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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Quorum" em Junho!!

Hugo Gomes, 22.05.25

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Menção no jornal da Cinemateca Portuguesa! Contudo, há que frisar que "Quorum", a curta-metragem de Rafael Fonseca, vai estrear no Museu do Cinema no dia 27 de junho.

Poderia estar aqui a escrever uma ou duas frases 'bonitas' sobre o filme para vos aguçar a curiosidade, mas basta ler o cujo texto [ler aqui]. Está lá tudo, e o que falta podem encontrá-lo no "Quorum".

O que mais pode Tom Cruise fazer pela Nação?

Hugo Gomes, 21.05.25

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O efeito “último capítulo” leva-o a ser inchado, mas, sobretudo, condescende com o espectador: há que insuflá-lo com flashbacks, não vá a audiência perder o eixo da “coisa”. Por outro lado, importa pensar na saga como um todo: fechar becos, incutir coerência, ou ao menos uma tentativa engenhosa de costurar tudo o que Tom Cruise, sob a pele de Ethan Hunt, sofreu ao longo destes 29 anos. 

The Final Reckoning” (renomeando a segunda parte, pois somos alérgicos a numéricos) é a promessa de desfecho e, com isso, sofre de certos males: ser tagarela ao ponto de situar, de estabelecer um propósito para aquela correria maneirista de Cruise. Chega a esses fins como quem serve aquela palha, mas vence e apenas porque, no modo star system, sendo um dos últimos da esquadria de Hollywood, faz o impossível com Tom Cruise. E o mesmo espectador, tratado como uma criança, é conduzido à promessa do seu limite: o que fará o actor a seguir? Qual será o seu novo truque?

Desde sempre, a saga foi apropriada por esse ego - e que bem - porque é Tom Cruise o verdadeiro autor de um blockbuster que deseja destacar-se dos demais, não pela negação do CGI, mas pela criação de uma adrenalina genuína. E o resto? O que fazer com ela? Ser-se normativo enquanto espectáculo ou espectacular enquanto proeza técnica? Ficamos com a segunda: o de ver Cruise em modo cruzeiro, saltar de avionetas para avionetas, submergir, enfrentar claustrofobia e talassofobia num só plano, desafiar a morte, fazer-se à vida em subenredos apocalípticos, e tornar o MacGuffin novamente grande - aquele que Hitchcock se orgulharia (ou envergonharia) pela sua simplicidade e pelo risco da sua inserção.

“Mission: Impossible” chega com notas celebrativas e fúnebres, para, depois da acção (e do circense dessa mesma acção) pregar sermões, lançar toques melosos, enquanto, talvez sem querer, tropeça em alguns zeitgeists acidentais. Prova de que o mundo mudou, aproximando-se cada vez mais daquilo que definimos (e garantimos) como ficção.

Contudo, mesmo cedendo nos calcanhares (peças todas encaixadas na sua oleosidade e personagens cuja única utilidade é avançar a gincana do protagonista) é na questão do que Tom Cruise ainda nos é capaz de oferecer que ficamos rendidos ao malabarismo hollywoodesco, no seu jeito mais ingénuo e hegemónico.

Quando a (nossa) vida tem o seu quê de performativo ...

Hugo Gomes, 20.05.25

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Desconfio de que o actor e revelado realizador Fabian Stumm tenha tido a intenção de polvilhar a sua primeira longa-metragem com uma crítica ácida, mas nunca expositiva, ao domínio da autoficção como bandeja criativa fundamental do século XXI. Assumo, como é claro, que o poder a meu alcance de inteiração com esta obra não sai do plano da igual autognose, até porque o subjetivo é crucial numa crítica de cinema, mas é nesses ossos de ofício que certos nomes são dados. Nem de propósito, "Bones and Names" coloca o realizador (e também protagonista) num conjunto de três histórias entrelaçadas, de nós feitos, que confirmam ainda mais essa tendenciosa engenhosidade que depois de James Joyce, perante o desencantamento de um mundo já sem mistérios por desvendar, beneficiou-se a introspecção — ao jogo do ‘eu’ — como recorrência e ocorrência criativa, e é daí que parte o novo material maleável para a produção de novas artes, movimentos e critérios.

