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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Temos produtores e paixão!", nas saunas da intimidade com Anna Hints e Tushar Prakash

Hugo Gomes, 09.10.24

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Smoke Sauna Sisterhood

As saunas, hoje apropriadas por um certo sistema de castas ou como um escape de uma sociedade febrilmente acelerada, são parte integrante da tradição estoniana, estendendo-se a outras nações vizinhas. Não vamos abordar as suas propriedades medicinais, nem a "fuga à realidade" que as metrópoles "franchisaram", e sim do seu lado confessional. É através desta última faceta que a dupla Anna Hints e Tushar Prakash nos envolve em dois filmes que explora traumas, intimidades, géneros e irmandades. "Smoke Sauna Sisterhood" (2023, prémio de Realização na categoria de World Cinema - Documentários no Festival Sundance) retrata a ligação entre mulheres, as suas histórias e experiências, ecoando naquele espaço — não numa busca por compreensão, mas numa escuta atenta. Já a curta-metragem "Sauna Day" (2024), onde o silêncio é a linguagem predominante, invoca uma ligação xamânica entre homens que desafiam convenções e as pressões historicamente impostas sobre os seus ombros.

Estes filmes abordam temas profundamente contemporâneos, da imagem aos corpos, o nu sem festins, mas o nu a descoberto, entre homens e mulheres, que se tornam nos maiores contadores de histórias. No contexto da 7.ª edição do festival BEAST, que decorreu de 25 a 29 de setembro, e da iniciativa da Embaixada da Estónia, o Cinematograficamente Falando … conversou com estes autores, abordando confissões, processos criativos e, sobretudo, a confiança — a sua maior arma (ou melhor, desarma) no Cinema.

Portanto, o vosso díptico - o “Smoke Sauna Sisterhood” e o “Sauna Day” - decorre e ocorre no mesmo ambiente, mas são filmes completamente diferentes entre si. Então, talvez comece com o primeiro que foi lançado, o “Smoke Sauna Sisterhood”, do qual o Tushar Prakash contribuiu na montagem.

[Dirigindo a Anna Hints] Algo que me impressionou foi como conseguiu criar um elo de confiança para com estas mulheres? O qual sem ela não seria possível a concepção deste filme.

Anna Hints: Bem, antes de mais, acho que este filme foi possível porque venho da cultura da sauna de fumo. Portanto, sim, essa é uma questão muito importante quando queremos representar uma cultura ou uma comunidade: qual é o teu acesso e qual é a tua relação com essa comunidade? A cultura da sauna de fumo é específica do sudeste da Estónia, no sentido em que tem uma expressão mais forte nessa região. Também existe em algumas ilhas, mas o património que está sob a proteção da UNESCO e que ainda se mantém vivo é no sudeste da Estónia, particularmente nas culturas indígenas de Võromaa e Setos. Portanto, sim, considero que isso foi crucial, pois faço parte da comunidade. Era como se as pessoas, as mulheres lá, tivessem confiança que representasse a cultura de uma forma fidedigna.

A segunda questão é que há muitos aspetos a considerar, especialmente porque estas mulheres estão completamente despidas. Na verdade, o grande desafio para mim foi garantir que este olhar não crítico, que existe na sauna de fumo, se mantivesse quando estamos juntas, a sangrar juntas.

Sim, quando estamos na sauna de fumo juntas, temos corpos diferentes. Estamos a suar, a sangrar, a urinar juntas, e não há objetificação entre nós. Não existe esse olhar crítico. Mas, ao mesmo tempo, na sociedade, os corpos femininos nus são tão sexualizados, tão objetificados. De facto, um grande desafio para mim foi como garantir que este olhar não sexualizado também se transferisse para o cinema.

Tenho uma licenciatura em fotografia e estou muito consciente de que, sempre que se pega numa câmara, esta nunca é objetiva. A câmara é sempre subjetiva, sempre tem um olhar. Assim, antes de me encontrar com as mulheres e de filmar, dediquei tempo com o diretor de fotografia para calibrar o nosso olhar através da lente. Fomos juntos à sauna de fumo e filmámos o meu corpo nu, à procura de uma linguagem. Depois, queria mostrar às mulheres de que maneira é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos.

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Anna Hints

A montagem também teve algum papel importante na dessexualização destes corpos?

AH: Não. A edição não pode salvar nada quando se começa a pôr realmente tempo. O que estou a dizer é que, imagina que passámos horas e horas com um cinematógrafo a filmar o meu corpo e a encontrar essa maneira de filmar. Começa já com a forma como filmas, porque a câmara é um olhar. E, tendo um diploma em fotografia, quando alguém diz que "a câmara é objetiva", isso é uma grande mentira. A câmara nunca é objetiva. Portanto, mesmo esta situação aqui poderia ser filmada de uma forma excessivamente sexualizada ou com uma certa dinâmica de poder. 

Assim, estávamos a explorar isso e a encontrar esta chave visual. Depois, mostrei-a às mulheres porque queria que elas clarificassem e verificassem como é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos? Como se sentem? Se estão confortáveis com isso? Todas se sentiram seguras e bem. Na verdade, o material que entrou na edição já não continha essa sexualização. Também é muito importante dedicar tempo a encontrar essa chave visual anteriormente, porque todas aquelas histórias que ouves vêm naturalmente das mulheres. Elas não são escritas. Não sabíamos. Não sabíamos a cada vez que íamos.

Tushar Prakash: Cada vez que íamos à sauna de fumo, era simplesmente o embate com o desconhecido.

AH: Eu não sabia que histórias iriam surgir. Não era uma questão de: "Oh, vamos falar sobre antes disto". A chave é ter certeza em relação à nossa abordagem, à nossa linguagem, para que, quando entrássemos na sauna realmente aquecida a 80 ou 90 graus, não começássemos a procurar algo, ou a repetir também as histórias. Tinha que ser algo que se capturasse. Acho que o material que foi para a edição já estava — vamos dizer, entre aspas, dessexualizado.

TP: Nós não tínhamos um olhar dessexualizado de todo. O material já estava bastante... adequado nesse sentido. A Anna também esteve presente na edição durante todo o processo, como também foi uma das editoras. Tivemos sempre essa orientação na edição para manter essa sensibilidade ao longo de todo o processo também.

AH: Mas isto é, por um lado... é uma resposta mais longa à tua pergunta sobre como foi trabalhar com estas mulheres. Uma das coisas que me perguntaram é: "Como é que as convenceste?". Acho importante salientar que as não convenci. Sabia perfeitamente que fazer este filme só seria possível quando não houvesse nenhum traço de persuasão.

No sentido em que não posso dominar a voz delas. O que fiz foi que, quando conheci as mulheres do sul e da comunidade, fui muito transparente sobre o que queria fazer. Depois perguntei se queriam fazer parte deste projeto, ao que me responderam que sim. Quando senti que a resposta era um não ou um talvez,não insisti. Ao mesmo tempo, fiz o filme durante sete anos, e o processo de edição foi de dois. Sinto que a sociedade também mudou. Houve o movimento #MeToo, e algumas mulheres começaram a reconectar-se comigo e disseram: "Ok, agora quero estar no filme."

E a terceira coisa que é muito importante e que, normalmente, quando alguém diz "sim, quero estar num filme", é o facto da produção trazer papeis legais, para que se assina antes das filmagens, basicamente cedendo os teus direitos antes de qualquer processo. E isso parecia tão errado para mim. Como realizadora, é crucial saber quem são as pessoas com quem trabalhas.

Tenho que realmente congratular e celebrar a minha produtora, Marianne Ostrat, que assumiu connosco um grande risco, ao concordámos que não assinariamos nada antes. Imagina, estivemos a filmar durante sete anos e tínhamos um acordo de que só quando tivéssemos o corte na edição do qual estivéssemos satisfeitas é que mostraríamos às mulheres. Elas teriam o direito de dizer sim ou não até ao fim. Portanto, isso significa que alguém poderia ter dito não e perderíamos todo o projeto. O filme foi possível porque não as convenci, e sim, lhes mostrei como a nossa câmara estava a tratar os seus corpos. Todos concordaram. Não obtive nenhum não.

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Smoke Sauna Sisterhood

Como é que criou esta atmosfera de intimidade, sabendo que havia uma equipa presente. Sabemos que uma pequena equipa que estava lá. Portanto, como é que se chega a um ponto de confiança em relação a essas pessoas se abrirem-se desta maneira, sabendo que a equipa irá ver e testemunhar as suas confissões? A confiança para chegar e dizer "Ok, precisamos da perch."

