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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Laetitia Dosch: "tento fazer humor com algo que me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros"

Hugo Gomes, 10.07.25

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

Levante-se o réu… ou, neste caso, sente-se… isso, lindo menino!

O absurdo de um julgamento a um cão não é uma ideia insólita na nossa história humana. Na Idade Média, era comum realizar julgamentos a animais domésticos, sendo o mais notório o de um suíno por infanticídio, no século XIV, terminado com o enforcamento do ‘pobre animal’. Contudo, não estamos a falar de períodos negros da História, ainda que atravessemos uma negritude por dissecar,  e "Le Procès du Chien" leva-nos justamente a isso… aos tempos modernos, reflectida num hipotético caso de tribunal a um cão.

Vencedor do Palm Dog no Festival de Cannes de 2024, o filme assinala a estreia na realização da actriz e encenadora Laetitia Dosch. Por cá, conhecemo-la como protagonista de obras como "Jeune Femme", "Passion Simple" ou aquela mãe que tantas iras contrariam no espectador, no encantador "Le Roman de Jim", de Arnaud Larrieu & Jean-Marie Larrieu. Aqui, para além de assumir a batuta da produção, é também ela a protagonista — uma advogada de causas perdidas que aceita este trabalho irrisório, em andanças igualmente irrisórias. "Le Procès du Chien" mescla variantes de esperança e temor nesta contemporaneidade de diferenças e desuniões.

A actriz feita realizadora conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre os seus medos, e como foram eles a origem deste filme de “patudos” a conquistar um júri. Quem sabe… à mercê de 12 Homens em Fúria!

Deixa-me iniciar esta conversa com uma das mais genéricas questões, acredito que já tinha sido recorrente a pergunta, mas cá vai: enquanto actriz por que decidiu dar esse grande passo e tornar-te realizadora?

Bem, também já escrevia peças de teatro, isso era um facto. Escrevi muitas e também as interpretei. Sempre tive o gosto de imaginar histórias.

Gosto de histórias e gosto ainda mais de estar dentro das histórias dos outros, mas também de imaginar as minhas próprias. Durante muito tempo não acreditava que seria capaz de fazer um filme, até que um dia, um produtor veio ter comigo depois de assistir a uma peça o qual contracenava com um cavalo em palco … estava sozinha com o cavalo [risos] … e ele disse-me: “Se sabes trabalhar com um cavalo, então consegues fazer um filme.

A sério?

Sim! Não sei se é mesmo verdade [risos], mas, pronto... acabei por avançar num filme!

Então esta não foi também a tua primeira experiência a dirigir um animal em set? [risos]

Na verdade, foi a segunda vez que dirigi um animal. Mas não foi a minha primeira experiência a dirigir atores, nem a trabalhar com guarda-roupa ou cenografia. Já tinha essa sensação de estar a construir um mundo.

Algo claro no seu filme e que ele não oculta tal facto, é o de “Le Procès du Chien” ser inspirado numa história verdadeira. Foi você que se deparou com essa mesma história?

Não, na verdade a história veio até mim.

Através do tal produtor?

Não, foi de outra forma. Estava a apresentar o meu espectáculo com o cavalo, e no final uma mulher da plateia veio ter comigo, abraçou-me e disse que era advogada. Contou-me que tinha tido um caso em que teve de defender o dono de um cão, e aí partilhou-me essa história.

Era praticamente a história do filme. Pela lei, o cão era considerado uma ‘coisa’. E como o cão tinha mordido três vezes, foi o dono que foi a julgamento, não o cão. Mas a forma como ela me contou tudo, com tanta emoção, tocou-me. Percebi que podíamos falar, de forma séria e até divertida, sobre questões muito importantes: a nossa ligação com outras espécies, por exemplo.

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

Sim, há esse lado absurdista nesta história, contudo, na sua ficção quem é julgado não é o dono, mas sim o cão.

Exato. Porque todos sabemos que um cão não é uma "coisa". Mas então... o que é? Há um momento estranho no filme em que a juíza, ao reconhecer que o cão não é uma coisa, diz: “Muito bem, então talvez ele seja alguém.”, a partir daí, decide-se que o cão deve ser julgado, para se apurar o seu grau de responsabilidade.

É absurdo... mas ao mesmo tempo não é assim tão absurdo. Porque se um cão não é uma ‘coisa’, juridicamente não sabemos muito bem o que ele é. Existe um momento no seu filme em que está a tentar decidir se o cão é uma ‘coisa’, uma pessoa, ou algo mais. E a discussão prossegue para o terreno da alma… Tens ali filósofos, professores, cientistas a discutir o que é um cão, ou melhor, o que é um animal. Isso fez-me lembrar um caso na Índia, onde existe uma lei que classifica os golfinhos como “pessoas não humanas”, para que possam ser protegidos e detenham alguns direitos. Legalmente, não são humanos, mas algo que caminha entre …

Sim, mas se começamos por aí, criamos uma hierarquia entre os animais: uns mais importantes, outros menos. Isso complica tudo. Agora, se dissermos que todos os animais são semi-humanos... então não podemos mais comer carne, e isso levanta grandes questões. Não sei qual é a resposta certa, mas acho que chegou a altura de tentarmos responder. Porque não se trata apenas dos animais, trata-se da nossa relação com todas as outras espécies. Com as plantas, até com a água. A forma como nos relacionamos com os outros habitantes deste mundo está a causar muita destruição… e muito calor no verão.

O seu filme levanta muitas questões, mas não oferece respostas. Nem o final dá certezas, é quase desconcertante. Há algo que me parece muito inteligente: ao atribuíres humanidade ao cão, e ele acaba por ser... misógino.

Sim, porque ele só morde mulheres [risos].

Esse é o problema. Ao longo do filme, muitas personagens tentam definir o cão, dizem que ele é isto, aquilo, o outro, mas a verdade é que ninguém sabe realmente quem é este cão.

Essa ambiguidade é muito interessante. Se o cão for comparado a um humano, e é declarado um macho misógino, então, por esta lógica, ele merece o perdão da sociedade? Porque se no caso de um homem misógino, por exemplo, a sociedade não demonstraria igual clemência? São perguntas que o seu filme parece incentivar.