Bendita seja. O filme alemão pouco se entrega a estéticas vigorosas ou a fidelidades taco-a-taco com as vanguardas. É, como se diz a certa altura, “nem Pagnol, nem Lubitsch, uma outra coisa”. Stumm dispõe desses três enredos: dois mais evidentes que o terceiro, com o propósito desse mesmo gesto de concepção. O primeiro, o de um “escritor-vampiro”, aproveitando-se de outras histórias viventes, como contaminação às suas ficções impressas. Por outro lado, o companheiro (interpretado pelo próprio Stumm), um actor numa rodagem intimista proveniente de uma realizadora francesa (Marie-Lou Sellem), cujo filme se revela baseado em factos verídicos, ou melhor, em episódios em que a cineasta deseja ver revividos, para poder julgá-los de longe, ou como um fetish sádico, tentar intervir no curso dessa inevitabilidade. A terceira história já não corresponde à criação, e sim à destruição: uma criança descobre o seu lado perverso, traquinas, se quisermos amenizar, para desafiar a Ordem em qualquer forma. O trio persiste numa demanda quasi-rohmeriana, de diálogos que conduzem a causas e consequências, onde o Verbo detém a sua imensidão e o seu gesto.

Curiosamente, ao colocar a autoficção no centro, não posso deixar de ver Stumm próximo dos provérbios e dilemas do agora bem consagrado norueguês Dag Johan Haugerud, da trilogia "Love" (2024), "Sex" (2024) e o Urso de Ouro "Dreams" (2025). A sua câmara, fixa, acompanha situações narradas que não apelam a consensos, nem à primeira pedra atirada, mas antes a um ouvinte do outro lado. Outro ponto curioso: a estaticidade brinca com o espectador, desde o wink wink de genitais no início, passando pelos ensaios, onde a presença da câmara, essa da ficção dentro da ficção, instala os primeiros movimentos. Quebra-se uma maldição, o verniz danifica-se, o argumento abocanha qualquer devaneio de forma, e a partir daí o filme vive em uma outra instância. Uma descoberta na nossa província de Zé Povinho.

Fenómenos do Entroncamento

Hugo Gomes, 19.05.25

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Nem tudo se deixa ver com nitidez. Nem tudo é preto ou branco. O cinzento não é apenas uma cor, é a imagem da complexidade que atravessa a temática. Em tempos como os que vivemos, em que a política desperta os nossos instintos mais primitivos, refugiamo-nos nesse binarismo - anterior à popularização do termo nas várias línguas, que é o maniqueísmo -, um filme como este de Pedro Cabeleira posiciona-se nesse lugar: o do incompreendido, do rafeiro, o do animalesco.

A tese desta inspiradíssima segunda longa-metragem é clara: todos somos “bicho do mato”. Não importa a origem, o teor melânico, a cultura ou profissão. O que interessa é onde estamos, o agora, o presente, e esse lugar é o Entroncamento, a terra de "fenómenos", terra de comboios, fim da linha para alguns, o subúrbio do subúrbio. É dessa terra que desaguam estas intrigas de bairro, ilícitos e fanicos, turbilhão étnico a borbulhar pelas costuras. E os outros, os miseráveis, refugiados nas suas casas, proclamam uma terra que já foi sua e que os "outros" tomaram, ou melhor, arrancaram das suas mãos. Por outro lado, confortam-se com uma cervejinha gelada depois do treino. Um bando de polícias à paisana amortece as inquietações entre goles de cevada engarrafada e a mesma cantiga de bandido. Apontam a barbárie dos outros, perfilham a lei como sua — nua e desnutrida. É o tipo de sermão sem rodeios, de ouvidos moucos, que faz crescer extremas-direitas europeístas ou, no caso português, o partido chegófilo, cujos ares petrificam o descontentamento, o desespero, a revolta e, sobretudo, o ódio pelo outro.

