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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Arte de matar críticos de cinema ... e egos

Hugo Gomes, 13.06.25

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Há semelhanças de carácter entre Ridley Scott e Leonel Vieira: ambos desistiram da sua perseguição autoral e entregaram-se ao repetitivo baile da cor do dinheiro. Embora a jornada de Scott tenha sido, incomparavelmente, mais interessante do que a de Vieira (e o bailado de um mais digno do que a coreografia do outro), são realizadores que adquiriram um ego desmesurado, por vezes afiambrado na colheita de box-office.

Antes de o português se render aos remakes de clássicos salazarentos ou a pontes telenovelescas com o Brasil, ainda se aventurou na internacionalização do cinema português. Fê-lo sem perceber que a sua conquista mundial residia na preservação da identidade e na sua língua. Aqui, fez-se o “bonito” de encantar o anglo-saxónico, recitando o que sabe sobre universos tarantinescos, rodriguescos e outros crimes por tuta-e-meia, convidando actores — aqui (Ivo Canelas, Soraia Chaves, Nicolau Breyner) e para lá de Badajoz (Enrique Arce) — e integra-os um prato de condimentos importados, cozinhado para a pequena tela.

É um filme esquecível. Não vale a pena bater no ceguinho, mas também não convém fazer-lhe festas ou olhar com a condescendência do “só quer contar uma história”, lema e tradição de novatos nestes arcabouços da crítica de cinema. “Arte de Roubar” não tem identidade, nem sequer personalidade. Macaqueia o que vê e o que viu, e ainda “mata” críticos (a célebre referência da adega) como aquele alfaiate que matou as sete moscas num só golpe, aludindo ao erro do rei que pensou tratar-se de gigantes que ameaçavam as suas terras.

Pois bem: Vieira quis vingar-se das más críticas de determinados críticos e de um específico produtor, mas esqueceu-se de contar a história como deve ser. Enganou-nos, e bem, ao tentar soar maior do que é. Por um lado, quem me dera ser um crítico enterrado e assassinado nestas ficções, é sinal que os maiores egos conseguem ferir com poucas mas devidas palavras.

"Temos de impedir que o mundo nos seja roubado": falando com Félix Dufour-Laperrière sobre Morte, Política e Animação

Hugo Gomes, 12.06.25

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"A morte não existe!" É uma ilusão, uma barreira que impede o seguimento das nossas vontades. O medo dela é a nossa limitação. Tudo soando como um estratagema politizado, criado para fabricar mártires de causas. Talvez, como de facto acontece, seja também isso o que "Death Does Not Exist", a quarta longa de animação de Félix Dufour-Laperrière, propõe: uma reflexão sobre o justicialismo, as causas político-sociais e a forma de as exercer numa actualidade saturada de narcisismos e confortabilidade.

Neste filme, apresentado na Quinzena de Realizadores de Cannes e agora sob os holofotes de Annecy, somos conduzidos por um grupo de jovens — rebeldes, sim, mas com causa — prontos a executar o seu plano contra uma família elitista, os DDT, num contexto incerto. Contudo, o ataque (terrorista ou radical, conforme a sensibilidade, justo aos olhos de outros) fracassa com a hesitação de Hélène (Karelle Tremblay), que, num momento de fraqueza, foge do local. É então abordada por espíritos, animalescos ou metafóricos, assim como os seus companheiros tombados.

O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador canadiano sobre esta pertinente animação, um “filme de esquerda”, como muitos críticos não hesitaram em chamar-lhe. E, em resposta, num mundo em que a direita segura o leme, "Death Does Not Exist" acredita na alternativa, mas exige que a pensemos, antes que cedamos a impulsos selvagens.

Quando fiz uma pesquisa rápida do título do seu filme - “Death Does Not Exist” - deparei-me com um estudo científico a afirmar que a morte não existe, que é uma ilusão. É óbvio que o filme não remexe nisso de forma científica, mas não pude deixar de notar a sua igualmente essência ilusória e delirante na sua narrativa. Gostava de pegar nesse título e no simbolismo que carrega, até pela forma como se relaciona com a própria estrutura narrativa.

