstra frio e por vezes hostil para o efeito. A narrativa os acompanha com uma certa cumplicidade enquanto num tremendo loop de emoções. Esta é uma fascinante primeira obra, que visa uma construção versátil nas suas personagens e a desconstrução da sua ênfase dramática, ao mesmo tempo que tece uma demanda cronista e subliminar do conflito da Crimeia, perceptível a quem pretender ver para além das aparências.

Para onde vão os músicos de intervenção?

Hugo Gomes, 15.09.14

image003-2.jpg

Por muito tempo pensou-se que os músicos de intervenção eram “figuras” obsoletas, presos a uma época onde a opressão era tida como rotina, e cujos seus actos de rebeldia musical serviriam como ninfas de alento quotidiano. Mas afinal o que acontece a esses mesmos profissionais quando o Inverno que haviam combatido desaparece e automaticamente dando lugar à Primavera (metaforicamente falando)? Será que vale a pena lutar pelas restantes injustiças sociais que por eventualidade surgem? Deve-se continuar a manter a mesma postura revolucionária mesmo quando os tempos que decorrem não requisitam, aparentemente, tal atitude? “Mudar de Vida” não responde diretamente a essas perguntas, mas deixa no ar a sugestão para as suas resoluções.

Um projecto de baixo-orçamento, erguido por um crowdfunding, que centra na personalidade de José Mário Branco, um autêntico homem de sete ofícios: produtor, músico, actor de teatro e activista. Neste momento o leitor deverá estar a interrogar quem será a dita “personagem”, mas a verdade é que o tempo não foi muito sereno para este artista, que após uma luz da ribalta como um dos heróis do 25 de Abril (foi produtor da eterna música de Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena”) ficou esquecido e descartado como uma peça inutilizada do chamado novo arco democrático português. Branco tentou de tudo para encontrar um propósito da sua existência nos anos que seguiram, tentou o teatro, a produção de novas músicas e colaborações com novos artistas, mas foi vítima de uma subvalorização e de um desrespeito político como também do desinteresse do “povo”, pelo qual sempre defendeu contra, segundo o próprio, a “tirania da burguesia”.

O Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro converte “Mudar de Vida” numa peça de tributo, retalhista da vida do homenageado, mas acima disso e talvez refletido na própria figura de José Mário Branco, temos um documento sobre as mudanças políticas e sociais de Portugal, oportuno num tempo em que cada vez mais sentimos a necessidade de uma nova mutação. Recheado com raras imagens de arquivo e a narração e condução de José Mário Branco de um jeito espirituoso, “Mudar de Vida” envolve-nos com uma vitalidade pertinente, sabedoria e muita provocação. É um filme corajoso como a figura que presta (figura essa, que é um verdadeiro “trunfo”).

Mudar de Vida é uma questão que não está resolvida

Lingerie de luto

Hugo Gomes, 10.09.14

87902831_661360244609697_755559728905453568_n.jpgDick Tracy: No grief for Lips?

Breathless Mahoney: I'm wearing black underwear.

Dick Tracy: You know, it's legal for me to take you down to the station and sweat it out of you under the lights.

Breathless Mahoney: I sweat a lot better in the dark.

- Warren Beatty e Madonna em Dick Tracy (Warren Beatty, 1990)

 

Takes MUVI Lisboa’14: criações, separações e mortes

Hugo Gomes, 08.09.14

Our Vinyl Weighs a Ton: This Is Stones Throw Records (2013)

9563757.jpg

Documentário que acompanha o percurso histórico de uma das incontornáveis editoras musicais de Los Angeles, aStone Throw, conhecida pelas suas apostas radicais, marginalizadas pela grande indústria e avant-garde. São memórias dispostas em retalhos que concentram as alegrias, a fraternidade vivida nas quatros paredes daquela “label”, a tragédia, também ela marcante e a decadência dos seus próprios artistas. Temas expostos numa peça documental assinada por Jeff Broadway (produtor de “Cure for Pain”, documentário retalhista de Mark Sandman, vocalista e baixista dos Morphine, também integrado na programação do MUVI Lisboa’14), que engendra uma visual dinâmico e criativamente rigoroso, estruturado por filmagens, excertos de videoclipes e testemunhos (alguns deles insólitos).

