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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

No Pain, No Gain, No Genre

Hugo Gomes, 17.03.24

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Um animal estranho... e é dessa estranheza que um “Love Lies Bleeding” permanece vivo [“alive and kicking”], sem com isso ser-se reduzido a um mero “OFNI” - «objeto fílmico não identificável». Ao cedermos a tais etiquetas estamos a defender um território quebradiço que é o enquadramento de géneros. Com certeza, que hoje em dia, o tema transita para bandejas sociais e identitárias, o qual por vezes esquecemo-nos da categorização de géneros imposta pela indústria cinematográfica, ansiosa por capitalizar formatos e fórmulas. A realizadora Rose Glass (“Saint Maud”) lida com tais limitações, tornando as suas barreiras líquidas neste romance atípico entre a filha do “homem mais temido da região” (Kristen Stewart) e uma errante fisiculturista (Katy O’Brian) que por acidente atravessou o seu caminho.

Entre o teor romântico que passa pelo crime ambientada em sociologias de “América Profunda”, os dramas de dilema até à ação, e piscando os olhos, e em constância, ao body horror traçado algures entre David Cronenberg e Julia Ducournau, cujos corpos, as suas mutações e empenhos, a vontade de ser algo mais do que carne e osso, desejos impuros que ambicionam devaneios e “pedradas” à realidade. É certo que esta gincana de géneros cinematográficos, um “shaker” proteico com acréscimos de sangue e suor, físicos contrastados e sujo sexo, poderão levar, e aí a “estranheza” como mal predefinido, aos espectadores mais centrados na organização fílmica a repudiar a sua cadência obstinada. Porém, a transcendência desses géneros leva-nos a outros géneros, onde o tal espectador desanimado poderá “bufar” com mais afinco perante a identidade fluída e a sexualidade pregada neste conto ao peso da bala e de esteroides.

É um amor lésbico, signatário de uma tendência queer que renega a própria e dita estética, é trans na forma como coloca esses temas num corpo de cinema másculo, por vezes toxicamente masculino com aproximações a um universo Nicolas Winding Refn, obviamente sem a sua personalizada coloração neon embriagada. Nessa transmutação, permanecendo-se numa “estética de ódio” em substituição à badalada prótese queer, as porosidades desencantadas, a música em diegese temporal, conduzindo a um filme tipicamente 80's em spines introspectivos. Por outras palavras, é indigesto e seguidamente vintage, mas curiosamente estranho para causar nele um certo fascínio pelo bizarro, pelo transumano e pela subversão das expectativas enquanto o género, seja ele qual for, condiciona.

E o final é essa provocação, ao previsível, ao coerente, à razão de uma fluidez narrativa. Tudo é abate, desde géneros cinematográficos até a estéticas estabelecidas. 

Sessão Especial Quentin Dupieux - Cinema Fernando Lopes

Hugo Gomes, 15.03.24

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O príncipe do absurdismo e do "sem razão" Quentin Dupieux, ou como gosta de ser conhecido Mr. Oizo, contará com um ciclo especial no Cinema Fernando Lopes, cuja "abertura" será apresentada pela minha pessoa. Dois filmes, dois devaneios, um é puramente dalinesco, o outro um retrato do moderno espectador e como eles refletem esta sociedade nos mais diferentes quadrantes; arte, política e empatia.

Apareçam! para mais informação aqui: https://cinemafernandolopes.pt

 

"Neste filme tudo é político": um conversa com Lillah Halla, realizadora de "Levante"

Hugo Gomes, 14.03.24

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Levante (2023)

Sofia (Ayomi Dominica), uma jovem a poucos passos da sua maioridade, jogadora plena de uma equipa de voleibol inclusiva, cujo futuro parece lhe sorrir com vontade. Mas o destino, por sua vez, prega-lhe uma partida. Prestes a adquirir uma bolsa, Sofia descobre que está grávida, e pelos seus próprios meios tenta interromper a gravidez, mantendo-a em segredo do seu pai (Rômulo Braga) e da sua equipa / turma chefiada pela treinadora Sol (Grace Passô). Uma corrida contra o tempo, contra um país, contra o fervorismo religioso, de frente a um progresso social que nunca chega.