“Death Does Not Exist" é, para mim, um filme de paradoxos e contradições. O próprio título já é uma contradição [risos]. Essa afirmação — de que a morte não existe — representa a grande esperança das personagens, jovens mais precisamente, do filme. É quase a personificação do desejo de que a vida prevaleça, que lute, vença, que continue, mas, por outro lado, a morte existe e está presente com uma brutalidade imediata no filme. Portanto, o título espelha esse paradoxo entre a esperança e a realidade, entre uma abstração idealista e a concretude violenta do real.

É por isso que o filme dá essa sensação de estar preso num ciclo, num loop sem saída. Para mim, há também um pacto … quase em queda … entre Hélène e Manon. Elas partilham esse momento de queda, uma queda circular, como se não houvesse escapatória e ainda assim, tudo o que acontece no filme, na minha visão, é real. O que Hélène vive tem uma verdade. Todas as possibilidades que o filme explora, por mais oníricas ou abstratas que pareçam, são reais dentro daquele mundo.

Diria que este é um filme muito político … Acredito mesmo que seja. Só que há algo curioso: os antagonistas, praticamente, não têm rosto. Não sabemos exatamente quem são. Percebemos que pertencem à classe alta, à elite, mas o que fizeram, ou como agem concretamente, não é detalhado, e isso é interessante, porque o cinema político contemporâneo muitas vezes exige uma certa urgência e clareza em relação ao inimigo: quem é, como combatê-lo. Mas no teu filme, parece estar mais centrado no corpo, no “eu” físico e íntimo, e não tanto no inimigo externo.

Sim, foi intencional. Quis que o filme fosse uma fábula trágica e fantástica. Há um certo grau de abstração que faz parte da estrutura narrativa de uma fábula. O meu objetivo era colocar em cena, com intensidade, essas tensões, esses desafios, essas contradições, e, com isso, permitir que o filme possa ser lido em vários níveis: sobre ação direta e violência, como também, sobre comprometimentos, relações, lealdades e os compromissos com que todos lidamos na vida.

A ausência de um contexto político preciso foi deliberada. Essa ambiguidade é essencial para transmitir o desejo profundo, a convicção difusa que muitas vezes motiva ações extremas. Frequentemente, quem protagoniza esses atos de violência direta são jovens, e há uma abstração natural na forma como se relacionam com a ideia de tomar esse tipo de risco físicos e morais, como, por exemplo, apontar uma arma a alguém.

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Félix Dufour-Laperrière

O objetivo nunca foi retratar um contexto específico, como o Portugal contemporâneo ou o Quebec atual. Não era esse o foco. Quis criar uma fábula trágica mais universal: sobre as nossas ações políticas, os nossos gestos, e sobre as consequências das nossas crenças, convicções e compromissos.

Sei que, como acontece com muitas obras de animação independentes, são anos e anos de produção, design, desenvolvimento conceptual… mas agora, ao estrear este filme, é inevitável não pensar no caso de Luigi Mangione, nos EUA. Temos ali uma figura ligada à elite, o justicialismo, o uso da violência como resposta a uma injustiça percebida. Sei que o seu filme já vem de muito antes, portanto como lidas com essa coincidência?

Sim, é uma coincidência [risos]. Comecei a escrever o guião há cerca de dez anos. Depois veio o financiamento, a pré-produção, a produção… portanto, nada disso foi planeado. Repara, há algo estranho na atualidade do filme, e penso que isso acontece porque lidamos com questões eternas: o que fazemos quando o mundo se torna insuportável? O que fazemos com as nossas convicções mais profundas, com aquilo em que acreditamos? O filme lida com um paradoxo: o da insuficiência. Cuidar daquilo que amamos pode não ser o suficiente. Por outro lado, destruir o que existe também não é solução, porque acabamos por não cuidar do que realmente importa. Essa contradição atravessa o filme.