Ter razão não é um absolutismo, é antes um relativismo. Porque essa mesma cinza que alcatroa os bairros domina a persistência do olhar. É a violência em jogo, o primeiro acto, a primeira intenção. Desde a abertura, um clima de suspeita: do primeiro lapso até ao desconhecido “primo”, sabe-se lá de onde, que resolve a barafunda com outra ameaça: a do mais forte, ou simplesmente a do mais armado. Lei do asfalto manhoso que cobre esses guetos enfaixados. "Entroncamento", título apropriado das suas raízes, prolonga o desamparo de "Verão Danado", oito anos antes. Só que, em vez de gerações à rasca, é a rasca de uma geração: gente sem rumo, sem passado, do imediato: a do acto de enriquecer instantaneamente como fuga possível e imaginária à sua condenada condição social. 

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Mas recomecemos desse início em conflito, o mote orienta-nos para aquilo que viemos ver: um grande filme de criminosos, criminais e crimes. Credível como poucos conseguiram, e com isto na ausência do rigor performativo de Canijo ou do realismo simulado de Marco Martins. Cabeleira tem outro tipo de credibilidade, assim como de vivência, e dessa manha extrai a sua seiva, a que cobre todo o Entroncamento, a cidade como o filme. Portanto, com o verossímil podemos de facto contar, e do comboio que vem do Norte também. À boleia da ferrovia uma intrusa chega aos arredores: Laura (uma camaleónica Ana Villaça, "By Flávio"), a enzima que despoletará ainda mais o caos na ordem desordeira do bairro. Mulher de rua, de tom ameaçador, palavras grossas, olhar de igual feitio, sem dono — como muitos apontam — percorre a guetização como raposa matreira, escolhendo estrategicamente a sua presa.

Dela vem o coração do "Entroncamento", mas não é dela que parte o delinear da narrativa, mas sim dos estilhaços dos subenredos que se cruzam e sintonizam com a sua indulgência. No fundo, Cabeleira elaborou um filme de relações, seja de que lado da lei estiverem. A recordar, e muito bem, o ambiente nocturno que remete (talvez também pela banda sonora) para a obra de Michael Mann: de "Collateral" a "Heat", de "Thief" e, porque não, "Miami Vice". Um produto contrafeito do autor americano com um cunho pessoal de um português com ‘sangue na guelra’.

O resultado só poderia ser a estética de um crime encantado pelo seu desencantamento. Mas voltando ao ponto inicial: é um filme sobre a política corrente, sem nunca a mencionar, e nesse aspecto — antes que venham com o tipo de cinema sobreliteral, feito papa para alimentar espectadores como passarinhos bebés com a regurgitação dos seus progenitores — "Entroncamento" solicita a cumplicidade do espectador. Para o interpretar nas entrelinhas, como um autêntico parceiro do crime. Um novo fenómeno do Entroncamento!

Denise Fernandes: "A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita."

Hugo Gomes, 15.05.25

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Peço desculpa pelo que vai acontecer [risos]. Tenho conversado com alguns colegas meus que já a entrevistaram nos últimos dias, portanto, algumas questões que lhe farei já as fizeram anteriormente”, “Não faz mal [risos]”, responde a voz do outro lado da linha.

Uns quantos aviões passam. Lisboa, de céus tão exaustos desses aços alados, deixa-se rasgar por um barulho por vezes insuportável. Contudo, nem as forças antagónicas saídas do aeroporto Humberto Delgado impediram a conversa — breve, mas reveladora — com Denise Fernandes, laureada há poucos dias na 22.ª edição do IndieLisboa, ao conquistar a Competição Nacional com a sua primeira longa-metragem, “Hanami”. Já consagrado em Locarno, chega agora às salas portuguesas prometendo um bilhete, só de ida, para a Ilha do Fogo, em Cabo Verde.

