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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Rocky Balboa: na balada das velhas glórias

Hugo Gomes, 20.06.14

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A provável anedota cinematográfica, o titulo atribuído mesmo antes de ser produzido, acaba como a personagem envolvida, de nocautear o mais cético, até porque este regresso aos ringues é mais do que uma meia cozida sob emoções industrializadas, é sim, a odisseia intimista de um homem ao reencontro do seu alter-ego.

Contam-se 16 anos depois de Rocky V, o suposto último filme de um franchise que se transformou num hino da superação pessoal e de derradeira conquista acima de qualquer obstáculo. Mas seguindo muito atrás, chegando precisamente a 1976, deparamos com a história de Italian Stalion, o cognome de Rocky Balboa, o pugilista de segunda categoria de Filadélfia que enfrenta um imbatível campeão dos pesos-pesados, Apollo Creed (Carl Weathers), num combate que se julgava vencido desde o primeiro momento que se converteu na mais pura das concretizações do autêntico sonho americano. Uma ribalta que conquistou público, assim como a própria Academia que decidiu premiar esta enésima obra de romantização do boxe no grande ecrã, frente a outras produções mais irreverentes, e provavelmente menos otimistas quanto a sociedade que se instalam (entre eles falo obviamente de Taxi Driver).

Agora fazendo fast forward, voltando a 2006, onde a saga criada com dedicação por Stallone parece cada vez mais afastada da memória dos seus espectador, e do cinema norte-americano que tem sido mais duro nas suas auto-críticas, eis que chega Rocky Balboa, o inesperado regresso a uma conduta de ingenuidade quanto à motivação pessoal. Aqui, o nosso herói detém uma idade aproximada de 60, e um eventual retorno entre cordas seria, primeiro de tudo impensável, como também uma missão suicida. Mas este kamikaze é sobretudo uma vingança pessoal, Sylvester Stallone trabalha a sua personagem em prol da sua experiência, numa interpretação que confunde com a personalidade e uma figura que dificilmente separa da sua enfatização. Eis uma mistura carnal de homem e lirismo, o romance de um vida ficcional com as vivências de uma realidade tão sua.

Até porque a certa altura, numa das sequências condenadas a ser relembrada, Rocky vira-se para o seu filho (Milo Ventimiglia), que o acusa de ser uma impenetrável sombra, e proclama o seguinte discurso:

"You ain't gonna believe this, but you used to fit right here. I'd hold you up to say to your mother, "this kid's gonna be the best kid in the world. This kid's gonna be somebody better than anybody I ever knew." And you grew up good and wonderful. It was great just watching you, every day was like a privilige. Then the time come for you to be your own man and take on the world, and you did. But somewhere along the line, you changed. You stopped being you. You let people stick a finger in your face and tell you you're no good. And when things got hard, you started looking for something to blame, like a big shadow. Let me tell you something you already know. The world ain't all sunshine and rainbows. It's a very mean and nasty place and I don't care how tough you are it will beat you to your knees and keep you there permanently if you let it. You, me, or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't about how hard you hit. It's about how hard you can get hit and keep moving forward. How much you can take and keep moving forward. That's how winning is done! Now if you know what you're worth then go out and get what you're worth. But ya gotta be willing to take the hits, and not pointing fingers saying you ain't where you wanna be because of him, or her, or anybody! Cowards do that and that ain't you! You're better than that!"

Foi um dos momentos em que o espectador é atingido com um perpétuo dilema, quem afinal pronunciou isto? Terá sido Rocky, a personagem que acompanhou o cinema desde 1976? Será Stallone, que enverga e denuncia a tão sua faceta humanista em conformidades com a derrota, o KO causado pelo registo do tempo? Ou a ténue fronteira entre essas duas personalidades? Talvez Stallone encontrou algo de pessoal e incomodo neste pesar, que é transportar um legado, um legado tão seu, que mais nenhum poderia carregar.

