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"A morte não existe!" É uma ilusão, uma barreira que impede o seguimento das nossas vontades. O medo dela é a nossa limitação. Tudo soando como um estratagema politizado, criado para fabricar mártires de causas. Talvez, como de facto acontece, seja também isso o que "Death Does Not Exist", a quarta longa de animação de Félix Dufour-Laperrière, propõe: uma reflexão sobre o justicialismo, as causas político-sociais e a forma de as exercer numa actualidade saturada de narcisismos e confortabilidade.
Neste filme, apresentado na Quinzena de Realizadores de Cannes e agora sob os holofotes de Annecy, somos conduzidos por um grupo de jovens — rebeldes, sim, mas com causa — prontos a executar o seu plano contra uma família elitista, os DDT, num contexto incerto. Contudo, o ataque (terrorista ou radical, conforme a sensibilidade, justo aos olhos de outros) fracassa com a hesitação de Hélène (Karelle Tremblay), que, num momento de fraqueza, foge do local. É então abordada por espíritos, animalescos ou metafóricos, assim como os seus companheiros tombados.
O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador canadiano sobre esta pertinente animação, um “filme de esquerda”, como muitos críticos não hesitaram em chamar-lhe. E, em resposta, num mundo em que a direita segura o leme, "Death Does Not Exist" acredita na alternativa, mas exige que a pensemos, antes que cedamos a impulsos selvagens.
Quando fiz uma pesquisa rápida do título do seu filme - “Death Does Not Exist” - deparei-me com um estudo científico a afirmar que a morte não existe, que é uma ilusão. É óbvio que o filme não remexe nisso de forma científica, mas não pude deixar de notar a sua igualmente essência ilusória e delirante na sua narrativa. Gostava de pegar nesse título e no simbolismo que carrega, até pela forma como se relaciona com a própria estrutura narrativa.
“Death Does Not Exist" é, para mim, um filme de paradoxos e contradições. O próprio título já é uma contradição [risos]. Essa afirmação — de que a morte não existe — representa a grande esperança das personagens, jovens mais precisamente, do filme. É quase a personificação do desejo de que a vida prevaleça, que lute, vença, que continue, mas, por outro lado, a morte existe e está presente com uma brutalidade imediata no filme. Portanto, o título espelha esse paradoxo entre a esperança e a realidade, entre uma abstração idealista e a concretude violenta do real.
É por isso que o filme dá essa sensação de estar preso num ciclo, num loop sem saída. Para mim, há também um pacto … quase em queda … entre Hélène e Manon. Elas partilham esse momento de queda, uma queda circular, como se não houvesse escapatória e ainda assim, tudo o que acontece no filme, na minha visão, é real. O que Hélène vive tem uma verdade. Todas as possibilidades que o filme explora, por mais oníricas ou abstratas que pareçam, são reais dentro daquele mundo.
Diria que este é um filme muito político … Acredito mesmo que seja. Só que há algo curioso: os antagonistas, praticamente, não têm rosto. Não sabemos exatamente quem são. Percebemos que pertencem à classe alta, à elite, mas o que fizeram, ou como agem concretamente, não é detalhado, e isso é interessante, porque o cinema político contemporâneo muitas vezes exige uma certa urgência e clareza em relação ao inimigo: quem é, como combatê-lo. Mas no teu filme, parece estar mais centrado no corpo, no “eu” físico e íntimo, e não tanto no inimigo externo.
Sim, foi intencional. Quis que o filme fosse uma fábula trágica e fantástica. Há um certo grau de abstração que faz parte da estrutura narrativa de uma fábula. O meu objetivo era colocar em cena, com intensidade, essas tensões, esses desafios, essas contradições, e, com isso, permitir que o filme possa ser lido em vários níveis: sobre ação direta e violência, como também, sobre comprometimentos, relações, lealdades e os compromissos com que todos lidamos na vida.
A ausência de um contexto político preciso foi deliberada. Essa ambiguidade é essencial para transmitir o desejo profundo, a convicção difusa que muitas vezes motiva ações extremas. Frequentemente, quem protagoniza esses atos de violência direta são jovens, e há uma abstração natural na forma como se relacionam com a ideia de tomar esse tipo de risco físicos e morais, como, por exemplo, apontar uma arma a alguém.
