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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Paixonetas, vivências e outros afins

Hugo Gomes, 26.04.14

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O Primeiro Verão” é curiosamente a primeira longa-metragem de Adriano Mendes, um verdadeiro polivalente no ramo, já que para além de realizador é ainda o argumentista, um dos protagonistas e até mesmo o compositor da banda sonora. Para além disso, devo salientar o trabalho conjunto de uma equipa preparada para tudo, para empregar qualquer tarefa dentro da produção de um filme. Talvez seja isso que o cinema português merece – boa vontade e claro, bom material para trabalhar.

Quanto ao filme propriamente dito, é verdade que temos aqui uma obra nervosa em atingir o seu território, não conseguindo evitar as suas fragilidades e limitações. Em “O Primeiro Verão” podemos enumerar alguns riscos, mas acima de tudo alguns indícios de cinema e mais, uma forma de manusear tais indícios. Tal como o título indica, “O Primeiro Verão” decorre inteiramente nessa mesma estação do ano. O filme acompanha Isabel (Anabela Caetano), uma jovem adulta da Sertã que durante uma aula de condução conhece Miguel (Adriano Mendes) e que a partir daí nasce uma bela amizade entre eles que instantaneamente se converte num romance conturbado pelo processo “coming-of-age”.

Trata-se de uma obra naturalista, narrativamente lenta e de espírito contemplativo. Porém, é nos seus planos limitados e fechados que encontramos o seu teor, ou seja, o de lançar o espectador ao efeito de sugestão. Adriano Mendes não transforma tal história em mais um conto adolescente, ao invés, transcreve memórias sob espaços brancos. Espaços esses, sendo aquilo que a câmara não “apanha” e que o espectador preenche com a sua própria reminiscência. Para todos os efeitos esta é uma obra adequada para o confronto emocional com as memórias passadas, uma adolescência já consumida por parte dos mais velhos. Quanto aqueles que vivem à flor da idade, este é um reflexo do seu quotidiano sem efeitos novelescos.

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Nos desempenhos destaca-se a naturalidade das personagens secundárias (muitos deles “não-atores”), a conduta da jovem Anabela Caetano e o cão, a verdadeira essência dramática de um filme que possui um conflito demasiado tardio. Contudo, é nesse retardamento da ênfase dramática que consiste a grande fragilidade do "O Primeiro Verão" que, como resultado, cai sob um moroso processo de contemplação até conseguir por fim atingir os seus fins.

Ainda assim, e como primeira obra de longa duração, Adriano Mendes consegue algo que pode ser descrito como uma experiência, uma lembrança abundante sob a forma cinematográfica. Um filme que verdadeiramente nos remete ao fim da adolescência como muitos bem conhecem.

Manifesto à fatalidade de quem deseja NÃO fazer cinema português!

Hugo Gomes, 24.04.14

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Encontra-se de momento a surgir uma nova vaga de cineastas. Cineastas esses que pretendem assumir um papel de messias na exigência do público português e, segundo os seus “bravos” bramidos, resgatar o cinema nacional da “escuridão dos elitistas e puristas intelectuais”. Não os vejo com bons olhos, confesso. 

A questão aqui não é o aparecimento de sangue novo na indústria (ou arte, como quiserem chamar), é o facto desta “juventude” não levar consigo a bagagem necessária para ser um cineasta. Pior, chegam mesmo a ignorar as suas raízes. É triste saber que o cinema português é deixado ao abandono, atacado e renegado vezes sem conta por uma geração que se diz rebelde, mas que quando chega a hora da verdade consegue resultados meramente lastimáveis e inaptos. Mas para compreender o que quero dizer deveremos seguir para a génese do problema, a falta de educação no campo da 7ª Arte (há cada vez mais alunos a ir para cursos de cinema que não veem filmes ou então que se ficam pelo comercial norte-americano sob fórmulas), a ausência de exigência pessoal e a perda da veia artística. Aliás, estamos num país que cada vez salienta e aponta arte como um bem exclusivo para snobs ou presunçosos intelectuais.

Sob esse gesto, o apontar, criticar e acima de tudo abjurar as origens cinematográficas é uma tendência cada vez mais comum nestes “novos” cineastas, que parecem não fazer cinema, mas sim vídeos para mais tarde serem publicados na internet. Não sei se este é o caso do realizador Luís Diogo, mas “Pecado Fatal” é isso, um embuste. Vende-se como algo irreverente, “um filme português para quem não gosta de cinema português” para depois “esbarrar” na maior das fragilidades do nosso cinema: a falta de vontade, principalmente em soltar-se das amarras académicas, ou seja, de seguir uma esquematização de planos agendados, implantados, sem que haja algum rasgo de (des)veneração a esse processo mecânico ou uma visão original. 