Conforme seja o resultado desta catarse de uma das personagens mais queridas da Sétima Arte, Rocky Balboa é o necessário melodrama dos heróis passados, que aguardam por mais uma vitória sob a ribalta. Mesmo que o filme traduza uma fórmula de revisita dos lugares próprios, este é o Rocky que esperávamos desde 1976, o hino dos heróis americanos.

 

 

From Here to Eternity: tudo em redor de um beijo

Hugo Gomes, 15.06.14

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Momento crucial para Hollywood: um beijo intenso nas areias havaianas entre o galã Burt Lancaster e Deborah Kerr corou os sensores de censura e remeteu ao público uma ousadia sofisticada nunca vista no “correto” cinema norte-americano. Sim, um simples beijo que hoje em dia ficaria estampado no politicamente correto foi à sessenta anos uma viragem da Idade de Ouro de Hollywood para o início da sua maturidade. O filme detentor de tal irreverencia é From Here to Eternity (Até à Eternidade), de Fred Zinnemann.

O que prometia ser um “dramalhão” que englobava os códigos e condutas moralistas do panfleto militarista durante a Guerra do Pacifico, se converteu pelas mãos de um “infame” realizador e de um autor traumatizado (James Jones, o escritor original de From Here to Eternity, afirmou ter elaborado a obra em prol das suas memórias e experiências) num estilhaçado espelho de uma sociedade em transição.

O espírito norte-americano com todas as suas virtudes e defeitos que o caracterizam encontra-se efetivamente representado no seio desta comunidade militar, composta por homens e dilacerada pelas mulheres. Contudo, mesmo sendo um sinonimo de ousadia cinematográfica no seu tempo de lançamento, From Here to Eternity foi mesmo assim abatido pela censura e pela leveza em favor dos valores morais que tanto se prezava, o filme de Zinnemann aborda temas como corrupção, adultério e prostituição, mas estas duas ultimas são retratadas de um forma algo fabulista, aliás evidenciando em demasia de um dos “calcanhares de Aquiles” da Hollywood classicista (ainda hoje esse “mundo cinematográfico” não contornou na totalidade tal fator) o seu desprezo pelas personagens femininas. Deborah Kerr e Donna Reed são respetivamente esposa adúltera e prostituta, porém, só o título parece confirmar tal essência personificada, visto que após minutos de atuação, as máscaras de ambas desabam, transformando-as em simples estereótipos femininos, incuráveis e tolas românticas como Hollywood tanto adora.

É nesse aspeto que From Here to Eternity não consegue fazer jus ao estatuto de obra-prima, e é pena sabendo que de um jeito ou de outro a obra galardoada com oito Óscares, incluindo o de Melhor Filme, seja um marco único na História do Cinema. Narrativamente sedutor e complexo em transmitir a relação entre os militares “encurralados” naquela base pré-Pearl Harbor, munido de interpretações fortes de Burt Lancaster, Montgomery Clift e até de Frank Sinatra, cuja sua carreira foi resgatada graças ao seu empenho em From Here to Eternity (o Óscar de Melhor Ator Secundário foi o seu louvor de “bom comportamento” e de seguida com desempenhos memoráveis como Some Came Running ou de The Manchurian Candidate), o filme de Fred Zinnemann pode não ter envelhecido como pretendíamos mas acima de tudo continua a ser um clássico como nenhum outro fora.

Nobody ever lies about being lonely.”

 

Uma "correcta", mas saborosa iguaria!

Hugo Gomes, 14.06.14

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"Por vezes o comboio errado leva-nos à estação certa", diz uma personagem a certa altura do filme. Sendo verdade que esta frase sobre acidentes e as suas consequências felizes apelam à essência exposta deste “The Lunchbox” de Ritesh Batra, aquele que é para muitos o melhor que veio da Índia em termos cinematográficos nos últimos anos. Ou estaremos nós - ocidentais escravos da importação - a exagerar?