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Félix Dufour-Laperrière
O objetivo nunca foi retratar um contexto específico, como o Portugal contemporâneo ou o Quebec atual. Não era esse o foco. Quis criar uma fábula trágica mais universal: sobre as nossas ações políticas, os nossos gestos, e sobre as consequências das nossas crenças, convicções e compromissos.
Sei que, como acontece com muitas obras de animação independentes, são anos e anos de produção, design, desenvolvimento conceptual… mas agora, ao estrear este filme, é inevitável não pensar no caso de Luigi Mangione, nos EUA. Temos ali uma figura ligada à elite, o justicialismo, o uso da violência como resposta a uma injustiça percebida. Sei que o seu filme já vem de muito antes, portanto como lidas com essa coincidência?
Sim, é uma coincidência [risos]. Comecei a escrever o guião há cerca de dez anos. Depois veio o financiamento, a pré-produção, a produção… portanto, nada disso foi planeado. Repara, há algo estranho na atualidade do filme, e penso que isso acontece porque lidamos com questões eternas: o que fazemos quando o mundo se torna insuportável? O que fazemos com as nossas convicções mais profundas, com aquilo em que acreditamos? O filme lida com um paradoxo: o da insuficiência. Cuidar daquilo que amamos pode não ser o suficiente. Por outro lado, destruir o que existe também não é solução, porque acabamos por não cuidar do que realmente importa. Essa contradição atravessa o filme.
Quanto ao caso específico que refere, como toda a gente, tenho sentimentos contraditórios. Não acredito na violência como solução. Ela é impossível de controlar. Os efeitos colaterais, a resposta do poder instituído … tudo isso nos escapa. Ao mesmo tempo, também acredito que o status quo, tal como está, é insustentável. Estamos presos entre duas impossibilidades: a violência como meio e a permanência do que já existe. É um equilíbrio muito difícil de encontrar.
Diz-se que toda revolução é, de alguma forma, violenta …
… e que o contra-ataque também é violento. A violência é impossível… mas está por todo o lado. Explode em todas as direções … seja a violência do Estado, a violência política, ou outras formas.
Gostava de fazer uma pausa na parte política e falar sobre o design do filme. Li várias críticas aquando da exibição em Cannes que invocavam Miyazaki, chegando mesmo a referir “Princess Mononoke”, muito por causa da presença do lobo [risos]. Essa foi uma influência consciente para ti?
Não, não foi uma influência consciente. Mas acho que a qualidade universal da obra do Miyazaki se difunde no nosso inconsciente coletivo. Portanto, embora não tenha sido algo deliberado, não vou contrariar essa interpretação, porque reconheço que há algo no seu cinema que já faz parte da nossa cultura visual comum. No meu caso, os animais, como as ovelhas, os coiotes, os beija-flores, os pássaros que cantam, são encarnações de certas ideias do filme. Representam a fragilidade da vida, a presença física imediata, a dor que podemos sentir, e também essa perseguição eterna entre predador e presa. É uma dança circular entre a vulnerabilidade e a ameaça.
Tenho a sensação de que essa associação com Miyazaki foi uma leitura crítica. Uma coincidência interpretativa.
Então, gostava que me falasse um pouco mais sobre as suas influências — especialmente no campo da estética e da animação em si. Houve uma cena em particular, a do tiroteio, que me fez invocar os videojogos do género shoot-em-up. Foi algo intencional?
É uma leitura interessante. Aquela sequência é construída a partir de um ponto de vista artificial, a câmara segue o movimento da Hélène, como se ela tivesse participado logo desde o início da ação. Mesmo que, na primeira ocorrência, ela ainda não se junte ao grupo, a câmara continua a avançar, como se o seu percurso interior já estivesse em movimento. Ela continua em frente, até chegar ao momento em que ouve a velha senhora.
Na segunda ocorrência: quando decide, de facto, participar na ação, o movimento é semelhante, mas agora ela está plenamente envolvida, avança ao lado das suas companheiras. Portanto, a câmara acompanha essa progressão interior e exterior, refletindo a sua tomada de decisão.