Quanto ao caso específico que refere, como toda a gente, tenho sentimentos contraditórios. Não acredito na violência como solução. Ela é impossível de controlar. Os efeitos colaterais, a resposta do poder instituído … tudo isso nos escapa. Ao mesmo tempo, também acredito que o status quo, tal como está, é insustentável. Estamos presos entre duas impossibilidades: a violência como meio e a permanência do que já existe. É um equilíbrio muito difícil de encontrar. 

Diz-se que toda revolução é, de alguma forma, violenta …

…  e que o contra-ataque também é violento. A violência é impossível… mas está por todo o lado. Explode em todas as direções … seja a violência do Estado, a violência política, ou outras formas.

Gostava de fazer uma pausa na parte política e falar sobre o design do filme. Li várias críticas aquando da exibição em Cannes que invocavam Miyazaki, chegando mesmo a referir “Princess Mononoke”, muito por causa da presença do lobo [risos]. Essa foi uma influência consciente para ti?

Não, não foi uma influência consciente. Mas acho que a qualidade universal da obra do Miyazaki se difunde no nosso inconsciente coletivo. Portanto, embora não tenha sido algo deliberado, não vou contrariar essa interpretação, porque reconheço que há algo no seu cinema que já faz parte da nossa cultura visual comum. No meu caso, os animais, como as ovelhas, os coiotes, os beija-flores, os pássaros que cantam, são encarnações de certas ideias do filme. Representam a fragilidade da vida, a presença física imediata, a dor que podemos sentir, e também essa perseguição eterna entre predador e presa. É uma dança circular entre a vulnerabilidade e a ameaça.

Tenho a sensação de que essa associação com Miyazaki foi uma leitura crítica. Uma coincidência interpretativa.

Então, gostava que me falasse um pouco mais sobre as suas influências — especialmente no campo da estética e da animação em si. Houve uma cena em particular, a do tiroteio, que me fez invocar os videojogos do género shoot-em-up. Foi algo intencional?

É uma leitura interessante. Aquela sequência é construída a partir de um ponto de vista artificial, a câmara segue o movimento da Hélène, como se ela tivesse participado logo desde o início da ação. Mesmo que, na primeira ocorrência, ela ainda não se junte ao grupo, a câmara continua a avançar, como se o seu percurso interior já estivesse em movimento. Ela continua em frente, até chegar ao momento em que ouve a velha senhora.

Na segunda ocorrência: quando decide, de facto, participar na ação, o movimento é semelhante, mas agora ela está plenamente envolvida, avança ao lado das suas companheiras. Portanto, a câmara acompanha essa progressão interior e exterior, refletindo a sua tomada de decisão.

Que tipo de animação usaste no filme? É rotoscopia?

Não, não é rotoscopia. Todo o filme foi desenhado à mão, diretamente numa mesa gráfica (são 12 desenhos por segundo). Não usamos vídeo como referência direta. Para a sequência do ataque — aquele plano de sequência — fizemos uma exceção: criámos uma referência visual. Desenhámos uma maquete da cena e usamos uma câmara digital para estabelecer alguns limites e orientações visuais. Isso deu-nos um tipo de "guia" espacial para podermos desenhar com consistência. No geral, o filme foi todo animado sem rotoscopia. É animação feita do zero.

Quanto às referências, há duas que me marcaram muito. A primeira foi Satoshi Kon, com o “Perfect Blue”, um anime de 1999, se não me engano. É uma obra extraordinária, feita com um orçamento modesto, mas com uma mise-en-scène absolutamente brilhante. A segunda foi Alexander Sokurov, especialmente o filme “Faust”. Embora também admire “Russian Ark”, foi “Faust” que me inspirou mais diretamente, sobretudo a sequência do círculo infernal, que ficou-me muito presente enquanto escrevia o guião e pensava na encenação.

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Há uma ideia que me ocorreu ao ver o teu filme, especialmente na forma como acompanhas a protagonista, Hélène, e o modo como ela foge da zona de conflito. Isso remete-me a uma questão muito atual: o narcisismo no ativismo contemporâneo. Hoje em dia, há uma tendência para fazer ativismo a partir da zona de conforto, sem correr riscos reais, e muitas vezes, esse ativismo serve mais como estratégia de autopromoção. Uma publicidade pessoal.