Sim. Mas o julgamento não é sobre o cão ser misógino, é sobre ele ter mordido a cara de uma pessoa. O facto de o cão parecer misógino, ou ser acusado de o ser, é mais um sintoma do problema. Porque isso acaba por dividir as pessoas, cria tensão entre activistas dos direitos dos animais e feministas, por exemplo.

Sim, existe uma separação, ou talvez até exposição, dessas divisões entre diferentes formas de ativismo no filme.

Sim, tento fazer humor com algo que, na verdade, me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros. A dificuldade que temos em comunicar, em construir uma sociedade em conjunto.

Fala-se muito hoje em dia de como vivemos numa sociedade “extremamente polarizada”, que já é frase recorrente. Basta ver as notícias, ou olhar à volta...

É verdade. O filme tenta fazer humor sobre o nosso tempo, sobre tudo o que me assusta neste tempo.

Partimos então para o seu processo como realizadora. Como surgiu a decisão de se colocar como protagonista na sua estreia na direcção? Foi uma escolha imediata, quando começaste o projeto? Ou considerou outras atrizes?

Inspirei-me muito em realizadores como Nanni Moretti e Woody Allen. Eles colocam-se no centro das histórias, como se dissessem ao público: “vou mostrar-te o que se passa na minha cabeça”. Também redescobrimos essa lógica na série “Fleabag durante este processo, como também pensei em Louis C.K. Gosto muito de retratos íntimos, e então tentei fazer o meu. Porque adoro ver esse tipo de obras.

Acredita que este tipo de abordagem — realizar e atuar ao mesmo tempo — será um modus operandi que repetirá nos seus próximos projetos? Ou este salto para a realização poderá ser visto como algo único?

Por um lado, tenho algum receio. Mas não se trata só de medo. Hoje, quando vejo o filme, já não o sinto como “meu”. Pertence a um momento específico. Agora, sou uma pessoa diferente daquela que realizou este filme. Contudo, tenho de perceber quem sou agora, para poder fazer um novo filme.

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Le Romain de Jim (Arnaud & Jean-Marie Larrieu, 2024)

Quando vê o seu filme hoje, há algo que gostaria de mudar? Podemos considerar a Laetitia como um daqueles realizadores que não gosta de rever os próprios filmes?

São duas coisas diferentes. Por um lado, olho para o filme como um objeto e penso: “isto podia estar melhor, aquilo podia ser diferente”. Mas, por outro lado, sei que se fizesse o filme agora... não seria o mesmo filme. Seria muito mais lento, por exemplo.

Quanto à sua carreira como atriz, já trabalhou com várias realizadoras e realizadores distintos como Justine Triet, em “La Bataille de Solférino, Léonor Serraille, em Jeune Femme, e, devo mencionar, porque foi um filme que estreou em França no ano passado, mas só este ano chegou a Portugal, “Le roman de Jim dos irmãos Larrieu. Mas voltando ao tema da realização: aprendeu com os realizadores com quem trabalhou?

Sim, aprendi imenso com todos eles. Como atriz, aprendi muito sobre mim própria. Sobre como estar num set, sobre como criar um bom ambiente de trabalho. Cada um tinha uma abordagem diferente, mas todos tinham uma força enorme, e não foi só com os realizadores, foi ao observar toda a equipa. Quando via as pessoas a trabalhar nos cenários, nos adereços, nas localizações... era impressionante. Cada trabalho ali tinha beleza. Aprendi imenso só de ver isso.

Na verdade, foi isso que me deu ainda mais vontade de fazer um filme: ver todas aquelas pessoas a trabalhar em conjunto.

Mais até do que observar os próprios realizadores a dirigir?

Sim, mas também aprendi com isso. Com os realizadores a trabalharem comigo. Aprendi que um realizador nunca deve ter medo dos atores.

Mesmo quando os atores são muito famosos, ou mesmo quando não são, o que todos querem, no fundo, é um realizador que lhes dê a mão. Que lhes diga: “estás bem, estás no caminho certo, eu estou aqui contigo”.

Muitos realizadores, especialmente no início, sentem-se um pouco intimidados pelos atores. Mas não deviam. Porque os atores precisam dessa presença confiante do realizador para conseguirem dar o melhor de si.

Por vezes nem gostam deles.

[Risos] A sério?

Sim, tenho conhecimento de realizadores que detestam trabalhar com atores, e como resposta muitos deles apenas trabalham com amigos.

Bem, os amigos também podem ser atores, não é?

Claro. Há quem diga até que prefere trabalhar com amigos do que com o "melhor ator do momento". O Orson Welles, por exemplo, parafraseou isso.

Mas ele trabalhou com a Rita Hayworth... que era a mulher dele, e era maravilhosa.

Sim, mas quando o Welles afirmava tal já se encontrava na fase mais tardia da carreira, com projetos na Europa, mais decadente, com uns quantos trabalhos inacabados e fracassados. Não era o Orson Welles do logo após ”Citizen Kane" e ainda a dar tudo por tudo em Hollywood. 

Mas para mim, os atores no set são meus amigos. Pronto, está explicado.

Durante a rodagem na Suíça, fazíamos fondue todas as semanas! Criámos um verdadeiro espírito de grupo. Muitos dos atores que escolhi são também realizadores. Não a Anabela [Moreira], mas ela é uma mulher absolutamente fantástica.

Mas ela co-realizou alguns trabalhos com o João Canijo … mas já agora, devido à menção, e como português, tenho que lhe perguntar: como surgiu a Anabela Moreira no seu projeto?

Tive muita sorte! Na história real havia mesmo uma mulher portuguesa, empregada doméstica, que foi a vítima das mordidelas e que decidiu apresentar queixa. Queria que essa personagem fosse alguém com muita força. Alguém com presença, com personalidade — fosse famosa ou não. Tive a sorte de conhecer a Anabela, e ela aceitou o papel.

