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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Ossos": a condição fraturante de Pedro Costa

Hugo Gomes, 29.08.14

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Concluída a rodagem de “Casa de Lava” (1994), cujas filmagens decorreram na Ilha do Fogo [Cabo Verde], vários habitantes solicitaram ao realizador Pedro Costa para que entregasse cartas aos respetivos familiares de Lisboa, grande parte deles residentes no desolador bairro das Fontainhas, nos arredores da Amadora. Com esta experiência Costa integrou uma comunidade aprisionada por uma barreira invisível social, confinada à sua própria degradação, num “paraíso prometido” não citado em “Casa de Lava”.

É certo que segundo o próprio Pedro Costa, existe mais “portugalidade” aí que no país inteiro e “Ossos”, a sua obra seguinte (estabelecendo um catalisador dessa perdição identitária, uma cultura contagiada e híbrida que “promete” estampar nas velhas tradições já constituídas) é o seu claro objeto desse mesmo estudo teorizado. Pedro Costa emana um drama sob fortes toques documentais, aliás, é evidente encontrarmos um manifesto etnográfico em todo o seu sentido e uma exploração digna do estilo neo-realista italiano. Sendo que o lado ficcional, preservado por um realismo quase formalista, mas em pleno espírito de rebeldia para com a câmara, é afetado por uma constante demonstração de atos metafóricos e alusivos.

A história que centra em redor de uma criança não querida pelos seus progenitores, abandonada à sua sorte e à deriva do respetivo destino, é o ponto que une todo um conjunto de personagens desesperadas e de igual situação identitária. Trata-se do espelho de uma sociedade empestada por um futuro negro e desesperante, Costa profetizou a destruição de um captado modo vivente (a demolição do bairro das Fontainhas em 1999) e a dispersão dos habitantes com que havia convivido durante anos, os seus anti-heróis cinematográficos, mas heróicas figuras da realidade.

Com “Ossos”, o realizador afasta-se claramente da ficção cinematográfica imposta pelo Cinema Novo, por sua vez influenciada pela Nova Vaga francesa, que fora vista nos seus anteriores O Sangue (1989) e “Casa de Lava”, para se lançar numa íntima docuficção. Costa perde a olhos vistos a formação académica e revela a sua rebeldia fílmica para o grande ecrã, sem perder assim o seu gosto pelo estético, pelo planos renascentista e pela fotografia sombria e melancólica em toda essa transição. Depois do catalisador que fora “Casa de Lava”, Pedro Costa abre a sua trilogia das Fontainhas com esta romantização.

"Lucy In The Sky With Diamonds"

Hugo Gomes, 28.08.14

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Nos tempos que correm, de Luc Besson não se espera “grande” coisa, muito menos algo alegadamente astuto como este “Lucy”, mas para entender este “out of box” dos blockbusters de Verão devemos recuar uns “valentes” anos e nos afastarmos do cinema.

Em 1973, uma equipa de arqueólogos, que buscava artefactos sobre a origem humana na Etiópia, deparou-se com um fóssil de um hominídeo, na altura desconhecido para o Mundo, bastante mais antigo que os fósseis descobertos até então. Semelhante a um chimpanzé, mas com o crânio muito mais desenvolvido, os cientistas teorizaram que esta nova espécie possuiria um intelecto superior ao do referido primata. Os ossos ainda evidenciavam algo mais surpreendente: este animal conseguiria caminhar “erecto”, uma posição que ditou para sempre a evolução do Homem, fazendo com que largássemos as florestas arborizadas e caminhássemos pelas vastas savanas. 

O leitor de momento estará a perguntar qual a relação entre este facto com o filme protagonizado por Scarlett Johansson. Bem, esse mesmo hominídeo, tendo em conta os ossos da pélvis, era uma fêmea e curiosamente foi baptizada de Lucy. Reza a história que na altura da sua descoberta se ouvia no leitor de cassetes o single “Lucy in a Sky with Diamonds” dos Beatles. Pois bem, Lucy foi a “Eva da Ciência”, a primeira Mulher descoberta e a sua relevância para o conhecimento de onde viemos e como chegamos até aqui é crucial. Agora no mundo cinematográfico, Lucy será a primeira mulher, se não personagem, a atingir os 100 % de uso cerebral, de acordo com especulações científicas e pelo bom nome da sci-fy, um ridículo “what if” que surpreendentemente se torna num produto munido duma inteligência experimental e ao mesmo tempo lúdica.

