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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um sopro no coração

Hugo Gomes, 27.02.14

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Tal como uma dos personagens principais (o ator e argumentista Johan Heldenbergh), “The Broken Circle Breakdown” revela a sua adoração ao estilo norte-americano, nomeadamente o seu distinto melodrama. Contudo, e novamente em consolidação com o seu protagonista, vai-se divorciando dessa tal afinidade e estabelecendo as suas fronteiras, a do realismo europeu e a da fantasia onírica americana. Por outras palavras, é fácil identificar os elementos que comumente se visualizam nas enésimas obras americanas. Porém, tudo se resume a uma mimetização sarcástica desses mesmos lugares-comuns, ao mesmo tempo que o espectador evidencia um gradual afastamento em prol de um território europeu, realista até à medula e sim, como muito do seu cinema, deveras pessimista.

Mas é nesse pessimismo que encontramos a verdadeira beleza do novo filme de Van Groeningen (baseado numa peça de Johan Heldenbergh e de Mieke Dobbels), uma vingativa descida à eterna melancolia da vida celebrada com pequenos rasgos de graciosidade. Neste drama são muitos os momentos emocionantes e deveras poderosos, tudo graças ao par protagonista que desempenha fervorosamente os seus papéis (Veerle Baetens prestes a torna-se numa imagem de marca do cinema belga). Porém, e talvez o mais triunfante em “The Broken Circle Breakdown”, é que em nenhum momento sentimos pena deste casal, sentimos o roçar da lamechice e, mais infamemente, nenhum ato de esperança.

É um amor completo que gera uma família feliz, ambiente propício para esse tão cobiçado sentimento, mas traído pelo próprio ciclo de vida e culminando em desgraças capazes de converter o mais ou menos crente dos sujeitos. Tal como o título traduzido alude, é um Ciclo Interrompido pelo infortúnio, desfragmentado como a sua narrativa mergulhada entre o passado e o presente (um exercício narrativo a lembrar “21 Grams” de Alejandro González Iñárritu), onde a clara divergência entre estas duas linhas temporais é a fotografia, simbiótica com o tom do momento. É um debate refletivo sobre a natureza do revés e o sentido de uma vida que, por vezes, soa irónica e recheada de malvadez que nos faz questionar os propósitos de Deus.

Mas sem querer entrar nessa disputa religiosa que a promoção do filme parece forçadamente vender, o filme é uma faustosa melodia, um exemplo pesaroso que nos revela sintonia mas que de maneira ingrata retira-nos esse brilho. Apesar de tudo, é de forma apaixonada que Felix Van Groeningen aborda a desilusão no seu “Ciclo Interrompido”, o que se apostava ser mais um “by the book” do final feliz e que se torna numa envolvente obra sobre paixão e decepção, que aos poucos se tatua na sua própria narrativa.

A Grande Beleza, porque todos nós a perseguimos nesta “doce vida”

Hugo Gomes, 23.02.14

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Há algum tempo que não deparávamos com um filme tão abrangente a níveis artísticos e culturais como este “La Grande Bellezza” de Paolo Sorrentino, o mesmo homem que há anos esteve por trás de um quadro intimista sobre uma das enésimas páginas negras da história política italiana: “Il Divo: A Vida Espectacular de Giulio Andreotti”. Nesta sua nova obra, a mais pretensiosa até à data, o autor decide criar uma panóplia de “sabores” e de requinte visual, referenciando tudo e todos e preenchendo com todas as metáforas e dilemas que tem a seu alcance. Esta ambição que vai desde o visual, o técnico e o filosófico é ao mesmo tempo uma divagação pelas ruas e monumentos de Roma, captando a sua beleza e em busca da sua alma celestial.

Confusos? Pois bem, “La Grande Bellezza” é até complexo no seu modo operativo, ora é um retrato de pretensões para com a decadência de vida, sublinhando o lixo cultural e a pseudo-intelectualidade cada vez mais confundida com arte, ora é uma obra à deriva onde damos de caras com o nosso protagonista (Toni Servillo) vagueando como o derradeiro pedestre por uma cidade adormecida mas não morta na sua beleza inerente. É como de certa maneira Sorrentino invocasse cinema ocasional, filmando tudo como um guia turístico ou todos, o repentino cameo de Fanny Ardant parece ser prova disso, mas sobretudo o autor não deixa “morrer” o seu filme de maneira alguma. E quanto mais fundo o seguimos, mais nos deliciamos com a sua simplicidade, apenas envolvida por distorcidas e impenetráveis filosofias, morais e claro, um tom satírico e crítico que prevalece como ninguém.