Para mim, a personagem dela — Lorraine — é a verdadeira figura feminista do filme. É ela quem mais evolui, quem ganha mais independência e liberdade ao longo da história. Mesmo que não esteja presente o tempo todo. Por isso precisava de uma atriz muito forte.

Reparei também noutra coisa: a sua personagem portuguesa não é o típico estereótipo que se vê noutros filmes. É uma mulher independente e só sabemos ser portuguesa apenas numa menção no julgamento. Ou seja, poderia ser de qualquer outra nacionalidade, e neste ponto, o desempenho de Anabela não denuncia nada.

Sim! Ela tem muita dignidade. Não quer parecer-se com ninguém, e isso é o que gosto nela. Tal como na vida real, na verdade, as pessoas surpreendem-nos. Não são estereótipos, são únicas. Pretendia que esta mulher fosse daquelas que queremos conhecer. Um pouco estranha, talvez, meio sexy, meio solitária. Acima de tudo com uma presença fortíssima.

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Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)

E como foi trabalhar com o ator principal de quatro patas? É difícil dirigir um animal?

Não acho que seja difícil. Depende muito. O essencial é escolher bem: tanto o cão como os treinadores.

Apaixonei-me por este cão, e pelos treinadores também [risos]. Trabalhar com eles foi maravilhoso. Tínhamos uma ótima comunicação. Ensaiámos bastante, falámos muito. Cheguei a reescrever cenas para o cão. Toda a planificação do filme foi feita em função dele, para que estivesse confortável. Tinha um espaço só dele, havia regras para o proteger. Tudo foi pensado para que se sentisse bem e acho que ele sentiu. Portanto, não foi difícil, e sim adorável.

Esta pergunta é mais abstrata sobre o seu filme, porque ele toma vários caminhos e o final vai numa direção muito diferente das anteriores …

Como a vida.

Exatamente. Mas cá vai: podemos entender o seu filme como um feel-good movie? Porque há uma intenção de conforto, de humor... mas depois há uma certa traição, o filme não entrega uma resposta fácil, nem a festinha necessária.

Há muito amor neste filme, é o que posso dizer. É tudo sobre o amor, de certa forma. Os personagens são emocionantes e divertidos. Todos são um pouco marginais. Até o cão. São personagens fortes, mas que não são totalmente aceites pela sociedade, e ao mesmo tempo, são adoráveis. Há muita coisa engraçada no filme, só que partilham com muita melancolia.

Então... será um feel-good movie? Talvez seja um filme que nos faz querer amar as pessoas. Cuidar. Pensar. Cuidar dos animais, dos cães, das pessoas. Questionar-se. Portanto, não é um feel-good movie no sentido mais leve. Não é um filme fácil. Porque a vida não é fácil nem divertida o tempo todo. Mas podemos rir da vida e podemos aproveitá-la.

Há um … aliás, outro elemento muito atual no seu filme, que salta à vista: a advogada de acusação, interpretada por Anne Dorval, é uma figura popular naquela sociedade e que entra na política. Pelos vislumbres que temos no filme converte-se num tipo de político populista e demagogo, um arquétipo que conhecemos bem neste mundo em que vivemos.

Sim, completamente.

Foi sua intenção injectar esse elemento populista, quase caricatural, mas que, no fundo, e infelizmente, também tem muito de real?

Totalmente. Quando escrevi o filme, já me assustava ver como certas figuras públicas ganhavam popularidade com base no absurdo. Hoje tenho ainda mais medo. Porque esses populistas parecem palhaços, e isso faz parte da força deles. Querem parecer ridículos, porque assim as pessoas falam deles, e falando, dão-lhes poder.

É um absurdo... falso. Porque, na verdade, é realista. Às vezes olho para as notícias e parece que a verdade deixou de existir. Que se escondeu e o mais importante passou a ser: “the show must go on.” Para mim, é disso que trata essa personagem.

Chegando agora à sua carreira como atriz. Tem novos projetos?

Sim. Terminei a promoção do meu filme em outubro. Depois actuei num filme chamado “La Maison des Femmes" (Melisa Godet), sobre uma associação em França que apoia mulheres vítimas de violência. É um centro onde trabalham médicas, psicólogas, assistentes sociais — pessoas incríveis a ajudar mulheres. Interpreto uma das médicas. Tenho muito orgulho nesse projeto.

Mas depois disso... não me sentia inspirada. Fiquei em casa, no sofá. Quase sem conseguir mexer-me. Então decidi viajar. Fui a Lisboa, em dezembro, e depois fui para Barcelona. Precisava que a inspiração viesse até mim. Estava a estudar yoga em Barcelona quando recebi um telefonema para interpretar “Mãe Coragem” [peça de Bertolt Brecht e Margarete Steffin], num espectáculo que anda em digressão pela Europa. Agora estou em tournée com a peça. Tenho o papel principal. Esta semana atuo em Barcelona. E é lindo. Mas... ainda não sei o que vou escrever a seguir.

Mas continuas ligada à escrita dramática e ao teatro?

Não sei. Agora acabei de fazer um filme. Em dezembro fiz “La Maison des Femmes”. E agora estou no teatro. Mas o que me importa mesmo é isto: o encontro com as pessoas. As relações. É isso que me move.

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Jeune Femme (Léonor Serraille, 2017)

Hoje em dia acho que é uma pergunta muito pertinente, mas estive a rever a sua carreira... e percebi que, nos últimos anos, trabalhou com várias realizadoras. Isso foi uma escolha consciente?

São relações. Estou muito feliz por ter conhecido cada uma das mulheres com quem trabalhei. São todas muito inteligentes e muito diferentes entre si. Foi uma grande alegria, como atriz, poder entrar na cabeça delas, tentar perceber o que queriam, encontrar o que procuravam nas personagens. É um desafio que me dá imenso prazer. Mas também sinto esse prazer com realizadores homens, claro. Não sei... Não sei ao certo. Só sei que tive muita sorte em poder trabalhar com estas mulheres.

Sim, porque vi nomes como Danielle Arbid, Léonor Serraille, Catherine Corsini, Maïwenn...