Assim, iniciamos com a sequência de um primata a “matar” a sua sede num lago, nesta altura o cinéfilo apanhado de surpresa identifica tal cena com uma similar na incontestável obra-prima de ficção científica de Stanley Kubrick, “2001: A Space Odyssey”. Porém o leitor já deve aperceber e tendo em conta a longa divagação desta crítica que tal animal é Lucy, o dito hominídeo fêmea, o filme encarrega-se mais tarde de identificar a criatura, mas entretanto somo apresentados à nossa Lucy, uma vistosa Scarlett Johansson que, nos primeiros minutos, tem a difícil missão de entregar uma maleta de conteúdo desconhecido a um sujeito numa redacção de hotel em Taiwan [uma piscadela de olho ao mercado asiático].

Neste momento o espectador sente que algo não está bem e que depressa acontecerá o inevitável, um dispositivo que nos guia automaticamente ao enredo da fita. Luc Besson aufere assim ansiedade e ritmo a esta sequência inicial, usando uma montagem intercalar: enquanto Lucy se aproxima do seu alvo, as imagens de uma gazela a ser encurralada por uma chita intervêm sem aviso, invocando a memória das experiências executadas pelos cineastas russos (vêm à memória Sergei Eisenstein e a sua “A Greve” (“Strike), a constante mudança entre conflitos de sindicatos e a matança do bovino).

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Depois do enredo principal ter então arrancado, Morgan Freeman entra em ação em modo discursivo, introduzindo o espectador à premissa do filme, os ditos controlos cerebrais e suas consequências (ou dádivas). Como é óbvio a narração de Freeman é carismática, confortante e acima de tudo sábia, ele é o “gamekeeper” deste ensaio futurístico. Escusam de negar, a verdadeira intenção de “Lucy” foi apresentada muito antes do filme ser visto: quer no poster ou trailer, as condições do contrato deste novo produto de Besson é um exercício de possibilidades e nada mais. A capacidade de assistir ao próximo passo da evolução humana obviamente não passa de uma sugestão cinematográfica ou da teoria do mais fértil e imaginativo geek, mas o filme sabe “controlar” essa vertente e criar um espectáculo visual e por vezes narrativo.

Em segundo plano, são convocados todos os elementos dignos do já estabelecido cinema de Luc Besson: os tiroteios, lutas corpo-a-corpo, perseguições e, como não poderia faltar, uma França vista pelos olhos dos americanos. Ingredientes que tão bem sabem à “reinvenção bessoniana”, mas em doses menores e facilmente doseáveis. Mas “Lucy” prevalece como uma “ovelha negra” dentro desse mesmo rebanho, um filme pouco original que acaba por se tornar numa vistosa e desafiante fantasia científica. Por fim vale a pena salientar Choi Min-sik, visto no excelente “Oldboy” de Park Chan-wook , um arrepiante e magnético “vilão de serviço”, um complemento frenético com uma sedutora e fria Johansson.

Quando o romance prevalece como a maior das epopeias

Hugo Gomes, 23.08.14

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Primeiro de tudo esqueçam as polémicas em volta das extensas cenas de sexo (que segundo as más-línguas roçam a pornografia) e concentrem-se na própria simplicidade que “A Vida de Adèle” (“La Vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2”), a quarta e triunfante obra de Abdellatif Kechiche, emana. Obtendo o mérito de conquistar a Palma de Ouro do último Festival de Cannes, num ano em que o júri era presidido por Steven Spielberg, “A Vida de Adèle” é baseada numa banda desenhada de Julie Maroh, “Le Bleu est une Couleur Chaude”, a história de amor entre uma jovem subjugada aos seus dilemas emocionais, Adèle (Adèle Exarchopoulos), com uma estudante de Belas-Artes, a lésbica assumida de cabelo azul, Emma (Léa Seydoux).

