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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Yasujiro Ozu: uma viagem a Tóquio com gosto de saké

Hugo Gomes, 22.01.14

Yasujiro Ozu é novamente uma personalidade em estudo graças à reposição de duas das maiores obras de sua carreira – “A Viagem a Tóquio” e “O Gosto do Saké” – que chegam às salas do nosso país sobre o formato digital restaurado, mas que ainda preservam a sua dramaturgia artesanal que somente o mestre nipónico poderia incutir.

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Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)

 

Viagem a Tóquio: “A vida decepciona

Não é em vão que se marca o reencontro dos espectadores com estas obras incólumes. Vivemos numa sociedade onde a distância entre gerações é cada vez mais diferenciada e isolada entre elas, provocando nestas adversidades uma incompatibilidade social que é gradualmente notada nos avanços e na modificação do quotidiano tal como o conhecemos. Ozu ilustrava há 60 anos tal longitude geracional num retrato deveras alusivo e exaustivo em simbologias presentes nos seus diálogos, na monotonia dos atos, nos laços familiares e por fim na multiplicidade de sentimentos.

Falo obviamente de “A Viagem de Tóquio” (“Tokyo Monogatari", 1953), onde é visível o confronto entre épocas ambientado num Japão em plena reconstrução, quer social e económica, após a humilhante derrota na Segunda Grande Guerra. O enredo é deveras simples: um casal de idosos oriundo de uma calma e pequena cidade costeira “ozuesca” viajam para a capital nipónica com fins de visitar os seus filhos e confirmar como se estão saindo fora das suas “alçadas”.

Durante esta jornada de reencontros familiares, os “velhotes” apercebem-se que os tempos mudaram e as suas anteriores crianças já não são mais crianças que necessitam dos pais, são agora adultos feitos e de família formada que tentam sobreviver numa cidade competitiva. De natureza ocupada e sempre dotados de uma certa frieza em relação à visita dos seus progenitores, os filhos tentam mantê-los ocupados com atividades das quais não requerem a suas presenças, fazendo com que estes tenham as merecidas férias mas não as pretendidas.

Porém, a ironia das ironias é que a única pessoa que os recebe com a tal devida atenção e respeito durante a viagem é a nora viúva, que demonstra tamanho afeto, principalmente no tremendo clímax que Ozu aguarda para o último ato. Uma trama simples, interligada pelas mais diferentes rotinas familiares onde pouco ou nada parece surgir no ecrã. Contudo, este é o filme que mais sintetiza o próprio estilo e inerência do cineasta nos seus anos mais tardios.

Uma obra de uma beleza inigualável onde Ozu tece um confronto de gerações e “coze” discretamente qualquer veia sentimental mas que as difunde nas proximidades do final, nos quais deparamos com uma orquestrada capacidade em transmitir sob um signo nobre, uma ênfase emocionante, de beleza triste e súbita, capaz de colher uma poderosa moral.

Claramente esta é a obra-prima do cineasta, um quadro subtil, bem-intencionado e sempre munido de mensagens ocultas nos cenários e nas triviais conversas entre personagens. “A Viagem de Tóquio” foi durante a sondagem de 2012 da revista “Sight & Sound” considerado o terceiro melhor filme de sempre entre os críticos, e o primeiro entre os realizadores, distinção discutível, mas que se reconhece ser de certa forma merecida: esta é uma das obras que nos “tocam” pela sua simplicidade em emoções que ecoam por toda a eternidade.

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Sanma no aji (Yasujiro Ozu, 1962)

 

O Gosto do Saké: a despedida agridoce

Em “O Gosto do Saké” (“Sanma no aji”, 1962), o último filme da sua carreira e o segundo sexto a cores como uma pastosa pintura a guache se tratasse, Ozu aborda um país sob uma crise de identidade. Enquanto em "A Viagem de Tóquio”, por exemplo, continuávamos a assistir um Japão tradicional em plena remodelação após a derrota na Guerra, na derradeira obra deparamos com uma nação nipónica cada vez mais contagiada pelo Ocidente.

Entre os exemplos, Ozu filma grandes fábricas industriais, os produtos ocidentais em constante presença no quotidiano das personagens (a cerveja ao invés de saké, o macarrão ao invés de arroz, as uvas aos invés das deliciosas iguarias) e a vontade destas em mimetizar o estilo de vida norte-americano, enchendo as suas habitações com os mais claros acessórios do moderno ocidente. E não só: até mesmo o uso de contraceptivos é referido.