O que vemos aqui é algo semelhante ao que acontece a um mero estudante a realizar um enésimo exercício académico e sob a constante avaliação dos professores. Por outras palavras, o filme não possui a versatilidade de um cinema que o seu marketing tenta descaradamente vender. Ao invés, assistimos à aplicação das matrizes ensinadas e revistas em cursos e licenciaturas de cinema. Não existe um “outside the box“, existe sim a reprodução dos modelos primários e de influências televisivas, o seguir do livro de instruções da planificação para que nos últimos 20 minutos tudo ceda à câmara tremida e nervosa (felizmente com o efeito necessário no espectador, mas não nesse sentido).

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Sim, poderá haver a desculpa de que “Pecado Fatal” é um filme de baixo-orçamento, o qual o realizador pagou inteiramente do seu bolso. Isso sim é um feito louvável que demonstra ousadia na “indústria”, mas nada justifica que o cinema em questão seja por via do amadorismo. Como consequência, temos um argumento (escrito pelo próprio) que não é mais que uma colagem incoerente e involuntariamente risível de diversas intrigas novelescas e a acrescentar a isso há ainda uma incapacidade de gerir uma narrativa e acentuar uma carga dramática. 

Aliás, falando em ênfase dramática, o filme de Luís Diogo parece forçadamente inserir um conflito interno, sem que com isso transpareça nos desempenhos dos seus personagens, vazios e unidimensionais, como os seus respetivos atores, com Sara Barros Leitão a tornar-se na rainha do “overacting” (aqui provando que Luís Diogo chega a ser melhor realizador do que diretor de atores). Por fim, este filme de embaraços é ainda recheado de diálogos infelizes, sem naturalidade e de uma abordagem brusca e demasiado gratuita, com os atores sem a energia necessária para os proferirem.

Em “Pecado Fatal'' não existe aqui algo que se possa chamar verdadeiramente de cinema. É um exercício académico que não faz jus à sua frase propagandista de “(…) para quem não gosta de cinema português”. Podemos até revoltar-nos com os autores conformistas à espera dos subsídios e dos filmes “para amigos”, mas não é com este género de obras que combateremos isso. Aliás, são produtos como estes que me fazem temer pela próxima geração de cineastas, mas isso é outra conversa.

“Toda a gente julga toda a gente”

O sagrado Cinema falado por Leos Carax

Hugo Gomes, 22.04.14

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Uma invocação à sua paixão pelo cinema, que está decidido a referenciar  para lá das enésimas “serenatas à chuva”, mas com fidelidade ao seu legado enquanto autor-amante, “Holy Motors” (2012) marcou o regresso do peculiar cineasta Leos Carax, 13 anos após o fracassado “Pola X”, com Guillaume Depardieu e Yekaterina Golubeva (a sua companheira, que faleceu pouco tempo antes da rodagem de "Holy") e a sua colaboração no coletivo “Tóquio!” (ao lado de Michel Gondry e Bong Joon-ho). O cineasta encontrou refúgio numa sala de cinema, sem qualquer ligação com o mundo exterior. O público que esgota o espaço encontra-se adormecido, sinal de tédio perante as imagens que se movimentam na tela. Trata-se de uma advertência sobre estes tempos, os do cinema saturado, exausto pela seca criativa que comete o maior crime aos seus espectadores, o de transformar o ritual da ida e volta à sala numa espécie de diluição do seu mais mundano quotidiano.

É neste cenário que Leos Carax (o próprio), um ser confinado ao seu espaço de repouso, descobre subitamente a secreta porta que o leva para essa realidade, e por vias de um desconfortante chamamento, procura o registo afetivo com o gesto da criação cinematográfica. A partir daqui, o espectador de "Holy Motors" entranha-se, perdido perante uma panóplia de histórias que se confrontam em busca de um sentido para a sua existência, da mesma forma que o protagonista, Oscar (Denis Lavant, o ator mais associável ao cinema de Carax) se tenta debruçar sobre a sua identidade.

