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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A farsa do século!!

Hugo Gomes, 30.05.14

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Praticamente, no senso comum, estamos habituados a encarar o género do documentário com o formato das produções televisivas, mas enganem-se quem pensa que tal é apenas serviço pedagógico. The Act of Killing é o grande exemplo disso, uma veia onírica que abate o panorama real dos nossos dias, os medos de uma sociedade estampados sob um selo fantasmagórico.

Joshua Oppenheimer tem a ideia do século, criar um embuste, uma farsa cinematográfica para, de um certo jeito pornográfico, explorar a História oculta e ignorada da maneira explicita possível. Estamos na Indonésia, uma nação que nos dias de hoje encontra-se erguida graças aos esquadrões de morte contratados pelo Governo nos anos 60. Aqui não há julgamentos, a ética é mera inutilidade perante a grandiosidade deste filme que nos remete ao mais negro da natureza humano.

Corajoso, incisivo e na sua maneira de ser, poético, provocante sem ser perceptível, ao mesmo tempo colocando o dedo na ferida e "escarafunchá-la" até se tornar numa experiência para além do humanamente capaz. The Act of Killing representa uma nova geração de documentários, onde a criatividade se funde com a realidade, não de forma passiva, mas de uma violenta agressão.

 

Gojira desfila em Hollywood!

Hugo Gomes, 24.05.14

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He's not some monster trying to evade you. He's just an animal. If you find what he wants, then he'll come to you.

A tentativa de "americanizar" o nipónico Gojira, internacionalmente intitulado Godzilla, já vem de muito detrás, precisamente na década de 80, com o realizador Steve Miner ("Lake Placid", "Friday the 13th Part II") anexado a um projeto com permissão dos estúdios Toho [os detentores dos direitos da franquia]. Todavia, a ideia perdeu força e os ditos direitos do popular kaiju "morreram" em 1983 (paz à sua alma!), até serem reavivados em meados dos anos 90, com Roland Emmerich saído do êxito mundial de "Independence Day". Apontado como o homem ideal para tal imigração, reza a história que só desejava produzir um filme sobre asteroides e toda a destruição que isso lhe acarreta, só que a tentação da potencialidade comercial de um objeto com nome definido nos mercados cinematográficos internacionais o levou a isto …

Após a luz verde da Toho, Emmerich, em conjunto com Dean Devlin  [argumentista], e Patrick Tatopoulos [coordenador de efeitos visuais], auferem um novo visual à criatura. Como a sequela de "Jurassic Park" - "The Lost World" - de Steven Spielberg, batia recordes de bilheteira, o novo Godzilla capitalizou a “febre cretácea” e assumiu contornos pré-históricos. Deve-se sublinhar que a Toho não aprovou totalmente o "desenho", o que não impediu de atribuírem carta branca aos estúdios Sony para seguirem avante a sua própria versão, neste caso, poderíamos ser piegas ao ponto de insinuar que, sem a devida bênção, o "Godzilla" de Emmerich automaticamente teve tudo para falhar (e falhou como se bem eternizou), mas o que está em causa não é a fidelidade à matéria-prima, e sim a própria visão de espectáculo hollywoodiano que o realizador contrai neste distorcido "mal-entendido", uma incursão pueril e inócua de uma metáfora fílmica e nacionalista.

Há mais aspirações do que inspirações aqui. "Godzilla" funciona como um filme regido pelos códigos do blockbuster integral, minado de lugares-comuns e estereótipos generalizados de uma Hollywood ainda antes do incidente ocorrido em 11 de Setembro, por isso, não esperem nada de abrangente às fragilidades da segurança dos EUA. Contudo, "Godzilla" foge das influências "trash" e da, muita, série B herdado pela matéria-prima (de uma forma ou de outra também de "Independence Day") e auto-promove-se na seriedade do seu enredo, pausando pelo humor corriqueiro. Tudo aqui exposto é mais do mesmo no que se refere ao suco concentrado hollywoodesco, e em consequência disso e talvez usufruindo da expressão popular - Emmerich compôs um filme “que se vê e esquece no momento seguinte”. Um gigante desajeitado não só em termos físicos, como também narrativos, ofuscando personagens e as suas tramas que a produção teima (ou sugere) em desenvolver, mesmo face à anorexia da sua exploração.