Sim, e Melissa Godet também. Talvez nos últimos cinco anos tenham sido mesmo muitas. Mas não sei se é uma questão de género. Elas são muito diferentes entre si. Cada uma tem o seu estilo. Não dá para generalizar, o que é ótimo, aliás.

["luz" (luce) e "fazer" (fece)]

Hugo Gomes, 09.07.25

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Com “Lucefece: Where There Is No Vision, The People Will Perish” ficamos por aqui: um autor a posicionar-se no mundo, no seu e no dos outros, da infância às memórias, do passado colonial do pai à Troika e à consciência ideológica, pelo meio, Yuri Gagarin e a sua trajetória solitária num espaço aberto como representação de jornada ao inexplorável.

Ricardo Leite não esconde a autobiografia, não camufla o evidente umbigo, o filme é dele: a sua visão e a sua relação com esta existência contemporânea. Talvez um filme-testamento precoce, um ensaio que persiste à luz da vivência. O cinema tem disso, por vezes, a história do “eu” montada e selecionada como pretexto para a experimentação e ficamos nessa pegada, aquela que James Joyce, com a pena atarefada em “Ulisses”, identificava com um certo reparo: a época das descobertas, do desconhecido que o mundo ainda nos reservava; os avanços, os mistérios partilhados em volta da fogueira, em comunhão ou como consolo na escuridão, essa mesma que, como o breu, esconde o que ainda havia por esconder, esses mesmos tempos passaram, desvaneceram, tal como as grandes epopeias: Fernão Mendes Pinto ou a Rota da Seda, o avistamento da criatura de Loch Ness ou a Antártida. O escritor fez do “eu” o novo épico: a viagem aos confins do interior. Ricardo Leite apenas aprendeu com a herança que carrega nos ombros: essa postura, esse movimento ou conformação aos limites do nosso redor. Sem mística, somos apenas nós e a exploração verniana dessa intimidade.

Como Yuri Gagarin, o homem, o primeiro, diga-se de passagem, a trespassar a fronteira... o limite, o que falta ainda explorar, evidenciar e vivenciar. “Lucefece exercita essa primeira pessoa do singular.

Agora, se irá transformar o cinema, e o português em particular, duvidamos muito … não será tão especial assim.

Continuamos a acreditar que um homem pode voar?

Hugo Gomes, 08.07.25

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"You'll believe a man can fly", a tagline promocional de 1978 para "Superman", de Richard Donner, conquistou o imaginário de um geração nessa sua aparição. Foi a renascence de uma personagem até então em desuso, cujo na altura desconhecido Christopher Reeve (oriundos dos palcos), garantiu o sucesso da obra em tempos de blockbusters escassos e ainda experimentais no paladar do público. Ao encabeçar este Kal-El / Clark Kent, alienígena exilado na Terra, cuja sua diferença física e fisiológica o coloca na pele de uma super-heroi com missão de proteger os terráqueos das mais infames ameaças, Reeve comprometeu-se a mais três sequelas que, mesmo sob qualidade decrescente, o manteriam como a encarnação perfeita desta personagem. E o resultado está à vista, o facto de o Super-Homem atravessar gerações até ao início dos reboots deve-se a essa representação indissociável.

Em 2006, começou o recast ["Superman Returns", 2006]. Mesmo com os burburinhos de um projecto abortado — o de Tim Burton com Nicolas Cage no papel do kryptoniano — foi o também então desconhecido Brandon Routh quem herdou o papel de sucessão a Reeves (devido a um acidente em ‘95 ficou tetraplegico, tendo falecido em 2004). Para Donner, mesmo que posteriormente com um Henry Cavill imponente na pele do sobre-humano, era o seu Reeve que “voava tão bem”. Quanto a este novo e simples "Superman", o seu surgimento deve-se ao efeito de reparação de um franchise descarrilado após mudanças bruscas de tom e de liderança. Desesperada, a Warner Bros. entrega a James Gunn e a Peter Safran a missão de salvar a sua chancela. Um reboot, inevitavelmente, concretizou-se: a DCU, um outro universo cinemático, começa, e, à semelhança do anterior, através de um concerto performado do Super-Homem, e mais uma vez interpretado por um “desconhecido”, David Corenswet.

Podemos garantir que o elenco deste novo capítulo é bem-sucedido, meticuloso até, desde o protagonista, passando por Rachel Brosnahan como Lois Lane, até Nicholas Hoult, que oferece um Lex Luthor convicente, condensando o zeitgeist dos tecno-oligarcas. Neste aspecto, James Gunn acerta e arrisca em igual medida. Nota-se, desde o início, um regresso à ingenuidade do género, visível nas relações entre personagens, nas intenções das suas jornadas, e no world-building que define o tom deste universo por explorar. Personagens marginais dos comics ganham centralidade narrativa (já é um modus operandi do realizador nestas patentes condensadas à tela); e há um cão com capa que voa; o ambiente familiar estabelece-se sem atrito, mesmo quando surgem consequências em cena. James Gunn transforma tudo isto num risco: acreditar, não no homem que voa, mas no espectador disposto a crer nessa possibilidade. Mesmo que afogado em tecnologia, o filme assume-se como segunda demão num subgénero bafiento que tenta captar um último fôlego.

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Infelizmente, há buracos que o filme não consegue evitar: a saturação do enredo, a acção dependente de CGI que pouco impressiona o olhar treinado, e as ‘politiquices’ que rebentam à tona como o seu próprio zeitgeist. Se Nicholas Hoult é uma espécie de Musk sem patetices, já o sub-conflito entre dois países fictícios, numa guerra e consequente invasão, remete-nos para actualidades... resolvidas, como é habitual no cinema de super-heróis, com a mais fácil das facilidades.

Por sua vez, "Superman" tenta restaurar a fé na descrença. A questão é: conseguirá? Ou já estaremos noutro tempo? Seja como for, é o mais nostálgico dos Super-Homens em ecrã desde a dupla Donner / Reeve.