Para o espectador fica o mero aviso: não tente encontrar ligações entre as situações mirabolantes e diversificadas que surgem perante os nossos olhos. O que interessa, como diz um “manchado” Michel Picccoli, que surge instantaneamente da mesmo forma como desaparece, “é o amor do gesto”. Entendemos que Óscar é um homem em vias de extinção, dos últimos da sua arte, de mil faces e almas que vagueiam pela cidade parisiense. Nele concentram-se todos os contornos da personificação do Cinema, um paralelismo (e menção) com outra figuração da Sétima Arte, a da cineasta Agnès Varda no seu esquecido especial “Les cent et une nuits de Simon Cinéma” (curiosamente, aqui era o ator Piccoli sob as vestes do centenário Sr. Simon Cinéma).

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Assim sendo, interrogando-se sobre os porquês e acréscimos do seu eterno romance com a Sétima Arte e exclamando da pulcritude que é o de entrar num “não-lugar” onde todos os seus devaneios são possíveis, Leos Carax persiste em “encaminhar” os espectadores para um universo em que fantasmas percorrem as ruas da capital com mais vivência que os próprios vivos. É neste processo de criação e construção de um mundo tão próprio como íntimo que o realizador cataloga um leque de personagens bizarras, negras e singulares. Cada uma dessas invocações tem como propósito homenagear os diferentes tipos e géneros de cinema, dos estilos às metáforas.

Viajamos dos primórdios clássicos do cinema mudo à complexidade visual da era tecnológica moderna (como podemos assistir nas sequências de "motion-capture" de tamanha beleza e sensualidade), passando pelo musical "hollywoodesco" e emocionante que a cantora e atriz australiana Kylie Minogue interpreta com alma, até chegarmos à prosopopeia cinematográfica assistida no último tomo, quando a limusine que transporta o nosso “viajante cinematográfico” decide demonstrar a sua personalidade, como um produto digno da Disney-Pixar.

Com este biótopo erguido por igual fascínio de primeiro contacto, “Holy Motors” é, na sua simplicidade, cinema de muitas variantes, muitos requintes e muitos “amores”, tornando-o quase inclassificável dentro do seu próprio seio. Por assim dizer, um OVNI! Porém, um dos mais belos do cinema recente.

Em anos felizes!

Hugo Gomes, 18.04.14

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Desde os tempos da Grécia Antiga que se ouvem histórias edipianas sobre filhos que matavam os seus país para poderem amar "a solo" as suas mães. Estes gestos macabros a sangue frio, revelavam uma certa psicologia freudiana em que nos remetia à primeira paixão de qualquer homem, a sua mãe. Amor materno por vezes conduz a loucuras, ciúmes obsessivos, entre outros, mas no outro lado da moeda, às mais delicadas cartas de amor, e uma delas é Anni Felici, uma autobiografia de Daniele Luchetti, em que próprio associa a sua paixão pelo cinema com a descobertas dos afectos para com a sua mãe. E é talvez sob esse modelo de declaração amorosa que a obra acentua um grau de sensibilidade elevada.

Um realizador como Luchetti habituado em retratar laços familiares no cinema, não tem medo de sujar as suas mãos no que requer a expor a vida privada e a relação por vezes complicada com o seu marido na tela, ao mesmo tempo que branqueia e dignifica a mesma. Em Anni Felici são muitos os elementos que povoam a narrativa: adultério, homossexualidade, descobertas a foro íntimo, amores estivais, separação, contudo tudo é induzido numa arte performativa que em simultâneo conjuga com a poesia visual. Este é um filme que Daniele Luchetti prova uma vez mais que não sabe fazer telenovela ou tragédia grega, mas sim requisitar fragmentos memoriais e inseri-los numa narrativa calorosa e terna.

Depois disso tudo é um conjunto de actores que possui o cargo de preencher tais memórias, com Kim Rossi Stuart e Micaela Ramazzotti a compor um dos romances mais conturbados e ao mesmo tempo carnais dos últimos anos no cinema.

Uma carta de amor pública!

Hugo Gomes, 17.04.14

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Será possível alcançar os limites do documentário? Existe uma matriz que o define ou uma formula mestra que nos realça a verdadeira essência equacional da sua transfiguração enquanto cinema?