Primeira longa-metragem de Lillah Halla, “Levante”, apresentado na Semana da Crítica de Cannes em 2023 e no Leffest do mesmo ano, é um filme que não esquiva da sua verdadeira natureza, uma obra política onde tudo nele é de igual ímpeto. Desde a sua temática, a sua estética, a sua diversidade e também o seu ritmo, jovial e dinamizado, que nos entrega um dos mais potentes e recentes punhos erguidos contra políticas obscurantistas, esses inimigos de face variada contra os quais o cinema brasileiro declarou guerra há muito.

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, Lillah Halla fala-nos sobre esse teor político, sobre o Coletivo Vermelha que fundou e que promove, e também do tema central do filme: o acontecimento, o aborto.

Começo com a, talvez, pergunta geral: de onde surgiu a ideia para este filme? Pelo que entendi foi um processo de escrita e desenvolvimento ao longo de sete anos.

Na verdade foram oito.

Corrigindo: um processo de escrita e desenvolvimento ao longo de oito anos.

São muitos os pontos de partida de um filme; são os acontecimentos políticos, são as circunstâncias pessoais, são os encontros, mas um marco bastante importante para nós foi o momento em que pisamos na fronteira entre o Brasil e o Uruguai e a descriminalização do aborto do lado uruguaio, ou a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, como eles chamam, o que gerou uma situação especular muito forte, muito imagética também. Porque o Uruguai tinha dados muito parecidos com os do Brasil até então, até à descriminalização. Hoje, no Brasil, a cada dois dias, uma mulher ou pessoa com útero morre em consequência de abortos clandestinos, é um número absolutamente alto. É a quarta maior causa de mortes de mulheres no Brasil, uma necropolítica absoluta e inaceitável. E o Uruguai tinha números parecidos até ao momento da descriminalização e não só, reduzindo praticamente a zero o número de mortes por complicações de interrupções voluntárias, como também diminuiu o número de abortos. Então, nessa situação de comparação, qual é a fronteira?

A fronteira entre o Brasil e o Uruguai é muito porosa para todos os outros assuntos. Não há um marco mais visual da mesma entre o Brasil e o Uruguai do que aquela que você vê no filme, porque de maneira geral a fronteira cruza invisivelmente, e por vezes até cruza a casa das pessoas, ou uma rua cujo lado é Rivera, Uruguai, e do outro está Livramento, Brasil. Para todos os outros assuntos, a fronteira é um lugar de encontro, não de separação, mas para este, a fronteira é um lugar, praticamente um muro que leva a uma situação muitas vezes de vida ou morte. Então, nós, eu, Maria Elena Morán [Atencio], que é co-argumentista deste projeto, e Clarissa Guarilha, que é a produtora principal do filme, estivemos lá nessa época e foi muito marcante essa imagem, a partir daí começamos a recolher testemunhos. Passamos um tempo ali na fronteira e passamos a entrevistar pessoas do lado uruguaio, médicos, militância e muitos que contribuíram para que essa transformação acontecesse, para também entender de que maneira isso poderia ecoar no Brasil.

A partir daí nós fomos puxando os fios. Se você olhar de cima para uma quadra de voleibol, reparará que ela tem essa cartografia política separada por uma fronteira. Um lugar de uma divisão artificial e binária do que pode e não pode. O feminino, o masculino, o Brasil, o Uruguai são fronteiras que estão o tempo inteiro tentando romper com isso. Dentro do filme, essa cartografia do controlo de existências, o voleibol, também nasceu nesse lugar, além do corpo em jogo. Um desporto que requer estratégias coletivas, assim como os nossos levantes, e com reflexo na história de Sofia no desenrolar deste filme.