Que tipo de animação usaste no filme? É rotoscopia?
Não, não é rotoscopia. Todo o filme foi desenhado à mão, diretamente numa mesa gráfica (são 12 desenhos por segundo). Não usamos vídeo como referência direta. Para a sequência do ataque — aquele plano de sequência — fizemos uma exceção: criámos uma referência visual. Desenhámos uma maquete da cena e usamos uma câmara digital para estabelecer alguns limites e orientações visuais. Isso deu-nos um tipo de "guia" espacial para podermos desenhar com consistência. No geral, o filme foi todo animado sem rotoscopia. É animação feita do zero.
Quanto às referências, há duas que me marcaram muito. A primeira foi Satoshi Kon, com o “Perfect Blue”, um anime de 1999, se não me engano. É uma obra extraordinária, feita com um orçamento modesto, mas com uma mise-en-scène absolutamente brilhante. A segunda foi Alexander Sokurov, especialmente o filme “Faust”. Embora também admire “Russian Ark”, foi “Faust” que me inspirou mais diretamente, sobretudo a sequência do círculo infernal, que ficou-me muito presente enquanto escrevia o guião e pensava na encenação.
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Há uma ideia que me ocorreu ao ver o teu filme, especialmente na forma como acompanhas a protagonista, Hélène, e o modo como ela foge da zona de conflito. Isso remete-me a uma questão muito atual: o narcisismo no ativismo contemporâneo. Hoje em dia, há uma tendência para fazer ativismo a partir da zona de conforto, sem correr riscos reais, e muitas vezes, esse ativismo serve mais como estratégia de autopromoção. Uma publicidade pessoal.
Sim, exatamente. Publicidade. Muita publicidade pessoal disfarçada de posicionamento. Mas, no fundo, a Hélène acaba por fazer uma escolha. Ela decide entrar, participar ativamente no ataque com as suas companheiras e paga o preço por isso. E isso é um paradoxo interessante: ela não o faz apenas por uma motivação política, mas também por fidelidade às ligações que tem, com Mark, com Manon, com o grupo. Ela sente que tem um dever afetivo. Para mim, isso faz parte do dilema central do filme.
É claro que há uma responsabilidade coletiva — em relação ao mundo e à sociedade em que vivemos — mas há também uma responsabilidade íntima, em relação àquilo e àqueles que amamos. Essas duas dimensões convivem, colidem, alimentam-se.
No final, Hélène não quer dominar o mundo. Ela quer uma pequena parte dele, mas quer vivê-la por inteiro. Esse desejo, para mim, traduz uma responsabilidade partilhada: coletiva e íntima.
Neste momento o filme estreou no Festival de Annecy, mas anteriormente fez presença na última Quinzena de Realizadores, em Cannes, e, provavelmente, entrará também num circuito em salas de cinema no Canadá. O que espera da reação do público ao seu filme, como gostaria que reagissem?
Tenho duas grandes esperanças. A primeira é que o filme desafie, de alguma forma, a posição de cada espectador, que provoque uma reação, um movimento interior, que confronte as suas próprias contradições.
Eu vivo num país pacífico. Sou um homem branco, de classe média. Tenho dois filhos que amo. A vida, no fundo, é boa para mim, mas mesmo assim, sinto uma urgência. Uma necessidade urgente de honrar a responsabilidade que temos para com o mundo. No meu caso, isso passa por olhar para o Quebec, com todas as suas contradições, e assumir que, apesar dessas falhas, temos um certo poder coletivo. Mas só se formos capazes de encarar essas contradições de frente.
Talvez o filme não leve as pessoas diretamente à ação, mas espero que alimente uma reflexão sobre o estado atual do mundo e esse sentimento frustrante de impotência, de incapacidade de mudar ou agir, e, por outro lado, espero que o público também desfrute do lado visual. A mise-en-scène animada é muito singular, há um uso particular da cor, da composição, e da presença animal. É um tipo de animação pouco comum.
Gostava que as pessoas se divertissem, que sentissem prazer e curiosidade em descobrir o que este tipo de linguagem animada pode oferecer.