Sim, exatamente. Publicidade. Muita publicidade pessoal disfarçada de posicionamento. Mas, no fundo, a Hélène acaba por fazer uma escolha. Ela decide entrar, participar ativamente no ataque com as suas companheiras e paga o preço por isso. E isso é um paradoxo interessante: ela não o faz apenas por uma motivação política, mas também por fidelidade às ligações que tem, com Mark, com Manon, com o grupo. Ela sente que tem um dever afetivo. Para mim, isso faz parte do dilema central do filme.

É claro que há uma responsabilidade coletiva — em relação ao mundo e à sociedade em que vivemos — mas há também uma responsabilidade íntima, em relação àquilo e àqueles que amamos. Essas duas dimensões convivem, colidem, alimentam-se.

No final, Hélène não quer dominar o mundo. Ela quer uma pequena parte dele, mas quer vivê-la por inteiro. Esse desejo, para mim, traduz uma responsabilidade partilhada: coletiva e íntima.

Neste momento o filme estreou no Festival de Annecy, mas anteriormente fez presença na última Quinzena de Realizadores, em Cannes, e, provavelmente, entrará também num circuito em salas de cinema no Canadá. O que espera da reação do público ao seu filme, como gostaria que reagissem?

Tenho duas grandes esperanças. A primeira é que o filme desafie, de alguma forma, a posição de cada espectador, que provoque uma reação, um movimento interior, que confronte as suas próprias contradições.

Eu vivo num país pacífico. Sou um homem branco, de classe média. Tenho dois filhos que amo. A vida, no fundo, é boa para mim, mas mesmo assim, sinto uma urgência. Uma necessidade urgente de honrar a responsabilidade que temos para com o mundo. No meu caso, isso passa por olhar para o Quebec, com todas as suas contradições, e assumir que, apesar dessas falhas, temos um certo poder coletivo. Mas só se formos capazes de encarar essas contradições de frente.

Talvez o filme não leve as pessoas diretamente à ação, mas espero que alimente uma reflexão sobre o estado atual do mundo e esse sentimento frustrante de impotência, de incapacidade de mudar ou agir, e, por outro lado, espero que o público também desfrute do lado visual. A mise-en-scène animada é muito singular, há um uso particular da cor, da composição, e da presença animal. É um tipo de animação pouco comum.

Gostava que as pessoas se divertissem, que sentissem prazer e curiosidade em descobrir o que este tipo de linguagem animada pode oferecer.

Ao pesquisar mais sobre o seu filme, encontrei alguns comentários e críticas que o classificam como um “filme de esquerda”. Tal designação o incomoda?

De forma alguma. Obviamente que é um filme de esquerda [risos]. Acredito profundamente que é necessário redistribuir a riqueza, proteger o mundo em que vivemos e torná-lo habitável para todas as pessoas, e se isso implicar tomar decisões difíceis, então que assim seja, são decisões necessárias. Não tenho qualquer vergonha em ser de esquerda. Pelo contrário. O problema é que o mundo está a caminhar, cada vez mais, para a direita. Só que essa viragem é uma farsa.

Estamos a ser distraídos com guerras culturais, focados no lado mais frágil e vulnerável da identidade, enquanto o nosso mundo, os nossos recursos, estão a ser-nos confiscados. Acho que deveríamos voltar a focar-nos no lado luminoso da identidade, aquele que é feito de encontros, de diálogo, de partilha, de tensão criativa. É essa a dimensão da identidade que devemos celebrar: algo em constante evolução, que nos une e não nos isola. Temos de impedir que o mundo nos seja roubado.