Um pequeno hype apoderou-se desta nova produção da terra do caril, um delicado e terno romance que se forma através de acasos, neste aspecto numa troca acidental de "marmitas", despertando na antissocial personagem de Irrfan Khan (“Life of Pi”) o afecto quase proustiano. Depois deste fruto do acaso, segue-se uma espécie de amor por correspondência e aí o espectador é motivado a integrar nas ênfases dramáticas de ambos os lados, duas "margens" onde a morte soa como similaridades mas é na esperança no amor que verdadeiramente os une.

Temperado com um toque agridoce, “The Lunchbox” afasta-se claramente dos lugares charneiros de Bollywood (deve-se salientar a sua influência exterior como co-produção, com envolvimentos da França, Alemanha e EUA) e se lança em outro território conhecido ao grande público, o do mainstream globalizado (culturalmente focado, mas identitariamente diluído na universalidade). Todavia, é verdade que o revisitar pelo romance cinematográfico se faz da maneira mais deliciosa que o pressuposto e a crescente exploração de ambas personagens principais a descola dessas banalidades.

Sim, há que confessar que “The Lunchbox” é "bonito" de se ver e especial de se sentir, o compromisso da fábula romântica em constante vénia ao quotidiano da cidade de Mumbai, sem com isso resumir-se a um dito filme de "costumes". Mas nem tudo são "rosas", apesar da temática do filme ter como apoio os contornos "afrodisíacos" da gastronomia indiana, nunca a explora como devido e a banda sonora tende em ser repetitiva e de persuasiva acentuação na emoção dramática.

Enfim, passando à frente, temos aqui interpretações de alto calibre (destaque principal de Nimrat Kaur), personagens para se amar (a inteligente opção de colocar uma personagem "invisível" mas igualmente presente), uma fotografia plena e uma história que se auto-esculpe como um "conto de fadas". “The Lunchbox” tem estofo para ser o melhor filme "correcto" do ano, a aquisição do classicismo (sem com isso, contentar-se com o formatado) que a Índia merecia mas que raramente procura. 

Jeremy Irons apanhou o comboio errado para Lisboa

Hugo Gomes, 12.06.14

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Sou suspeito, reconheço que sinto um certo entusiasmo, como também conforto, em conhecer trabalhos de cineastas estrangeiros que utilizam o nosso país como o cenário perfeito das suas intrigas, sejam eles Wim Wenders, Roman Polanski ou Fred Schepisi. Neste caso é o repetente Bille August em conjunto com o igualmente Jeremy Irons, realizador e ator que vinte anos antes transformaram as paisagens alentejanas na Argentina em meados da revolução num embrião de "soap opera".

Agora a dupla "turística" adaptam o livro de Pascal Mercier, Night Train to Lisbon e regressam ao ambiente de guerrilha, com o 25 de Abril como pano de fundo numa história existencialista de um professor de latim na Suíça, guiado pela monotonia da vida que em fidelidade com um raro livro que encontrou por acaso e sem nada a perder, parte de viagem para a capital portuguesa. Uma jornada ao encontro de referências históricas de uma nação e com isso em busca das convicções de vida que havia perdido durante a sua existência.

Infelizmente Night Train to Lisbon tenta abordar muito, mas não passa de um "europudim", de um catalogo turístico que apresenta Lisboa como um ótimo lugar para férias no convívio dos locais do que uma cidade rodeado de história e intriga cruciais. É como Bille August desconhecesse a essência do 25 de Abril, os seus valores, os seus significados, os seus protagonistas e as suas mazelas. A lição foi pouco estudada e graças a isso o realizador decide envergar pelos lugares-comuns do cenário de guerrilha e revolta, temos aqui a nosso dispor uma aspiração aos Parisans, mais do que a própria resistência portuguesa. Para além de um país mal retratado (será possível que toda a gente em Portugal fale inglês fluentemente?), Night Train to Lisbon verga ainda pela preguiça narrativa (o flashback como elo de narrativas paralelas e não lineares, pior, servindo num impasse pastelão da mesma).