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Por fim, uma reviravolta triste e fermentada no "déjà vu" (como já havia dito, este "Godzilla" tenta ser mais dinossauro spielberguiano do que monstro da Toho), que para todos os efeitos arrasta o óbvio em sofrimento na previsibilidade. Nada surpreende aqui: são efeitos visuais e sonoros (apostado na altura como uma gigantesco passo em frente, hoje obsoleto e poeirento) ao serviço de uma produção munida por um elenco chamativo, que por sua vez é movido por boa vontade... e pelo cheque (Matthew Broderick, Hank Azaria e Jean Reno em modo Jean Reno). Um filme "maldito" cujas sequelas foram avassaladoras para o próprio realizador - o projeto dos seus sonhos gerou nesse mesmo ano dois filmes, ambos grandes sucessos ("Deep Impact" e "Armageddon") e adivinhem? Nenhum deles teve mão de Emmerich.

Porém, o filme de Emmerich guarda um pormenor deveras curioso: a referência satírica aos críticos Roger Ebert, retratado como o mayor de Nova Iorque (Michael Lerner) e a sua campanha "thumbs up", e Gene Siskel, como fruto do rancor de Emmerich às críticas negativas dadas aos seus filmes anteriores. Por fim, como "happy ending" a esta versão americanizada e "formatada", os estúdios Toho assumiram-na como um filme à parte da mitologia "Godzilla" e até retiraram-lhe o "God" do nome, ficando apenas "Zilla", sendo que mais tarde tal modelo serviu como um dos muitos inimigos do "monstro" original em "Godzilla: Final Wars" de Ryûhei Kitamura (2004). Marginalizado para a vida!

Go where?

Hugo Gomes, 23.05.14

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"Listen to me, Steve. Go where? Steve, this is important. Go where? That's right, go where? What happened in your room... Are you listening? What happened in your room is not an isolated incident. It is something that is happening everywhere. So, where you gonna go? Where you gonna run? Where you gonna hide? Nowhere, 'cause there's no one like you left. That's right..." Carol Malone (Meg Tilly)

- Body Snatchers (Abel Ferrara, 1993)

 

No primeiro passo do Rei Lagarto

Hugo Gomes, 18.05.14

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É evidente que, na atualidade, a imagem de um homem vestido com um fato de látex, representando um lagarto bípede a destruir uma cidade em miniatura, não suscita qualquer evocação infernal, nem sinónimo é de terror visual; pelo contrário, tende a ser entendida como um ridículo involuntário. Contudo, numa era pós-Hiroxima, em que o Japão procurava erguer-se das cinzas, das perdas humanas e materiais, e da humilhação, o medo da radiação tornou-se um dos conflitos internos que os nipónicos ousaram enfrentar, transformando Godzilla no seu símbolo.

"Gojira" (título original) de Ishirô Honda é, acima de tudo, uma metáfora sobre esse medo, transcendente das suas influências e do estilo “trash” que se acentuou nas sucessivas sequelas. O monstro, com supostos cinquenta metros de altura, fruto da radioatividade imposta pela exploração nuclear, destrói metrópoles sem misericórdia, invocando os "fantasmas de um passado recente". E sob este manto de destruição, é-nos apresentado um conjunto de imagens que evocam espectros: um dos exemplos mais marcantes é o de uma mãe desesperada, temendo pela sua vida enquanto abraça fortemente as suas crianças. Todo o filme funciona como uma poética metamorfose dos eventos que culminaram na destruição de Hiroxima e Nagasáqui, as Sodomas e Gomorra do século XX. A bomba atómica e a radioatividade são representações dos pecados mortais.

Consciente de que um retrato fiel dos acontecimentos não era permitido no cinema japonês da época, para preservar e respeitar as memórias das vítimas, Godzilla, o lagarto gigante, tornou-se o meio viável de transmitir tais horrores e temores, sublinhando ao mundo que a tragédia não fora esquecida e que ainda era uma ferida por sarar, embora constrangida pela dignidade da nação. Infelizmente, além do misticismo invocado pela criatura antagonista (que viria a tornar-se um heroi nacional no Japão nos capítulos seguintes), "Gojira" é atualmente um filme que sobrevive graças a essa história envolvente e ao legado que concebeu.

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Na rodagem de "Gojira" (Ishiro Honda, 1954)

Hoje, é mantido como uma relíquia, um objeto digno de museu e de curiosidade mórbida. Sendo uma produção sem a pretensão de ir além do mero entretenimento lúdico (mesmo permitindo uma dupla interpretação), o seu orçamento reduzido limitava-o em termos de rigor produtivo. Assim, repleto de atores de segunda categoria (com a exceção de Takashi Shimura – um dos mais presentes na filmografia de Akira Kurosawa), personagens pouco desenvolvidas e subenredos ridículos, esta era uma obra B no seu termo mais específico, "massacrada" pelas sucessivas passagens do tempo. Todavia, os estúdios Toho encontraram neste pitoresco objeto subliminar - inspirado pelo filme de 1953 de Eugène Lourié (“The Beast from 20,000 Fathoms”) - um franchise a ser explorado. Sob esse efeito, nasceu um subgénero peculiar para os nipónicos que se tornou uma imagem de marca (o cinema kaiju), um produto inimitável preservador de uma identidade única.