Continuando com o tema do aborto, uma mera curiosidade / coincidência é que a estreia do “Levante” chega-nos numa altura em que a França coloca o aborto como direito constituicional e em Portugal, como tivemos eleições há pouco, o tema do aborto voi novamente referido, neste caso, numa sugerida eventualidade de reverter a sua despenalização. Isto, sem contar com as medidas mais restritivas aprovadas nos EUA.

Essa referência na Constituição francesa também é fruto de todas essas mudanças. Em vários países, com a ascensão da direita, sabemos que qualquer direito conquistado não é um direito garantido. Ad infinitum. Então, existem algumas maneiras diferentes de garantir esse direito, um deles é através da Constituição. Outro é a despenalização. Existem várias maneiras de lidar com isso e a França escolheu trazê-lo para a Constituição para dificultar esse efeito sanfona de idas e vindas e mudanças consoante a direção política. Inclusive no Uruguai, durante esses oito anos de processo do filme, quando ocorreram as eleições de 2018, essa questão foi trazida novamente à pauta, e se cogitou a possibilidade de revogação. Nós estávamos a lidar com isso no tabuleiro político o tempo todo, o processo deste filme ecoava a história e a história política e social dos dois países, ao mesmo tempo em que tentava elucubrar possibilidades de futuro.

É um direito de saúde e de existência que não pode ficar ao sabor desses movimentos políticos. Houve em 2018, no Brasil, uma tentativa de descriminalização através da ADPF, e que está novamente em votação neste momento. A ministra [do Supremo Tribunal Federal] Rosa Weber, antes de se aposentar, deixou o seu voto “Sim”. 

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Lillah Halla

Para você ter ideia, Dilma tentou abordar o assunto na campanha, foi atacada pela esquerda como pela direita, o qual a fez recuar. Lula tentou abordar a questão na campanha, foi igualmente “atacado” pela direita e pela esquerda, e também recuou. É complexo dizer isso, Lula pôde falar publicamente da importância do cessar-fogo em Gaza mas não pôde falar publicamente da descriminalização do aborto no Brasil. É uma das questões mais complexas do nosso país, embora sempre seja colocado num lugar muito maniqueista de religião versus não-religião. E é importante referir que o tema não se resume a isso, porque temos frentes religiosas, as fé-ministas, como se autodenominam, lutando pela despenalização e pela descriminalização. 

Quando os assuntos são tabus, muitas vezes nos deparamos com opiniões pessoais, então, é crucial voltar aos dados. Uma mulher morre a cada dois dias no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, e 80% das mulheres que buscam aborto, independentemente de sua religião, têm fé. Dessas, 70%, se não estou enganado, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, são cristãs.

Falamos muito mais de um controle de corpos baseado em poder, como disse a pastora Lusmarina Campos, na ADPF de 2018, estamos perante um machismo eclesiástico.

Sobre a questão do voleibol, gostaria de lhe perguntar sobre a escolha deste desporto? Há uma ideia de inclusividade, representatividade e diversidade no seu filme, refletida nesta equipa, e igualmente nesta modalidade desportiva. Pelo que percebo no filme, a bandeira forte daquela equipa conseguir chegar onde chegou baseia-se na sua união.

É por isso que o filme se chama "Levante". Acredito que o que subjaz como uma corrente subterrânea de sentido nessa história é essa organização coletiva, essa pulsão de vida, e não apenas política, essa macropolítica, sobre a possibilidade de se organizar para existir com nossas diferenças, nossas potências e com nossas alegrias. Assim, a alegria é uma questão muito importante no filme, porque também ela é politizada, não é à toa que o grupo do Celeste vem com essa potência, essa malícia e essa força cada vez que aparecem, na frente e atrás das telas. Inclusive, a cada momento que se encontram, são potentes. São pessoas que não se conheciam antes e que hoje formam um grupo, uma família, vindo de partes diferentes do Brasil. Acho que é importante dizer isso, não é? "Levante" também trata sobre família. Sobre a família que escolhemos.