Eis um filme conectado pela vulgarização do formato televisivo, sem nunca atingir a sua espetacularidade e sem nunca descolar do panfleto. Aqui, nenhum dos atores, nem mesmo Jeremy Irons (por mais bom protagonista que seja) conseguem destacar-se do mero esquematismo, aliás espaço para tal não o têm. Depois e apelando um pouco ao patriotismo, é "notável" assistir a tanto desperdício de atores e terreno luso. Esta não é a Lisboa que consegui, a Lisboa que vivo, muito a menos a Lisboa que imaginava para o cinema. Valeu a tentativa, mas é supérfluo!

 

Given that we live only a small part of what there is in us - what happens with the rest?

 

Being Woody Allen

Hugo Gomes, 11.06.14

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O quinto trabalho de realização de John Turturro é um tofu, um substituto a …, neste caso a um filme do Woody Allen, sendo que o realizador, ator e argumentista mimetiza e muito o estilo do consagrado autor nova-iorquino. Uma história decorrida numa Nova Iorque característica (pois bem!) onde o jazz é som predominante e com as eventuais divagações da personagem de Woody Allen (interpretado por ele próprio, sem apropriações de persona) e o tom descontraído e leviano como aborda sexo e religião, ingredientes que Turturro soube e muito recriar nesta pintura sob papel vegetal. Mas a questão permanece, com toda esta “cópia”, mais do que meras influências, será que resta alguma frescura em “Fading Gigolo”?

Nem sempre a cópia fica por detrás do original, um facto que foi destacadamente pronunciado na obra de “Orson Welles” - “F for Fake” - contudo no novo e exaustivo trabalho de Turturro assistimos mais a uma aspiração do que uma superação, aliás o realizador convertido joga-se em território simpatizante e não de competição. “Fading Gigolo” é uma comédia simplória, sujeito a rasgos momentos de genialidade delirante, mas que sobrevive duma ideia e é sobre essa mesma ideia que é limado, afinado e composto, sem nunca fugir demasiado da sua promessa enquanto filme. A história remete-nos ao italo-americano Fioravante (Turturro), decidido em envergar a profissão de gigolô após ter sido convencido por Murray (Woody Allen), o seu melhor amigo, mentor e neste caso … proxeneta … um “Cowboy da Meia-Noite” sem “walks on the street” e pretensões para ser produto de luxo.

Ou seja, é a partir deste mesmo resumo que cresce um filme malabarista com todas as referências de um cinema que desde cedo John Turturro não nega, aliás como já havia referido, é fascinado. “Fading Gigolo” tenta ainda incutir nas proximidades do seu desfecho uma crítica social sobre a opressão religiosa à Mulher, o resultado desta requisição é um mero acesso à veia mais emocional e moralista que o seu projeto idealizado tem para oferecer. Perde-se em tentar ser o que não é e eclipsa todo o potencial de cinema que Turturro poderia executar. Ao invés disso temos um filme para “amigos”, apenas dotado com alguma sensibilidade fílmica. Agora que venha o verdadeiro Woody Allen

Balbúrdia no Oeste? Queriam!

Hugo Gomes, 08.06.14

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"People die at the fair."

Vamos lá colocar o ponto nos "is", A Million Ways to Die in the West não é nenhum Blazing Saddles, nem Seth MacFarlane um Mel Brooks. Primeiro de tudo, um destes é mais politicamente incorrecto que o outro, e aviso desde já que não é MacFarlane.

O criador das irreverentes animações de Family Guy e American Dad parece ter ganho o gosto pelas longas metragens, descartando agora os ursos de peluches festeiros e brejeiros de Ted, segue-se para a fronteira da América sulista de 1882, onde vemos Albert Stark (o próprio Seth MacFarlane), um pastor de ovelhas que é descrito como um homem fora do seu tempo, sendo demasiado mole e cobarde para um território tão selvagem que é o seu. Após ter acobardado num duelo e ter sido deixado pela sua namorada, Albert tenta encontrar um sentido para a sua vida, contudo o suicídio é a única coisa que lhe ocorre. Mas tudo está prestes a mudar com a chegada da misteriosa Anna (Charlize Theron) à sua cidade.