AH: Havia um diretor de fotografia, um operador de som e eu. O que é também muito interessante é que, devido à falta de diretora de cinematografia na Estónia, eram todos homens. Portanto, havia um diretor masculino, o Ants Tammik. O que fiz para lidar com isso foi que, uma vez que mostrei como estávamos a tratar os seus corpos, também perguntámos quem queria mostrar o rosto e quem não queria. Assim, elas tinham confiança nisso. Além disso, tinham a certeza de que iriam ver o material, pois não tinham assinado nada. Também passámos tempo juntos, porque estávamos a filmar no campo. Elas passaram tempo com o diretor de fotografia e o operador de som e sentiam-se bem na presença deles, seguras diria. Tudo funcionou lindamente. Acho que este é um dos aspectos mais importantes da realização de um filme: como criar essa confiança.

Estivemos a passar tempo juntas fora da sauna de fumo, mas havia a condição de que não falássemos sobre o que íamos discutir na sauna. Garanti que não entrássemos lá com essa intenção, como também não haveria pressão para o que iriam dizer. Podíamos simplesmente ir para lá e ficar em silêncio. Ao mesmo tempo, sabia e tinha confiança de que as histórias começariam a surgir. Além disso, tínhamos o tempo a nosso favor.

Acho que, quando fazes essa pergunta sobre como foi possível, tens que ter crucialmente tempo. Quando tens uma equipa pequena e crias todo o processo de filmagem de uma forma que não é apressada, tens que dedicar tempo; assim, essa intimidade pode evoluir. Todos tinham o direito de se afastar ou de não entrar. Mas funcionou maravilhosamente. Tenho pensado nisso, e é bastante louco, porque foi fisicamente desafiador. Era realmente uma sauna de fumo quente, a quase 90 graus. Uma sessão de sauna de fumo dura três ou quatro horas. Também podes pensar nisso: não era como se disséssemos: "Entramos na sauna de fumo e imediatamente começamos a falar." Talvez a primeira hora tenha sido apenas para nos sentarmos, ajustarmo-nos, e estarmos confortáveis com a situação. As histórias começaram a surgir na segunda hora. Mas tínhamos tempo. E, de alguma forma, porque o processo era transparente, havia confiança de ambas as partes. Era apenas o operador de som, o de fotografia e eu. Ninguém mais.

Existe algo que me fez refletir no vosso filme. Algo contra os tempos em que vivemos, porque estamos a ouvir estas mulheres falarem durante 10 minutos sobre as suas histórias e nunca as interrompemos, nunca respondemos, e elas nunca sentem que precisam de uma resposta. Hoje em dia, mesmo nos documentários, há uma necessidade de se responder a tudo. Aqui, apenas limitamo-nos a ouvir. 

AH: Isso é muito verdade e preciso! Porque comecei realmente a perceber o poder de ouvir enquanto fazia o filme. E, de facto, é o oposto. Em muitas maneiras, o espaço da sauna de fumo é um antídoto para este mundo em que vivemos agora, onde temos de dar opiniões o tempo todo, de responder, de comentar, de dizer se gostamos ou não gostamos. Estamos sempre nas redes sociais, sempre, o tempo todo. Mas na sauna de fumo, ao entrares, entras nu. Só isso já é diferente. Na sociedade, temos as nossas roupas. As roupas físicas, mas também as roupas metafóricas, como "Eu sou isto, eu sou aquilo", as definições que damos de nós mesmos. Agora, imagina que entras neste útero escuro e tiras todas essas roupas. Todos estão nus ali. Todos têm o direito de existir. Ninguém te julga.

Com o calor, primeiro as camadas mais profundas de sujidade física começam a emergir, e depois também a "sujidade" emocional começa a vir à superfície. O calor é super importante, como também a escuridão – não há eletricidade. Lavar a alma significa exatamente isso: quando as emoções, quando as histórias começam a emergir, os outros apenas ouvem. Percebi que há um enorme poder em dar voz à nossa história e dar espaço para ouvir as histórias dos outros. Pensei muito nisso e percebi que é como alguém partilhar, e os outros não comentarem, apenas ouvirem. E, através disso, o ato de ouvir torna-se num ato poderoso, é como testemunhar. É como dizer: "Testemunhei a tua realidade." E, ao fazer isso, dás à outra pessoa o direito à sua própria realidade. Não há competição de realidades. Não há julgamento das realidades.

Smoke Sauna Sisterhood” não significa que temos de partilhar as mesmas realidades ou sentir o mesmo em relação ao mundo. Realidades diferentes podem coexistir naquele espaço escuro. É na verdade, uma sensação super poderosa. Coexistir com todos esses corpos diferentes, com essas experiências diferentes. Exatamente. Não há julgamento, e também não há julgamento em não responder, porque muitas vezes, quando achamos que estamos a ouvir, já estamos a pensar em como vamos responder, ou no que vamos ensinar ou pregar. Mas aqui é simplesmente: "Essa foi a tua história..." E digamos que partilhas uma história, e talvez ressoe, talvez crie algo em mim, e depois simplesmente partilho a minha história. Mas não comento a tua.

Agora passamos para o “Sauna Day” … há algo cómico nele, porque com as mulheres temos um filme longo, já que elas falam, mas os homens não falam uns com os outros, por isso, temos uma curta-metragem. Como surgiu a ideia do “Sauna Day”? Foi uma resposta ao “Smoke Sisterhood”, ou tentaram usar a mesma abordagem com os homens?

AH: Sim, de certa forma, pode-se dizer que o “Sauna Day" nasceu da experiência do “Smoke Sauna Sisterhood”. O que me fascinou foi que, apesar de termos este espaço incrível da sauna de fumo na nossa cultura, a forma como se expressa a vulnerabilidade e a intimidade não é a mesma entre os géneros. Mesmo no Sul, onde temos a sauna de fumo e os homens também vão lá, eles não partilham ao mesmo nível que as mulheres. Comecei a ficar realmente fascinada pela forma como se evita a intimidade. É como se as palavras que os homens usam não fossem importantes, de certa forma. Eles falam sobre trabalho, sobre política, mas o que começa a ser realmente interessante é o que não estão a falar e como retratar isso.

No “Sauna Day”, vemos dois homens que estão lá, conversam, mas não o fazem através de palavras. É através do silêncio. Sim, é na ação. Isso tornou-se interessante para nós, ao compararmos os dois filmes: enquanto em “Smoke Sauna Sisterhood” as mulheres partilham a sua voz, expressando-se através das palavras, na sauna, eles partilham sem palavras.

Quando viajei com o “Smoke Sauna Sisterhood" por toda a Estónia a mostrar o filme … oh, meu Deus! … em cada sessão havia sempre um homem na audiência que dizia: "Como é possível que quando vamos à sauna, falamos apenas de coisas triviais, em vez de abordarmos o que realmente importa? Por que evitamos a intimidade?" A partir daí, comecei a receber propostas. Não conheço essas pessoas, mas elas enviaram-me cinco propostas por e-mail: "Oi, Anna, eu dou-te dinheiro. Por favor, faz o ‘Smoke Sauna Brotherhood’." E claro, essas pessoas não têm ideia de quanto custa fazer um filme, mas foi tão doce. Uma delas disse: "Poupei 2.000 euros. Podes fazer um filme com isso?" Isso fez-me perceber que sim, há uma necessidade de abertura, mas existem barreiras e medos enormes. Dessa forma encorajava: "Antes de fazer qualquer filme, comece por abrir-se. Seja a primeira a dar o primeiro passo."

Sauna Days

Estamos todos à procura de conexão humana, mas, de alguma forma, gostamos de fazê-lo de forma confortável. No entanto, acredito que não há outra forma do que aceitar a desconfortabilidade, porque para se conectar, é necessário ser vulnerável. E quando não estás habituado a isso, torna-se desconfortável. É também assim que os homens, e Tushar pode falar mais sobre a masculinidade tóxica que vocês enfrentam, sentem a pressão e o conceito do que é um “homem forte”. 

Essa força é vista como uma forma de evitar a intimidade. A intimidade e a vulnerabilidade são frequentemente percebidas como fraqueza. Por isso, onde quer que vá, tento questionar essa perspectiva, porque, para mim, a verdadeira força reside na coragem de ser vulnerável. Além disso, talvez possas falar sobre a troca de códigos e o que retratámos nesse contexto [dirigindo-se para Tushar].