Dever de autor e do autor

Hugo Gomes, 07.07.25

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Andrei Rublev (Andrei Tarkovsky, 1966)

O artista tem o dever de ser imperturbável. Não tem o dever de revelar as suas emoções, o seu envolvimento ou de lançar isso sobre o seu público. Qualquer tratamento mais arrebatado de um tema deve ser sublimado numa forma de severidade olímpica. Esse é o único modo que o artista tem de falar sobre as coisas que o estimulam."

- Andrei Tarkovsky, "Esculpir o Tempo"  / edição Sr Teste (tradução: Ana Garcia Ferreira)

"A poesia não é apenas escrever versos": antes do pequeno almoço, uma breve conversa com Alejandro Jodorowsky.

Hugo Gomes, 06.07.25

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Alejandro Jodorowsky, ao lado do seu filho mais novo e actor Adan Jodorowsky, em "Poesia Sin Fin" (2016)

Estávamos em setembro de 2017, em pleno sábado, e eu, em modo de ronha matinal, mantinha-me na cama até ser surpreendido por uma chamada. Atendi: “Olá, Hugo, sobre a entrevista com o Alejandro Jodorowsky. Ainda estás interessado? Ele está no hotel e ainda te pode receber.

Respondi com um súbito “a caminho” e por via de um salto saí da cama, vesti-me em tempo recorde e “voei” em direção à Avenida da Liberdade, mais especificamente para um hotel a poucos metros do Cinema São Jorge, onde decorreria o MOTELX, o Festival de Cinema de Terror à moda lisboeta. Nesse ano, o certame convidava duas lendas do cinema de género: Roger Corman — o produtor frutífero e prolífero, uma instituição em forma de pessoa, com quem tive o prazer de me cruzar na tentativa de condensar uma carreira longa e multifacetada, com mais de cem filmes creditados, numa ‘coisa’ de vinte minutos — e Alejandro Jodorowsky, o delirante, o onírico poeta-mago-psicodramático, que desceu da sua “montanha sagrada” para se apresentar como cineasta do terror. Discutível, é certo… ainda assim, “Santa Sangre” (1989), uma das obras selecionadas, aproximava-se desse universo. O cineasta chileno, igualmente multifacetado (dramaturgo, escritor, poeta, autor de banda-desenhada e segundo alguns fontes, exímio leitor de Tarot), já motivava multidões que se amontoavam para assistir a uma das duas palestras promovidas pelo festival. Na fila extensa, via-se alguns fãs que entre braços seguravam BDs de autoria jodorowskiana e storyboards — pretendiam mais do que uma “TED Talk”: uma assinatura, ou até uma selfie, duas consoantes capazes de fazer este aventurados felizes.

Contudo, voltando à minha correria: era a oportunidade de estar cara a cara com o realizador de “El Topo” (1970), protagonizado pelo próprio com o seu filho mais velho Brontis, um western à margem das suas conformidades cujo culto o expandiu para outras margens. Tinha pedido este encontro à organização do festival, e a resposta chegou envolta em incerteza: “Ele tem uma agenda cheia. Teríamos de lhe perguntar.” Esperei, então, com alguma expectativa por uma confirmação que tardava, mas que desejava intensamente. Desde novo, os filmes de Jodorowsky fascinavam-me — levavam-me para além do terreno, da minha mortalidade. Talvez tenha sido esse impacto, difícil de traduzir em palavras, que senti ao assistir a “The Holy Mountain” na adolescência. Equiparo essa jornada xamânica a uma “moca” consciente… Desde cedo alimentava o desejo de o conhecer pessoalmente: ele e as suas vontades quase new age, impregnadas de uma espiritualidade performativa. Mesmo que as vozes antagónicas ao seu modo operativo se fizessem ouvir com alguma trovoada nas redes sociais, muitos viam nele um mestre, chegando aos seus gurus com aprovação e consentimento. Outros, porém, dirigiam-lhe os mais vis nomes. Jodorowsky nunca foi totalmente consensual. Uma franja da cinefilia (grande parte dela conformista ou formalmente conservadora) olhava com desconfiança a surrealidade alucinogénica do realizador.

Já na história corrente, não vá deambular com biografias em modo ‘wikipediado’ … Foi então que, à chegada ao hotel, no lounge, Alejandro (permita-me tratá-lo assim) aguardava-me num cadeirão majestoso, óbvia réplica-macaca a destoar um ar versalhês. Mas isso pouco interessava: tinha chegado.

Tens poucos minutos. Ele tem a agenda cheia e ainda não tomou o pequeno-almoço”, advertiu-me a assessora de imprensa. Agradeci. Puxando uma cadeira, não tão pomposa como a dele, sentando à sua frente. Tentando esconder o meu nervosismo de fã, apresentei-me, apertei-lhe a mão: Hugo Gomes… prazer!”, disse num “portunhol” sem espinhas, antes de dar início à [pequena] conversa.

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Santa Sangre (1989)

A minha primeira pergunta é sobre esta sua vinda ao MOTELX, que é um festival com uma temática especialmente ligada ao terror. Isto é, poderemos de alguma maneira considerá-lo um cineasta do terror ou a caminhar para esse género?

Bem, se formos a ver “Santa Sangre” é de uma natureza muito próxima ao terror, diria antes, é um filme de terror, sem querer com isto colocá-lo num género definido. Um dos factores que o bem define nesse género é o seu produtor, Argento

Argento? Dario Argento?

Não, esse é o seu irmão mais velho. Claudio Argento, que também produziu grande parte dos filmes do Dario e cuja família encontra-se bem vincada nesse território. 

Lembro-me na altura, Claudio estar cansado do terror puro, tinha pretensões de experimentar algo diferente, mas mesmo assim, seguiu para minha casa e propôs-me um filme que envolvia a morte de uma mulher. Morte de uma mulher? Perguntei-lhe. Ao qual ele me respondeu, que nos dias de hoje o surrealismo gira em volta em “matar mulheres”. Matar uma mulher? Frisei, porque não matar … não sei … todos os homens, não sei, cavalos, moscas … mas o porquê de matar mulheres? 