São imensas as referências cinematográficas e culturais incutidas por MacFarlane, umas eficazes outras nem por isso, disparadas à velocidade de uma "metralhadora" e sem o timing necessário para se fazer respirar entre a audiência. A verdade é que A Million Ways to Die in the West é qualquer coisa como uma tentativa desesperada em atingir o seu pico cómico, porém sem nunca conseguir verdadeiramente e mais, evidenciando a irreverência de MacFarlane como um puro marketing, mais do que um estilo, e é nesse aspecto que Mel Brooks (apesar de serem de tempos diferentes) leva a melhor. Todo o elemento satírico que o filme tece freneticamente, rapidamente seca dando lugar a um moralismo recorrente que se arrasta até conjugar um final preguiçoso. No seu corpo narrativo e na sátira exposta, o realizador dispara contra tudo e todos, mas sem nenhum objectivo traçado, confundindo tal termo com gags de origem escatológica ou de humor duvidoso. Ou seja, A Million Ways to Die in the West prometeu ser uma comédia ácida, sem pudor nem vergonha, e pior, dotado de alguma inteligência, mas resume-se a um desequilíbrio sem igual, narcisista e de longa duração (demasiado para uma comédia deste género).

Variado entre o mau gosto (gags escusados com excrementos de cavalo e órgãos genitais de ovinos) e o génio ocasionalmente emanado (referências cinematográficas e criticas sociais e religiosas), este novo filme de MacFarlane torna-se num registo esforçado mas "despedaçado" pela ausência dos valores politicamente incorrectos. Sim, esses mesmos! Confunde tais elementos com meros palavrões ou piadas grosseiras, perdendo todo um prisma de critica aguçada e sem receios de chocar tudo e todos. Nesse aspecto, Blazing Saddles consegue ser mais actual e ousado. Vale pelos seus escassos momentos e por Charlize Theron, a estrela subestimada que parece condenada, nos dias de hoje, a salvar todo os filmes que entra. Uma desilusão!

 

A Sintonia da Ausência

Hugo Gomes, 05.06.14

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Em 1978, Chantal Akerman concretizou “Les Rendez-vous d’Anna” (“Os Encontros com Ana”), uma das notórias tentativas de ilustrar o vazio e contornar a tendência da dinâmica narrativa que soava como regulamento desde os tempos de D. W. Griffith. Neste elogiado filme mas penoso de se assistir, acompanhamos uma realizadora, Anna Silver (uma autoreferência da própria Akerman), que viaja para a Alemanha para apresentar um novo trabalho. Contudo, em “Os Encontros com Anna” a intriga revela-se rebelde, não no sentido de chocar ou causar revolta no espectador, mas por apresentar o nada, a monotonia e a rotina como um espetáculo de ciclo. Em “Os Encontros com Anna”, nada ocorre, a personagem interpretada por Aurore Clément não sai do espaço, do seu quarto de hotel, pacientemente esperando pela oportunidade e quando o filme em si solicita o dinamismo, a intriga de combustão, Akerman corta e descarta qualquer envolvimento com a ação.

Desde então existe um certo nicho a abordar a rotina e o sistemático como peças de arte. Veja-se o caso de Béla Tarr e os seus quadros arrastados. Porém, e apesar de “A Vida Invisível”, de Vítor Gonçalves, não ser propriamente um exercício radical do mesmo, é a sua evocação do vazio que o torna num objeto de cinema infelizmente acorrentado à sua melancolia e estado de espírito existencial.