Com Elena de Petra Costa, tais questões surgem e assentam na atmosfera fantasmagórica com que o documentário se funde com a poesia, quer lírica quer visual, a encenação com a realidade dos factos e a emoção técnica com a frieza da narrativa. Todos esses ingredientes contraditórios unem-se para gerar um híbrido, não no sentido abominável, mas no divino da palavra. Um filme que paira entre os diversos cantos da arte, passando pelo teatro primórdio remoto da Grécia Antiga até aos maneirismos do egocentrismo artístico tão claro na Arte Moderna.

Elena é acima de tudo uma carta de amor pública, denunciante aos lugares-comuns e às banalidades da mesma, construindo uma linguagem suportada por um visual digno de barro, inegavelmente moldável e cúmplice para com a sua autora, Petra Costa, que dedica este trabalho à sua falecida irmã, um modelo que seguiu de perto e que viu sucumbir num ápice. Contudo, nunca na sua memória, pelo que Elena (filme) remete-nos à perda e ao medo da solidão, ao espírito decadente que inflige os seus golpes numa narrativa que para além de reforçada com o seu instinto artístico é combatida pelo afecto e pela veneração de uma figura carregada de emoção. É que a autora constrói uma fita tão pessoal que chegamos a sentir-nos culpados em “invadir” este seu Mundo.

Voltando à questão inicial, é possível identificar o esgotamento da veia documental? Por enquanto não nos é permitido garantir uma resposta concreta, sendo assim, Elena demonstra o quão ínfimas são as possibilidades de trazer cinema e torná-lo em algo infinitamente diversificado. Onde muitos viram vídeos caseiros e citações poéticas, Petra Costa viu Arte na sua forma mais pessoal.

Primeiras Impressões: The Amazing Spider-man 2

Hugo Gomes, 17.04.14

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Um produto longo ... bastante longo, aliás ... minado de efeitos visuais e todo um conjunto de slow-motions infestantes. Pior que isso é que todo o potencial do primeiro filme é abalado por uma ambição sem precedentes, restando apenas a fórmula rotineira a tomar conta do resto. Que saudades que tenho de Sam Raimi e que saudades tenho da cinéfilia.

(Vi)ver o Brasil em tons!

Hugo Gomes, 05.04.14

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Apesar do título, as cores são a grande ausência neste homónimo filme de Francisco Garcia, o retrato de uma juventude sem ambição nem dedicação às suas próprias vidas espelhado num Brasil marginalizado, longe dos lugares-comuns como as praias tropicais e as favelas ou os clichés sonoros como os ritmos de samba. O que vemos aqui é um Brasil diferente, negro, depressivo, onde o funk e o bossa nova dão lugar ao rock e à electrónica underground, tudo isto para nos remeter à geração descendente de Woodstock, desiludida perante as promessas do passado e cativas num “buraco” social e financeiro de difícil saída.

Entende-se desde cedo a mensagem que Garcia e o co-argumentista Gabriel Campos anseiam invocar, algo facilmente descrito nas “imagens-metáforas” ou na composição melancólica e derrotista das suas personagens. Porém, “Cores” arrasta-se de jeito naturalista e de inicio retardado para nos persuadir com o óbvio. É o tipo de obra que bem poderia ser reduzida ao formato de curta. Ao invés disso, é então enfraquecida por uma narrativa esticada e contemplativa e, para prejudicar uma eventual dinâmica de exposição, temos ao nosso dispor um leque de personagens vazias e sem objetivos definidos para que o espectador possa interessar-se em acompanhar.

Apesar de tudo, “Cores” é uma autêntica lição de cinema, um exercício que é executado sob uma linguagem perfeitamente decifrável, dotado de boa planificação e uma fotografia a preto-e-branco que cobiça e usufrui as luzes e sombras do ambiente em redor. Em termos técnicos, esta obra é invejável, mas não perderia se fosse mais contornada nas suas arestas.

Badlands: horizontes longínquos e desejos próximos

Hugo Gomes, 01.04.14

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Na primeira longa-metragem de Terrence Malick, Badlands: Noivos Sangrentos (anos-luz das suas aventuras em territórios metafísicos e formalidades quase esotérica), seguimos num filme correspondente às estruturas convencionais da sua contemporaneidade, que por entre as suas elipses antevia o futuro autor que é hoje tido numa indústria cada vez mais despido de autoralidade.