Para além disso, Sorrentino é multifacetado na sua direção, quer pela mimetização (segundo as más línguas), onde consegue invocar Federico Fellini e o seu neo-realismo, como também a veia satírica de “La Dolce Vita” (a alienação da burguesia, por exemplo), até aos planos algo simétricos e renascentistas de Peter Greenaway. Ou seja, até na sua realização, Sorrentino incute a diversidade cultural, homenageando alguns dos novos artistas, aqueles desprezados pelos puristas das artes, que são os cineastas. Nisto tudo, sente-se em simultâneo uma mise-en-scene por vezes digna do teatro mais intimista.

Salienta-se ainda a banda sonora que parece abraçar tanto o moderno como o clássico, de uma magnificência contagiante e o desempenho de Toni Servillo, o peão neste versátil jogo de metafísica que é “La Grande Bellezza”. Um filme de indescritível beleza, a vida de decadência cultural, a epopeia cultural de Sorrentino a captar a Itália no seu melhor (e o pior). Por onde “caminhamos” quando morrermos?

A devoção de Maria Cabral a um país nos "Verdes Anos"

Hugo Gomes, 22.02.14

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O Cerco” do título advém da “barreira invisível” que rodeia a protagonista – Marta (Maria Cabral) – uma mulher moderna sufocada por um constante “poço” financeiro e social num país de estéticas, em clara negação com o real panorama que vive.

Datado de 1970, António da Cunha Telles recria um quadro moderno dum Portugal de divulgação indesejada, um país reduzido a um silencioso pedido de ajuda, ao mesmo tempo que se privava desse mesmo auxílio. Com os anos passados, “O Cerco” tornou-se incontestavelmente num filme moderno e acidamente cronista. Um ensaio mais verdadeiro, sofisticado e fiel à nossa essência como Nação do século XX do que a maioria das produções cinematográficas e televisivas de produção atual, que fora os ventos de mudança “pré-25 de Abril” (do Cinema Novo até aos pontuados exercícios críticos da contemporaneidade portuguesa, “O Mal Amado” de Fernando Matos Silva ou “O Recado”, também protagonizado por Maria Cabral, de José Fonseca e Costa).

Pois bem, este foi um dos, não fundadores, mas estabilizadores do Cinema Novo, um dos modelos priorizados da geração vanguardista de cineastas portugueses, embebidos por influências da Nouvelle Vague Francesa e do neorrealismo italiano literário (neste caso a imagem de repressão social como elemento crucial deste último ponto). António da Cunha Telles que fora produtor de “Os Verdes Anos” (1964) e “Mudar de Vida” (1966), ambos de Paulo Rocha, filmou “O Cerco” com os “restos” de película 35 mm destas mesmas fitas. O filme foi concebido durante os intervalos do trabalho publicitário que o produtor concretizava, e a atriz, Maria Cabral, que segundo este, surgindo de “pára-quedas”, tendo-se gradualmente firmado como uma musa inspiradora desta panóplia de crónicas viventes, como também uma das paixões cinéfilas do então crítico Joaquim Novais de Teixeira.

Porém, é difícil não se rever neste “O Cerco'' e muito menos na protagonista, uma alma frágil e gélida num mundo ainda mais frio. O seu percurso enquanto “heroína” é intercalada numa rotina claustrofóbica, a simulação de uma prisão labiríntica, onde o quotidiano se funde com os gestos religiosamente consumidos por esta. Mas a verdadeira essência e propósito, quer do filme, como de Marta, não é a sobrevivência face aos ecos sociais e financeiros de um regime que limitava as possibilidades culturais e sofisticação dum país carente, mas sim a procura da “felicidade” nesse mesmo meio.

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Como uma definição quase novelesca e digna de um guia de auto-ajuda, porém, descrita no filme como algo inatingível … e pior, frágil e sistematicamente “pressionado” por essa sociedade de teor consumista e propícias às aparências (as sardas postiças da atriz servem como alusão). Talvez seja por isso que Marta “protege” os dois peixes dourados em sua banheira numa cena inicial, deixando recado para “quem fechar a porta” – “Temos dois amigos na banheira. São um casal feliz, trate-os com cuidado” – ou o facto de o único o amigo da protagonista ser uma personagem de cariz generoso, igualmente ambígua, pedestre de trilhos duvidosos algures entre o ilícito (interpretado por Miguel Franco).