Este é um filme sobre relações afetivas, os polos positivos e os negativos que irão gerar fervorosas paixões consumidas. Trata-se de um retrato sobre dois seres que desafiam as próprias barreiras das convenções sociais em prol do amor e da cumplicidade, uma relação que é preservada, mas não eterna perante a distância intrínseca que se propaga e evidencia-se durante a narrativa. Ou seja, Abdellatif Kechiche constrói uma obra de velho registo, o clássico “when boy meets girl” (neste caso “when girl meets girl“) que está mais que vendido para o grande ecrã, onde o autor segue para lá do happy ending e provoca assim os próprios cânones cinematográficos, aproximando-o cada vez mais do realismo que não se limita ao estético e interpretativo, mas sim às componentes emocionais.

É que em pouco menos de três horas de duração, o realizador consegue “pintar” um quadro trágico e cru, onde a câmara, que prefere os grandes planos, parece alimentar-se das emoções dos atores, originando uma invasão de intimidade entre o espectador e as personagens. Tal câmara responde a um testemunho que não procura o espectáculo, mas sim o decifrar dos códigos das afinidades afetuosas. Se o realizador é eficaz em tal demanda? Diríamos antes que Kechiche é perfeito no papel de “voyeurista emocional“, onde o seu modus operandis persistente, repetitivo e constantemente impertinente torna-o num implacável produtor ou irradiador de sentimentos, os quais parecem arrebatar todo o ecrã.

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Tudo isto não funcionaria na perfeição se “A Vida de Adèle” não fosse envergada por duas atrizes dispostas a ser submetidas a tal experiência “kechichiana”. São desempenhos poderosos, não no sentido mais estonteante de muitas das prestações oscarizadas de Hollywood, mas sim pela naturalidade que empregam. Apesar de Léa Seydoux ser a sedução em pessoa, é em Adèle Exarchopoulos que os elogios caem em força. A jovem atriz consegue não só esboçar uma personagem carnal, pontuada por um desenvolvimento quase digno do registo literário, mas também pela “penetração” na essência do filme. Com isto quero dizer que derivado à forma diretiva que Kechiche opera, o qual as suas obras são suportadas pelos seus atores que cedem a uma constante “tortura interpretativa”. Exarchopoulos responde ao desafio exposto com uma espontaneidade de “cortar o fôlego“.

“A Vida de Adèle” é um filme belo, não no sentido figurativo nem concretamente visual, mas sim na sua forma experiencial, incutindo e simulando na perfeição uma história que muito bem poderia ser vivida por qualquer um, independentemente das orientações sexuais, etnias, religião e classe social. Um dos grandes filmes do ano, onde as emoções continuam a ser o próprio espectáculo cinematográfico.

Chovem maliquices ...

Hugo Gomes, 18.08.14

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Foram precisos 12 realizadores e argumentistas para desmistificar a vida e os segredos subliminares do poeta norte-americano C.K. Williams [vencedor de um Pulitzer] neste Tar. O resultado é um biopic que na teoria se revela pouco usual, a adaptação de 11 dos seus poemas como narrativa que invoca as diferentes fases da vida do escritor, mas que na prática é tudo menos original.

Tudo aqui exposto é demasiado poético, mas num sentido mais “copista” que intrínseco. Os poemas, uma base excecional e rica em emoções, são transformados num “wanna beTerrence Malick [decreto a criação do pejorativo termo “maliquice”]. Parece ingrato esta insinuação, sendo que talvez o realizador sempre sonhara em aproximar-se do poeta do que propriamente o inverso, mas enquanto um é um artesão na Sétima Arte, o outro é um figura celebrizada e incontornável da literatura poética norte-americana. 

Pois bem, “Tar” (título alusivo a um dos seus mais marcantes poemas) é uma divagação que se arrasta em territórios malickianos, a natureza como berço desses pensamentos existencialistas e a figura maternal como centro do conflito humano. Os pensamentos estão lá, as filosofias “arrancadas” visceralmente dos poemas de C.K. Williams empregam na narrativa como meros alicerces e os atores expostos neste projeto ambicioso convertem-se em meras figuras inanimadas, inspiradores das palavras de Williams, condenadas às suas sílabas e da força com que são proferidas por James Franco.