E ninguém pode impor o modelo dela para nós. É um filme sobre a importância das redes de afeto, da importância da nossa organização, da importância da voz de cada uma das pessoas nessas transformações sociais.

Tamém existe outro elemento que no filme detém uma carga metafórica e simbólica, que são as abelhas, elas, as “operárias”, praticamente todas fêmeas, apesar de não terem um sexo definido, um útero, mas biologicamente são organizadas e colaboram para uma causa, no caso delas a rainha, o útero. No filme, o útero de Sofia.

Organização coletiva sim.

Visto falarmos em coletivo, gostaria que me abordasse sobre sobre o Coletivo Vermelha o qual integra.

O Coletivo Vermelha também teve uma grande importância na origem destes projetos. Estes são permeados por várias questões pessoais, históricas e sociais, do ambiente e do meio social em que nós, contadores de histórias, estamos inseridos.

Estudei cinema em Cuba e venho do teatro, mais especificamente do teatro de grupo, onde aprendi muito sobre organização coletiva, o processo antes do resultado e a importância do espaço de criação conjunto. Quando terminei o cinema em Cuba, eu e outras duas colegas - Manoela Ziggiatti e Iana Cossoy Paro - e uma outra cineasta que não era da escola, mas que conhecíamos - Carou Alves de Souza - começamos então o Coletivo como resposta ao panorama da representatividade no cinema brasileiro.

Na frente e atrás das câmaras, esta cooperativa levou-nos à politização. Primeiramente, o Vermelha surge como um processo de politização feminista e queer feminista. Entramos em contato com várias matrizes e constantemente debatemos, o que levou à abertura e à adesão de mais pessoas. Começamos a fazer pequenas ações, as quais ganharam mais corpo, entendendo a absoluta necessidade de buscar possibilidades não hegemônicas dentro do cinema, seja pela questão da representatividade, organizando debates, ativismos e a criação de redes entre cineastas. Seguimos então para o segundo passo, uma pesquisa que, para mim, também foi essencial, não só para este filme, como para o anterior e para a vida. Comecei a estudar muitas mitologias fundamentais dessa ideia de abjeção do feminino, abjeção do outro não hegemónico, e o "Menarca" [anterior curta-metragem, datada de 2020] surge disso também, ao entrar em contato com mitos que são parte da nossa cultura ou importados de outras, porque esses atravessamentos também acontecem e legitimam a violência contra as mulheres, contra pessoas minorizadas, e essa ideia de abjeção.

O Vermelha é escola para mim. Possibilitou que entrássemos em contato com outros grupos também dedicados aos mesmos temas e causas, apelando assim a uma união de forças. 

Resumidamente, o Vermelha é muito parte da história deste filme também.

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Coletivo Vermelha; Caru Alves de Souza, Iana Cossoy Paro, Lillah Halla, Manoela Ziggiatti e Moara Passoni / Foto.: Wilssa Esser

Quanto à questão dos corpos, como havia também insinuado neste nossa conversa, o corpo político, o qual  parece não estar somente presente na equipa de voleibol ou no útero de Sofia, como também marcas as cenas de sexo e de afeto. Há uma estética nestas sequências o qual identifico como política, nem que seja pelo contraste de tons de pele, a da personagem Sofia para com a sua namorada.

Sim, poder político. Neste filme tudo é político. 

Era como o escritor Philip Roth dizia: “tudo é político, até o ato de lavar os dentes é político”.

Intencional e político. Neste filme, tudo também é fruto de muitos processos, de muitas discussões, inclusive com o elenco. Antes de escolher Domenica como protagonista, nós já tínhamos a equipa, mas não sabíamos exatamente quem era quem. Foi através de um trabalho conjunto que decidimos os papéis, aliás, novamente fruto do convívio e da interação que começou por delinear relações, personagens, cenas, improvisações, dinâmicas, gestos. O processo de elenco é também um processo de escrita. Não estou a impor um personagem sobre aquela pessoa. Aquela pessoa veste aquele personagem e incorpora a sua própria personalidade.