Então fiz este filme sobre “matar uma mulher”. Porém, só matei uma. Uma forte e assustadora mulher [risos].  O filme todo é delirante, muito intenso, mas entende-se os motivos psicológicos, a razão profunda pela qual ele é um criminoso. Tem ali algo de psicanalítico, mais profundo, e quando o terror atinge isso, essa profundidade… Qual é o lado positivo que este terror produz? Não é terror só por ser terror. É uma forma de cura. É diferente. Tudo bem, é terror, só que mais profundo.

Uma das frases mais famosas que se usa para descrever a sua carreira é: “não fazer filmes, e sim fazer poesia.

Sim, poesia. Poesia visual acrescento.

Agora, o que é poesia? A poesia não é apenas escrever versos, escrever palavras. Já em Itália, [Filippo Tommaso] Marinetti, no Futurismo, dizia que a poesia é um ato. A partir dessa ideia podemos afirmar que a poesia também pode ser composta por ações poéticas. Não apenas escrita.

Há dois tipos de cinema: o industrial e o de autor. O cinema industrial não é arte, porque está preso ao dinheiro. Não é livre, nem sequer honesto. Faz aquilo que o público gosta, mas não cria nada de novo. Só procura agradar para gerar lucro. É uma indústria. Já o de autor é arte, quando é bem feito, claro. Porque é uma sucessão de atos poéticos. e o que é um ato poético? É um ato livre e honesto. Autêntico. Não há fingimento. Não há falsidade. Apenas vai à procura de uma verdade interior.

Isso sim, é poesia! Os teus poemas são verdadeiros. Penso na obra em si, e não nos frutos industriais dessa obra. O fruto industrial é o dinheiro, o poder e a fama. É isso que o cinema industrial procura: o dinheiro é o lucro, a fama são os actores, e o poder está ligado ao governo, porque todos os filmes industriais estão, de alguma forma, sob o controlo da política oficial. Eu não faço isso. Eu faço cinema de arte!

Claro, se fizeres um filme teu — verdadeiro, livre — e ele for um sucesso económico, tu não pediste esse dinheiro. Deus deu-to. Abre o bolso... e assim recebes. Porque não o pediste. Simplesmente veio ter contigo.

Sobre essa questão, deixa-me ir a um dos seus primeiros filmes, “El Topo”. John Lennon tornou-se um acérrimo fã …

Sim, gostou muito. Sem dúvida.

E deu-te dinheiro para fazer “The Holy Mountain”? Ou seja, se não fosse essa relação, o Jodorowsky não conseguiria o seu salto?

Sim, “The Holy Mountain" foi um “game changing” na minha carreira.

Ele pediu ao Allen Klein, que era o empresário dos Beatles, dos Rolling Stones e do Bob Dylan, que me ajudasse. Era um produtor incrível… mas um homem terrível. Então o John Lennon enviou-me até ele. Pediu-lhe que me desse um milhão de dólares para eu fazer o que quisesse. E foi isso que eu fiz: o que quis [risos].

[risos] É sabido que em “The Holy Mountain”, o Alejandro experimentou drogas — LSD, cogumelos — para idealizar o filme. É verdade? As ideias do filme baseiam-se nessas suas experiências e efeitos?

Sim. Como é que posso explicar…? Foram cogumelos sagrados. Mas não foi uma coisa contínua. Só uma vez. Porque estava a seguir um guru. Um mestre espiritual. Eu, nessa altura, não era mestre, então senti que precisava de saber como funciona a mente de um mestre.

Fiz a experiência. Mas apenas duas vezes. Não constantemente.

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El Topo (1970)

Portanto, “The Holy Mountain” é baseado nessa tua experiência — seja visual, mental…

Era um filme muito avançado para a época. O produtor enlouqueceu e decidiu não o lançar. Queria que fizesse um filme produzido pela Playboy … sim, a revista Playboy [risos] … com muitas mulheres, e a matar mulheres. Como um desses filme de terror, a matar mulheres. Fugi disso [risos]. Não quis fazer.

E ele disse-me: "Se não fizeres isso, ninguém vai ver o teu filme." Durante 30 anos ele não mostrou o filme. Trinta anos! Dizia: “Ninguém vai entender mesmo.” Entretanto, tinha algumas cópias de trabalho, em vídeo… Dei-as a todos os piratas: na Rússia, no Chile, nos Estados Unidos.

As pessoas viam esse filme e também “El Topo” em más condições. Entretanto, o meu inimigo, Allen Klein, envelheceu, mas tinha um filho, muito boa pessoa, Jody Klein, que assumiu o negócio. Contactou-me. Conversámos. Resolvemos o problema, e, passados 30 anos, finalmente estreou o meu filme nos Estados Unidos.

E agora o filme está a ser exibido em Hollywood. Ainda hoje. Ainda anda em cartaz por lá.

E é um filme de culto.

Mais do que isso.

Mais do que um filme de culto?

Hoje em dia as pessoas conseguem compreendê-lo. Esse filme… 

E há rumores de que vai existir uma sequela de “El Topo”.

Sim, sim, sim.

E será você a fazê-lo?

Sim. Mas para o fazer, vou usar animação.

Animação?

Sim. Para isso, estou a trabalhar com um artista fantástico, um génio, que se chama José Ladrönn. É mexicano  e vai desenhar uma banda desenhada, como se fosse um storyboard cinematográfico. Já fizemos o primeiro volume, vão ser três no total. Estamos a terminar o segundo volume. Quando os três estiverem prontos, teremos todas as imagens do filme já desenhadas, e assim terei possibilidade de angariar financiamento para fazer “El Topo 2.

É isso que estou a fazer e gosto da ideia de ver isso realizado. Também estou a trabalhar num documentário sobre psicomagia, estou a produzi-lo neste momento.

Como o seu apelido, Psychomag.

Sim, estou mesmo a fazer isso. Além disso, estou a preparar a terceira parte da trilogia autobiográfica - “La danza de la realidad” (2013) e “Poesia sin fin(2016). Agora, a jornada essencial da terceira parte está terminada.

E depois… morro.