Como tal, "Gojira", a ameaça que reduzia cidades a pó, converteu-se num heroi nacionalizado de um cinema rentável e de baixo orçamento, com capítulos e mais capítulos posicionando a criatura em embate com outras, todas elas representando anomalias de um mundo que atravessa a era nuclear. É dito que Kurosawa sonhava dirigir um filme deste mesmo universo, só que tal nunca concretizou pelo suposto incremento dos custos que a sua direção acarretaria, até porque "Gojira" e sua trupe foram direcionados para nichos específicos. A sua megalomania apenas foi descoberta pelos norte-americanos nas suas sucessivas revitalizações (1998, 2014).

A irmandade do mumblecore em Your Sister’s Sister

Hugo Gomes, 17.05.14

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Passou ao lado de muitos espectadores, quer que seja pela sua simplicidade ou pela época de estreia, onde partilhou o ecrã com as chamadas “frentes” dos Óscares. O novo filme de Lynn Shelton (Humpday), Your Sister’s Sister é uma historia sobre laços afetivos e fraternos onde se consolida com situações caricatas que tanto geram ao espectador o embaraçoso riso como também a emoção.

Esta trama de desenganos digna de uma comédia melodramática leva-nos a conhecer Jack (Mark Duplass), um homem de natureza sarcástica, que ao tentar ultrapassar a morte do seu irmão aceita o convite da sua mais próxima amiga, Íris (Emily Blunt), de passar alguns dias na casa de campo dos pais dela. Lá Jack encontra Hannah (Rosemarie DeWitt), a irmã de Íris, que se encontra na habitação por motivos quase idênticos, tentando-se recompor após um problemático desfecho de uma relação de sete anos. Depois de uma descontraída noite dividida entre o álcool e muito desabafo que acabou por terminar, literalmente, "na cama", ambos decidem confidenciar o sucedido a Íris, que surge sem aviso à cena, entusiasmada por partilhar a semana com o seu especial amigo e com a sua irmã. Porém, o segredo dos dois torna-se numa “bomba-relógio” à medida que o tempo decorre e a situação acaba por piorar quando Íris desabafa a Hannah os seus sentimentos em relação a Jack.

Your Sister’s Sister é um curioso caso de um fenómeno cada vez mais ascendente denominado de mumblecore, produções de orçamentos minúsculos, normalmente vinculados por atores amadores a desempenhar um enredo limitado a pequenos espaços e por norma com um número bem reduzido de personagens. A anterior obra de Lynn Shelton, Humpday (2009), que apenas retratava dois melhores amigos presentes num quarto a discutirem se vão ou não concretizar um filme pornográfico homossexual, funcionou como uma proposta divertida e revitalizante do género, que tão bem resultou dentro desses conceitos de mumblecore. Acredita-se que este género de produção surgiu em 2002 com Funny Ha Ha (de Andrew Bujalski, o chamado mestre do mumblecore), sendo que nos dias de hoje pode-se muito bem concentrar numa alternativa para a crise cinematográfica e financeira que se vive.

No caso de Your Sister’s Sister o interesse adquirido não se estabeleceu no tipo de produção que a obra de Lynn Shelton representa, nem no argumento de situações caóticas, porém, inesperadas que reforçam a emoção mais pura, sincera e natural, mas sim no desempenho dos três atores principais que se fazem conhecer entre circuitos fechados e limitados. Emily Blunt é adorável, Mark Duplass, talvez a “musa” de Shelton, é carismático o suficiente mas é em Rosemarie DeWitt que se concentra toda a atenção, numa personagem ambígua, todavia, delicada.

Assistir Your Sister’s Sister é voltar a acreditar que o cinema é feito de atores e os atores de personagens, fazendo de esquecer por momentos as grandes produções ou as obras pretensiosas duma temporada de prémios. Recheado de momentos imperdíveis, Entre Irmãs [titulo português] é um must do ascendente cinema independente norte-americano! Assim sendo, viva o mumblecore!

 

Duplo 'V'

Hugo Gomes, 15.05.14

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Cada indivíduo possui três identidades distintas: a ‘pessoa’ que julgamos ser, a que desejamos ser, e, finalmente, a que realmente somos. "The Double", de Richard Ayoade (após "viajar" no "Submarine"), é uma inquirição dessas três facetas, integrando-as nos diferentes atos da narrativa.