Eu escolho pessoas, e é nesse encontro que eu e Maria Helena reescrevemos o guião. Foi através da dinâmica e dos improvisos concretizados na primeira semana de trabalho conjunto que vi em Ayomi Domenica a nossa Sofia e Loro Bardot, muito evidentemente, como Bell. Propus e aceitaram, e a partir daí, Domenica e Bardot tiveram uma semana para experimentar com esses personagens, com este texto, para que no final dessa semana, afirmativamente, disséssemos: "Vamos! É isso".

Outro aspecto que gostaria de destacar no seu filme, é que, tendo em conta a existência de vários filmes brasileiros em que uma jovem vive um “coming-to-age” fora do normal, geralmente tem a família como um outro obstáculo, um impedimento ou reflexo de uma sociedade reacionário, intolerante e castradora. Mas no caso deste filme, o pai de Sofia é um aliado, uma espécie de “cavaleiro” a favor da sua filha. Gostava que me falasse do processo de escrita desta personagem e a escolha também do ator Rômulo Braga (“Elon Não Acredita na Morte”) para este papel.

Hoje no Brasil, diariamente, 500 crianças são registadas sem o nome do pai, apenas com o nome da mãe. Este é o panorama que enfrentamos. Os casos abordam uma paternidade distante, autoritária e tóxica, num sentido clássico e negativo. O cinema já retratou bastante a vida, representou-a amplamente. Portanto, para nós, era muito importante contrariar isso. O personagem de Rômulo envolve muitos aspectos importantes. Inicialmente, Sofia é menor de idade, sem a mãe presente. Ele é o responsável legal e, no início de sua jornada, acredita precisa lidar com isso, portanto, vai-se envolver gradualmente, percebendo a importância da situação. As questões de descriminalização não são uma questão de ser a favor ou contra, pois ninguém perguntou a ninguém quem está a favor ou contra.

Esta personagem passa por uma transformação ao vivenciar a experiência através da pele da filha, a qual está mais próxima dele. Cresce muito ao assumir esse papel de responsabilidade. Embora seja uma personagem que obviamente ajuda, ele compreende, como a própria lenda do filme diz, que pode tanto ajudar quanto atrapalhar. A sua escolha é ajudar. Ser o aliado. Ele é um pai amoroso, mas tem uma abordagem diferente da de Sofia, e está sempre a um passo atrás, lutando para formar um grupo de pessoas contra o país e a sua legislação, lutando contra a legitimação de violências como as que ela enfrenta. Ele é um personagem muito importante e amoroso.

Acredito que o cinema também tem uma responsabilidade em registar não apenas a realidade para que os espectadores se questionem, mas também em possibilitar imaginações de outras paternidades, por exemplo, a dedicação e o amor que este personagem tem pela sua filha e o quanto ele se propõe a rever e arriscar é uma paternidade que desejo para o mundo.

Rômulo esteve conosco no projeto desde o início. Além de ser um ator incrível, é uma pessoa que trabalha com afeto. No esquema do set de filmagem, que era muito diferente, precisávamos de alguém que pisasse com muito respeito e carinho. Rômulo, vindo do teatro, tem uma abordagem experimental do qual foi muito frutífero para a produção. Ele e o resto do elenco foram muito amorosos, abraçando a inexperiência de uma realizadora no seu primeiro filme. Entendo cada vez mais o processo desse filme, que foi um processo de criar campos minimamente confortáveis, para não dizer seguros, onde pudéssemos estar vulneráveis e criar juntos. 

O Rômulo assim como cada uma das pessoas que está nesse filme, tinha muito isso, naturalmente. Isso foi muito importante.

Numa das suas muitas entrevistas, abordou a curiosa história sobre um grupo de WhatsApp criado pelo elenco.