Tar” é somente isto, um filme limitado pelo seu sentido de homenagem, reduzido a mera estrofe e orientado pela sabedoria de um artista valioso na cultura dos EUA e não só. Quase que nos força a afirmar que os poemas foram feitos para serem citados e não ilustrados. Beleza sem intenção nem com a sensibilidade desejada.

 

“Someday, some final generation, hysterically aswarm

beneath an atmosphere as unrelenting as rock,

would rue us all, anathematize our earthly comforts,

curse our surfeits and submissions.”

Tar, C.K. Williams, 1936

"Casa de Lava": quando Pedro Costa quase se reduziu a cinzas ...

Hugo Gomes, 14.08.14

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Se em “O Sangue” (1989) assistimos à revelação de Pedro Costa como cineasta de um panorama cinematográfico nacional que desgarra-se calculadamente dos traços do Cinema Novo, era de esperar que “Casa de Lava” (1994) fosse a sua reafirmação. Porém, se por um lado esta sua obra revela e redefine as características que tornaram Costa no conceituado realizador dos dias de hoje, é verdade que é em “Casa de Lava” que assistimos o seu descoberto fraudulento, evidenciando talento e ao mesmo tempo inexperiência nessa sua perspectiva artística. Enquanto em “O Sangue”, a vitalidade da intriga encontrava-se num rio, em “Casa de Lava”, esta está indiciada num vulcão, elemento invisível, mas igualmente presente. Como as suas consequências, o cenário é uma região árida por terras magmáticas que impedem o surgimento de nova vida, embora desta não esteja isenta.

Talvez esta ilha (Ilha de Fogo, o filme começa com imagens da erupção daquele vulcão filmada por Orlando Ribeiro em 1954) seja o vetor dramático deste novo Casablanca, onde novamente Lisboa é tido como o refúgio digno de alcançar (mais precisamente Sacavém como o derradeiro Paraíso). Enquanto isso, esta ilha de fogo consumado é a terra da música melancólica, agradada pelos vivos, mas ouvida pelos mortos, sendo que os moribundos, os “zombies” sem vodu, se manifestam numa eterna guerra entre a vida e a morte. É um local de desespero, de esperanças há muito vencidas pelo tempo “congelado”. Inês de Medeiros, novamente peão das jornadas sugeridas por Pedro Costa, resulta no seu novo “ventríloquo”, enquanto que Pedro Hestnes (que está para Costa, como Denis Lavant está para Leos Carax), fluente em crioulo, é o seu contra-veneno. Mas em Casa de Lava sentimos o desapontamento, sentimento esse, derivado da renegação do autor à arte do storytelling.

O paradoxismo dos diálogos, algo que já havia sido notado em “O Sangue”, mas que fora fincado nesta nova jornada, e a narrativa que se perde nos impasses, esses mesmos em consequência dos devaneios artísticos impostos por Costa, ou talvez o pouco rigor com que consegue abordar o seu redor com lucidez. O cineasta parece ter adoptado o registo já formatado no círculo de autores cinematográficos de Portugal, a recusa pela matriz académica da narrativa e a entrega pela narrativa visual (a aversão dos “autores” a esses fatores deriva da formalização modelizada dos produtos televisivos ou produções hollywoodescas). Se bem que esse factor inúmeras vezes é detido como um disfarce, uma maneira de ocultar a inexperiência do cineasta em conduzir o seu enredo ou implementar as suas mensagens inerentes, em Pedro Costa notamos essa inexperiência em erguer um “Golias”, mas nunca incompetência. Porém, revela mais fraquezas que aptidões.

Segundo os textos da Cinemateca-Portuguesa, “Casa de Lava" é um trabalho de estudo para o filme seguinte, "Ossos” (1997), e talvez por isso um estudo estilístico e de complexidades narrativas quer visuais quer linguísticas. Contudo, desperdiçou-se aqui um eventual grande filme.

Ilo Ilo: sentido o afeto pela primeira vez!