Entrevista de 2017, no âmbito do MOTELx, repescada e reeditada para acompanhamento das sessões de “El Topo”, a ser projetado na Cinemateca nos dias 07/07 [Esplanada, 21h45] e 18/07 [Sala Félix Ribeiro, 15h30]

Neste Obscuro Objeto, passeio pelo Presente e Passado.

Hugo Gomes, 05.07.25

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E com dezasseis, já falta pouco para sentir os noventa e seis”, já dizia aquela bela canção dos GNR, uma ironia melancólica que adequa-se como epígrafe a este “Belle Toujours, filmado por Manoel de Oliveira de 97 anos, que revisita — ou melhor, reinventa — o universo de “Belle de Jour (Luis Buñuel, 1967), não com intenção de continuá-lo, mas de espreitar-lhe as brechas, embarafustar fantasmas e provocar, discretamente, a sua memória.

Passaram-se 39 anos desde que Catherine Deneuve encarnou a sua célebre Séverine Serizy, a burguesa que, sob o véu do tédio matrimonial, mergulhava na fantasia da submissão e da prostituição ocasional. Oliveira regressa àquelas figuras numa sequela não definida e sem acordos oficializados, sem o gesto explicativo ou desvendador do que Buñuel deixara em suspensão (e nisso é fiel ao espírito do espanhol), antes para ensaiar um jogo especular, envelhecido, entre aquilo que a memória guarda e o que a ausência silenciosamente esvazia. 

Aqui, Michel Piccoli retoma o papel de Henri Husson — evidentemente já marcado pelo “tempo-velhaco” —, que reencontra uma Séverine igualmente transformada (interpretada pela atriz Bulle Ogier, cuja substituição assume a função simbólica da transfiguração, e igualmente compadecemos de Deneuve em não regressar ao seu devido palco). O encontro dá-se num recital de música clássica, e a partir daí, Husson persegue-a, não em busca de prazer com sabor de saudade, e sim um reencontro com o não-dito: o enigma daquilo que terá sussurrado ao marido dela, reduzido a um corpo mudo após o disparo de um dos amantes de Séverine. Essa frase, esse segredo mantido a “sete-chaves”, paira sobre todo o filme como uma sombra irrepresentável, um vaivém na possível transgressão à mitologia que Oliveira ameaça esvaziar … bluff talvez, ou o amor inflamado para com a obra original não o permite traições de tamanha insolência. 

Belle Toujours habita os interstícios: entre o dito e o silenciado, o passado e o simulacro, a homenagem e a ironia. A sua beleza está tanto na contenção narrativa, austera, pontuada por longos silêncios e contemplações, como na composição plástica: os interiores, as luzes, os gestos, tudo compondo uma mise-en-scène que se recusa ao corte fácil ou à explicação redentora. A fotografia [de Sabine Lancelin], sensível à penumbra e à geometria parisiense, reforça o tom de um requiem discreto, por vezes zombeteiro. Oliveira não se posiciona como um continuador de Buñuel, mas como alguém que, conhecendo os limites da sua linguagem e da original, venera o mistério e a prolonga como vitamínico desta passagem intitulada Vida. Há um gesto de reverência e, simultaneamente, uma subtileza crítica: “Belle Toujours” não desmonta o mito, mas dialoga com ele num registo entre a paródia cerimoniosa e a metafísica do não-fechamento.

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É também, inevitavelmente, um filme de vetustez: o tempo que se arrasta, os diálogos que soam por vezes anacrónicos (ou deliberadamente desfasados), o espaço rarefeito. Por outro lado, indico a presença habitual de Ricardo Trêpa (aqui possivelmente no seu mais energético contributo no cinema do seu avô) como a sua grande fragilidade, não escapando à sua teatralidade que frequentemente marca o trabalho do realizador, contribuindo para cenas de uma artificialidade declarada e proclama. Ainda assim, é uma obra singular. Imperfeita, sim, mas irrecusavelmente única dentro da filmografia portuguesa e do imaginário cinéfilo além-fronteiras. Um gesto de revisitação e preservação ao original, não por fidelidade servil, mas por compreender que certos enigmas sobrevivem melhor enquanto … isso mesmos … enigmas. A vénia final, materializada de galináceo conserva esse misticismo aromatizado às nossas releituras. Viva o mistério!

Michael Madsen (1957 - 2025): o ator 'cool'!

Hugo Gomes, 04.07.25

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Na caça de uma alien sexy em "Species" (Roger Donaldson, 1995)

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Ao lado de Susan Sarandon em "Thelma & Louise" (Ridley Scott, 1991)

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Uma tentativa de ser-se igualmente tarantinesco e rodriguesco em "Hell Ride" (Larry Bishop, 2008)

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"Wyatt Earp" (Lawrence Kasdan, 1994)

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Em "Boarding Gate" (2007), com Asia Argento num dos filmes mais deslocados de Olivier Assayas

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Um dos seus outros momentos altos da carreira foi no elogiado "Donnie Brasco" (Mike Newell, 1997), o qual contracenou com Al Pacino e Johnny Depp 

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Na adaptação da graphic novel de Frank Miller: Sin City (Robert Rodriguez, 2005)

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Um dos antagonistas em "Kill Bill Vol 2" (Quentin Tarantino, 2004)

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Indiscutivelmente o seu mais emblemático papel! Na primeira longa-metragem de Quentin Tarantino, "Reservoir Dogs" (1992)

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Possivelmente o momento mais baixo da sua carreira. A sua interpretação desinteressada em "Bloodrayne" (Uwe Boll, 2005) diz tudo o que há para dizer.

"Adieu Philippine": O meu lugar é o Verão!

Hugo Gomes, 03.07.25

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Um simples cartão introdutório informa-nos: a Guerra da Argélia decorre no seu sexto ano. A partir desse momento, o conflito permanece como um fantasma silencioso, pairando sobre a leveza ilusória de um ménage à trois jovial.

