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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

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Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

Quatro notas soltas sobre "Maestro" de Bradley Cooper:

Hugo Gomes, 30.11.23

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- Vemos realizador para o futuro! Depois de "A Star is Born", um livro de apontamentos do classicismo à lá Eastwood, deparamos com uma variação mais scorseseana (se não fosse o facto de Scorsese manter-se na produção do projeto), entre movimentos graciosos, transições de alto risco e enquadramentos que jogam nas diferentes perspetivas (há um Snoopy que atravessa o cenário, literalmente, num timing perfeito). Se a Academia não ficar refém da 'nolanização', temos prémio garantido para "Directing".

- Bradley Cooper é igualmente primoroso enquanto ator (sem querer apoiar nos prémios, mas Óscar já é uma garantia), e é uma interpretação acima do seu nariz e das controvérsias (!) que isso acarretou.

- Perdoem-me os "mulligrupies", mas Carey Mulligan é altamente sobrevalorizada, imaginei o seu papel em 10 outras atrizes, e com mais pathos, dinâmica e expressão.

- É mais que um biopic na formatação do termo, é a desconstrução de uma figura de culto, sem degradações e sem venerações, com destaque à "sombra" do génio, à cumplicidade e às suas tragédias  ... tudo embrulhado numa técnica impressionante (e nos dias de hoje, com o realismo formal e com as imperatividades narrativas, desprezamos cada vez a técnica).

Um Sonho de uma Noite de Verão Violento

Hugo Gomes, 26.11.23

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Em paredes adornadas sob o signo futurista de Carlos Carrà, o apropriado "Temptation" a ecoar no gira-discos daquela mansão que exala fascismo em todos os seus poros, o albergue de um grupo de jovens (mais uma infiltrada), infiltrados em tal ambiente na escapatória do negrume dos seus respectivos dias. Nada importa, sem ser o calor daquela noite de Verão; a Guerra parece algo distante, impalpável, inoportuno, e a política, essa, mera desnecessidade, ali, sem lugar naquela mansão - o "clube de poetas vivos", um esconderijo para as suas romanceadas ilusões.

Entretanto, falávamos de uma infiltrada, é verdade, alguém cuja juventude alça vôo como pássaro em fuga, uma viúva de um tenente da marinha, Roberta (Eleonora Rossi Drago), na casa dos 30, desconfortável na sua busca pelos "verdes anos" manifestados por aqueles jovens movidos pelo álcool e "beijos roubados", todos eles na casa dos 20 ou abaixo para contrastar. No grupo jovial, existe também quem anseia evadir a sua própria "imaturidade", Carlo (Jean-Louis Trintignant), filho de um líder do regime fascista daquela Itália estival de '43, que não é nada mais, nada menos, como proprietário daquele imóvel agora servido de silencioso festival.

Carlo ronda Roberta no aguardo de uma resposta, uma confirmação quanto aos sentimentos entre eles germinados. Horas antes estavam na bancada de um circo, um espetáculo ali decorrida entre palhaços e trapezistas que nada de jus fez ao duelo de olhares que acontecia ali entre os dois “jovens desencontrados”, um confronto, uma negação que contaria com o seu clímax tempo depois, naquela residência e ao som daquele soneto melodicamente encoraja à tentação. Contam-se gestos, passos calculados, olhares, cadências, até as sombras "conspiram" num demente jogo, etapa a etapa (economia da consequência, nada é desperdiçado) até por fim, como tomos de ar fresco no jardim propriamente dito, os silêncios triunfam num esperado beijo. Consolidou-se então o romance de Verão, naquele Verão que não era um qualquer, como havia datado, 1943 para sermos exatos, em plena Segunda Guerra numa Itália governada a mão de ferro por Mussolini (por pouco tempo), e é nessa precisa estação que as tropas aliadas invadiram o território. Pormenores, dirão alguns, que funcionam como cenário desta história que se assumiria como mais uma.

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Mas a Guerra possui um papel de ruptura aqui, uma adversidade ou antes um chamamento, cujos gritos encaminham-nos para um caminho de ferro bombardeado por aviões “aliados” (as aspas denotam a indiferença do termo aliança; as bombas não têm partido e os ataques não têm conduta), o terror dos céus pairando sobre eles, determinados a agendar sua fuga, o devaneio dos românticos. Nesse momento, o romance já não importa num mundo em conflito, e o corpo da criança assassinada, sem rosto e sem nome por sorte, poupado dos pés dos nossos protagonistas, conscientiza essa epifania mortal. Carlo (Trintignant, o jovem trágico em verões alheios), que até então gabava-se de desertar do “apelo nacional”, do exército, à Guerra, esse fantasma-encostado, é agora determinado a servir, sem obrigações, sem incentivos, sem ser em rebelião ao cenário que depara. O comboio que separa os amantes, cliché emoldurado do melodrama enquanto género, serve aqui como faca de dois gumes, perpetuar o trágico da ruptura amorosa e sublinhar o sacrifício individualista do nosso "bon vivant" ao serviço de um Bem maior.