Hugo Gomes, 12.08.14

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Há mais por onde olhar em Ilo Ilo do que aquilo que a câmara de Anthony Chen nos possibilita. Desde o primeiro momento, a estreante longa-metragem do singapurense (vencedor da Câmara de Ouro do Festival de Cannes em 2013) aufere-nos um rigor em transmitir uma tensão insuportável entre as suas personagens, uma credibilidade de "afiar a faca" entre os membros desta realidade quotidiana, ao mesmo tempo que tece um híbrido entre o emocional e o nostálgico com o retrato social e financeiro de um país em vias de ser "estrangulado".

Trata-se de uma rescrita visual através da memória, uma invocação dos sentimentos e afetos passados do autor, refletidos neste constante soneto. Ilo Ilo decorre nos final dos anos 90, com a crise financeira asiática a avançar com um caçador furtivo se tratasse. No centro deste "mundo suspenso em dominó" encontramos a família Lim que contrata a filipina Terry para ajudar na lida da casa. O impacto inicial entre a "estrangeira" e a respetiva família está longe de ser pacífica, em principal destaque com o filho do casal, um rebelde menino de dez anos chamado Jiale que promete fazer a vida negra à empregada. Contudo, a relação entre os dois acaba por melhorar, nascendo uma ligação especial.

Anthony Chen constrói um filme realista por meio de planos fechados, trémulos e sob o efeito da sugestão. Aos poucos vai tecendo uma veia sentimental que "dispara" no último ato. E mesmo que as consequências nos levem a certos lugares-comuns, Chen nunca baixa em momento algum a guarda e evita requisitar a fábula cinematográfica, mantendo-se e fiel ao realismo das imagens nem que com isso exponha a violência das mesmas. Ilo Ilo é um drama familiar que tem a virtude de se moldar, converter em algo mais o pressuposto, invocando "demónios" sem nunca os exorcizar. Assim sendo, para além do enredo principal, a fita embrulha-se num cenário de época enquanto revela à "luz do dia" os ecos de uma crise financeira e social, que condenou vidas e atrasou objetivos e carreiras promissoras.

Uma estreia faustosa e comovente. Anthony Chen conseguiu captar a nossa atenção neste quadro híbrido de saudade e urgência - estamos interessados em conhecer o que a sua carreira nos reserva.

Defendendo o Universo com ritmo ...

Hugo Gomes, 11.08.14

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O estatuto da Marvel como produtora cinematográfica é tal que chegaram a contratar o quase desconhecido, mas competente, James Gunn (quem se lembra de “Slither” ou “Super”?) para dirigir uma das suas apostas mais arriscadas. Trata-se de “Guardiões da Galáxia” (“Guardians of the Galaxy”), uma das séries mais alternativas da Marvel enquanto editora, constituído por um elenco pouco apelativo para as grandes massas, mas que mesmo assim conseguiu um hype estrondoso durante os seus primeiros dias em cartaz, um frenesim que nenhum outro filme da Marvel havia “gozado” desde então. Mas será esse dito hype, algo merecido ou um puro exagero? Perguntam vocês e muito bem.

Na verdade, “Guardiões da Galáxia” resume-se a um filme fresco dentro dos parâmetros formatados do estúdio e com um claro bom gosto ao vintage. Esse último ponto torna-se evidente a banda sonora, uma alegoria de êxitos dos anos 70 e 80 (de David Bowie a Marvin Gaye, passando pelo atipico “Hooked on a Feeling”, dos Blue Swede) e o tom satírico da obra que o distingue do humor quase slapstick dos anteriores capítulos da Marvel Cinematic Universe.

Quanto ao enredo, este centra-se nas aventuras de cinco “desajustados” fora-da-lei intergaláticos que decidem intervir para o bem de todo o Universo, ou seja, impedir que os maléficos planos de um vilão de serviço se concretizem. Esse dito “quinteto de cordas” é constituído pelo terráqueo John Quill e o seu forçado “alter-ego” Star-Lord (a ascensão de Chris Pratt para futura estrela), a assassina Gamora (Zoe Saldana e mais uma variação alienígena, desta verde), o brutamontes com problemas de expressão Drax the Destroyer (o wrestler Dave Bautista), a simpática árvore mutante Groot (Vin Diesel naquele que poderá ser o melhor papel da sua carreira e apenas munido com um frase, repetindo vezes sem conta) e por fim o guaxinim rezingão e malicioso Rocket (Bradley Cooper). A química entre eles é impagável e invejável, sendo os cinco o “motor” de todo o filme, e talvez o motivo que baste para tornar a obra de James Gunn na melhor variação cinematográfica da Marvel Studios. Se não for o caso, talvez contagiado pelo hype envolto, “Guardiões da Galáxia" é por enquanto o mais vibrante filme deste universo desde que Robert Downey Jr. vestiu pela primeira vez o fato metalizado de “Iron Man”.