Assim sendo, “O Cerco” é um filme de reflexões, de uniões entre passado, presente e futuro e os indícios de uma emancipação feminista no meio lisboeta. Maria Cabral pode não ser uma atriz excepcional e verdadeiramente talentosa, mas a aura que transmite para fora do ecrã é de um sedutor magnetismo, as comparações com a bela Audrey Hepburn não são em vão. Ela é a pedestre, a catalisadora por este país longe de encanto e a heroína de um estilo fílmico que declararia independência ideológica a uma direção e sacrificaria a fantasia cinematográfica em prol de um realismo tão nosso. Se por vezes acusamos os filmes portugueses serem geralmente tristes, melancólicos e pessimistas, a culpa não é deles, e sim nossa, contribuirmos com tal imagem no nosso dia-a-dia.

O Cerco”, mesmo com 40 anos em cima desde a sua bem-sucedida estreia e sessões esgotadas semanas a fio na sala do Estúdio (como também recebido com elogios na edição de Cannes de 1970), é uma visão surpreendentemente moderna e ousada. Uma relação quase carnal para com o espectador. Talvez seja a partir daqui que o cinema português tenha perdido, por fim, a sua inocência.

Uma brisa revolucionária no ar ...

Hugo Gomes, 17.02.14

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Da maneira como “A Estrada da Revolução” inicia – escombros, sangue, gritos e uma assombração de um atentado – fazia-se prever mais uma cadeia “choque” tão fiel às manchetes sobre o estado atual do Médio Oriente e Norte de África dos mais variados noticiários. Face a tais imagens, o espectador ocidental facilmente se sente intrigado, revoltado por momentos, mas tal dissipa-se com o conforto das suas habitações e pela distância social ou simplesmente o afastamento geográfico de tais cenários desoladores e sanguinários. Para o jornalista Tiago Carrascos e ou seus parceiros, João Fontes (repórter de imagem) e João Henriques (fotógrafo), o noticiário não era o suficiente. Vendo mais que somente rotinas passageiras para o indivíduo comum, o que o trio presencia é um movimento de tamanha relevância, não apenas para o Médio Oriente e Norte de África, mas também para o resto do Mundo. A Primavera Árabe, a manifestação contagiante do ecoar dos ideais que os portugueses parecem “esquecer” – o Povo é quem mais ordena – imposta nem que seja por via do sacrifício e do sangue derramado.

Curiosos em testemunhar de perto este fenómeno, os três portugueses seguem então na derradeira rota da Turquia até à Tunísia, passando por verdadeiros “campos de batalha” como a Síria e o Líbano, através de uma demanda por vias de transportes terrestres, com o intuito de se aproximarem à verdadeira essência da Primavera Árabe: as pessoas. Depois da exibição de violência, sublinhando a atmosfera pesada e infernal que se vive nestes “indesejados” cantos terrestres, “A Estrada da Revolução” parte numa outra perspectiva, a visão partilhada por estes três jornalistas; as pessoas, os seus ideais e convicções, a luta através de cânticos, o uso da tecnologia como o escape da censura ditada por regimes e por fim as histórias por detrás desses novos ventos que se avizinham.

Será pura coincidência a queda sucessiva dos diferentes líderes de tais nações? “A Estrada da Revolução” segue tal viagem por fragmentos, e ao contrário dos documentários de formato televisivo não cede à definição, apenas às imagens que explicitam testemunhos de coragem. E é nessa coragem, e a semelhança que encontramos em todas essas histórias, o elo que liga povos diferentes mas igualmente oprimidos. Cada um sob a sua abordagem, umas mais difíceis de aceitar pela cultura ocidental que outras, como por exemplo o abdicar dos próprios filhos (mártires) em prol da queda de governos antagonistas. Porém, aceitando ou não, existe algo de sentido neste retrato para o indivíduo português, mesmo que as situações não se comparem (ou 8 ou 80), Portugal necessitava da sua própria Primavera, o retorno dos velhos ideais do 25 de abril que nunca se concretizaram por completo. Basta só assistir a luta quase interminável de um povo em atingir o seu próprio conceito de liberdade para depois testemunhar uma aceitação conformista de uma austeridade que revela a passos num novo género de Ditadura.