Não quero terminar esta conversa sem falar sobre o som, que considero um dos pontos mais fortes do seu filme. A edição sonora opera quase como sensorialismo. Há momentos em que sentimos literalmente a carne a rasgar-se …

Sim, o som foi uma prioridade desde o início. O essencial para tornar o filme mais sensorial e isso é ainda mais importante na animação, onde não há som ambiente gravado no local. A imagem vem completamente “nua”, e somos nós que decidimos onde e como aplicar o som. É um processo muito preciso e consciente. Trabalhámos tanto com momentos de alta densidade sonora como com silêncios e minimalismo. Essa variação foi intencional para acompanhar a jornada da personagem e a travessia da floresta.

O som serve aqui como um segundo nível de leitura. Não é um som literal, não está lá apenas para ilustrar. Nem o espectador, nem nós o lemos de forma imediata. O som carrega sentidos que atuam de forma indireta, emocional, quase instintiva. Como disse, há algo visceral — uma presença imediata — que só é possível porque, em animação, temos uma liberdade total para esculpir o som como quisermos.

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Sei que ainda é cedo para esta pergunta: afinal, a animação não é como filmar em imagem real, como disse, este filme envolveu cerca de dez anos entre escrita e produção, e sei que o processo de animação é longo e cuidadoso. Mas não resisto a perguntar: tem novos projetos? Já há algo já escrito?

Sim, estou a iniciar o processo de financiamento já no próximo mês. Aliás, já comecei a animar, com uma pequena equipa. O novo projeto é um filme intitulado “Everything in its Place”, uma reflexão sobre ordem e desordem, tanto nas classes sociais, como na arte e nas relações íntimas. Portanto, continuo a trabalhar dentro do mesmo território político, mas agora com um foco mais direto na organização social, nas estéticas do processo criativo e na nossa vida íntima; no dia a dia, na casa em que vivemos, e nesse equilíbrio (ou desequilíbrio) constante entre a ordem e o caos. Há três personagens que exploram estas questões de ordem e desordem. 

Ainda hoje existe a ideia do cinema de animação ser somente uma indústria “infantil”, mas o Félix contraria esse senso comum, faz animação política, com um peso temático adulto.

Sim, é verdade que a indústria da animação está muito orientada para filmes de família e para crianças. Acredito que, no seu núcleo mais essencial, que a animação é um diálogo profundo entre o cinema, o desenho e as artes visuais. Um diálogo com o movimento, com a imagem animada enquanto linguagem. A animação pode ser para adultos. Pode ser para todos. Mas o que acho realmente absurdo é esta ideia de que desenhar é algo "não inteligente", ou que desenhar é "para crianças".

Não é. O desenho é, obviamente, também para adultos, e mais: há uma inteligência própria no desenho, nas artes visuais. Uma capacidade de nomear o mundo, de tocar a realidade de uma forma que só o traço, a pintura, a arte visual conseguem e a animação participa dessa força, dessa forma única de pensar e expressar.

Amor em tempos de acaso

Hugo Gomes, 11.06.25

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O filme de Peter Chelsom situa-se como uma daquelas obras que, olhando em retrospectiva, se confirma como um “novo clássico” para os incuráveis papa-romances e amantes de amores superlativos, com um pouco de ‘chalupice’ horoscópica à mistura, é o destino que há de ditar as nossas vidas. Os “marklismos”, alicerçados nesta preservação e difusão da cultura pop, aquecem-lhe a aura de plano perfeito para casais em dias frios, mas convém dizer que, para além da sua trapaçaria sem espinhas, dos clichés e inverosimilhanças ao serviço do espectáculo do “vomitado romântico-beato”, não é incerto que encontremos aqui qualquer verdadeiro charme.

A prescrição é evidente: deste tipo de comédias romantizadas e sem pingo de amor ao realismo, Hollywood tresandava. Amámo-las, é certo, com juras e paixões declaradas aos seus actores e aos argumentos ‘limpinhos’. Há quem refira “The Clock” (Vincent Minnelli, 1945) como antepassado longínquo … perdoa-me Kathleen Gomes … e talvez se faça aí a sombra e a luz deste relance. Porque “Serendipity”, palavra sem tradução, relacionada com uma espécie de acaso (feliz, sublinhe-se) pavoneia-se como uma dessas comédias azeiteiras, com os dois perfeitos desconhecidos que encontram-se numa daquelas atribuladas vendas de Natal, e em Nova Iorque (claro!!). Perante a química e a emoção fervente, decidem jogar uma partida com o destino, tão apregoado por Sarah (Kate Beckinsale, anos antes de vestir o cabedal ao serviço do seu marido Len Wiseman). Ela escreve o número de telefone numa cópia de “Amor em Tempos de Cólera”, de Gabriel García Márquez; ele, Jonathan (John Cusack), numa nota de um dólar, na esperança de que esse tal fatum os reúna.