Porém, cinematograficamente encontramos um filme formal e modelizado. Falta-lhe sobretudo inovação narrativa, alguma loucura pelo meio que invoque rasgos de devaneios artísticos e um olhar crítico mais acentuado (o “desertar” de Aloé Black para um estúdio maior era motivo suficiente para o arranque de um aguçado debate sobre a fidelização). É que sem isto, “Our Vinyl Weighs a Ton” (título retirado do incontornável álbum de DJ Peanut Butter Wolf, editado pela referida Stone Throw), é uma obra que não provoca nem incomoda, um “bonitinho” tributo capaz de despertar comoção a quem o assiste mas não a quem o verdadeiramente sente.

É ambicioso sim, nisso há que dar o mérito, mas é uma tarefa ingrata descrever anos e anos de riqueza histórica e de vivências em noventa minutos, ainda por cima se o documentário em si se preocupa mais com o seu estilo visual, os seus atributos de trabalho de edição, do que propriamente com o conteúdo. Com entrevistas a Common, Kanye West, Talib Kweli, Peanut Butter Wolf, Flying Lotus, Snoop Dog, entre outros.

 

Leave the World Behind (2013)

MV5BNjc3NDMwNjExOF5BMl5BanBnXkFtZTgwMjcyMTAxMzE@._

Formados pela primeira vez em 2005, este grupo de três DJs intitulados de Swedish House Mafia (Sebastian Ingrosso, Axwell e Steve Angello) foram os protagonistas de um fenómeno musical que voltou a colocar a dance house music no mapa do sucesso. Porém, algo aconteceu em 2013 e o grupo anunciou o seu fim. De certa forma, para compensar os fãs desta devastadora notícia e relembrar os "velhos tempos" enquanto grupo, decidem avançar com uma ambiciosa tour com mais 50 espectáculos por todo o Mundo, a "One Last Tour", o qual chegou a vender uns estrondosos milhões de ingressos.

“Leave the World Behind”, de Christian Larson (o homem por trás de videoclipes de alguns dos êxitos do grupo), acompanha essa mesma tour, ao mesmo tempo que tenta apurar as causas da separação do grupo responsável pelo sucesso de “Don't You Worry Child”. Em termos estruturais estamos perante de um videoclipe alargado, psicadélico e sob uma narrativa fast forward intercalada pelos testemunhos dos respectivos membros: Ingrosso, Axwell e Angello, os quais expõem os seus medos, a vontade (quase desconhecida) de terminar uma parceria com mais de oito anos e os desejos futuros que vão desde uma carreira a solo até a exclusiva dedicação às suas respectivas famílias.

Trata-se de uma obra concretizada como objecto lisonjeador de um legado pessoal, mais do que o lado artístico do trio. Assim sendo, “Leave the World Behind” é uma produção condicionada aos fãs, como qualquer programa televisivo da MTV se resumisse, descartando qualquer entrada de novos membros no fascínio colectivo. Em suma, eis uma obra visualmente sedutora, principalmente por todas aquelas imagens dos derradeiros espectáculos dados pelo grupo, mas nada de verdadeiramente imperdível para apreciadores de música em geral. Júbilo de fãs, é o que é!

 

Anyone Can Play Guitar (2009)

maxresdefault.jpg

Anyone Can Play Guitar remete-nos ao boom das bandas roqueiras de Oxford, desde 1978 até aos tempos atuais. Influenciados pela onda punk dos anos 70, que de certa forma democratizaram o acto de fazer música, ao mesmo tempo que implantaram uma anarquia estrutural dentro do meio artístico, as bandas de Oxford cresceram até originar uma complexa diversidade de melodias e estilos, umas com mais sucesso que outras, mas todas elas contribuíram para colocar a cidade inglesa como a capital musical do século XX (tendo Oxford mais bandas por metro quadrado que qualquer outra cidade do Mundo). Dentro desse movimento musical, surgiram grupos como os Radiohead (provavelmente a banda mais conhecida desta manifestação), Supergrass, os "amaldiçoados" The Candyskins, Talulah Gosh, a promessa que nunca cumpriu que foram os The Unbelievable Truth e entre outros.

Um coisa é certa, conforme seja a natureza do documentário, o factor que o poderá distinguir dos demais não é o seu conteúdo, mas a forma como é exposta e elaborada a sua narrativa, e por fim avaliar se esta é ou não propícia para algum tratamento estilístico (um toque autoral e criativo aufere personalidade). A verdade é que em “Anyone Can Play Guitar” há um tema, mas o que não temos é a ousadia nem sequer a inovação de desenvolver esta imensa teia de histórias sobre o movimento musical de forma menos académica. E é sobre esse academismo que se aponta como falha neste filme escrito e dirigido por Jon Spira, o qual o transformou numa peça formalizada mas de composição quase televisiva, sem grande arte na sua concepção. Por outras palavras, a narrativa segue isenta de qualquer conflito inerte, sem a ambição para mais do que somente uma linha intercalada por entrevistas, filmagens, entrevistas e assim por diante.