TP: Em relação à masculinidade tóxica, uma coisa que também gostaria de acrescentar sobre o “Smoke Sauna Sisterhood” é que, durante a edição, tomámos uma decisão muito consciente: nunca se expressa uma opinião sobre os homens no filme. Não dizemos: "os homens são assim" ou "os homens são assado". Eles são retratados através das histórias. Essa foi uma escolha deliberada na edição. Através dessas narrativas, mesmo o público masculino, ao ver o filme, pode vivenciar a experiência que as mulheres estão a partilhar. De certa forma, uma opinião bloqueia a empatia, mas quando uma história é narrada, e uma mulher se mostra vulnerável ao compartilhar o que viveu, os homens ou qualquer pessoa podem conectar-se com essa experiência.

Uma das melhores coisas ao mostrar o “Smoke Sauna Sisterhood" em todo o mundo foi ouvir o público masculino dizer que também se sentiu conectado ao filme. Eles não se sentiram excluídos, mas parte da narrativa. É por isso que quando Anna contou a história de homens que a procuraram e disseram: "Podes, por favor, falar também sobre a nossa vulnerabilidade?", ficou claro que eles desejavam vivenciar isso também, o que me deixa muito orgulhoso.

O “Sauna Day” me fascina por abordar temas como masculinidade, intimidade masculina, e a toxicidade associada a isso. O filme é definitivamente sobre a intimidade masculina e a incapacidade dos homens de se conectarem emocionalmente. Eles carregam o peso de ter de se conformar aos padrões de gênero, de ganhar dinheiro e de se integrar na sociedade. Carregam o fardo dos mitos dos seus antepassados sobre o quão arduamente trabalharam. Conhecemos homens assim na Estónia rural e também na minha família na Índia, que estão sempre a tentar viver à altura das expectativas dos homens que vieram antes deles. E nunca conseguirão, porque quase mitificaram a ideia de seus antepassados, que carregavam 100 quilos de peso, que morreram no trabalho ou que trabalharam de manhã à noite em temperaturas de menos 20 graus.

Esses homens sentem que nunca serão tão bons quanto seus avós ou pais. Isso cria um espaço onde não conseguem abrir-se, onde não conseguem ser íntimos, pois veem a intimidade e as emoções como fraquezas que os tornariam incapazes de funcionar na sociedade. Isso sempre me fascinou. O “Sauna Day” foi um passo para explorar essa dinâmica.

Sim, a sauna é um cenário realmente interessante para explorar ideias e experiências humanas. Também sentimos que os homens são vítimas do patriarcado, não apenas as mulheres. As mulheres, sem dúvida, são as mais afetadas; “Smoke Sauna Sisterhood” mostra isso de forma muito clara. Mas os homens também sofrem sob as mesmas pressões. Sentimos que havia espaço para explorar isso.

Uma questão que o filme também aborda é a troca de códigos: como, quando os homens falam e participam na sociedade, eles se conformam a padrões de gênero, mantendo conversas factuais e abordando assuntos superficiais, como o telhado ou outras banalidades. A linguagem torna-se uma espécie de pele, uma roupa que esconde a verdadeira essência deles, uma forma de se encaixarem na convivência. Porém, quando as palavras emergem do espaço da sauna e os dois personagens ficam sozinhos, surge uma nova linguagem: a linguagem dos corpos, dos gestos, dos instintos, onde talvez o gênero, a sexualidade e os relacionamentos sejam mais fluidos e as coisas não possam ser nomeadas com clareza. Isso foi algo que desejávamos explorar.

Queríamos também que o filme não parecesse estrangeiro à comunidade onde foi filmado, mas que fosse visto como uma história do seu próprio meio. Esse foi um dos nossos desafios: como fazer o filme parecer parte da comunidade. Conseguimos ultrapassar essas barreiras, fazendo com que a comunidade visse o filme como uma história sobre amizade masculina ou uma excelente sessão de vapores entre dois homens. Não precisavam interpretá-lo como um filme queer, mas sim como um filme sobre homens a partilharem algo importante entre si.

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Tushar Prakash

AH: Isso é verdadeiramente fascinante. O que estás a falar, essa troca de códigos ou code-switching, e o ritual que desempenhamos na sociedade, é algo que realmente explora camadas profundas do comportamento humano. Por exemplo, o ato de usar o ramo de vihtas na sauna, que vemos como um ritual amplamente aceito na cultura da sauna, carrega muito mais significado do que aparenta. O “whisking” [ato de chicotear com as ervas vihtas] pode ser visto de várias formas. Por um lado, é apenas um ato físico, um cuidado corporal tradicional, mas, ao mesmo tempo, pode ser interpretado como algo tão íntimo quanto fazer amor. Há algo incrivelmente ambíguo nesse gesto.

O que me parece particularmente interessante é a incapacidade ou relutância de nomear os sentimentos, porque há esse medo profundo de que, ao nomeá-los, damos-lhes existência. O que nos fascinou foi como, mesmo nesse ato de whisking, há tanto uma presença de intimidade quanto uma tentativa de evitá-la. É um jogo constante entre a proximidade e a distância. Esse jogo de tensões é essencial nas comunidades retratadas.

Um momento particularmente marcante foi quando o filme foi exibido em uma grande praça ao ar livre em Tartu, em agosto passado, e cerca de 1.500 pessoas estavam a assistir. O que foi realmente interessante foi a diversidade de reações que recebemos. Homens vieram até nós dizendo: "Isto é exatamente como me senti quando me separei da minha esposa e fizemos esse ritual do whisking." Foi uma representação tão poderosa das suas emoções.

Por outro lado, mulheres também compartilharam o seu ponto de vista: "Sim, isto descreve perfeitamente os homens estonianos, que não falam sobre as suas emoções." E ainda havia o feedback da comunidade queer, que também se sentiu profundamente conectada: "Isto é tão queer. Esta é exatamente a nossa experiência."

A riqueza de interpretações foi incrível. Foi fascinante ver como cada grupo encontrou uma ligação diferente com o filme. Certos códigos de intimidade que talvez não sejam compreendidos por todos, especialmente por aqueles fora da comunidade queer, ainda ressoaram de forma universal. As pessoas conseguiam entender tanto a presença da intimidade quanto a sua ausência, bem como a tensão entre evitá-la e desejá-la.

Essa capacidade do filme de falar de forma tão abrangente e, ao mesmo tempo, tão pessoal a diferentes audiências é algo que realmente nos tocou. Mostra como os rituais culturais e os gestos humanos são capazes de transcender as barreiras de linguagem e identidade, conectando-se a algo mais universal e profundo sobre a experiência humana.

TP: Os códigos são muito culturais. Desculpa, só um pequeno desvio. Mas, na Índia, os homens adoram dar as mãos, e estes são homens que não se identificam como queer. São homens que têm esposas, filhos, mas gostam de dar as mãos. Lembro-me que, sempre que os meus amigos vinham da Europa, olhavam para isto e diziam: "Uau, estão numa relação ou algo assim?" Não, dizia eu, isto é uma forma de partilharem intimidade. É uma forma de partilharem a sua amizade. 

Temos de perceber que estes códigos de intimidade são muito baseados na cultura. Só um pequeno facto trivial. Estou a estudar folclore, por isso tenho observado estes pequenos códigos culturais e tudo mais.

Segundo a minha experiência, normalmente, a intimidade e de partilha entre homens acontece à volta de uma mesa, álcool à mistura.

AH: Mas também, algo que me interessa muito - visto que estou a fazer o meu mestrado e agora consegui articular sobre o que quero escrever, o qual chamo de “cinema físico”. Temos o teatro físico quando referimos teatro, mas o cinema físico e como trazer o espaço, o corpo e a fisicalidade para o cinema, de forma a que o sintas no teu corpo. É isso que me fascina. Tendo formação em arte contemporânea e fiz muito... como se diz? … performances ligadas ao espaço. Uma performance site-specific, em que tens o corpo, e o corpo que respira, o corpo que cheira, o corpo que existe, o corpo do público, e tu sentes isso. Para mim, sempre houve esse dilema entre o filme e a arte que estava a fazer. Muito bem, mas algo está a faltar. Como fazer com que o ecrã cheire, que transpire, que o sintas nos ossos? Nesse sentido, a sauna de fumo é um espaço muito generoso. Sim, poderia haver uma cena onde os homens estão a beber e a falar, mas o que me fascina mais é o corpo, está molhado.