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Sete anos passam, e essa brincadeira com a cosmologia faz das suas. A crença e a descrença entrelaçam-se nesta narrativa, mas, para lá das cascatas de mel, vislumbra-se um ponto — e depois outro — numa sequência algo tatiesca num recinto de golfe, ou quase “billy-wilderesca”, com os secundários a entrarem com graça na trama (de Jeremy Piven a Eugene Levy). No fim dos dias, com a neve a cair e a melodia natalícia a fazer-se ouvir, fecha-se mais um conto hollywoodesco de cinismo amoroso, pronto a fazer-nos acreditar no inacreditável. O charme está aí: passado todos estes anos e já na galeria da melosidade, “Serendipity” ainda se aguenta nas ‘canelas’, tentando destacar-se da perfeita nulidade, com umas quantas vénias a esse classicismo. Acreditem, se quiserem, nestes acasos felizes!

Andrea Segre: "hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza"

Hugo Gomes, 11.06.25

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

A biopic enquanto motivação política, aliás, de políticas, o realizador Andrea Segre não se distancia no seu processo de idealização e concretização fílmica, assentando na máxima de “tudo é politizado”, basta saber interpretar.

Com anos e anos dedicados a obras sobre migração e imigrantes (muitos desses filmes ainda inéditos no nosso panorama) regressa aos cinemas portugueses com um retrato de Enrico Berlinguer, o carismático secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), desde o seu perfil humano, capaz de conquistar eleitores, passando pela ruptura ideológica para com os ideais vindos do Leste. O filme atravessa ainda o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (aqui interpretado por Roberto Citran), ferida ainda aberta na sociedade italiana e momento-charneira na descrença crescente nos aparelhos da esquerda.

Berlinguer: La grande ambizione” responde às questões sem nunca, enquanto filme, subir sozinho a um palanque para se manifestar. É a biopic enquanto filme político e os seus prognósticos de final de jogo. Como celebração da estreia nas nossas salas, o Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre a obra e tudo o que nela gravita. Tudo… já sabem: político.

A minha primeira pergunta prende-se com a génesis do projeto, mas gostaria de saber num ponto de vista enquanto idealização do projeto. O que esperava extrair da história de Enrico Berlinguer num mundo como este que nos deparamos?

Quando comecei a pensar neste filme, foi no final de 2020. O mundo era bastante diferente daquele que vemos. Por exemplo, ainda não havia a guerra na Ucrânia, nem esta escalada do conflito de Gaza, nem Giorgia Meloni estava no governo em Itália, nem sequer Donald Trump ainda havia reconquistado a presidência dos EUA. Portanto, o contexto global era outro.

A ideia surgiu-me por duas razões principais. Primeiro, porque me parecia uma grande lacuna no cinema italiano o facto de nunca ter sido feito um filme, não apenas sobre Enrico Berlinguer, como também sobre a comunidade do Partido Comunista Italiano (PCI) e o papel fundamental que esse partido teve na história e sociedade italiana e até no contexto europeu e mundial. O PCI desempenhou um papel muito relevante, sobretudo nos anos 70, e é surpreendente que nunca tenha havido um filme que explorasse essa dimensão. Não é uma história pequena … estamos a falar de uma enorme comunidade: cerca de dois milhões de membros e cerca de doze milhões de eleitores.