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Um deleite cómico aspirado nas aventuras cinematográficas mais antigas do que o habitual standard da linguagem de videojogo que muitos dos blockbusters parecem ter adquirido. É visível que James Gunn inspirou-se em “Firefly” / ”Serenity” (atenção o criador desta série, Joss Whedon, é já um dos braços fortes da empresa) e em Star Wars, este último talvez a matriz de todo os filmes para as massas da atualidade, e tais comparações são ainda mais evidentes com a chegada do clímax (o ato menos conseguido de todo o filme), onde o qual esboça um “déjà vu” arrastado (será que estou a ver a invasão dos rebeldes à Estrela da Morte!) e prejudicado por um vilão sem um pingo de carisma nem interacção com o quinteto heroico (tirando Loki de Tom Hiddleston, a Marvel Studios não consegue criar mais nenhum memorável vilão).

Dito isto, há que salientar que a entrada de Gunn no mundo do blockbuster é ditado por uma das mais deliciosas conversões da BD, mas nem tudo são “rosas” aqui. Existe obviamente e dentro do cinema de entretenimento muitas arestas a ser limadas, e como júbilo cinéfilo é triste ver o desaproveitamento de atores como Glenn Close e Djimon Hounsou. Porém, a maior infelicidade do filme é talvez o seu destino frente à fervorosa máquina de “fazer dinheiro” que é a Marvel. Ainda assim, “Guardiões da Galáxia” funciona como um filme a solo e por enquanto podemos por momentos fingir que se trata disso. Por enquanto, a sequela já se encontra a caminho … e com mais “awesome mixtapes“.

«Para lá das Colinas» existe uma obra-prima!

Hugo Gomes, 08.08.14

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Nos últimos anos, temos assistido a uma nova vaga de cineastas romenos que, de certa forma, contagiam a cinematografia mundial com o seu estilo severo e um tom realista cruzado com uma manifestação artística digna dos palcos teatrais: a mise-en-scène intimista. Esta ascensão de autores tem sido comparada a um fenómeno ocorrido em França nos anos 60 – falo, obviamente, da Nouvelle Vague –, uma elite de realizadores irreverentes que emergiram das sombras e desafiaram as mais variadas componentes do cinema mainstream e da produção de estúdio. Contudo, ainda que a Roménia não tenha exercido o mesmo impacto em termos de influências, só o tempo o dirá. Certo é que o cinema produzido naquele país tem sido distinguido pelo mundo inteiro, precisamente pelas suas características, que emanam o íntimo de uma nação ainda escondida entre as trevas.

Narrativamente rígido, o cinema romeno – como é o caso deste “Beyond the Hills” (“Para lá das Colinas”), de Cristian Mungiu – contrasta com o realismo norte-americano. O espectador está por sua conta, ditando julgamentos ou acompanhando o enredo sem que a obra ceda ao facilitismo, ofereça explicações ou manifeste compaixão pelas suas personagens. É um mundo cinematográfico cruel, sem piedade nem clemência para com o público.

Cristian Mungiu, que há alguns anos apresentara o drama de duas jovens confrontadas com as ilegalidades do aborto no premiado “4 Months, 3 Weeks, 2 Days” (2007), mantém-se fiel à sua abordagem severa em “Beyond the Hills”. Nesta nova incursão cinematográfica, convida-nos a mergulhar ainda mais fundo nas trevas que assolam um país cinzento, frágilmente intrínseco e ausente, traçando um debate parcial sobre a disputa entre Religião e Medicina, sem jamais pender para um dos lados.