Sim, e eles também estão a falar sobre isso. A própria pulsação manifesta-se. Sim. Às vezes, quando estás a trabalhar com atores, há certas palavras que podemos dizer. "Está um dia bonito." Mas o que estamos realmente a dizer? Qual é o subtexto? Interessa-me esses subtextos. Interessa-me o que estamos a dizer ou o que não estamos realmente a dizer, e encontrar formas de capturar isso

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Sauna Day

Sobre essa exposição na “Smoke Sisterhood Sauna”, nenhuma mulher dentro da sauna mostra o rosto, exceto uma pessoa (Kadi Kivilo). E essa mulher acaba por se tornar a principal ouvinte, a personagem principal. Como surgiu essa ideia? 

AH: Sim, ótima pergunta. Então, essa mulher é a Kadi Kivilo. Ela é uma amiga de longa data, e entrou no projeto no segundo ano de filmagens. Foi assim que aconteceu: ela sabia que estava a fazer o filme e contactou-me, dizendo: "Quero estar no filme com o meu rosto, com o meu nome, a 100%." Antes disso, já tinha perguntado às mulheres quem queria aparecer com o rosto e quem não queria. Para mim, isso tornou-se também um documento interessante do nosso tempo, porque muitas mulheres estavam dispostas a mostrar os seus corpos, mas não os seus rostos. 

Isso mostra o quanto ainda existe vergonha, o quanto ainda há medo. E, quando pensamos na Estónia, é importante lembrar que é uma comunidade muito pequena, uma população de apenas 1,3 milhões de pessoas. Então, quando a Kadi disse que queria aparecer com o rosto percebi a sua presença total. Ela o fez através do rosto, porque com ele, ofereceu ao público uma face com o qual nos podemos relacionar e ouvir. Além disso, tem essa capacidade natural de escutar plenamente. É incrível a forma como ela ouve. Foi aí que percebi que isso era a chave. Depois disso, foi a pessoa presente em todas as saunas de fumo. Ela participou em todas. Tornou-se a guardiã da sauna. Foi assim que estruturamos o filme. Lidera o acendimento do fogo na sauna de fumo, mantém o espaço e dá-nos a oportunidade de ouvir, juntamente com ela. Foi realmente incrível. Tudo aconteceu de forma muito orgânica.

Têm novos projetos?

AH: Sim, estamos a trabalhar numa longa-metragem.

Podem falar sobre essa longa’? 

AH: Ainda não, não chegámos a esse ponto. Temos 15 páginas de treatment escritas.

Quinze

AH: Sim, páginas do treatment. É como um esboço. Portanto, estamos na fase inicial de desenvolvimento. Mas…

TP: Vamos seguir um pouco a superstição de Fellini, que ele tinha de não querer falar sobre a história antes de ela estar escrita [risos].

Diz-se que Fellini consultava médiuns para “saber” se os filmes seriam êxitos ou não [risos] …

AH: Isso é muito interessante. Acho que, embora não vá a médiuns, sei disto: o que faço é testar a minha voz. Preciso de me isolar dos outros. Este verão, estivemos no sul da Estónia, no campo, porque, depois de ganhar no Sundance, estive a viajar sem parar. E surgiu esta pergunta: "Anna, o que vais fazer a seguir?" Sabes, aquela pressão. E então percebi que tinha de simplesmente... ir lugar onde nem sequer havia sinal. Conectei-me verdadeiramente comigo mesma, com a natureza e com a minha voz interior. E fiquei muito feliz porque, na verdade, tive ideias para cinco filmes. Elas fluíam naturalmente, e senti-me forte em relação a todas. A questão então tornou-se: não vou a médiuns, mas entro num espaço dentro de mim para testar, para perceber que essa voz para o filme vem de dentro, que não é algo para provar a alguém, ou para fazer um filme para um festival, ou o que seja. Sei que essa é a única forma de ser criativamente livre, de não estar a fazer filmes para festivais.

Fazer um filme é um compromisso tão grande, que leva vários anos. E tem de se tornar numa sensação corporal. Tens que sentir isso. Não preciso que um médium me diga se é forte, sinto-o, dentro de mim, se é forte. E também essa disposição para falhar completamente. Acho que isso é super importante. Falhar, aos olhos de outra pessoa, porque não estás a fazer para agradar alguém. Para isso, preciso de me afastar dos médiuns e ir ao meu núcleo. E sim, depois surgirão estas ideias, e percebemos que, é nisto em que devemos trabalhar. Temos produtores e paixão.

TP: Também preciso fazer algo semelhante. Como ir a um retiro de meditação de 10 dias em total silêncio. Quando o ruído desaparece, o teu cérebro começa a dizer-te: "É este o filme? Este filme está realmente a vir de um espaço honesto? O que é que neste filme te afeta verdadeiramente?" E aí as peças começam a juntar-se. Depois disso, vou fazer o Caminho de Santiago também. O mesmo objetivo: duas semanas para assentar os pensamentos, com papel e caneta, a escrever, para realmente juntar as peças e ver como me sinto.

Acho que é muito importante não partilhar logo no início porque precisas dessa conexão contigo mesmo primeiro. Precisas de entrar em contacto com a ideia, sentir se realmente vem de dentro. Só depois, então, podes começar a partilhar a história com o mundo.

Preto no Branco, uma questão de sobrevivência

Hugo Gomes, 07.10.24

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De olho no passado como quem olha para o presente: digamos que a História como revanchismo, como justiça social, num desejo íntimo de alterar o que o rumo prescreveu. Falar de colonialismos, esclavagismos e outras hierarquias artificializadas por estes sistemas sociais, são tópicos de faca acirrada, ora detém uma postura conservadorista e conservacionista a uma memória saudosista, e por sua vez protecionista a uma cânone vendido em mais do que terceira mão, por outro é a vingança e a desconstrução, o de questionar, o de olhar semicerrado ao feitos, enaltecer teor humanistas, “destruir” um cânone histórico em prol de uma expansão das vozes emudecidas. 

Com “Sobreviventes”, de José Barahona (“Estive em Lisboa e Lembrei de Você”), realizador-construtor de pontes transatlânticos luso-brasileiras, a História é uma partida, uma experiência de laboratório reforçado pela escrita de José Eduardo Agualusa, um “Deus das Moscas” que experimenta o reset social como prevalência das anteriorizadas hierarquias. Filme de cerco, portanto, de náufragos de um navio de negreiros, que dão à costa em parte incerta; um fidalgo idealista mas hipócrita, um capataz cruel, uma aristocrata e a sua filha com a arrogância própria do seu “sangue azulado”, um padre pecaminoso e um escravo com as habilidades exactas para sobreviver em ambientes inóspitos. Um grupo peculiar equacionado com a presença de um sabre, daí, é a sobrevivência e o oportunismo a fazer o resto, com uma gradual despedida às vidas passadas, aos status pré-definidos e cores de pele. É de exata investida que aquele terceiro ato do canhão de pólvora seca “Triangle of Sadness inscreveu, como as classes diluem em novos ambientes, redefinindo em novas hierarquias. 

Sobreviventes” joga essa partida de ressalto com interesse, questiona as suas ligações e por vários momentos ignora os revanchismos em prol de algo maior que todos nós - somos humanos, temos a apetência da maldade como forma de resiliência, seja qual for o grau de melanina. Mas como havia sublinhado - por vezes - o filme cai na esparradela de um olhar do nosso tempo, entre as quais uma equivalência entre um negro escravo, numa sociedade que o considera “subhumano”, para com uma mulher branca da aristocracia, presente num embate discursivo, representando a massa uniforme que muitas vozes atuais pretendem criar com todas as “boas causas”. Sabemos que não é, e muito menos fora assim, em pleno século XIX, a classe tem um teor acrescido sob o género, lutas diferentes, nada comparáveis, e vice-versa. 

Só que “Sobreviventes” salva-se das rasteiras deixadas por conseguir transmitir, e com isto dialogar verdadeiramente com a crueza e o pessimismo intrínseco da nossa modernidade que é o fracasso das utopias. Somos espécies condenadas a repetir os nossos erros, daí não haver salvação, apenas sobrevivência do socialmente mais forte. 

“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!

Hugo Gomes, 04.10.24

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“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.

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As Sacrificadas

Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros. 

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By Flávio

Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.  

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Um Caroço de Abacate

Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”. 