Ao pesquisar mais sobre o seu filme, encontrei alguns comentários e críticas que o classificam como um “filme de esquerda”. Tal designação o incomoda?
De forma alguma. Obviamente que é um filme de esquerda [risos]. Acredito profundamente que é necessário redistribuir a riqueza, proteger o mundo em que vivemos e torná-lo habitável para todas as pessoas, e se isso implicar tomar decisões difíceis, então que assim seja, são decisões necessárias. Não tenho qualquer vergonha em ser de esquerda. Pelo contrário. O problema é que o mundo está a caminhar, cada vez mais, para a direita. Só que essa viragem é uma farsa.
Estamos a ser distraídos com guerras culturais, focados no lado mais frágil e vulnerável da identidade, enquanto o nosso mundo, os nossos recursos, estão a ser-nos confiscados. Acho que deveríamos voltar a focar-nos no lado luminoso da identidade, aquele que é feito de encontros, de diálogo, de partilha, de tensão criativa. É essa a dimensão da identidade que devemos celebrar: algo em constante evolução, que nos une e não nos isola. Temos de impedir que o mundo nos seja roubado.
Não quero terminar esta conversa sem falar sobre o som, que considero um dos pontos mais fortes do seu filme. A edição sonora opera quase como sensorialismo. Há momentos em que sentimos literalmente a carne a rasgar-se …
Sim, o som foi uma prioridade desde o início. O essencial para tornar o filme mais sensorial e isso é ainda mais importante na animação, onde não há som ambiente gravado no local. A imagem vem completamente “nua”, e somos nós que decidimos onde e como aplicar o som. É um processo muito preciso e consciente. Trabalhámos tanto com momentos de alta densidade sonora como com silêncios e minimalismo. Essa variação foi intencional para acompanhar a jornada da personagem e a travessia da floresta.
O som serve aqui como um segundo nível de leitura. Não é um som literal, não está lá apenas para ilustrar. Nem o espectador, nem nós o lemos de forma imediata. O som carrega sentidos que atuam de forma indireta, emocional, quase instintiva. Como disse, há algo visceral — uma presença imediata — que só é possível porque, em animação, temos uma liberdade total para esculpir o som como quisermos.
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Sei que ainda é cedo para esta pergunta: afinal, a animação não é como filmar em imagem real, como disse, este filme envolveu cerca de dez anos entre escrita e produção, e sei que o processo de animação é longo e cuidadoso. Mas não resisto a perguntar: tem novos projetos? Já há algo já escrito?
Sim, estou a iniciar o processo de financiamento já no próximo mês. Aliás, já comecei a animar, com uma pequena equipa. O novo projeto é um filme intitulado “Everything in its Place”, uma reflexão sobre ordem e desordem, tanto nas classes sociais, como na arte e nas relações íntimas. Portanto, continuo a trabalhar dentro do mesmo território político, mas agora com um foco mais direto na organização social, nas estéticas do processo criativo e na nossa vida íntima; no dia a dia, na casa em que vivemos, e nesse equilíbrio (ou desequilíbrio) constante entre a ordem e o caos. Há três personagens que exploram estas questões de ordem e desordem.
Ainda hoje existe a ideia do cinema de animação ser somente uma indústria “infantil”, mas o Félix contraria esse senso comum, faz animação política, com um peso temático adulto.
Sim, é verdade que a indústria da animação está muito orientada para filmes de família e para crianças. Acredito que, no seu núcleo mais essencial, que a animação é um diálogo profundo entre o cinema, o desenho e as artes visuais. Um diálogo com o movimento, com a imagem animada enquanto linguagem. A animação pode ser para adultos. Pode ser para todos. Mas o que acho realmente absurdo é esta ideia de que desenhar é algo "não inteligente", ou que desenhar é "para crianças".
Não é. O desenho é, obviamente, também para adultos, e mais: há uma inteligência própria no desenho, nas artes visuais. Uma capacidade de nomear o mundo, de tocar a realidade de uma forma que só o traço, a pintura, a arte visual conseguem e a animação participa dessa força, dessa forma única de pensar e expressar.