Gonçalves foi em tempos apontado como uma promessa do cinema português, condutor de um estilo próprio e exclusivo no panorama da vanguarda nacional. A sua primeira obra, “Uma Rapariga no Verão”, de 1986, foi recebida com entusiasmo mas prontamente foi esquecida e o autor reduzido à produção e escrita de outros produtos. “A Vida Invisível” é o seu regresso após 28 anos de ausência e talvez por isso nada melhor que expor um retrato sobre o pesar da vida e do valor ?calculável? desta.

Na sua intriga acompanhamos Hugo (Filipe Duarte), um homem melancólico, “preso” à escuridão e à solidão, que vagueia como espectro no seu apartamento ou no edifício onde trabalha, sempre esperando pela morte, não apenas do pai putativo (João Perry) como também na desintegração da sua própria alma. Sim, Vitor Gonçalves concretiza depois destes anos todos de ausência, um filme sobre a mesma ausência, um abraço aos receios da morte e a retrospectiva da sua existência como exercício reflexivo da mesma.

Trata-se de uma obra pautada pela excelência técnica, a fotografia de Leonardo Simões ou a banda sonora quase fantasmagórica da autoria de Sinan C. Savaskan. Contudo, este é um filme enfraquecido pela sua própria aposta, a falta de dinamismo que se sente em toda a sua narrativa, que não se preocupa como nos exemplos referidos no início deste texto, a construir uma rotina analista. Ao invés disso, aposta numa panóplia da solidão, perdido pela sugestão sem que haja tal, e na ação autoral íntima que Vítor Gonçalves esboça no seu protagonista, mas nada de verdadeiramente sentido é presenciado. É um filme pessoal, isso sim, mas escravo da sua própria contemplação. Merecia um pouco mais este regresso de Gonçalves à direção, mais do que mera rotina da melancolia ou assombração das almas.

Procura a cura e encontrarás o veneno / Procura o veneno e encontrarás a cura

Hugo Gomes, 02.06.14

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O Brasil tem uma longa tradição dramatúrgica e é evidente que o novo filme de Júlio Bressane funciona como uma sociedade entre o Cinema e o Teatro, dois mundos distintos, mas unidos por similaridades (aliás existe algo de teatral na transfiguração do Cinema enquanto arte independente). Munido de uma longa carreira, o autor foi um dos braços fortes do “udigrudi” no cinema, um movimento underground que contagiou toda uma variedade de plataformas nos anos 70. Passadas décadas, a sua cinematografia afastou-se a passos largos das tendências predominantes da indústria brasileira, sendo que atualmente o seu cinema tem mais requinte artístico do que a veia realista que parece ser a regra.

“A Erva do Rato”, a sua última obra a estrear em Portugal (e com uma estreia discriminada, por sinal), é uma autêntica metáfora filmada, a começar pelo título, uma planta venenosa cujo antídoto se encontra na sua raiz. Livremente inspirada nos contos “A Causa Secreta” e "Um Esqueleto” de Machado de Assis, conta uma história de obsessão, com influências de Brisseau e aborda a veia artística e a sensualidade sob o código das mesmas palavras. Um cinema tão artístico que tudo nele se rege por uma artificialidade indiscutível e que, em simultâneo, incute elementos do primitivismo. É o espírito animal, como elemento, que alude à irreverência ou à rebeldia emocional, imposto numa ratazana que parece manifestar-se por autonomia como uma personagem, mais do que mero símbolo poético, nesta obra que condensa o desejo com a rotina.

Alessandra Negrini e Selton Mello são os peões deste “palco” projetado por Júlio Bressane, envolvidos por um clima místico de evocação às artes negras, na subtileza deste ensaio que revigora o teatro, e não falamos apenas da extensa exposição da mise-en-scène, como raiz de uma cinematografia em constante metamorfose. “A Erva do Rato”, tal como a planta que presta tributo, é puro veneno em consolidação com a sua cura, a dualidade entre a simplicidade e a complexidade. A Arte como objecto de contemplação de beleza.