Margarida Gil: "sempre fugi do real, porque para mim o real não é suficiente."

Hugo Gomes, 03.10.24

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Mãos no Fogo (2024)

Chega às salas portuguesas “Mãos no Fogo”, a mais recente e premiada obra de Margarida Gil, cineasta que tem habitado produções austeras nos últimos tempos. No entanto, talvez habituada a este ambiente ou sentindo-se confortável com a intimidade que ele proporciona, afirma não se importar. Afinal, o "cinema pobre", como a própria define, é a sua arte.

Neste trabalho, vencedor do Prémio de Melhor Longa-Metragem na 21ª edição do IndieLisboa, Gil mergulha no lado sombrio e contido do mal presente no clássico de Henry James — “The Turn of the Screw —, readaptando-o à sua realidade. Uma palavra curiosa, "realidade", visto que, nesta versão, seguimos uma estudante de cinema com o sugestivo nome Maria do Mar (Carolina Campanela), que se instala num casarão algures no Douro, com a ambição de consolidar a sua tese sobre o "real no cinema". À medida que os dias passam, a presença fantasmagórica da casa leva-a a questionar a sua própria realidade e a dos seus atos. Será que a queda de Maria do Mar representa, simbolicamente, um gesto de Gil contra um determinado tipo de cinema?

Foi numa solarenga e escaldante tarde de Setembro, na esplanada da Cinemateca, que a realizadora falou com Cinematograficamente Falando … sobre ideias, oposições e o cinema em que acredita — mesmo que, para isso, tenha de meter as suas mãos nas brasas.

Gostaria de começar com a génese deste projeto, de onde veio a ideia para readaptar … talvez não seja a palavra indicada, ou melhor … trabalhar o livro de Henry James?

Se me perguntares de onde vem, nem sei dizer, porque acho que ninguém é capaz de responder a essa pergunta. Pelo menos, não sou capaz de a responder. Às vezes vem de sonhos, ou de uma visão que se tem. Neste caso, de um livro que me marcou. Depois, nunca foi tanto o livro em si, mas algo que ele me transmitiu. Aquela violência, aquele mal que nunca é por acaso. Interesso-me muito por questões sobre a maldade. Sobre o porquê de se fazer o Mal. Porquê se maltrata? Porquê essa relação maléfica com a vida e com os seres humanos? No fundo é a história da vida. Essa questão, que também é a história do Poder, em que as criaturas exercem o Poder, e normalmente o mal está associado a isso. São questões que me envolvem sempre no cinema. Neste caso, a questão das crianças que são, ou não, cúmplices naquela situação toda, o qual considero o auge da maldade: essa fusão de criaturas indefesas com o Mal. Parece-me a expressão mais maléfica do Mal. E isso deixou-me com uma sensação de indignação insuportável.

Provocou-me uma reação, porque é sempre uma irritação. Não há uma única vez que leia o livro sem ficar profundamente irritada. Aliás, o Henry James, escritor que considero superlativo, tem o condão de me irritar imenso. Já a Agustina Bessa-Luís também me afeta profundamente. São escritores que me deixam possessa, por um lado, pela sua grande imperfeição – que, aliás, adoro –, por deixar tudo em aberto. Essa é a perfeição deles. Será voluntária ou não? As coisas são enunciadas, subentendidas... Há uma necessidade imensa nisso. Estou a referir-me aos dois, mas não sei se o que digo faz muito sentido... É qualquer coisa assim. Mas agora que falo nisto …

Curiosamente ia falar sobre a “presença”  de Agustina Bessa-Luís no seu filme, acho curioso ter a mencionado.

Está no ar, parece que é natural. E essa coisa, do “parece que é natural”, irrita-me muito.

Sim, pegando, por exemplo na “Sibila” da Bessa-Luís, há toda a normalização da má-índole nas personagens …

Como me irrita, é verdade. O Henry James deixa-me sempre perplexa, porque acho que ele é genial. A forma como conta, como esconde... aquela habilidade de ocultar o mal. Ele é o escritor que, por acaso, mais tarde descobri que tinha algo de muito Shakespeareano, muito Hitchcockiano. E, um dia destes, ouvi o Hitchcock dizer que o escritor que ele achava que melhor compreendia o seu cinema era de facto o Henry James. E esse lado perverso que o escritor tem, não há dúvida. A Agustina também o possui, sem dúvida. E o Hitchcock, obviamente. Mas, curiosamente, acho que não tenho esse lado. Contudo, fico fascinada por isso.

Provavelmente, há muitas explicações, mas sinto que acabo por derivar para um lado mais solar, mais "Renoiriano", se calhar. Enfim, quem me dera... Já sou eu a “armar-me aos cucos”.

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Margarida Gil no Festival de Berlim

Sobre essa questão da perversidade, há um ponto interessante, especialmente porque a protagonista é vegetariana, e o primeiro contacto que ela tem com a casa é através da cozinha, onde encontra a cozinheira, Adelaide Teixeira, prestes a preparar um peru. Ou seja, logo ali temos uma relação mefistofélica. Depois, é através do cinema, das filmagens, que ela vai desvendando a diversidade e as complexidades daquela família. Portanto, a perversidade, apesar de você dizer que não a tem, está sempre lá presente.

O assunto interessa-me muito, mesmo que não tenha necessariamente essa perversidade em mim. No entanto, quase todos os meus filmes possuem esse lado, ou pelo menos algo próximo disso. É um tema que me fascina. A rapariga, com a sua candura quase tocante, tem uma visão tão particular do mundo que acredita que o que filma é a realidade, e que o real é aquilo que os seus olhos captam e que é possível filmar. O que ela vê é o que existe, tal como muita gente me diz. Há muitas pessoas que vivem convencidas de que aquilo que veem com os seus próprios olhos é a vida, como se a perceção visual fosse a única verdade.

Que a verdade é só isto que nós vemos, e não há nada mais …

É mais daquilo que nós não vemos. Acho que essa candura da personagem foi a minha pequena traquinice. É como puxar o “tapete”, porque o que está lá debaixo, é o que ela não vê. Mas o percurso que faz, como num "road movie" dentro da casa, acaba por embater com a vida, tal como acontece na realidade. As crianças, que podem ser bastante malvadas, são também quem mais acredita em tudo. Para uma criança, tudo é possível: o elefante voa, as estrelas levantam voo da água ... Para elas, tudo isso é real. Acho isso uma das coisas mais bonitas do mundo.

No entanto, à medida que vão crescendo, começam a encarar a realidade de outra forma, cedendo, cedendo, cedendo, até que o único real que reconhecem é aquele que podem ver e tocar, e aí perdem o encanto. Quando o perdem, começam a participar, de forma mais consciente ou lenta, no Mal, até ao ponto de fusão, como faz Henry James. Mas no meu caso, não o faço assim. Há um ponto em que a personagem está quase a mergulhar nesse Mal, quase a fundir-se com ele. Já estive tentada a seguir esse caminho no filme, mas  depois pensei ... não posso perpetuar isso. Tive que tomar uma posição e, nesse momento do filme, tomei-a.

Sobre essa questão do cinema e do real, que é justamente o que a Maria do Mar defende – já voltaremos ao nome, que também acho uma escolha curiosa – a tese dela é precisamente sobre o real. Ela acredita piamente naquilo, mas ao longo do filme vamos percebendo que as suas convicções são postas em causa. Há um ponto muito curioso no seu percurso, que talvez seja o que mais gostei no filme: ela acredita nesse cinema do real, mas o filme, esteticamente, é construído de forma a parecer uma fábula, uma fantasia. Como disse, tem algo de encantado.

E, olhando para muitos dos movimentos artísticos do cinema contemporâneo, o foco está muito no realismo, na tentativa de capturar a ideia do que é o real. Mas o problema não está no real em si, está na ideia do que se pensa ser o real e isso acaba por despir os filmes do seu lado estético, da sua magia. O que fez foi uma pequena provocação, porque, enquanto a Maria do Mar acredita nessa visão crua do real, o filme esteticamente caminha noutra direção, quase como um “conto de fadas”. É uma contradição que, de forma subtil, questiona essa obsessão moderna pelo realismo e desafia a própria noção de verdade no cinema.