É uma transição visual e inerente que o cineasta implanta sob uma trama tão usual na sua carreira, novamente balançando os seus ingredientes em mais uma nova visita à classe média. “O Gosto do Saké” resume-se a um drama agridoce sobre a importância do casamento como dever de uma vida e a solidão que atinge a “velhice” (um dos elementos altamente referidos na carreira do realizador).

A história centra-se num viúvo, interpretado pelo ator Chishu Ryu (cara conhecida da obra de Ozu), que tenta arranjar casamento para a sua única filha. Contudo, o medo do isolamento instala-se. Uma obra tão rica em simbolismos, ditada pelas ocorrências minuciosas e demoradas, “O Gosto de Saké”, tal como o título parece indicar, é um filme para saborear, para sentir e, acima de tudo, interagir. O final é novamente contagiado por um clímax algo poético que, apesar não ter a mesma força emocional que “A Viagem de Tóquio”, possui um traço especial, uma despedida dolorosa mas incutida como uma prolongada balada de um realizador e um cinema tão único como “tão japonês”.

Os constantes olhares ao passado com pouca crença no futuro cada vez mais reduzido e o país que metamorfoseou em consequência dos mais inúmeros eventos, até se tornar numa terra capitalista, onde a modernidade ocidental tenta a todo o custo apagar uma herança tradicional. O quotidiano de Ozu é igual a si mesmo, sob uma capa adulterada e sofisticada. Chishu Ryu encontra-se perfeito a personificar Yasujirô Ozu nesta tremenda despedida, visto que o realizador faleceu um ano depois de “O Gosto do Saké”, no exato dia do aniversário, quando completava 60 anos.

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Yasujiro Ozu

 

A Poesia da Simplicidade

A classe média é o ponto central da fase mais madura da carreira de Ozu, que transcreve tais atos tradicionais no seu modus operandi. Os planos estáveis e centralizados que automaticamente cedem a close-ups igualmente “adormecidos” da face dos atores como se estivessem realmente a dialogar com o espectador, uma constante quebra da quarta barreira e sob a acta do falso-raccord (o voluntário corte da continuidade de planos). A câmara posicionada a meio metro do chão, simbiótica para os característicos costumes nipónicos (tais como a típica postura sentada de joelhos no chão) e as interpretações forçosamente rígidas.

Em relação à alma de Ozu, a sua filmografia é repleta de temas e abordagens comuns em todas as suas obras, retratando valores familiares, modernização em confronto com o tradicionalismo, a herança geracional e a morte como “vizinha” iminente de um ciclo. Em todos estes casos, o cineasta conseguiu formular e distinguir uma identidade fílmica, onde os mais variados elementos nos façam facilmente identificar se estamos ou não a assistir um filme da sua autoria.

Talvez seja por essa estrutura modelar que o realizador nunca conheceu a distinção que outros mestres do seu tempo conheceram, como Kenji Mizoguchi ou Akira Kurosawa. Longe dos épicos ou dos dramas complexados, o cinema de Ozu é visto como uma espécie de anti-cinema clássico, uma rotina que invoca subtileza mas nunca a espetacularidade cinematográfica necessária para ser vista por milhões. Todavia, sempre foi apelidado do “mais japonês dos realizadores japoneses“, devido à sua fidelidade para os costumes quotidianos da sua nação.

Trata-se de um cinema algo marginal para a época mas, que a pouco a pouco, talvez graças a um pensamento algo vanguardista que surgiu entre os anos 60 e 70, começou a se destacar entre circuitos cinematográficos e a ser motivo de estudo principalmente em relação à sua sofisticação narrativa e a firmeza com que transforma o quotidiano em pura subtileza artística.

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Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)

 

Ozu em Portugal

Em Portugal o seu reconhecimento chegou muito mais tarde, precisamente no mês de julho de 1980, graças aos ciclos cinematográficos garantidos pela Fundação Calouste Gulbenkian, que na altura serviam como alternativas da Cinemateca de Lisboa, em tempos nos quais a sua programação ainda não era diária.

Contudo, a chegada das duas obras, subtis ao mesmo tempo ricas com a cultura do outro lado do mundo mas sempre envolventes com temas tão nossos, é um sinal de uma nova manifestação cinéfila do nosso país após 33 anos da sua chegada a Portugal. Anteriormente nenhum filme de Yasujiro Ozu havia estreado comercialmente nas nossas salas e, tendo em conta a quantidade de obras clássicas repostas nos respectivos cinemas ao lado dos blockbusters e os mais recentes êxitos, esta é a evidência de que o passado nunca fora esquecido, quase citando uma alusão ao espírito de Ozu.