Três anos depois da curta de graduação no American Film Institute - Lanton Mills - Malick remete-nos a um longo road movie entrelaçado com as influências coming-of-age, ao mesmo tempo que distorce as lenda já firmada na sociedade americana. O amor fervoroso, animalesco e por vezes grotesco entre Kit (Martin Sheen) e Holly (Sissy Spacek) tem de todo inspiração no caso Honeymoon Killers, um casal de assassinos que nos anos ‘50 "assombravam" as estradas norte-americanas com as suas fantasias e modus operandi de matança. Um enredo que conta e reconta, assim por dizer, a história de dois assassinos em plena "lua-de-mel", a base de um vasto imaginário do cinema dos EUA que nos conceberam obras importantes como Bonnie & Clyde, de Arthur Penn, ou o perturbado e delirante Natural Born Killers, de Oliver Stone (com argumento de Quentin Tarantino), que tinha como alvo principal o mediatismo vampírico e anti-ético da comunicação social.

Então o que de singular e distinto tem este Badlands (1973)? A resposta centra-se no seu conjunto fílmico e na reflexão contraída pelo cineasta tendo em vista o seu panorama. Uma sociedade a florir e a ser "arrancada" do seu "armário", a glorificação da violência e o papel dos órgãos comunicacionais nessa mesma divindade, como é possível verificar numa das sequências, o qual Kit é detido e exposto a um bando de soldados, todos eles curiosos em constatar as suas peculiaridades.

A busca destas mesmas singularidades que supostamente iriam elaborar a evidente tese da divergência entre o "individuo comum" para com o "maníaco homicida", é de uma indiferença desarmante, entrando em oposição, com The Texas Chainsaw Massacre, de Tobe Hooper (a estrear um ano depois), que de certa forma representava o assassino em série (nesse caso a persona Leatherface) dotado de comportamentos "animalescos" como uma bizarria humana. Kit de Martin Sheen é despido dessas características monstruosas, correspondendo fisicamente aos parâmetros aceitáveis da sua sociedade (nomeadamente a referida semelhança com James Dean) e isente de perturbações acentuadas desse género. Terrence Malick já previa uma ligação ténue entre a figura do serial killer e do mundano, pensamento hoje tido no "boom" cinematográfico e até mesmo televisivo de tal arquetipo.

Mas é nesse mesmo retrato que entra as influências "coming of age", o desenvolvimento do par de personagens, que por sua vez são "congeladas" pelo impasse que se dá pelo nome de enredo. Contudo, quer Kit e obviamente Holly, são dois adolescentes desencontrados (mesmo que a personagem de Sheen tenha 25 anos de idade) com o meio que vivem, ambos são os rebeldes sem causa (sim, a menção ao popular filme de Nicholas Ray, protagonizado por James Dean, não é por acaso) ligados por sentimentos contidos dilacerados pela frieza dos seus gestos e a inconsequência dos seus atos. História de amor conturbada que se guia pela paisagem que se transforma a meio da jornada, desde o vilarejo sem futuro do Sul de Dakota até às terras indomáveis e desabitadas de Montana, as "Badlands" [= terras más] do titulo. Neste último, a catarse para Malick "refugiar-se" na paisagem, é descrita como troço das decisões, o paraíso sem retorno ou simplesmente o inferno disfarçado de Éden.

Dotado de uma pertinente violência social e psicológica, Badlands é um dos elos de transição para o cinema contemporâneo, cuja distinção surgiu apenas com o passar dos anos. O sucesso, neste caso a falta dele, não foram favoráveis para o filme e para Malick na sua data de estreia. Houve um relançamento em 1979, seis anos depois da primeira estreia, como suporte da sua segunda longa-metragem, Days of Heaven, mas a receção foi a mesma. Devido a esta frieza geral, tivemos que esperar pacientemente dezanove anos para vermos um novo trabalho, o muito apreciado Thin Red Line. Todavia, e com a “carrada” de anos em cima, Badlands continua a fascinar corações, a extraí-los das suas zonas de conforto e imperativamente vivê-las sobre os calores da paixão e do sangue unificados.

As danças ao luar ao som de “A Blossom Fells”, de Nat “King” Cole; o “gigante crucificado”, o tributo de Martin Sheen a James Dean e as suas respetivas rebeldias sem causa; a frieza da violência para com os olhos de Kit; o desconhecido que reside no coração de Holly e os enredos paralelos que geram especulações (protagonizado pelo próprio Terrence Malick), são algumas das características desta obra deveras memorável, tanto como a mítica frase que ecoa nesta consanguinidade com o Sonho Americano: “I’ll kiss your ass if he don’t look like James Dean". Indescritível!