O filme aponta mar adentro até desembarcar no refúgio atlântico, entre escombros e casas-fantasmas, onde a pequena Nana, nascida e criada ali, vê os outros partir e “conquistar Mundo”, esse mesmo que, para ela, apenas presente naquele pedaço de terra à beira do vulcão. Em contraste com o ruído incansável de Lisboa, aquele paraíso insular instala-se num silêncio quase melódico. Por entre festejos de funaná com muita comida e doces de coco para sobremesa, é nas proximidades do cume e da terra batida em cinzas que a ausência de som nos transporta para outras eras, ou, quem sabe, para outros realismos, mágicos até. Contudo, Denise Fernandes não quer delirar: quer autenticar. Ir atrás do que realmente representa Cabo Verde — as suas gentes, as diásporas, as antípodas, a identidade de “ser cabo-verdiana”.

Sem mais demoras, segue uma breve conversa do Cinematograficamente Falando… com a realizadora: sobre a obra-destaque, os olhares, existencialismos e simbolismos, e, acima de tudo, autenticidade. A palavra de ordem.

... Só um momento... vai passar mais um avião!

Antes de conversarmos gostaria de lhe dar os parabéns pelo Prémio do IndieLisboa [Competição Nacional], do passado domingo, como também pelos prémios conquistados no Festival de Locarno no ano passado [Cineasta do Presente em 2024]. Portanto, começo exatamente por aí: sendo “Hanami” a sua primeira longa-metragem, o que significam para si estas distinções? E que tipo de impulso ou motivação podem trazer à sua carreira?

A maior recompensa para um filme como “Hanami”, que não é de todo um filme comercial, é, sem dúvida, a visibilidade. Filmes independentes, de autor, não têm o mesmo acesso a promoção e distribuição que os comerciais. Por isso, o reconhecimento através de prémios pode dar precisamente isso: mais visibilidade. E essa mesma é essencial para projetos com esta dimensão.

Antes de Hanami, a Denise já tinha realizado algumas curtas, nomeadamente “Nha Mila” (2020), estreado também em Locarno, que lhe deu alguma projeção. Que desafios encontrou na transição para a longa-metragem?

Foram muitos. Quando estudamos cinema, como foi o meu caso, fazer curtas faz parte do percurso académico, mas não há um caminho claro ou direto para seguir para uma longa. É um processo muito mais longo e complexo.

Tudo o que acontece antes de filmar uma longa envolve anos de desenvolvimento, preparação, tentativas de financiamento. Um dos maiores desafios foi, precisamente, perceber como se faz uma longa: por onde começar, o que é suposto fazer em cada fase. E isso varia muito: depende do país, do contexto de produção, da língua, do sítio onde se vive.

No meu caso, o primeiro grande desafio foi este: tinha uma ideia, mas como é que chego a concretizá-la?

Numa recente entrevista foi abordada a questão do regresso a Cabo Verde. No entanto, mencionou que não é originária da Ilha do Fogo onde o filme decorre. O que a atraiu cinematograficamente nessa ilha, ao ponto de situar aí uma história tão pessoal?

É verdade, os meus pais são da Ilha de Santiago, não do Fogo. Mas muitos dos temas abordados em “Hanami” — a diáspora, a espera, o vínculo ao território — são comuns à identidade cabo-verdiana no geral. Então, mesmo não sendo do Fogo, esses temas dizem-me respeito. Escolhi a Ilha do Fogo porque as suas características — tanto geográficas como simbólicas — estavam alinhadas com a história que queria contar. Foi quase ao contrário: primeiro escolhi a ilha e só depois surgiu a história. Para mim, “Hanami” não podia acontecer noutro lugar. A ilha, com a sua paisagem, a sua energia, foi determinante.

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Denise Fernandes e o produtor Luís Urbano [O Som e a Fúria] durante a apresentação de "Hanami" na antestreia no Batalha Centro de Cinema.