Após duas curtas-metragens, em particular "Blue Jeans" (1958), onde dois jovens percorrem a Riviera Francesa movidos pelo impulso do desejo e da descoberta... e graças à sua vespa, Jacques Rozier aventura-se na condição de longa (ou melhor, de cineasta feito) com "Adieu Philippine" (1962). Perpetua o tom de um cinema "a nadar" entre o naturalismo e a ruptura formal, herdeiro e participante da vaga que, inflando o peito, se autoproclamaria Nouvelle Vague. A origem deste movimento tem sido, por outro lado, objeto de debate incessante: onde começou verdadeiramente? Com os cineastas da chamada Left Bank, como Alain Resnais ("Hiroshima mon amour", 1959)? Com Claude Chabrol ("Le Beau Serge", 1958)? Ou com a dupla Truffaut-Godard ("Les Quatre Cents Coups", "À bout de souffle"), companheiros de estrada e, mais tarde, protagonistas de uma dolorosa separação ideológica?

Nesse mapa, Jacques Rozier permanece nas margens: ignorado pelos grandes holofotes e do Sol grandioso, mesmo quando o seu cinema,  e "Adieu Philippine", especialmente, ilumina com nitidez os traços essenciais da nova vaga. Mas quem reconhece os seus pares nota-o a léguas, e a tal dupla que vos mencionei (mesmo distanciando-se artisticamente, eram ainda tidos como um só) exaltou-se perante a projecção da longa-metragem na Semana da Crítica de Cannes. Cada um, munido da sua pena de escriba, destinou-lhe elogios eufóricos, mais tarde, em Dezembro de 1962, o filme figuraria na capa da Cahiers du Cinéma, como estandarte das novas margens cinematográficas que então começavam a delinear-se. 

Em "Adieu Philippine", tudo ressoa o espírito do movimento: os jump cuts coreografados como dança; o faux travelling das “musas de verão” a descer ruas banhadas de sol e capitalismo em todas as formas (a era do consumismo, a era das futilidades); a fluidez do tempo, imposta pelo andar errante de um transeunte; e, sobretudo, a juventude: viva, pulsante, desorientada. Uma geração que, como denunciava Truffaut no seu célebre artigo da Cahiers du Cinéma, "Uma Certa Tendência do Cinema Francês", rejeitava o conformismo burguês de um cinema de requinte, oriundo de uma indústria bafienta e “traidora” das causas correntes. Mas essa juventude, em Rozier, surge também desenraizada, frustrada por um presente que a empurra para a guerra, mesmo quando tudo nela clama por evasão.

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Numa das muitas cenas marcantes, e talvez das menos referenciadas, na noite que antecede o alistamento militar de Michel (Jean-Claude Aimini), ouvimo-lo num lamento solitário, frustrado, a conduzir pelas ruas com as suas companheiras (Yveline Cery, Stefania Sabatini) no banco de trás: “‘O Meu Lugar’, ‘O Nosso Lugar’... e o que aconteceu ao Meu?” A banalidade das conversas amorosas esbarra na iminência da separação, e essa falha de comunicação torna-se ferida aberta, nunca sarada, perante a imperatividade da contemporaneidade. Até porque o verão em "Adieu Philippine" é uma armadilha: um espaço de escapismo que se desfaz abruptamente, a leveza do início vai sendo corroída pela consciência da inevitabilidade histórica. O filme torna-se político, não por via de proclamações em palanques de última hora, mas pela sua matéria invisível, pelas entrelinhas da juventude sacrificada em nome do Estado.

Jacques Rozier é, aqui, um autor inaugural. Pouco celebrado, raramente lembrado, mas reconhecido — como certa vez afirmou Godard — como aquele que melhor concentrou a alma do seu tempo. É claro. É indiscutível.

Texto publicado no âmbito da retrospectiva "Jacques Rozier", organizada pela Leopardo Filmes

As imagens que faltam ... o silêncio que compromete

Hugo Gomes, 02.07.25

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Os contextos funerários falam nos muito mais dos vivo do que dos mortos"

A imagem que falta! Tal como Rithy Panh em grande parte da sua obra, marcada pela impossibilidade de reconstituição ou pela inatingível natureza da matéria evocada,  encontrou alternativas em maquetes, desenhos ou fotografias (no caso da sua ficção "Rendez-vous avec Pol Pot") para transmitir a mensagem, seja ela cognitiva, emotiva ou política, sem recorrer à literalidade imagética. Trata-se de um gesto criativo que se afasta da mimese tradicional e inscreve-se numa lógica de resistência à representação direta. Contudo, esse mesmo “desenrasque” que Dulce Fernandes intenciona em "Contos do Esquecimento", onde, após a descoberta de uma vala comum de escravos em Lagos (datada do séc. XV), decide narrar a história dos olvidados, contextualizando-a num tempo colonial em que as castas, a lógica nefasta entre humanos e sub-humanos, se faziam sentir nas correntes transatlânticas dos primeiros ensaios capitalistas.

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Contudo, a criatividade do cineasta cambojano não encontra lugar no exercício de Fernandes. O que se impõe aqui é outra frente, outro fronte: o vazio deixado por esta história de gente sem lugar nem fala materializa-se como eco. Somos então, enquanto espectadores, informados do sucedido por letreiros, alguns documentos que surgem no nosso campo de visão, palavras aguçadas às sensibilidades modernas. A realizadora deixa-nos entregues à nossa própria reflexão, acompanhados pelas imagens que consegue alcançar, todas elas motivadas por essa desumanização. Não há homens, nem mulheres, nas imagens que nos são apresentadas: apenas horizontes, zénites, chão. Um tanto de James Benning aqui, um tanto de preguiça acolá, com muito auxílio dos “malditos drones”.

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A intenção de perpetuar uma memória sem a desfazer, reverter ou sequer reinterpretar é digna de respeito. Porém, mesmo os silêncios que nos são ocasionalmente lançados pela negligência da nossa história (apenas repartidos pela voz-off que vez em quanto marca a sua presença), e que visam relembrá-la sem panfletarismos, não receberam o melhor tratamento estético. O slow cinema de vanguarda, mas sem o progresso da mesma, guia-nos para um “filme de imagem em falta” não enquanto gesto radical ou estético, mas como resultado de uma estratégia incompleta. 

Para perdurar, é necessário mais do que apenas contemplar.