Le Mani Sulla Città: uma outra "mão invisível"

Hugo Gomes, 13.01.14

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É possível nas reminiscências do passado obter um reflexo do panorama actual? Com Le Mani Sulla Città de Francesco Rosi a resposta é mais que positiva. Neste consagrada obra de 1963 (vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza), o espectador encontra-se consciente e constantemente absolvido por um retrato ambíguo e facilmente corruptível da cidade de Nápoles. Dentro dessa mesma cidade literalmente em ruínas, não apenas em matéria como pôde ser evidenciado numa surpreendente sequência inicial (um desabamento mais assombroso do que qualquer imagem gerada por computador como é hoje tido como hábito), mas como também nos contextos morais, instalando-se num “ninho de cobras” que é clinicamente demonstrado. Esse mesmo “ninho” tem um nome concreto - política.

Política, essa, abordada e reproduzida como qualquer Máfia se tratasse (não é por menos que Rosi transfira para este quadro político-social, todos os lugares-comuns e semióticos dos ditos “mob movies”), adaptando-os ao contexto que se atua. O ator norte-americano Rod Steiger é também uma dessas adaptações, emprestando corpo a um dos mais contraditórios anti-heróis do cinema italiano dos anos 60 - Edoardo Nottola - um homem de negócios com raízes duvidosas ao crime organizado local que ascende na política conterrânea. Le Mani Sulla Città (As Mãos sobre a Cidade, como titulo traduzido) é o espelho de uma sociedade corrompida, observado por um olhar isente de esperança e de qualquer traço maniqueísta, tal como se pode constatar no último momento, onde o “mal” triunfa em consequência da inaptidão dos homens de bem, citando o estadista Edmund Burke.

Francesco Rosi invoca por vias de um neorrealismo acentuado e sujo em contrastes sociais gritantes, e por uma câmara interventiva, cínica e igualmente agressiva, um percurso quase e infernalmente descendente de uma cidade que ainda hoje é vista pelos piores motivos. A teia criminosa que se revela perante nós - meros mortais - é a tour de force de um dos mais corajosos e diretos trabalhos cinematográficos. Todavia, Le Mani Sulla Città não traz soluções, nem sequer respostas aos eternos tumores, apenas profere o aviso para as gerações futuras, porque este é acima de tudo, um filme inerentemente atual.

Kim Longinotto: alcançando a história no feminino

Hugo Gomes, 09.01.14

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De carácter provocador coexistindo com um olhar sensível e de uma noção urgente de agir, Kim Longinotto é uma das mais badaladas e respeitadas documentaristas britânicas. Admirada por trabalhar com reduzidas equipas durante a rodagem dos seus documentários, Longinotto, que iniciou a sua carreira em 1976, é referenciada como uma importante voz na defesa das mulheres em todo Mundo, abordando histórias de opressão e discriminação, e demonstrando a figura da mulher nas mais variadas sociedades e em costumes tradicionais e religiosos.

Kim Longinotto estreia em Portugal, quer pela primeira retrospetiva do seu trabalho no nosso país como também da sua presença, a mulher por detrás de obras documentais obrigatórias a descobrir como Pink Saries e Iranian Divorce Style, acompanhou a programação do Cinema de Passo Manuel, Porto, durante o seu ciclo, intitulado de Histórias no Feminino, que decorreu nos dias 28 a 30 de março de 2013.

Sendo que este tributo de carreira foi acolhido com entusiasmo, cujos documentários serviram de objeto de estudo para varias questões éticas e humanas da mulher na sociedade, o mesmo aconteceu com a vez da cidade de Lisboa acolher a retrospetiva, exibidas no Cinema City Classic de Alvalade nos passados dias 4 a 7 de abril. A Cinematograficamente Falando … esteve presente no ciclo e assistiu a dois dos mais badalados filmes, visões únicas de uma autora delicada e cronista de sociedades marginalizadas.