Numa outra entrevista, julgo que foi uma reportagem de Cabo Verde onde a Denise iria programar sessões do “Hanami” para a comunidade da Ilha do Fogo, ressaltou a importância de trazer autenticidade às pessoas e aos locais retratados no filme. Tendo em conta que a Ilha do Fogo tem sido representada por realizadores estrangeiros — como Pedro Costa, entre outros —, gostava que me falasse sobre essa necessidade de um olhar interno. E também sobre o realismo mágico presente em “Hanami, como é que ele se cruza com esse conceito de autenticidade?

A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita. É um compromisso com as pessoas que vivem aquilo que estou a filmar. Sendo cabo-verdiana, embora não do Fogo, senti que o mínimo que podia fazer era garantir que quem vive na ilha se reconhecesse no retrato que apresentava.

Quanto ao realismo mágico, não foi uma escolha estilística deliberada no sentido clássico. Cresci a ler livros infantis onde tudo era possível; personagens que voavam, portas que se abriam para jardins infinitos. Mas raramente vi essas possibilidades aplicadas ao contexto africano. Era como se a África fosse sempre apresentada como lugar de limites, de carência. Com “Hanami, quis contrariar isso.

A “magia” no filme não foi inventada, ela já lá estava, na forma como as crianças veem o mundo, nos rituais, na paisagem. Apenas a aceitei como parte do universo. Para mim, filmar o realismo mágico foi filmar o real, só que com os olhos de quem está disponível para ver o invisível.

Quando pensamos na Ilha do Fogo no cinema, é difícil não lembrar imediatamente de “Casa de Lava”, do Pedro Costa, por exemplo, e de outros autores portugueses que, depois dele, foram a Cabo Verde retratar as suas próprias ideias sobre o país. O seu filme parece contrariar essas visões externas. Tem alguma posição sobre essa tradição? Vê o “Hanami” como um gesto consciente contra esse olhar?

Sim, tinha consciência de que a Ilha do Fogo já tinha sido filmada por olhares exteriores, e, de certa forma, também o meu é um olhar exterior: como disse sou da diáspora e não nasci naquela ilha. Mas escolhi não me focar nesses outros filmes. Quis concentrar-me no meu percurso, no que desejava contar.

Dito isto, claro que desejo uma mudança: um futuro onde as histórias de Cabo Verde sejam contadas de dentro para fora. Onde a ilha não seja apenas um cenário exótico, mas um lugar com voz própria. O ideal seria que os próprios realizadores cabo-verdianos tivessem os meios e as oportunidades para narrar o seu país. O que já foi feito está feito — não costumo comentar. O que me interessa é o que ainda está por vir, e o que podemos construir a partir de dentro.

Mas existe um momento, diria até, quase de antípoda no seu filme. Há uma energia japonesa, não só representada no título da obra (“Hanami” = palavra nipónica que significa “contemplar as flores de cerejeira”) como também em vários elementos a certa altura. Porquê o de cruzar estes universos tão distintos? Há uma tentativa de aproximação entre culturas que aparentemente estão nos antípodas?

O tema do Japão é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Não queria que o filme fosse só sobre uma ilha isolada no mundo. Queria mostrar que essa ilha também pode estar ligada ao resto do mundo, que há pontes possíveis, mesmo que pareçam improváveis. E, pessoalmente, novamente, enquanto cabo-verdiana da diáspora, cresci com uma certa narrativa sobre África como um lugar distante, quase incomunicável com o resto.

Aceitamos muitas vezes essas narrativas sem as questionar, e isso é doloroso. O que tentei fazer com o “Hanami” foi contrariar isso: criar uma metáfora de aproximação. A presença japonesa não é um exotismo gratuito, é um exercício de empatia, de espelhar experiências humanas aparentemente distantes que, afinal, podem ter muito em comum. 

Posso avançar que a tartaruga presente nesses “espaços de aproximação” funciona como uma subtil representação do Tempo? Ou é apenas a minha leitura?