Algo que fui percebendo - num filme de baixo orçamento e ainda na primeira longa-metragem - é que tudo era muito corrido. Era como se estivesse a acontecer uma mágica, um encontro muito potente. A nossa pré-produção foi o momento mais marcante de todo o filme, porque foi onde encontramos a nossa essência, a nossa matéria-prima, com a qual seríamos lançados na "frigideira" durante as filmagens, porque ela era uma verdadeira correria. Tentamos criar condições para que essa correria tivesse limites; entender palavras de segurança, ter uma rede, uma comunicação com o elenco, com as equipas, que pudessem falar comigo abertamente. Criamos palavras-chave que pudessem ser pronunciadas sem que ninguém mais entendesse, para que pudessem expressar os seus riscos e as suas inseguranças. Um código para o "não me sinto confortável e preciso mudar".

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Levante (2023)

De maneira geral, isso atrasa as filmagens; o tempo realmente é mágico. Ele aconteceu muito na pré-produção, que também foi corrida, mas como não há intervenção da máquina, não é aquele relógio louco das filmagens.

Quando eu terminei o "Menarca", declarei: "Nunca mais faço cinema. Vou voltar para o teatro." Essa intervenção da máquina é terrível. Só que aí o filme fica pronto e é isso… Olha agora, o "Levante", está aqui na Itália, na Alemanha, na Turquia, no Brasil, existe algo que é muito potente uma vez feito. Mas o processo é muito doloroso, porque ele mata muitas magias pela própria estrutura industrial do cinema. Os tempos, a maneira, a máquina. Aí comecei a sentir que aqueles tempos não coincidiam ou exaltavam a magia do processo que é fazer Cinema. Sempre que me sinto apertada ou "castrada" por uma estrutura assim, eu, como as personagens, busco maneiras de hackear tudo isso. Quando a Grace [Passô] chegou, eles faziam coreografias do TikTok [risos] e não sei mais o quê, então resolvi trazer isso para dentro do filme.

Fiz uma proposta que foi uma maneira de hackear mesmo e criar outras possibilidades para registar aquela magia que estava acontecendo, porque muitas vezes a magia acontecia entre o "Corta" e o "Ação" e não entre o "Ação" e o "Corta". Então o que estava atrás de mim era muito rico, propus, já no processo de pré-produção, eles começarem a gravar ‘coisas’. É um pouco difícil, porque filmamos na academia, então a maior parte das experiências tinham máscaras no meio [“Levante” foi filmado em tempo de Covid], mas quando eles entravam naquele ambiente seguro, depois do teste, que era o ensaio, combinei fazermos um grupo de WhatsApp onde eu estaria, mas não interferia em nada, não dirigiria, nem assistiria. É um espaço deles, onde eles, como equipa, pudessem ir criar materiais.

E eles estão lá treinando vólei na quadra e fazem um “videozinho” ou um conteúdo algo assim. Aquilo lá virou uma espécie de pequeno arquivo de experiências, material lindo e muito muito vivo, sobretudo muito autêntico.

Até agora, só mesmo para terminar. Se calhar eu sei que está neste momento em digressão com o seu primeiro longa metragem, mas mesmo assim não posso deixar de fazer esta pergunta se já tem algum projeto em mente ou quer fazer um intervalinho.

E estou a desenvolver um projeto alemão. É uma coprodução com a França, chamado “Fleming”, uma comédia surrealista sobre a masculinidade e a ideia de nação. Além disso, estou a trabalhar num projeto de ficção-documentário, um híbrido no Brasil, dirigido em colaboração com uma diretora de teatro com quem trabalho há alguns anos, Janaína Leite. Este projeto é baseado numa experiência dela, sendo os dois filmes muito diferentes entre si, mas estou presente em todos eles.