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Divorce Iranian Style (1998)

Fortalecido com o triunfo e aclamação da obra iraniana A Separation (Jodaeiye Nader az Simin) de Asghar Farhadi, na edição de 2012 dos Óscares, onde foi distinguido com a estatueta de Melhor Filme de Lingua Estrangeira, Divorce Iranian Style é uma entrada directa aos bastidores dos estabelecimentos judiciais do Teerão. Kim Longinotto, em cooperação com Ziba Mir-Hosseini, acompanha o drama de seis mulheres com o desejo de divorciar. Todas elas apresentam argumentos válidos para tal, porém, as leis iranianas são rígidas e de favorecimento masculino tornam um simples consenso numa tarefa árdua, em que a burocracia é o maior dos obstáculos.

Iranian Divorce Style é abordado por uma câmara intimista, participativa e directa, mas incapaz de contornar o choque cultural, tornando esse factor a sua maior arma mediática. São histórias de mulheres desesperadas, marginalizadas e condenadas numa sociedade governada por homens. Um dos melhores trabalhos de Longinotto, vencedor do Grande Prémio de Documentário no Festival de Cinema de São Francisco.

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Hold Me Tight, Let Me Go (2007)

O único trabalho da documentarista presente na mostra que não aborda questões de opressão, discriminação e outros, relacionados com a posição feminina na sociedade. Hold me Tight, Let me Go leva-nos a uma instituição especializada para crianças com "graves" problemas de inserção social, incontrolavelmente violentas e emocionalmente traumatizadas - a Mulberry Bush School, Oxfordshire, Inglaterra.

A câmara de Longinotto documenta o dia-a-dia dos envolvidos no “tratamento” e cuidados destas mesmas crianças, e com isso, as complicações das suas reacções e interacções. Mesmo sendo um documentário algo impressionante na forma como regista as atitudes violentamente impulsivas destes pequenos "marginais" (as “birras” tenebrosas que integram os pesadelos de qualquer progenitor,) sente-se nestas bandas uma certa encenação por parte dos educadores. Narrativamente e estruturalmente é dos filmes menos entusiasmantes de Kim Longinotto e dos menos objectivos também. Hold me Tight, Let me Go vale pela sua temática e demonstração do lado negro que muitas crianças ocultam, mas carece de arrojamento e de um ponto de vista mais abrangente.

"Pranks" ao invés de filmes ...

Hugo Gomes, 08.01.14

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Joaquin Phoenix anuncia assim o fim da sua carreira enquanto actor e o início da sua jornada como rapper industrial, a comunicação social foca assim, com tamanha intensidade, este retiro e segue de perto aquele momento que muitos apelidam de “a queda de um dos melhores atores da sua geração”. Calma pessoal, nunca passa de um arquitetado embuste. “I’m Still Here”, falso-documentário realizado pelo cunhado do nosso protagonista, o também ator Casey Affleck, resume-se num trapaceiro descendente dos “apanhados”, tentando humilhantemente alcançar o mediatismo através por um extenso gag gerada por esta cumplicidade.

Trata-se de um filme-momento, em que após termos conhecimento de tal estratagema, automaticamente renega o seu sentido de existência e porventura, difusa ainda mais o seu objectivo enquanto produção. O ator de “Walk The Line” e “Two Lovers” esbanja  talento em interpretar a sua própria decadência, conseguindo no meio de tanto alarido, um ícone anedótico imitado “over and over again”. Piadinha de mal gosto que nem atinge parâmetros de sátira, inapta como obra de reconhecido futuro, resumindo a todo este documento a um conjunto de pseudo-metáforas de situações mirabolantes e morbidamente decadentes.

Inútil!

Sophia, um prémio bem português!

Hugo Gomes, 03.01.14

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Um país só tem futuro se tiver memória

Paulo Trancoso

 

O ambiente era de festa, isso ninguém nega, a celebração do nascimento da Academia Portuguesa de Cinema, uma instituição que pode rivalizar com as diferentes Academias do resto do Mundo, é um passo em frente para o cinema português. Contudo, como em qualquer outra festa, existe sempre o espírito da indignação face ao cinismo festivo que se emana, sendo que as razões para tal até são válidas face aos tempos que decorrem e que de certa forma afetam a preservação do cinema português como um património cultural (mais do que um produto de venda e compra).