A tartaruga? Sim, pode representar muitas coisas — o tempo, a continuidade, o ritmo da natureza. Mas prefiro deixar isso aberto à interpretação de cada um [risos].

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Voltando ao território da autenticidade, e novamente àquela reportagem em Cabo Verde: você falou sobre trabalhar com não-atores. Gostaria de saber mais sobre essa escolha e como isso se relaciona com a autenticidade do filme.

Na verdade, essa não foi uma escolha consciente no sentido de querer trabalhar com não-atores. A realidade é que estamos a falar de Cabo Verde, de um país que não tem uma indústria cinematográfica forte, como em Portugal, França ou nos Estados Unidos, onde há uma enorme disponibilidade de atores profissionais. Para fazer um filme em Cabo Verde, na Ilha do Fogo, e especialmente em locais remotos, como o Pacífico, sabia desde o início que ia ser feito com pessoas locais, da própria ilha. Quase todos os atores portugueses presentes no filme nunca tinham feito filmes antes. Isso não era apenas uma escolha minha, era uma realidade do contexto em que estávamos a trabalhar.

No entanto, penso que isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles trouxeram uma autenticidade e uma naturalidade para as suas personagens que não teria conseguido alcançar de outra forma. Mesmo sabendo que não eram profissionais, eles deram muito ao filme. Para mim, trabalhar com não-atores foi uma maneira de ter uma conexão mais direta e genuína com as pessoas e a história, sem as formalidades e os limites que às vezes um ator profissional pode trazer. Foi um grande desafio, mas também uma experiência profundamente enriquecedora.

Só mais uma questão que tem a ver com o trabalho com não-atores. Sabemos que em muitos filmes, quando se trabalha com não-atores, ou atores não profissionais, como muitos preferem apelidar, há sempre esse elemento de autenticidade que é difícil de conseguir com profissionais. Como é que você lidou com a direção dos não-atores? Foi um desafio maior para você, já que, como você mencionou, a maioria deles nunca tinha atuado antes?

Sim, foi um desafio grande, porque, de facto, a maior parte das pessoas que participaram no filme não tinham experiência com a atuação. Mas, ao mesmo tempo, isso foi uma grande vantagem para o projeto. Ao contrário do que poderia parecer, a falta de formação formal em interpretação não limitou as pessoas, porque elas trouxeram algo que nenhum ator profissional poderia oferecer: uma espontaneidade, uma forma muito pura de expressar emoções, que é muito característica de quem vive naquele ambiente.

E a direção foi algo que teve de ser ajustado constantemente, porque era necessário trabalhar mais com as emoções e as reações naturais das pessoas do que com a técnica de atuação. Queria que as personagens fossem verdadeiras, não criadas, e, por isso, o trabalho foi mais de orientá-las para o que a cena exigia, mas sem perder a autenticidade. A maior parte das cenas foi construída no improviso, e as reações, as interações entre os personagens, eram muito naturais. Foi importante também criar um ambiente de confiança com eles, onde se sentissem à vontade para se expressar sem medo de errar.

Claro que houve momentos difíceis, como seria de esperar, especialmente em algumas cenas mais emocionais, mas, no final, tudo isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles estavam completamente imersos nas suas personagens e na história, e isso é algo que é muito difícil de reproduzir com atores profissionais. Para mim, foi uma experiência extremamente gratificante, o de dar voz a quem nunca tinha sido ouvido nesse contexto cinematográfico.

No terceiro ato do filme, há uma forte questão identitária em jogo, principalmente relacionada à protagonista e ao seu conflito com a mãe, e até mesmo à recusa de ir com ela para fora da ilha. Encaro isso como um dos pontos centrais do filme — um questionamento profundo sobre o que significa “ser cabo-verdiano hoje”, na diáspora, e mesmo na ilha. Gostaria de saber o que você pensa sobre isso. Ou, numa questão mais aberta, que “significa ser cabo-verdiano” para você?