A segunda razão tem a ver com o presente. Tive a sensação de que essa história — a história dessa enorme participação coletiva, dessa grande ambição política — podia dialogar com a crise atual da participação política e da democracia. Ao acompanhar a história de uma comunidade inteira que acreditava num sonho e lutava por ele, dedicando tempo e paixão a uma ambição coletiva, podemos refletir sobre como essa forma de participação política se foi perdendo no mundo de hoje. Entretanto, enquanto estávamos a desenvolver o filme, o contexto político ia mudando. O crescimento da extrema-direita, a diminuição da participação nas eleições, a crise da democracia como sistema, tudo isso, agravado por conflitos armados, tornou ainda mais evidente a relevância e a atualidade dessa história.

O sucesso do filme em Itália, e agora também a nível internacional (pois já foi vendido para mais de 25 países), parece confirmar essa ligação entre a memória histórica e a situação atual. Acho também muito interessante que muitos jovens tenham ido ver o filme: em Itália tivemos cerca de 700 mil espectadores nas salas de cinema, e um terço deles tinham menos de 30 anos. Isso mostra que há curiosidade, há interesse e especialmente entre os mais jovens, por esse tipo de reflexão.

Uma coincidência é que o filme vai estrear em Portugal num momento em que tivemos uma eleições legislativas recentes e que o resultado revelou uma dizimação da esquerda em todas as frentes e uma subida acrescida da extrema-direita e do populismo. Mas o que aconteceu em Portugal é um reflexo do que está a acontecer na Europa, e não só, de um distanciamento dos eleitores com a esquerda. Acredita, e tendo em conta o tempo retratado no seu filme, que essa queda é um sintoma da perda identitária da esquerda política? 

A esquerda política, não só na Europa, mas especialmente na Europa, está hoje a enfrentar uma clara crise de identidade. Originalmente, a identidade da esquerda europeia, particularmente da Europa latina, estava fortemente ligada à ideia de construir uma sociedade não capitalista. Mas, durante os anos 80 e 90, essa esquerda decidiu abandonar a proposta de um sistema alternativo ao capitalismo. Ao invés disso, integrou-se no próprio sistema capitalista, passando a propor apenas uma moderação dos efeitos do mercado na sociedade. Fê-lo, no entanto, sem apresentar uma posição verdadeiramente alternativa ou um modelo claro de transformação. Isto levou os eleitores, os cidadãos, a questionarem-se: “onde está a diferença?” Se a esquerda já não representa uma proposta distinta, é natural que as pessoas deixem de votar ou escolham votar em quem defende, de forma mais clara, o sistema capitalista e a sua segurança e estabilidade.

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Andrea Segre e o ator Elio Germano

O que estamos a viver hoje é, em muitos países, uma radicalização da direita. A extrema-direita encontrou espaço para crescer justamente porque a esquerda deixou esse espaço vazio, porque deixou de afirmar uma posição firme, clara e alternativa. Neste contexto, a ausência de fronteiras ideológicas bem definidas abre caminho à radicalização: hoje, a direita sente que pode ir mais longe, ultrapassar os limites, porque a esquerda já não representa uma força radical, já não se opõe com firmeza. E isso é um problema.

Gostaria que me falasse do seu Enrico, mais concretamente Elio Germano, ator cada vez mais presente na indústria italiana (isto na perspetiva portuguesa das produções que nos chegam é claro), e de que forma foi essencial para humanizar a personagem.

Ele foi a segunda pessoa com quem falei sobre o projeto. A primeira foi Michele Pettenello, o meu co-argumentista. Depois disso, falei diretamente com o Elio [Germano], ainda antes de apresentar a ideia à produtora. Conhecia-o pessoalmente e, além disso, tínhamos estado juntos em várias lutas sociopolíticas em Itália, enquanto militantes. Nunca tínhamos trabalhado juntos, no entanto. Por isso, liguei-lhe e contei-lhe a ideia, porque tinha a certeza, antes de mais, do seu talento artístico extraordinário.

Mas também acreditava que o corpo dele podia ser o corpo de Berlinguer. Uma das características mais marcantes de Berlinguer é que, embora fosse um líder, era uma figura muito frágil enquanto ser humano: magro, pequeno, discreto. Não era fisicamente imponente, nem provocador na forma como se apresentava. Se pensarmos, por exemplo, em figuras como Mussolini ou Fidel Castro, Berlinguer era exatamente o oposto.