As polémicas em torno da nova Lei do Cinema, que nos reflete o estado degradante e pouco ativo do nosso país, as faltas de verbas e até mesmo o academismo da recém-formada Academia foram os motivos para muitos dos vencedores das mais variadas categorias se manifestarem. Muitos foram aqueles que não receberam os seus prémios pessoalmente, apenas entregues por via de intermediários e de seguida lidas as suas mensagens de pura revolta, pessimismo ou repreensão. Tal cenário foi tão repetitivo que até mesmo a imagem de glamour e festividade que a Academia tentava a todo custo manter era gradualmente dilacerada. Miguel Gomes, João Salaviza e João Canijo foram alguns dos nomes, figuras incontornáveis do nosso panorama cinematográfico, que contribuíram para tal combinação de “facadas” à estética defensiva da Academia, enquanto os seus trabalhos eram premiados com os tão nossos Sophias.

Por fim, João Botelho num discurso em homenagem a Manoel de Oliveira, durante a entrega do Prémio de Mérito e Excelência, tomou uma posição directa, revolucionária e “sem papas na língua“, ao mesmo tempo que denunciava o desleixo da lei perante a vivência do cinema, acusava a Academia de ser demasiado académica face às suas escolhas cinematográficas. Ninguém na sala estava indiferente ao cenário que se deparava, até mesmo o apresentador, José Pedro Vasconcelos que tentava a todo o custo invocar uma satirização digna dos seus colegas norte-americanos, caía por vezes no embaraço quando cedia às constantes subvalorizações da nossa gala em comparação com as das outras Academias. Se por um lado tal posição ia contra a “capa cínica” que pairava, por outro “rebaixava” um produto tão nosso, como também os envolvidos na construção da cultura cinematográfica portuguesa que se encontravam presentes.

Todavia, a maior das "desvalorizações" foi mesmo a sua suposta emissão televisiva. Aqui farei com abertura certas comparações. Enquanto em outros países, como França e Espanha (não é preciso exemplificar os Óscares), os prémios das academias são religiosamente galas televisivas, seguidas em direto para todo o país, em Portugal os Sophia foram gravados, arquivados e colocados numa lista de espera para uma data indeterminada sugerida pela RTP. Foi um sinal de “serviço público” da televisão generalista, que tanto aposta em conteúdos fúteis e decadentes sem incentivar o público a “alargar” os horizontes. Enfim, no geral e apesar dos impasses, os Sophia foram uma ótima prova das tentativas de mudança que se tentam incutir no cinema português, uma pequena brisa que vai contra as aclamações dos puristas ou de todos aqueles que reduzem o nosso cinema a estereótipos.

No fim de tudo isto, “Tabu” de Miguel Gomes recebeu a merecida distinção, um dos poucos filmes portugueses irreverentes, tecnicamente profissional mas criativo (um autêntico anti-academismo), um olhar entre o vintage e o moderno que se resume num legado que Portugal não está disposto a esquecer. Há quem (sem ter visto o filme em questão) e perante o Sophia triunfado, subvalorize a obra de Gomes, julgando que o cinema nacional é um “embrião” de Hollywood ou de ensaios novelescos e formatados. Para todos esses, o cinema é mais que pipocas. É uma criação!


(crónica publicada originalmente no site C7nema, em 8 de outubro de 2013)

No Fim do Mundo com Pedro Pinho: "A realidade é tudo (...) Cabe-nos a nós observar, descortinar, organizar."

Hugo Gomes, 02.01.14

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O realizador Pedro Pinho conquista o seu direto na ficção com a sua segunda longa-metragem - Um Fim do Mundo (que chegou a ser apresentado no ultimo IndieLisboa).

Um retrato sobre o fim da adolescência aos olhos de um grupo de jovens "marginalizados", viventes de um dos mais infames, porém vivos, bairros de Setúbal, a Bela Vista. Nesta transição ditada com realismo e com profissionalismo por parte dos seus "não-atores", Um Fim de Mundo tem a proeza de invocar fantasmas sociais mas nunca julga-las perante o nosso panorama, ao invés disso se compõe como um retrato humano de uma das importantes fases da nossa vida. O Cinematograficamente Falando … falou com o realizado que pretende acima de tudo conectar com o espectador.

Que razões é que o levaram a filmar e centrar a história no bairro da Bela Vista?

Escrevi o argumento para se passar entre Setúbal e Troia, algures num bairro de blocos de apartamentos. Por coincidência a câmara de Setúbal abriu um concurso para se fazer uns filmes sobre a Bela Vista. Uma amiga, a Filipa Reis, convidou-me a participar nessa candidatura e ganhámos. Foi essa a circunstância que ditou que filmássemos naquele lugar. Foi uma feliz coincidência que veio acrescentar uma série de camadas interessantes à história inicial.