Oscars 2024: depois das legislativas, o atómico

Hugo Gomes, 11.03.24

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Como costumo dizer no final de cada cerimónia - "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema" - este ano, simplesmente, não aconteceu... E não me refiro aos vencedores, obviamente, a gala de prémios foi a mais previsível desde que "Coda" (quem?) abocanhou a estatueta de Melhor Filme numa noite quente marcada à bofetada. Não, o motivo foram as eleições legislativas altamente disputadas que tiraram o sono a qualquer português. Depois disto, qual o interesse de ver "Oppenheimer", o "mais importante filme do século", como vozes em uníssono declararam antes da produção estrear, levar um punhado de "homens dourados" (com alguns bem discutíveis, "Montagem? Por favor", outros bem merecidos como Robert Downey Jr. enquanto ator secundário)? Contudo, como é tradição aqui no espaço, um comentário - meio ácido, aviso desde já - da noite que se fez para lá de Los Angeles a marcar a manhã de uma ressacada segunda-feira. Portanto, cá vai:

Como tinha afirmado, Nolan é o esperadíssimo vencedor, antevendo um circuito altamente previsível e homogéneo. Cillian Murphy sai sorridente em oposição de um "Maestro" tristonho e vazio (para um filme com uma realização daquelas merecia mais, mas nada neste mundo é justo). Emma Stone, a frankensteiniana criatura de "Poor Things" de Yorgos Lanthimos, faz uma rasteira a Lily Gladstone na categoria de Melhor Atriz, e na mais disputada categoria, a de atriz secundária, Da'Vine Joy Randolph de "The Holdovers" acena às derrotadas America Ferrara e Danielle Brooks. Outra categoria digna de nota é a de Filme Internacional, com o britânico falado em alemão "Zone of Interest" a sobrepor-se a "Perfect Days" e "The Teacher's Lounge", sacudindo alguns fantasmas do Holocausto e incomodando, como se percebeu no discurso de Glazer, o conflito israelo-palestiniano. E por fim, digno de nota, o nipónico e "underdog" "Godzilla Minus One" a triunfar na competição dos efeitos visuais, deixando para trás candidatos com potencial como "The Creator" e o terceiro "Guardians of the Galaxy", e (confesso, o prémio que mais felicidade me trouxe), a animação para "The Boy and the Heron" do nosso mestre Hayao Miyazaki.

E pronto, é isto. "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema"!

"Asserção hipócrita e absurda"

Hugo Gomes, 09.03.24

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Baise-moi (Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi, 2000)

Diz-se muitas vezes que a pornografia aumenta o número de violações. Asserção hipócrita e absurda. Como se a agressão sexual não passasse de uma invenção recente e fossem preciso filmes para introduzir o espírito.

Virginie Despentes, “Teoria King Kong” (Tradução: Orfeu Negro / Tradução: Luís Leitão)

Ele só quer 'brincar'. Quem? O Paracosmo!

Hugo Gomes, 07.03.24

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Paracosmos! Palavra que nos chega embrulhada em estranheza, levando-nos a correr em direção aos dicionários após a sessão... Peço perdão quebra do mistério, mas trata-se da condição em que as crianças criam relações com a sua imaginação, vulgo "amigos imaginários". Portanto, paracosmo, no contexto do cinema de terror, é o diagnóstico precoce dado a qualquer “enfant” que entra em contacto com entidades paranormais, tinhosas ou tóxicas, muitas vezes negligenciadas pelos seus progenitores. "É apenas fruto da sua imaginação. Todos nós tivemos amigos imaginários. É perfeitamente normal", dirão uns aos outros com um sorriso condescendente enquanto observam os "pequeninos" a interagir com o invisível, mencionando a "moça do banheiro", ou o "amigo que morreu numa certa madrugada".