Ah, essa é uma pergunta que não tenho uma resposta definitiva, e gosto muito de não ter [risos]. Para mim, a beleza dessa questão é justamente a sua resposta indefinida. O que significa ser cabo-verdiano é pode variar de pessoa para pessoa, de experiência para experiência, e, por isso, também gosto que o filme lance essas perguntas ao espectador, sem impor uma resposta clara.

É claro que, hoje, ser cabo-verdiano tem a ver com o que estamos vivendo agora, mas talvez também com o que já foi vivido e isso não é algo estático. O conceito de identidade é fluido, e também muda dependendo do tempo e da perspectiva. Gosto da ideia de que a resposta não é algo fixo, algo que se pode definir de uma vez por todas. Cada pessoa tem a sua própria experiência, a sua própria vivência da identidade cabo-verdiana. E o filme, para mim, abre esse espaço para reflexão, sem querer forçar uma única visão sobre o que é ser cabo-verdiano.

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Agora, para terminarmos a nossa conversa, gostaria de saber se, sendo esta a sua primeira longa-metragem, que vai ser lançada nos cinemas portugueses esta semana, você já tem novos projetos em mente? Está a pensar em mais uma longa-metragem? Ou algum outro tipo de projeto?

Não sei... A minha resposta é muito simples. Espero que sim, mas também sou muito reservada com relação a isso. Na verdade, não gosto de falar muito sobre projetos antes de estarem realmente concretizados. Para mim, os meus filmes são quase como segredos, protejo muito o processo e os projetos. Considero que as pessoas só devem saber o que o filme vai ser quando ele chegar aos cinemas. Então, mesmo que tenha uma ideia ou sinopse, nunca diria exatamente o que vou fazer, porque para mim, o processo criativo é algo que deve ser protegido até o momento em que o filme se concretize. Espero que consiga fazer a segunda longa-metragem, mas, de facto, ainda está tudo muito no início.

Dizem que a segunda longa é ainda mais desafiadora do que a primeira. Vamos ver. [risos]

Nora Aunor (1953 - 2025)

Hugo Gomes, 14.05.25

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Thy Womb (2012), filme de Brillante Ma Mendoza, o último antes de cair por aí abaixo no miserabilismo ou nos dutertenismos, praticamente inédito em Portugal, salvo uma apresentação no IndieLisboa de 2013. Obra sobre fertilidades que respira como poucas; a vida, abundante, mesmo que apenas no vasto mar filipino, e Nora Aunor, parteira de ocasião, mulher de ventre seco, é a Gaia dessa harmonicidade.

Da sua expressividade à imponência da figura, nega o trágico da própria tragédia, altruísta, com o dever cravado em trazer vida a este mundo. Para além da naturalidade revelada nesse filme, voltaria a trabalhar com Mendoza no cataclismo porno-miséria de “Taklub” (2015).

Diz-se que era uma superestrela nas Filipinas, mas, pelo que vi em “Thy Womb”, foi uma deusa por instantes. Deixo a última minha vénia!

Nicolau, um rapaz de Lisboa

Hugo Gomes, 12.05.25

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Se Richard Linklater capturou uma vida num projecto megalómano em termos conceptuais com "Boyhood" (filmado ao longo de 12 anos, em progressão real), João Rosas acompanha, desde “verdinho” até aos seus “verdes anos”, a história de Nicolau, uma presença nas suas curtas-metragens e culmina por fim na sua primeira longa ficcional (tendo anteriormente estreado o documentário "A Morte da Cidade"). De "Entrecampos" (2013), passando pela desvirginação em "Maria do Mar" (2015), por "Catavento" (2020), até chegar ao demarcador "A Vida Luminosa", não com promessas de fecho, e sim em sugestões de novas abordagens. Nestes termos, Nicolau, sempre interpretado por Francisco Melo (cúmplice desta forma há mais de 11 anos) que, aos 24, acena à ruptura para com o sedentarismo em que parece preso.