Deixando por agora este intervalo crónico nacionalista de jornal e regressando ao documentário. “A Estrada da Revolução” separa após os primeiros minutos dos lugares-comuns e da generalização utilizada nos telejornais e avança para um retrato humanista e íntimo a um dos movimentos que tem de tudo para se tornar num dos mais importantes do século XXI. Porém, a sua fraqueza como obra cinematográfica é que o filme de Dânia Lucas (narrado pelo ator Ivo Canelas) foi um fruto extraído de cerca de 200 horas de material gravado, sendo que a profundidade desejada não é devidamente atingida, prezando-se ainda assim o facto de um filme destes estar nas nossas salas, havendo aqui algo de muito atual e revolucionário. Não é coincidência a estreia nacional de “A Estrada da Revolução”, o nosso país precisa acordar, nem que seja seguir os exemplos (porém não os devemos seguir à letra) dos outros!

Nota de contexto histórico: este texto, e olhando agora com retrospectiva, foi escrito no calor do seu tempo. Portugal lidava com austeridade, Troika e um primeiro-ministro - Pedro Passos Coelho - que perante ao amontado de miserabilidade e desespero português, sugeriu "emigração". Portanto, pedimos desculpa pelo obsoleto que texto se tornou, desejando que não seja interpretado como um apelo aos populismos nem linchamentos populares.

Chop suey ...

Hugo Gomes, 15.02.14

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“Tales from the Dark”, baseado em pequenas histórias escritas pela popular escritora Lilian Lee, é o conjunto de três perspectivas de três realizadores em relação a uma sociedade com clara intimidade com o mundo sobrenatural e espiritual.

Nesta viagem, coordenada por Simon Yam, Chi-Ngai Lee e Fruit Chan, o espectador é convidado a integrar uma visão oriental do fantasma e do purgatório que os envolve. Mesmo sendo uma proposta no fundo interessante, sabendo que o género terror / thriller atrai os diferentes aficionados, “Tales from the Dark” é um puro desequilíbrio. Não somente porque os três atos da antologia diferem de qualidade e ritmo, mas como todas estas partes apresentam um certo amadorismo de produção, realçado pelas intenções que segundo o velho ditado: “o inferno já se encontra cheio”.

E assim começamos com “Stolen Goods”, o primeiro trabalho de realização do ator Simon Yam. O início deste segmento é um impacto quase térmico para o espectador ocidental, onde este é confrontado com uma visão folclórica e por vezes surreal dos ditos fantasmas no quotidiano. Depois desta introdução a um mundo paranormal completamente à parte da fórmula hollywoodesca, “Stolen Goods” explora a história de um “velho louco”, desempregado que aspira dinheiro e que para isso decide usufruir literalmente dos mortos, assaltando cemitérios e “sequestrando” urnas para eventuais chantagens aos familiares e entes queridos. Simon Yam tenta incutir uma atmosfera sinistra, o que para além de não conseguir ainda o leva a perder-se por opções diretivas que anulam qualquer efeito das suas sequências. Depois é uma narrativa que se perde nas suas linhas cronológicas, por outras palavras, nos flashbacks, e na composição dos seus personagens e nos diálogos pobres e por vezes sem sentido. Em termos de argumento e de concepção este é o mais fraco dos três capítulos, e sendo o início da antologia não favorece todo o comité de boas-vindas.

A segunda curta é apelidada de “A Word in the Palm" e dirigida por Chi-Ngai Lee. Neste ato somos remetidos a um ambiente de esoterismo e médiums, e uma equipa especializada em tentar lidar com um curioso caso de vingança e assombração. Composto de forma descontraída e aspirando ao “buddy movie”, “A World in the Palm” consegue incutir interesse derivado ao humor que contém e da química e carisma dos atores Tony Leung Ka Fai e Helly Chen. Infelizmente, esta história tende a soar a amadorismo visual e na concepção, demonstrando a realização de Chi-Ngai Lee algum cansaço durante a narrativa e acima de tudo um certo desleixo.

A terceira e talvez a mais eficaz das três partes é o ato realizado pelo aclamado Fruit Chan, que apresenta um ritmo e firmeza na narrativa. Para além disso, este foi dos três realizadores o mais sortudo, ficando com o mais criativo e místico capítulo da antologia. “Jing Zhe” (título da curta) leva-nos a uma tradição antiga e respeitada na China, o “Vencer o Vilão”, algo equivalente a “pragar”. Este processo que tem como intuito o de amaldiçoar quem se deseja em nome da vingança é a união entre o passado e o presente, os mortos e os vivos. No centro deste ritual sombrio mas popular surge a vingança mais improvável, a de quem supostamente não possui essa oportunidade. Jing Zhe é descrito pelo suspense que prolonga e pelo bom uso de câmara de Chan, todavia, sendo uma curta tende em “movimentar-se” entre “colagens forçadas” e um desfecho apressado e forçado.