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Mungiu leva-nos ao reencontro de duas amigas que cresceram juntas num orfanato. Alina (Cristina Flutur) regressa à Roménia após anos de trabalho na Alemanha e pede abrigo a Voichita (Cosmina Stratan), agora freira num convento ortodoxo. A jovem é recebida com frieza pelas outras religiosas e, sobretudo, pelo sacerdote. Voichita tenta protegê-la, mas os seus esforços revelam-se vãos face ao julgamento alheio. A situação agrava-se quando Alina é diagnosticada com uma espécie de esquizofrenia e o hospital local se recusa a interná-la. Sem outro refúgio, vê-se forçada a permanecer no remoto convento, onde os seus ataques de histeria e violência se intensificam. A medicação é interrompida, a comunidade teme-na e o sacerdote decide exorcizá-la.

Com um leque de atores de bandar os céus e responder com exatidão o naturalismo requisitado, a dupla protagonista constrói uma cumplicidade frágil e obsessiva. Mungiu orquestra um ensaio dramático de proporções quase épicas. “Beyond the Hills” surpreende pela forma como apresenta estas suas personagens, registando-as na história através de planos que exprimem o melhor da mise-en-scène e de um argumento que, por vezes, desafia a austeridade narrativa. o espectador encontra-se forçado a magicar o visto e o não-visto, tendo o fora-de-plano desempenhar esse papel importante no realismo ditado, um realismo o qual não somos onipresentes nem omniscientes, apenas embebem daquilo que a fonte nos dá.

Intenso, ambíguo e, por momentos, intrusivo, este é mais uma prova do talento do realizador romeno, que parece destinado a liderar uma nova vaga de cineastas estilisticamente maduros. O novo cinema romeno atinge aqui um novo patamar. Fantasmagórico!

«Até Ver a Luz», porque fora isso é a obscuridade que reina

Hugo Gomes, 05.08.14

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Após 15 curtas no currículo, três das quais chegaram a marcar presença no Festival de Cannes, o realizador luso-suíço Basil da Cunha demonstra como o cinema português poderá evoluir na escassez de verbas e subsídios com a sua primeira longa: “Até ver a Luz”. Uma história de “misfits” noturnos em busca da redenção num bairro da Reboleira, na Amadora, onde o realizador reside, aprendendo assim a interpretar o seu redor e de uma forma algo enigmática e sempre subliminar, transcrevê-la para o grande ecrã.

Tendo em conta que não foi há muito tempo que “O Bairro”, produção nacional da autoria de Francisco de Moita-Flores, uma conversão de 20 episódios duma série televisiva para uma “recolagem” cinematográfica, estreou entre nós, “Até Ver a Luz de Basil” da Cunha separa-se a anos-luz da pseudo-telenovela com tiques de mainstream americano e presenteia-nos um “aperitivo” daquilo que há muito os portugueses não se encontravam habituados nas suas produções audiovisuais: olhar realista à realidade dos mais marginalizados. O facto do realizador viver no local onde esta fita foi filmada e concebida, torna-o conhecedor da linguagem social destes “locais malditos de pura marginalização” que nas mãos de Basil da Cunha nos revela uma comunidade rica e viva subjugada à violência e em constante batalha por um “lugar ao sol” na aceitação social. Para além da credibilidade que o autor deposita na trama e nos seus personagens, é de louvar a linguagem cinematográfica que emane na sua narrativa e na transposição dos seus elementos.

Existe alguma influência de Akira Kurosawa na loucura das suas personagens e Jim Jarmusch no seu conceito marginal, na incursão de uma monstruosidade à lá Fellini e um espírito vanguardista não prejudicial ao realismo fílmico. Por outras palavras, há muito mais cinema neste “Até Ver a Luz” do que imaginamos, mais do que o simples exercício naturalista (e falado 80% em crioulo) o qual é realçado graças à preservação de tal factor por Basil da Cunha, existente no ambiente envolto como nos “não-atores”, simples moradores do bairro que dão um contributo importante para a longa-metragem. 

Ainda por mais e tendo em conta os planos de imagem fechada bem enquadradas e concretizados, o primeiro filme longo da sua carreira apenas demonstra o nato realizador que Basil da Cunha aparenta ser.

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