Como descobriu estes jovens "não-atores"? Foi por vias de um casting?

Fizemos um casting onde escolhemos alguns, outros foram recomendados por amigos, outros ainda apareceram nas oficinas de dramatização que organizámos. No caso da Eva abordámo-la expressamente na rua.

O que se entende por um Fim do Mundo? Em algum momento acentua esse metafórico Fim?

O título tem que ver com a cena final. Mas também com essa ideia de fazer um filme sobre o final da adolescência, sobre um hiato temporal onde acaba o mundo da infância, antes de entrar na vida adulta. Acho que há um plano de conjunto na cena da praia em que cada personagem está virada para seu lado, a mexer na sua toalha, que gosto de ver associado a essa ideia de Fim do Mundo. Uma paz aparente percorre aquela paisagem e cada um deles, mas parece que se adivinha ali alguma interrupção dessa paz. Gosto de ver um título tão forte associado a uma cena onde não acontece nada.

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Face aos acontecimentos decorridos no filme, em nenhum momento vocês julga os seus personagens. Contudo nunca ficou tentado a fazê-lo?

Tenho a impressão que os filmes constroem e expõem as personagens, quem adere ou não a elas, quem pode vir a sentir simpatia ou desagrado são os espectadores. Uma coisa é o ponto de vista do realizador partir de uma moral, outra coisa é o filme ser moralista e defender esse julgamento dentro de si. O meu ponto de vista parte seguramente de uma moral qualquer (não necessariamente a moral dominante, mas alguma, minha) o que não implica que oriente o filme para um julgamento dos personagens, isso seria terrível. Penso que o filme será tão mais interessante quanto as suas personagens sejam todas colocadas em pé de igualdade na sua complexidade e beleza para que possam lutar por esse julgamento íntimo e individual de quem as for ver.

Um Fim do Mundo tem tanto de ficção como de raízes de documentários, durante a produção nunca sentiu comprometido a um só formato?

Acho que a vantagem de trabalhar num campo que se assume claramente como ficcional é a de se poder acrescentar as camadas de discurso e as dimensões que desejamos. No filme foram introduzidas algumas dimensões, desde os locais que atravessam, às situações, aos gestos ou ao teor de algumas conversas que não aconteceriam se eu estivesse a fazer um documentário. Até porque aquele grupo de pessoas não existe, o seu quotidiano não é aquele, etc. O que não impede cada um dos atores de se rever na sua personagem. Pois ela foi feita a partir do material que cada ator trouxe. Foi com isso que demos corpo à função dramatúrgica que cada personagem desempenhava para servir a narrativa.

Essa metodologia de base um pouco documental – no sentido em que se apropria de alguns dados da realidade independentes da ficção, da improvisação, da espontaneidade – consiste em estabelecer um acordo com os atores em como iremos esticar a corda, filmar para além dos limites do ação/corta, procurar captar uma verdade qualquer na distração, no esquecimento, no que surge quando não se pede nada, na gestão do desconforto. Penso que é ela que permite abrir um buraco que nos faz mergulhar no universo ficcional, esquecer que existe uma câmara, uma sala, sentir que estamos lá. Isso para mim é importante, esse efeito da suspensão temporária da descrença, uma hipnose com os seus vários graus e efeitos. Como diz um amigo, o Luís Miguel Correia, sentir a “vidinha”.

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A ideia desta trilogia (A Cama de Gato, Bela Vista, Um Fim do Mundo) já se encontrava definida como projeto ou foi uma experiência que cresceu gradualmente?

A ideia vem desde o início. São 3 olhares diferentes que partem de posturas radicalmente distintas. O Bela Vista é um documentário de base estritamente observacional. O Cama de Gato parte de uma realidade concreta para construir um percurso ficcional. O Um Fim do Mundo faz o percurso inverso, parte de um roteiro ficcional para ir ao seu encontro na realidade onde irá decorrer. Mas todos eles nasceram de um período comum de 3 meses de pesquisa, repararem e desenvolvimento no mesmo bairro, nas mesmas ruas, com as mesmas pessoas. Por isso achámos que fazia todo o sentido que as personagens se encontrassem, cruzassem, dialogassem, como acontece na realidade.

A realidade sempre fora um propicio gerador de histórias?

A realidade é tudo. Está tudo lá dentro. Cabe-nos a nós observar, descortinar, organizar.