Sim, o filme está cheio de provocações, e essa do peru é um ótimo exemplo. Tenho um prazer especial em "tirar o tapete" ao espectador, e ele escorrega com facilidade nas cascas de banana que vou deixando de lado. Dá-me gozo, é o meu lado sádico, essa ideia de que a pessoa está confortável, convencida de que entende o filme, e de repente eu lhe tiro o chão debaixo dos pés. Interessa-me tanto a técnica quanto a visão, porque sou assim. Gosto do contrassenso. Do que não se vê com os olhos abertos. Acredito muito mais no sonho, no inconsciente, naquelas coisas que não conseguimos explicar, mas nas quais acreditamos. Acredito com convicção. Acho que nunca perdi isso.

Tenho uma confiança total quando sinto que algo é assim, seja porque sonhei, ou porque não sei explicar, mas simplesmente sei. E vou até ao fim. Por vezes, o que surge parece tão estapafúrdio que até chego a pensar: "Mas será que isto faz sentido?", para perceber posteriormente que faz, e as pessoas entendem. Não são estúpidas, percebem o que está lá, ainda que por um caminho menos direto.

Quanto ao cinema do real, não tenho nada contra, apenas acho uma visão limitada. E, mais do que isso, é uma forma de hubris, aquela arrogância que, na cultura grega, o homem tem ao enfrentar os deuses. Quando se faz o chamado "cinema do real", parte-se do princípio de que se pode filmar o real, como se o real fosse apenas aquilo que se pode captar com a câmara. Esses hubris, essa arrogância, as pessoas nem se dão conta de que a têm.

Se me responderem: "Ah, mas Kiarostami fazia ‘cinema do real’?" Não sei se era bem assim. Adoro todo o seu trabalho, e posso garantir que aquilo não é de todo “cinema do real”. Agora, os Dardenne, esses sim, e o cinema deles já não me interessa tanto.

32.jpgMãos no Fogo (2024)

Fiz televisão durante muitos anos como também documentários, aquilo que se poderá chamar “cinema do real”. Mas sempre fugi do real, e de forma automática, porque para mim, na verdade, o real não é suficiente. Não me chega. Preciso de voar, de fazer as criaturas reptilianas ganharem asas. A Humanidade fez isso ao longo da evolução: os peixes saíram da Terra, os répteis voaram e viraram pássaros, transformaram-se e sobreviveram. Porque é que nós não podemos fazer o mesmo?

Falando no documentário, que no senso comum é considerado o auge do realismo em cinema. Há uma crença quase inabalável no que está lá, no que é mostrado. Mas mesmo no documentário, como no caso do seu “O Fantasma do Novais” (2012), tentou evitar esse absolutismo. Nesse filme, mistura o lado de investigação – quem foi Joaquim Novais Teixeira? – com uma dimensão de ficção ou semi-ficção, através da Cleia Almeida, que performaticamente representa essa descoberta. 

Nos meus primeiros filmes, direcionados para televisão, e em película deve-se acrescentar, são considerados documentários, mas na verdade, têm muito pouco de documental. No entanto, são considerados como tal. Como, por exemplo, em “Para Todo o Serviço” (1975), sobre as criadas de serviço e o sindicato de formação para o trabalho doméstico, vou ao encontro da primeira aprendiz desse tal sindicato, uma antiga criada de Salazar ... e tudo aquilo é o mais real possível, é totalmente real, as pessoas, as suas histórias, no entanto, é totalmente ficcionado. Elas estavam a representar os seus próprios papeis, aquilo que faziam na vida real, desempenhavam-no em frente à câmara.

Foi das primeiras ‘coisas’ que fiz, e ninguém me questionou, censurou ou alcunhou aquele meu trabalho de “falso documentário”. Até porque essa questão simplesmente não existe para mim.

O que é que poderemos considerar um “falso documentário”?

Um falso documentário... O que é isso, afinal? Um falso documentário? Pois, é como um falso comentário, uma caricatura.

Sim, é visto como uma caricatura, mas a questão é que, hoje em dia, utiliza-se muito o termo 'falso' para descrever algo gerado pela encenação. Contudo, não há nenhum documentário que não tenha tido a percentagem de encenação, nem que seja de previamente pensado. “Nanook”, por exemplo, tendo o título de “primeiro documentário”, foi um objeto assumidamente encenado por Robert Flaherty. 

Mas a ficção também não é documentário? Quando filmamos os atores, quem são eles? Bonecos digitais? Estou a fazer um documentário sobre a pessoa que está a interpretar uma personagem específica. Há muitos documentários dentro da ficção. Ou seja, essa barreira não é produtiva, é pouco interessante. Serve para fazer festivais de “cinema do real”, grupos de “cinema do real”, teses sobre “cinema do real”, e depois, qualquer dia muda-se para uma outra coisa. Já ninguém faz documentários sobre cinema de ficção, o que faz sentido. Pronto, o documentário do “cinema do real” ... sempre me pareceu uma ideia forçada. Esta irritação não é de agora, sempre me fez rir essa coisa do “cinema do real”. Não quero ofender ninguém, porque sei perfeitamente que há muita gente que vai discordar…

Gostaria que me falasse o nome da personagem de Carolina Campanella, Maria do Mar.

Simplesmente porque gosto muito desse nome … [risos]

Pergunto porque Maria do Mar leva-me por vários caminhos, especialmente dentro do cinema português. Faz-me pensar no filme “Maria do Mar” de Leitão de Barros, passado em Nazaré. 

É um filme lindíssimo!

E com uma forte carga de erotismo, especialmente naquela cena do salvamento. Mas também porque a sua última longa-metragem chama-se, exatamente, “Mar” … daí a minha questão, se existe uma ligação consciente.

É tão português, e ao mesmo tempo não conheço ninguém com esse nome … Mas não impede de o achar um tão belo nome, tão extravagante de facto. Digamos que pode ter sido uma situação inconsciente, perfeitamente. Mas não vou afirmar que é, porque isso seria presumir algo falso.

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Em relação aos recursos disponíveis para fazer este filme, fiquei com a impressão de que, comparando com as suas obras anteriores, especialmente as mais recentes, estamos perante um aumento orçamental.

Não, foi exatamente o mesmo. Não me vou queixar de ter pouco dinheiro. Não quero voltar à pobreza de antigamente, acho que posso fazer cinema pobre, mas não cinema ... para pobres. Sempre trabalhei com muito poucos meios, contudo, gosto de trabalhar com boas câmaras, com a melhor equipa que existe, mesmo que isso seja caro. Sou bastante rápida e preparo tudo muito bem, mesmo que mude tudo … na véspera [risos]. Por vezes, meto um bocadinho de medo às assistentes, mas não o faço de propósito, porque confio nas suas qualidades. Já sabem é que à noite vão receber uma mensagem com as tais alterações [risos].

O “Perdida Mente” foi quase todo improvisado a partir de uma ideia apenas. O “Cavaleiro Vento”, o mesmo procedimento, aliás nasceu de um sonho …

A do cachalote a voar sob o Pico?

Precisamente …

Eu, sabendo a equipa que tenho, que é tão boa e preciosa, tenho confiança em mim e sei que eles podem confiar. Não cedo, sigo o plano de trabalho, e até tenho tendência a simplificar as coisas. Não sou dada a muitos caprichos; quando é preciso, sou convincente, e não preciso de ter muitas exigências. Faço filmes que considero bastante baratos. Portanto, não sou uma cineasta que se sai caro [risos], sei exatamente o que existe e, não … não sou excessiva. A minha escola é a de João César Monteiro, e não é por acaso que se vive com um realizador assim durante tantos anos; sempre tive inclinação para isso. Filmava tudo e aproveitava todo o material que filmava na televisão. Tudo. E filmava um para um. Nunca percebi isso de os cineastas precisarem de fazer muitas takes.

Então é só uma take e pronto?

Não digo que faça apenas uma take, pronto. Isso depende dos atores. Mas tenho tendência a fazer muito poucos takes, e geralmente é na primeira.

Também não é dada a decoupagem?

Depende muito dos filmes, mas normalmente sei aquilo que quero e faço um esboço. Depois adapto tudo conforme necessário. Não tenho feito muitos directos para televisão, mas isso não me preocupa. Adaptar à luz, por exemplo, e ver os atores a seguir por ali é maravilhoso. Porém, tenho tudo planeado; tenho uma carta na manga, por segurança, porque, se não tivesse, não conseguiria dormir. Preciso disso.

Falando em atores, o seu “Mãos no Fogo” tem uma força gravitacional no seu interior que se chama Rita Durão, um papel alucinado e sinistro …

É Henry James puro e duro... ela é a incorporação desse espírito.