É uma propaganda moral com atraso, visto que o filme data de 1959, com a Segunda Guerra no seu fim, mas não o fascismo, até aos nossos dias, como ervas daninhas que se revelam após um prolongado Inverno. "Estate Violenta", segunda longa-metragem de Valerio Zurlini, o romance de verão contra todos os romances de verão, do fascismo à liberdade e da liberdade ao fascismo, a imaturidade em busca de maturidade de Carlo com a maturidade em busca da imaturidade de Roberta, a sua representação e o seu oposto, que ao contrário do que o título incentiva não nos valida com violência. Saudades de filmes assim.

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Táxi!!

Hugo Gomes, 25.11.23

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Like Someone in Love (Abbas Kiarostami, 2012)

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Total Recall (Paul Verhoeven, 1990)

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Night on Earth (Jim Jarmusch, 1991)

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The Fifth Element (Luc Besson, 1997)

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Colateral (Michael Mann, 2004)

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They All Laughed (Peter Bogdanovich, 1981)

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Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

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Taxi (Gérard Pirés, 1998)

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Taxi (Jafar Panahi, 2017)

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No Táxi do Jack (Susana Nobre, 2021)

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Scrooged (Richard Donner, 1988)

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A Taxi Driver (Jang Hoon, 2017)

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The Day After (Hong Sang-soo, 2017)

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It Must be Heaven (Elia Suleiman, 2019)

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The Bone Collector (Phillip Noyce, 1999)

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2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

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Happy Together (Wong Kar-Wai, 1997)

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In the Mood for Love (Wong Kar-Wai, 2000)

"Eu sou o Capitão"

Hugo Gomes, 23.11.23

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Em junho de 2023, lamentavelmente comum no Mediterrâneo, mais uma embarcação de migrantes oriundos do Norte de África (maioritariamente) naufragou, resultando na perda de 800 vidas. A notícia, relegada a um rodapé pelos meios de comunicação ocidentais, rapidamente cedeu lugar à busca pelo submersível Titan no Atlântico Norte, operado pela Ocean Gate com 5 tripulantes, abastados entre eles, devemos salientar, com o intuito de observar as ruínas do Titanic. “Morreram todos”, foi desta e criticada forma que o pivô José Rodrigues dos Santos abriu o telejornal da RTP, e é com esta ruptura que desvendamos o desfecho desses “esforços”. Ou seja, enquanto chorávamos por cinco, 800 vidas não obtiveram tamanha solidariedade, apoio nem sequer “buscas incansáveis” do que restava daquela gente. O Mar Mediterrâneo, diante da crise migratória, havia-se convertido num cemitério marítimo, dessacralizado, e distanciado das nossas sensibilidades

Em setembro deste mesmo ano, em plena Competição do Festival de Veneza, Matteo Garrone (“Gomorra”, “Dogman”) apresentava o seu último trabalho - “Il Capitano” - filme que seguia a jornada de um jovem senegalês seduzido pelas “promessas do Primeiro Mundo”. Previsivelmente, a odisseia não será de todo feliz, e o rapaz, cuja inocência torna-se no maior adversário e igualmente aliado, é confrontado com os bastidores do “sonho europeu”, passando pela Níger, ao deserto do Saara e à prisão libanesa até chegar por fim, ao obstáculo marítimo. 

Etapas de sofrimento que Garrone ameniza por via de um tom fabulista (resquícios do seu “Il racconto dei racconti”, 2015), presente em delírios, miragens, sonhos ou escapes do protagonista, mas o pesado daquele cenário mantém-se como pintura de parede, relembrando ao espectador da rota dos infortúnios, dos que tentam alcançar a mundanidade que nós europeus nascemos com direito garantido. Desde o seu primeiro passo, o mesmo “passageiro” [leia-se, espectador], prevê na sua “bola de cristal” os desdobramentos deste sonho, as consequências, os antagonistas e o clímax, esse, justificando o título, o qual, numa estratégia burlona em que o nosso protagonista (mais uma vez, inocência como palavra de ordem) assume-se “capitão” de uma sobrelotada embarcação, cegamente rumo a Itália

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O “caminho marítimo” é desgostoso, sofrido, miserabilista, mas é a partir daí, com “terra à vista”, que Matteo Garrone joga o seu privilégio num imprevisto “conto de privilegiados”. Considerando a narrativa comum, ou a ausência dela,, o destino trágico de milhares de “aventureiros”, o realizador tentou prevalecer uma fantasia, um “happy-ending” abrupto ou inconcluso em jeito de manifesto à miserabilidade que estes “contos” trazem. Poderá ser uma boa intenção, servindo do Cinema como escape da nossa realidade, ao mesmo tempo trazendo consigo uma satisfação burguesa (contra a vulgarização da tragédia) e, consequentemente, uma romantização daquela situação em prol do nosso conforto da sensibilidade. É um italiano a dizer-nos, sobretudo, que “nós” europeus estamos absolvidos da culpabilização da jornada destes “peregrinos”, enquanto que na realidade, nós somos os traidores dos seus sonhos. 

Il Capitano” é, em todos os aspectos, um filme verdadeiramente competente, seja tecnicamente, performativo ou na descrição da sua “realidade”, distanciando-se da presença branca (não há uma única ‘personagem’ europeia, levando-nos a uma história inteiramente de quem viaja). Contudo, incentiva uma hesitação, à banalização trágica que tanto critica e igualmente à tragédia banalizada que emana enquanto espetáculo de emoções.