Saído de uma relação difícil de dissipar da mente, do coração e do libido, dividido entre trabalhos precários e “de sol de pouca dura”, participante pouco entusiástico de uma banda de garagem que nunca arranca, o nosso protagonista constrói-se ora de forma proustiana, ora autobiográfica (como o realizador já declarou), ora ainda através de uma mistela geracional — do “rasca” ao “mal-amparado” — de futuros escassos mas esperanças intactas, alimentadas pela colheita da sua jovialidade. Sexo, cultura, a mística da tenra idade (como um passeio por Lisboa!), Rosas retrata tudo com exatidão e conhecimento, mantendo a credibilidade de um percurso íntimo. Adivinha-se que "A Vida Luminosa" possa ser lido de múltiplas formas: como “filme de cidade”, como crónica anedótica da juventude inconstante ou até como proeza do amiguismo. Porque, nesta capital tantas vezes solarenga, habitam figuras-chave de uma certa cultura lisboeta, bem como convites generosos a espaços que preenchem este imaginário de nicho.

Reconheço os lugares, as pessoas, até mesmo as situações .. confesso. Mas isso fará de mim um burguês? Uma “esquerda caviar”? São outros tostões, diremos. Mas em "A Vida Luminosa" há uma linha invisível que une diversas vivências, sem estas pertencerem obrigatoriamente ao mapeamento físico da cidade ou à sua cultura. A juventude tem dessas ‘coisas’: reconhece as dores nas nossas, e João Rosas capta isso como poucos no panorama nacional. É fácil apontar o dedo. Difícil é ver neste gesto [quase de autoficção] uma tentativa de diálogo com a modernidade: das mudanças, hesitações, inquietações, passivismos. Uma receita que serve para qualquer problema: político, social ou cultural. Na jornada de Nicolau, vemos o crescimento em ação, a maturidade em reflexão, a busca por afirmação … todos os ingredientes que compõem as maiores epopeias do século XXI, nestes tempos em que o mundo soa-nos esgotado de mistérios. Daí nascer a vaidade de revisitar memórias como quem quer voltar a experienciar o mistério da vida.

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Já me estou a alongar … Fica-se com um filme de passagens — um coming-of-age, como tomámos emprestado da língua anglo-saxónica — evidenciado aqui num “Boyhood às fatias”. Mas não consigo desligar-me do mistério. Ele ainda vive. Nas aventuras em salas da Cinemateca, naquele plano geral da fachada com o letreiro tão luminoso como um farol a orientar barcos errantes; na livraria [Linha de Sombra] captada por um travelling doce, com prateleiras abarrotadas e o catálogo Griffith a destacar-se desse “livredo”; ou na projecção de "The Wedding March" de Eric von Stroheim, onde a magia, ainda conservada pelo mundo despido de romantismos, acontece na luz projetada de um filme vintage, no piano de Filipe Raposo e nas mãos… Os melhores cineastas tendem em filmar mãos… A corresponderem-se nessa hibridez de som e imagem.

Foi desses momentos que João Rosas nos fez suspirar, pelo que a nossa modernidade, cada vez mais desencantada, cada vez mais refém de conceitos de realismo, ainda tem para nos oferecer. Mágica e verdadeiramente. Quero continuar a acreditar!

 

Competição Nacional do 22º Indielisboa

Eduardo Geada apresenta-se ao Desejo ...

Hugo Gomes, 12.05.25

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O desejo do olhar, ou melhor, O Olhar do Desejo. Novo ciclo na Cinemateca, mais um lembrete de que realizadores como Eduardo Geada caminharam entre nós. Porquê esquecê-los? "Sofia e a Educação Sexual", a depravação como jogo de aparências, e a emancipação encontrada na devida sexualidade. Crónicas de um país amordaçado, desesperadamente gritando por novos tempo, novos ventos, outras carnes.

O filme encontra-se igualmente disponível em DVD, numa edição de luxo, graças à parceira com a Academia de Cinema. Ver programação toda aqui.