A personagem da cozinheira também é muito Henry James, mas a da Rita Durão não existe no livro; em vez disso, há a de um tio. A questão do Henry James está relacionada com o fato de que muitas daquelas personagens não existem realmente; é um truque do autor. Ele mostra uma 'coisinha' e depois desaparecem, ficam apenas a insinuar, a assombrar. A do Marcello [Urgeghe] também é uma mistura de várias personagens da obra.

Mudando drasticamente de assunto, tem existindo um movimento, especialmente aqui na Cinemateca, que é o de resgatar alguns cineastas que estiveram connosco, principalmente a geração que começou a filmar nos 70 e 80, tirá-los do esquecimento. Este ano, recordo, houve um ciclo do Fernando Matos Silva, da Monique Rutler, e do José Nascimento, mais tarde, gerando exaustivos catálogos sobre as suas obras. A Margarida Gil acredita que terá lugar num ciclo destes ou espera que não?

Não [risos]. Peço, por favor, que não façam. [risos] 

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Mãos no Fogo (2024)

Já houve um festival que lhe dedicou um ciclo, o FESTin

Sim, a divulgação para esse ciclo foi escassa, mas louvo a iniciativa e a intenção. Só que tudo isso dá-me um sabor de … postumum. Penso que se deve dar atenção na altura, um pouco como aquela frase que o João César Monteiro sempre usou: “tarde piaste”. 

Por enquanto, espero continuar o mais possível a produzir, portanto, não quero distrações. E são distrações algo narcisistas, não preciso,tenho sido bastante bem tratada, exceto no cinema a certa altura, mas já estou mais que habituada.

E quanto a novos projetos?

Tenho, mas sou demasiado supersticiosa para falar sobre eles. Dá-me azar. [risos]

A Loucura tem par!

Hugo Gomes, 01.10.24

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Os acordes Hildur Guðnadóttir mantém-se como herança direta de uma sequela, que em modos não justificava a sua existência, mesmo que as solicitações salivavam que nem cães perante o sucesso do primeiro “Joker”, e assim pegamos nos feitos e nos efeitos desse Joaquin Phoenix vestido a rigor e com maquiagem circense. Alguns anos passaram desde o brutal e televisado assassínio de Murray Abraham (o apresentador de longa duração interpretado por Robert De Niro), Arthur Fleck encontra-se na prisão aguardando julgamento que poderá ditar, ora uma, a sua reabilitação num centro apropriado caso vir a ser provado das sua distorção mental, ou a cadeira elétrica cujo novo e promissor procurador público, Harvey Dent (Harry Lawtey), deseja com clareza. 

Nessa demorada espera, Fleck revela-se constantemente num farrapo, numa sombra daquilo que era e que inspira ser, até que, uma misteriosa loira surge no seu caminho, também ela enclausurada, partilhando uma loucura transcendental para com este. Amor? Dirão alguns. O que acontece é que esta mesma mulher, Lee Quinzel (Lady Gaga), desperta esse Joker adormecido, ambos valsam pelo delírio coletivo, a destruição de um sistema e a construção de uma “montanha”. Um plano maior, que apenas Arthur “Joker” Fleck poderá concretizar. 

O título, francês porventura, “Folie a Deux", invoca o síndrome de Lasègue-Falret, elaborado pelos psiquiatras franceses Charles Lasègue e Jules Falret (1816 - 1883 / 1824 – 1902), sobre essa loucura partilhada e sincronizada / transmitida entre duas figuras, e por essa sugestão somos confrontados no calor da dualidade, a de um romance propício e destrutivo até à ambígua esquizofrenia de Arthur Fleck, novamente com Phoenix emprestado ao sacrifício. Todd Phillips, agora virado “realizador à séria”, lançando as cartas scorseseanas na mesa, desliga-se das mimesis referenciais de “Taxi Driver” e de “The King of Comedy” que corria nos veias do anterior. É nos braços do musical que se contempla a sua maturidade, “New York New York”, outro Scorsese (e um bem esquecido … ou será ignorado?) à cabeça, e com o astrolábio apontado às estrelas da Hollywood clássica do género, devolve cruelmente ao musical o seu teor escapista. 

Aqui, o escape tem perversidade mental, situa-se como estado interior das personagens, fantasias projetadas em mentes clausuradas e devaneios com o seu quê de violência anestesiada. A trupe “Looney Tunes” também entra na equação, outro efeito igualmente escapista que são aqueles desenhos animados que renegam as leis da física e da lógica, com personagens maleáveis, inquebráveis e de ferro para contrariar a fragilidade e a mortalidade do ser vivente. É dessa forma que “Folie a Deux" abre com um prólogo animado, e é desses códigos que Joker, não Fleck, se manifesta. 

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E como havia feito no desconforto da prequela, Phillips solicita as ferramentas do universo super-herois para as capturar num “cinema adulto”. Novamente, é um caso de um Cavalo de Troia, personagens de comics enfiadas numa linguagem maturada, sóbria e de técnicas reconhecíveis aos novos clássicos com selo prestigioso. Mas o que mais desafia essa tendência super-heroica, é o seu anti-clímax alicerçado a uma sensação de consequência, a sua tremenda decepção interior em prometer montanhas e oferecer-nos somente colinas, subverter as nossas expectativas ou conformidades, e por sua vez, guiando no espelho na animação-referência, retirar a natureza indestrutível que o universo de super-herois assumiu quer na tela, quer no imaginário do novo espectador “de cine”. A morte é definitiva, cada ato carrega o seu peso. 

Shyamalan havia feito algo idêntico em “Glass”, em estender a toalha para um terceiro ato frenético, parindo somente um contido e confinado conflito final, um autêntico anti-super-heroi. “Joker: Folie à Deux” é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.

Dancemos até que a morte nos separe

Hugo Gomes, 30.09.24

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Béatrice Dalle é a guardiã da fortaleza do espaço e do tempo, um salão de dança, como os antigos nomeavam com fulgor, que para o comum dos mortais, os viventes das ruas envoltas no tédio dos seus quotidianos, não passa de uma discoteca. Nesse lugar, as leis da física são violadas sob o regulamento lúdico, um escape que aqueles meros mortais anseiam experimentar. O tempo, por mais infinito que possa parecer, nunca passa de uma mera sensação; na verdade, ele voa, as horas correm, os anos passam ao som da batida. Do disco ao tecno, está empregue nessas cadências os seus zeitgeists.

Aí, já no início do relato, enquanto o "verde" ainda era uma garantia, John e May reencontram-se. Ela relembra-o de uma passagem passada, de que não eram estranhos, — já se haviam cruzado, conhecido, conectado. John, que não se recorda desse encontro inicial, rende-se ao conforto das suas palavras, e ambos tornam-se um fictício par naquele lugar imerso em álcool, euforia pré-sexo e promessasjuras de uma libertação social com a chegada do amanhã. Na intimidade desse momento, John confessa o seu segredo mais obscuro: acredita estar destinado a um grande evento, e essa espera consome-o, provocando-lhe uma ansiedade latente, como se algo — de qualquer natureza, talvez uma fera — estivesse à espreita, pronta a atacar a sua jugular.

La Bête dans la Jungle”, de Patric Chiha (“Brüder der Nacht”, um filme com o mesmo encantamento artificial e devaneios oníricos), inspirado no clássico literário de Henry James, é o ajustes dos tempos e do seu contexto, sendo aquele espaço de divertimento nocturno um museu encapsulado de memórias, onde cada melodia é uma passagem no tempo e cada corpo "levitando" na pista de dança é uma peça do seu período [1979 - 2004, para sermos mais detalhados]. A multidão, que aqui assume o papel de personagem principal, dança e anseia pela lascívia das suas juventudes sagradas, conduzem-nos, por um lado, a uma espécie de "madalena proustiana", recordando-nos de como as loucuras nocturnas foram, outrora, uma fuga às prisões das nossas sociedades, e por outro, tornam-se os delimitadores temporais, refletindo uma orientação ao espectador.