O enredo transporta-nos para um mundo difícil de identificar, obsoleto na sua tecnologia, decadente e renegado pela luz do dia. Nesse cenário, reminiscente da antiga ficção científica russa, seguimos Simon James (Jesse Eisenberg), talvez o sujeito mais infortunado de sempre, marginalizado pelos outros, incluindo a própria mãe, que, a cada visita do filho, tem a "amabilidade" de expressar a sua vergonha em relação a ele. Desconhecidos aconselham-no constantemente que o suicídio é o melhor remédio para a sua infeliz existência. Para piorar o seu quotidiano insuportável, um novo trabalhador chega à empresa de Simon James, sendo acarinhado e elogiado, um modelo a seguir. Contudo, este James Simon (nome do recém-chegado) é uma cópia exata do nosso protagonista, que só ele consegue perceber as semelhanças.

Baseado num homónimo livro de Fyodor Dostoevsky, o filme remete-nos às crises existenciais e individuais expostas numa ficção metafórica que, nas mãos do realizador, se revela num filme altamente estilizado e "embrulhado" numa atmosfera envolvente e desesperante. "The Double" é um exercício cuidado de estilo que revigora o seu existencialismo quase panfletário através de imagens embebidas em melancolia contaminadora para com os próprios atores. Jesse Eisenberg, a "metralhadora" oratória, parece enquadrar-se perfeitamente nesses "bonecos" vazios que o cenário distópico incute, mas ainda mais na dualidade, a grande anomalia das anomalias, o catalisador de toda a trama, quer física ou psicológica. Em complemento, Mia Wasikowska é a "princesa" do gótico e da tristeza falseada.

Há um cruzar de referências, desde Lynch a Tarkovski, Proyas a Gilliam, compondo uma partitura cinematográfica na qual é possível identificar contornos kafkianos, um labiríntico existencialismo com personagens à mercê da dissecação. Por fim, há que perguntar: será que conhecemo-nos realmente? Conforme a resposta, temos aqui uma proposta cativante de cinema!

Elizabeth Banks toma decisões erradas ... e alguém achou boa ideia fazer disso um filme!

Hugo Gomes, 12.05.14

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He is lying to us, there is no subway in Los Angeles.

Filmes como "Walk of Shame" existem aos "trambolhões", encontrando harmonia no género da comédia que já nos presenteou com propostas mais bem arregaçadas. Chamemos, e aparentemente é assim que ‘gostam’ de ser categorizadas, de malapatas, e dessa incursão algo distorcida à lá Lewis Carroll, damos de caras com exemplos como o seu apogeu "After Hours" (Martin Scorsese, 1985), ou no brainstorm “charrado” de "Harold & Kumar", como modelos de inspiração e de ofegação [de saudades]. O que os une é o simples facto do protagonista (ou protagonistas) tentar chegar a um determinado ponto ou executar uma simples tarefa, o qual torna-se impossível de ser atingida, visto que no percurso "tropeça-se" em impasses intermináveis ou situações caricatas que fariam qualquer um perder o juízo. 

Mas viremos a página, e fiquemo pelo rodapé, ou seja, por este filme de Steven Brill ("Little Nicky", só por isto já não se adivinhava algo de “bom”): as aventuras e desventuras de uma repórter - Meghan Milles (Elizabeth Banks) - prestes a ser promovida, mas cuja promoção está em risco devido a um “simples” contratempo, o de não conseguir chegar à sua estação a horas, após uma noite de "bebedeira" e sexo casual. Escusado será dizer que "Walk of Shame" (tendo "Ressaca de Saltos Altos" como título traduzido) arrasta-se desesperadamente até a fórmula estar completamente extraída. Até lá, temos ao nosso dispor situações previsíveis dentro da comédia norte-americana, gags mais que vistos e revistos, e de claro mau gosto, e todo um conjunto de personagens disfuncionais guiadas somente pelo estereótipo. 

Ao contrário do agonizante mas calculadíssimo "After Hours" (julgo ser o filme mais subvalorizado da carreira de Scorsese, e por um lado uma das suas tomadas mais geniais), "Walk of Shame" não consegue construir um quadro vivo e delirante como prometido; ao invés disso, utiliza a temática da emancipação da mulher enquanto armadura (o alvo é tão incerto que nem se leva a sério esse comentário social). Uma comédia inútil que remete o espectador a uma revisão da carreira de Elizabeth Banks. Mesmo possuindo carisma e um certo brilho nos olhos, parece ligar-se cada vez mais a projetos passageiros sem relevância alguma ou a personagens secundárias de igual termo ("The Hunger Games"). Só desejo as melhoras para a atriz, porque depois desta experiência esquecível será difícil recuperar o estatuto.

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