Com isto, e mesmo sendo o mais capaz de todos os atos da antologia, não é suficiente para conseguir resgatar “Tales from the Dark" da mediocridade, nem sequer conseguido equiparar-se ao terror dos anos 80 de Hong Kong que era o visado. “Tales from the Dark” foi selecionado como o filme de abertura da edição de 2013 de New York Asian Film Festival e apresentou no mesmo ano uma sequela onde são os realizadores Lawrence Ah Mon, Gordon Chan, Kelvin Kwan e Teddy Robin Kwan os “guias” nesta entrada ao sobrenatural.

A serenata do "homem-marioneta"

Hugo Gomes, 14.02.14

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Jorge (Pedro Hestnes), um escritor de romances eróticos de série B sob um pseudónimo feminino, é constantemente confrontado com uma melancolia diária que afecta a sua autoestima e pretensões profissionais. Sempre desejou uma vida distante daquele “mar de solidão” que o afoga gradualmente. Contudo, os seus desejos tornam-se realidade quando por mero acidente depara-se com um misterioso gravador, do qual contém uma mensagem de suicídio oriundo de um desesperado homem. Nela, ele cita uma morada e um nome pronunciado com emoção. Ao encontrar o paradeiro daquele pedido, Jorge encara-se com Laura (Rita Durão) e o seu filho André, a família perfeita que sempre invejara, mas que nunca conseguira alcançar. Aos poucos Jorge vai vivendo a então vida daquele desaparecido sujeito, um sonho sem fim anunciado, “embrulhado” por eternas juras de felicidades. Porém, enquanto mais se aprofunda nesta sua “segunda pele”, mais ele apercebe do quão distante se encontra da antiga vida.

Um protagonista de tendências voyeuristas desafiado pelo próprio voyeurismo provocado, interpretado por Pedro Hestnes, naquela que foi a sua última contribuição para o cinema português (o ator faleceu em 2011 em consequência de uma cancro). É mais ou menos isto que caracteriza a terceira longa-metragem de Catarina Ruivo (“André Valente”, “Daqui Pra Frente”). Uma obra curiosa que invoca as mais diversas influências estilísticas, desde um neo-noir sombrio, auxiliado por uma melancolia e sombria fotografia mimetizado a pele vestida pelo protagonista, ou pelos toques hitchcockianos, evidentemente o seu “Rear Window” (1950), como podemos assistir na fantasmagórica sequência de voyeurismo, onde Jorge visualiza os seus vizinhos como James Stewart “espia” os seus na referida obra do “mestre do suspense”.

Porém, e como se confirma através desta cena-homenagem composta por um curioso split screen estrutural (ao contrário de “Rear Window”, o espectador apenas segue de livre vontade o “vizinho a seguir” ao invés da câmara "ditatorial" de Hitchcock), “Em Segunda Mão” exibe-nos uma montra de vida, uma exposição das razões de ser e de fazer voyeurismo, a cobiça e a insatisfação de realização pessoal que nos faz julgar a felicidade dos outros, desejando as suas rotinas e relações. É estranho, mas sob um jeito algo subtil Catarina Ruivo esboçou e dissecou o efeito “marioneta” das suas personagens, a pseudo-naturalidade dos peões viventes e do descontrolo na automatização da vida e relações afectivas. E tal como a grande maioria dessas mesmas relações, “Em Segunda Mão” transfere o dilema do início fabulado, as iminências caóticas e o desinteresse na exploração das ditas na jornada identitárias de Jorge, o eterno homem-marioneta, a travestida criatura do destino.

Com um começo algo trapalhão, de narrativa minimalista e de ligação inexistente entre cenas (atribuindo um tom de descartabilidade em algumas delas), “Em Segunda Mão” possui o trunfo de se adensar ao longo da sua duração. Após ter terminado as introduções e redefinição de objectivos, Catarina Ruivo contorna as reviravoltas dando uma sensação de prolongado clímax. Assim, o filme assume-se conformista ao mesmo tempo sóbrio, espalhando erotismo e dualidade, convertendo-se num impensável thriller metódico. Por último, destaque a Luís Miguel Cintra, a cooperar com a sua forte presença.

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