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Na plateia, estão os nossos protagonistas, observando esse fenómeno natural de como os anos são velocistas. Eles contemplam, tal como o espectador, aquele mar de corpos em transe ao som da música da vida. Anaïs Demoustier (May) e Tom Mercier (John) são esses voyeurs da emoção alheia, sem perceberem que as suas próprias carnes não resistem à crueldade do decorrer. Assim, “La Bête dans la Jungle” adquire uma estética e uma crítica existencial à passividade, tal como os "garotos" de “The Dreamers”, de Bernardo Bertolucci, que, com uma revolução a acontecer lá fora, refugiam-se nas suas tentações e snobismos domésticos, é o passivismo de quem vive privilegiadamente nas suas comodidades. No caso do casal deste filme, é a espera por uma espontaneidade quase milagrosa que os transforma em mortos-vivos, alheios à vida que os rodeia. Tornam-se amorfos, anestesiados, insatisfeitos, até que a morte os separe.

“La Bête dans la Jungle” é uma viagem não só pelas memórias de um "night club", mas também pelas nossas próprias existências.

Portugal e o mundo árabe na distância de uma projeção. Arranca a 1ª edição do Lisbon Arabe Film Festival.

Hugo Gomes, 30.09.24

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Everybody Loves Touda (Nabyl Ayouch, 2024)

Entre as muitas definições sobre a verdadeira essência do Cinema (o nosso absolutismo da 'coisas'), que variam consoante a sensibilidade e a perspetiva de cada um, há um facto incontestável: esta arte, além de contar histórias, criar estéticas ou expressar gestos artísticos, teve e tem contribuído para o encurtar da distância geográfica. Sentimo-nos mais próximos, mais comunicativos e por vezes, mais humanos. Através de uma projeção, uma tela e um filme, somos “transportados” para outros cantos do mundo, sejam eles exóticos ou simplesmente distantes, essa capacidade "vendida" de viajar através do Cinema alimenta o desejo de saciar curiosidades, como a forma como um determinado povo se vê a si próprio, ou a imagem que projeta perante o resto do mundo.

Deixemos de lado estas divagações “pseudo-filosóficas”, diversas carimbadas em spots para vender cadeias de cinema, para anunciar que Lisboa irá acolher a primeira edição do Lisbon Arab Film Festival, uma mostra de obras produzidas provenientes dos mais variados países que comumente associamos à "Arábia": o Médio Oriente, conectando ainda com o Norte de África. Este evento terá lugar na Culturgest, entre os dias 1 e 5 de outubro. Não há dúvida de que filmes desta natureza são em todo um caso um ponto de escuta e de observação, desafiando estereótipos, denunciando ‘males’ ou simplesmente narrando vidas que poderiam muito bem ser as nossas. Há Mil e Uma Noites a serem contadas, em película e em digital, abordando temas como liberdade, fé e esperança.

Nabyl Ayouch, cineasta marroquino aclamado em diversos festivais, terá a honra de abrir este evento com o filme feminista “Everybody Loves Touda”. Já “Inshallah a Boy”, de Amjad Al Rasheed, uma coprodução entre a Cisjordânia, o Qatar, a Arábia Saudita e a França, encerrará a mostra. O Cinematograficamente Falando … desafiou João Gonçalves, vice-presidente do festival, a revelar mais detalhes sobre a programação.

A criação do Lisbon Arab Film Festival reflete a crescente necessidade de transcender estereótipos. Como foram selecionados os filmes para garantir o desafio dessas percepções convencionais sobre o mundo árabe?

A seleção dos filmes foi baseada em vários factores: a qualidade artística; a variedade de representatividade dos países árabes da região do Norte de África e Médio Oriente; a variedade de tópicos abordados nos filmes. Selecionamos filmes que representam uma multiplicidade de vozes e que desafiam estereótipos, mostrando que para lá do Mediterrâneo os desafios e desejos são inerentes à condição humana, e também que mostram algumas características culturais dos diferentes povos árabes. No fundo, pretendemos ir para além das percepções superficiais sobre a região, mostrando histórias de resistência, amor, lutas sociais e emancipação.

Sendo esta a primeira edição do festival, que impacto esperam ter no público português e, de uma forma mais ampla, na relação entre Portugal e o mundo árabe?

O nosso objetivo é criar um espaço de diálogo intercultural que permita ao público português explorar novas perspetivas e entender a riqueza e a diversidade do mundo árabe. Esperamos que o festival ajude a romper com alguns estereótipos e crie pontes de entendimento. A longo prazo, desejamos que o LAFF [Lisbon Arabe Film Festival] se torne uma plataforma cultural importante para fortalecer as relações entre Portugal e os países árabes.

les-meutes.webpHounds (Kamal Lazraq, 2023)

O cinema é frequentemente visto como uma ponte para a compreensão cultural. De que maneira pretendem abordar questões e temas sensíveis, promovendo um diálogo intercultural sem cair em polarizações?

A nossa intenção com o LAFF nunca foi torná-lo um festival político. O nosso objetivo é proporcionar ao público em Portugal a oportunidade de conhecer uma realidade diferente, mas que está tão próxima de nós. A presença árabe em Portugal durou cerca de 500 anos e, no entanto, sabemos muito pouco sobre esse período. Muitos aspetos da nossa vida, como a organização das cidades, especialmente a sul do Tejo, e a própria arquitetura, refletem influências do mundo árabe. Na seleção dos filmes, não evitámos temas sensíveis que possam causar impacto ou desconforto no espectador. Pelo contrário, acreditamos que o cinema tem o poder de ser um catalisador de reflexão e ação. Queremos que os filmes exibidos no festival não só gerem debate, mas também ajudem a promover um diálogo intercultural genuíno, abordando temas complexos de forma que vá além de visões polarizadas.

A curadoria do festival inclui várias produções co-produzidas com países europeus. Estas colaborações intercontinentais enriquecem a narrativa sobre o mundo árabe nos filmes apresentados?

Acreditamos que as co-produções entre países árabes e europeus trazem uma riqueza adicional às histórias. Além disso, essas parcerias permitem que as histórias sejam contadas com diferentes sensibilidades e recursos, contribuindo para uma narrativa mais completa e abrangente.

Com filmes de várias geografias, como Marrocos, Palestina e Arábia Saudita, de que maneira o Lisbon Arab Film Festival pretende sublinhar as diferenças culturais e sociais dentro do próprio mundo árabe, em vez de o tratar como uma entidade monolítica?

O festival foi projetado para refletir a diversidade dentro do mundo árabe, destacando as diferenças culturais, sociais e políticas que existem entre os vários países da região. Cada filme traz uma perspetiva única sobre o contexto específico de onde vem, seja no norte de África ou no Médio Oriente, explorando questões locais, tradições e formas de vida que contrastam entre si. O objetivo do LAFF é mostrar que o mundo árabe não é homogéneo, mas uma mancha de retalhos de identidades e culturas ricas e variadas, que por algumas vezes têm semelhanças entre si.

O festival não se limita apenas à exibição de filmes, mas inclui eventos paralelos como encontros com cineastas e experiências gastronómicas. Como é que estes elementos adicionais contribuem para aprofundar a experiência do público e ampliar o entendimento cultural?

Estes eventos paralelos, como as experiências gastronómicas, são essenciais para criar uma experiência mais imersiva e envolvente para o público, conhecendo melhor a região. A ideia seria que ao interagir diretamente com os realizadores, o público teria a oportunidade de entender melhor os contextos culturais e os processos criativos por trás dos filmes.

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Bye Bye Tiberias (Lina Soualem, 2023)

Como veem, dentro do circuito comercial português, a distribuição e difusão de obras cinematográficas árabes? Como acham que o público português reage a essas cinematografias?

Embora o cinema árabe ainda tenha uma distribuição limitada no circuito comercial português, o festival pode servir de plataforma para aumentar o interesse e a visibilidade dessas obras. Estamos confiantes de que, com a promoção adequada, o público português, que já demonstrou grande interesse pelo cinema arabe noutros momentos, com filmes como “Les Filles d'Olfa” [Kaouther Ben Hania, 2023], “Adam” [Maryam Touzani, 2019] ou a “Cairo Conspiracy” [Tarik Saleh, 2022], e acreditamos que a curiosidade despertará ainda mais depois do nosso festival.

Expectativas futuras para o festival?

O nosso objetivo é que o LAFF cresça e se torne um evento de referência entre o mundo árabe e Portugal. No próximo ano, temos a visão de expandir o festival a outras cidades portuguesas e de acrescentar um ciclo retrospectivo de obras anteriores ao ano 2000. Também pretendemos acrescentar uma nova nuance na nossa visão, que seria uma ligação cultural através da música e ter pelo menos um concerto por ano com artistas do mundo árabe. Assim pretendemos melhorar a construção de pontes culturais.

 

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