"Imaginary", esta nova produção da ordem de Jason Blum, hoje considerado uma espécie de Roger Corman, no qual o seu toque autoral parece transparecer até à cadeira de realização, muitas vezes ocupada por tecnicistas (como James Wan ou David Gordon Green), ou pela maioria de meros anónimos, como é o caso de Jeff Wadlow (realizador que tem no currículo um slasher genérico - "Cry_Wolf" - com Jon Bon Jovi como professor universitário), é uma narrativa recalcada desse mesmo mal, um trauma de uma criança que "conhece" um companheiro de brincadeiras de outras imaginações / dimensões. O resultado é o esperado, tal que não é preciso somar complexidades para prever aonde o recreio nos levará. Tudo é exposto em lugares-comuns, algorítmicos (como ‘agora’ estamos a designar frequentemente), que nos confrontam com o previsível, povoados por personagens da mesma matéria, papel reciclado e pouco cuidado. Ainda podemos argumentar que ao seu terceiro ato é exibido uma disposição estética por vezes agradável ao olhar (mas de imaginação igualmente tão devedora), com intensa aspiração a um cinema de género com alcance para maiores idades. Aliás, é o efeito "Gremlins", negro, infanto-juvenil, e por vezes delirante, só que a 'coisa' tem propensão a ser uma esquizofrenia de todo o tamanho, com ursos de peluche psicóticos, pesadelos à moda de Elm Street e uma inspiração assumida em "Poltergeist" de Tobe Hooper, hinos e canções que aqui ressoam como fragmentos desencantados.

Onde "Imaginary" triunfa, ainda que em pequenez, é na revelação da palavra "paracosmos", despertando-nos curiosidade e empurrando-nos de bruços para o dicionário mais próximo... ops, queria dizer, Wikipédias e plataformas virtuais. Pois é, velhos hábitos que demoram a morrer, assim como os clichés mal-emaranhados desta "imaginação limitada".

António-Pedro Vasconcelos (1939 - 2024): o senhor do grande público em Portugal

Hugo Gomes, 06.03.24

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Sinto que será uma figura sobre a qual iremos debater nos próximos tempos com uma maior exatidão e menos reação, mas fora isso, para o bem e para o mal, António-Pedro Vasconcelos fazia parte deste círculo reduzido e conflituoso que é o Cinema Português. Muitas vezes expressei o quanto gostava de ouvi-lo falar sobre cinema, mesmo que discordasse inteiramente da sua visão e, claro, da sua maneira de fazer filmes. No entanto, é neste diálogo que a cinefilia parece ter se perdido, na passarela de egos, na falta de escuta do outro e na defesa da pluralidade de pensamentos.

Quanto aos filmes, é triste que a sua despedida tenha sido com o telenovelesco "Km 224", mas há alguns momentos na sua cinematografia que guardo com carinho (deixo de lado os seus trabalhos de consagração, “Oxalá” e “Um Lugar do Morto”), nem que seja pelo desempenho mais do que feliz de Nicolau Breyner em "Os Imortais", personagem que se tornou num meme vivo - "Está tudo preso, meus cabrões". Ou, como sempre defendi, pelo lado B do cinema americano que "Call Girl" proporcionou. "Deus não existe, porque se existisse era um incompetente", dizia Joaquim De Almeida à sua protegée e isco humano Soraia Chaves "disposta a tudo", ou do malconceituado "A Bela e o Paparazzo", comédia romântica que piscava o olho a um legado iconográfico hollywoodiano. Não que tenha sido a oitava maravilha do cinema português, mas entre isto e os muitos atentados que se praticam em nome do "cinema para o grande público", até ficamos bem servidos com os singelos e até humildes "contos de coração partido" narrados por Nuno Markl.

Houve um tempo em que Paulo Branco jogava poker em "Perdidos por Cem", filme de referências e brindes, ou o encanto do Porto ao som de Rui Veloso em "Jaime", e não podemos esquecer "Amor Impossível", um romance jovial autodestrutivo que chegou a (re)conquistar alguns céticos. Ficamos então sem António-Pedro Vasconcelos, despedimo-nos de um homem cuja visão do seu cinema o relegava a uma certa marginalidade.