Obviamente a matéria recolhida para este exemplar merecia uma disposição mais dinâmica de forma a complementar os tons de crítica que por vezes instala, mas tudo é ofuscado por uma falta de interesse em explorar as mesmas. Soa como um resumo de algo grandioso, ficando-se pela riqueza musical e pelas dignas intenções. Este é um dos casos que por vezes o conteúdo não é o suficiente se não possuir forma.

 

Cure for Pain: The Mark Sandman Story (2011)

mark-sandman-morphine.jpg

Uma bateria de Billy Conway, um saxofone barítono de Dana Colley e um baixo de duas cordas tocado pelo também vocalista Mark Sandman, uma estranha composição de instrumentos que ninguém acreditaria que fosse capaz de gerar tão distinta e única música de low rock nos anos 90. Tinha o nome de Morphine, uma banda norte-americana que ficou célebre pela alienação dos seus sons, pelo estranho conjunto de instrumentos e pelo carisma do reservado Mark Sandman, o qual este documentário dirigido pela dupla Robert Bralver e de David Ferino e produzido por Jeff Broadway dedica por completo.

“Cure for Pain: The Mark Sandman Story” (alusão aquele que foi para muitos o melhor e inovador dos álbuns da banda) nos apresenta de forma poética, envolvente e explicita a vida deste artista completo e talentoso, o seu passado marcado pela tragédia familiar, o sucesso mundial da banda e a influência da sua música na sociedade dos anos 90 até chegar a sua literal queda em palco derivado a um ataque cardíaco que o vitimou durante um concerto em Palestrina, Itália em 1999.

Conservado a aura mítica envolto da figura retratada, o documentário consegue ser emocionante nos seus testemunhos e na transposição da união do seio musical quando um dos seus membros os deixou sob circunstâncias abruptamente trágicas e dramáticas. Um tributo algo obrigatório para todos os fãs da banda e não só, amantes de música em geral, onde a imagem de Sandman é restaurada e abordada tal como ela é, sem embelezamentos e bajulações exageradas. Uma personalidade misteriosa a descobrir a todo o custo. Ainda somos presenteados com entrevistas de Ben Harper, Josh Homme (vocalista e guitarrista de Queen of the Stone Age), Mike Watt (baixista dos The Stooges) e Les Claypool (Primus).

"Marina": a outra mulher!

Hugo Gomes, 05.09.14

F1401 marina.jpg

Toda a gente tem uma paixão, mas por vezes é a vida que decide por nós”, proclama Salvatore Granata em especial consideração ao seu filho, um gesto contraditório aos incentivos que havia cometido no passado. Felizmente o filho, Rocco, não seguiu o conselho do pai nem sequer as suas pisadas profissionais. Como todo o jovem rebelde de espírito e fiel às suas convicções, aposta numa carreira musical. Com mais contras do que Prós, Rocco Granata lá conseguiu construir a carreira dos seus sonhos, em grande parte devido ao seu êxito acidental, o lado B do disco “Manuela”, a outra mulher, a canção “Marina”.

Sem grandes surpresas, Stijn Coninx (“Daens”), com produção dos irmãos Dardenne, dirige um biopic esquemático, intencional e demasiado apegado ao seu espírito como tributo, mas dentro do subgénero que teima em não procurar novos conceitos narrativos, “Marina” é caso merecedor de uma espreitadela. Aqui somos remetidos a um trabalho técnico, principalmente na fotografia de Lou Berghmans, que salienta a atmosfera do momento (nota-se a mudança brusca entre a Itália solarenga e a Bélgica cinzenta e melancólica), e a música de Michelino Bisceglia, cúmplice desse mesmo ato emocional.

E falando em emoção, o catalisador deste no filme “Marina” não é sequer o seu protagonista e o romance de cariz obrigatório neste tipo de produções, mas sim Luigi Lo Cascio, o ator que interpreta o referido Salvatore Granata, dispondo um trabalho rigoroso em compor uma personagem ditada por diversas dicotomias. Porém, é a sua causa que irá de certo aprofundar a narrativa e, sim, comover o espectador. Como seu pano de fundo, surge uma ingenuidade funcional enquanto crítica social, visando a condição do emigrante, o “alien” como a certa altura é apelidado, e, sob o signo dos estereótipos italianos, a pobreza como caminho direto para a integração ilícita e mafiosa, como pôde ser testemunhado num quase insignificante diálogo inicial entre crianças.