Pois, Mussolini é um bom exemplo, ele impunha uma grandeza e autoridade pela postura. Por exemplo, ele discursava sempre com a cabeça ligeiramente levantada com jeito de altivez. 

Sim, porque do outro lado do espectro político, figuras como Stalin e Fidel Castro encarnavam um corpo demagógico: uma presença física marcada por força e autoridade. Berlinguer era o oposto disso. Ele era frágil, silencioso, de certa forma até reservado, fechado. E foi precisamente por isso que achei que o corpo de Elio seria o certo para o papel graças à sua delicadeza física. Mas havia também uma terceira razão. Sabia que podia envolver o Elio num filme que não fosse apenas sobre Berlinguer, ou seja, não apenas sobre uma figura heroica da história, mas sim sobre um homem que dedicou a sua vida a uma comunidade, ao sonho coletivo dessa comunidade.

O objetivo era fazer um filme com Berlinguer no centro, sim, mas com a alma e o corpo dessa comunidade presentes, e de facto, embora o Elio esteja no núcleo do filme, este está rodeado de pessoas: temos 50 atores e milhares de pessoas comuns, tanto em cenas de ficção como em imagens de arquivo. É um filme sobre um pedaço do povo italiano e sobre o seu sonho. Sabia perfeitamente que o Elio seria capaz de encontrar uma forma de não tornar Berlinguer uma figura isolada, mas sim de o colocar no seio dessa comunidade e de o tornar parte dela.

Talvez já saiba a resposta desta pergunta, mas necessito-a de uma confirmação para avançar com a seguinte. “Berlinguer: La grande ambizione”, mesmo sendo uma biopic na taxonomia fílmica, é um gesto político?

Sim, claramente é um filme político.

Certo. A narrativa do filme é intercalado com imagens de arquivo. Nesse sentido, gostava de perguntar: como é que estas imagens, enquanto matéria histórica e emocional, contribuem para a intenção política do filme?

A dimensão política do filme está intimamente ligada à sua linguagem cinematográfica. Acredito verdadeiramente no poder do cinema imersivo. Acho que o cinema tem essa capacidade única de te levar a um lugar onde, de outro modo, não poderias estar. Para ativar esse mecanismo de imersão, preciso de uma câmara — e de uma forma de a usar — que seja ela própria imersiva. É por isso que convidei Benoît Dervaux, o diretor de fotografia de vários trabalhos dos Dardenne, para ser o DOP deste filme. Ele é um mestre em usar a câmara para te transportar para dentro do mundo que está a filmar.

Também preciso de atores capazes de entrar nessa realidade, de a habitar, mental e fisicamente, como fez o Elio [Germano], e como fizeram também os outros. E, por fim, preciso de trabalhar na fronteira entre a ficção e a realidade. Essa fronteira é perigosa porque, se nos afastamos demasiado para um dos lados, podemos perder o equilíbrio. Mas, ao mesmo tempo, é uma fronteira criativa, se soubermos como habitar esse espaço intermédio. O objetivo não é criar ambiguidade, e ao mesmo tempo gerar uma confusão emocional produtiva, onde a transição entre ficção e realidade seja contínua e envolvente.

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Berlinguer: La grande ambizione (2024)

No filme, é claro que há imagens de arquivo: não estou a escondê-las. É o meu filme. Mas na montagem trabalhámos para que a fluidez entre a ficção e a realidade fosse emocionalmente contínua. Não queríamos uma estrutura em que a realidade explica algo e depois a ficção encena esse algo. Queríamos que tudo fosse vivido de forma integrada, como uma experiência imersiva, ao mesmo tempo dramática e realista, onde as duas dimensões cooperam. Foi um processo longo. Desde o início da escrita do guião, tive comigo um pesquisador de arquivo. Vi muitas imagens com o Marco, o co-argumentista, mas não só com ele: mostrámos arquivos aos atores, ao designer de produção, ao figurinista, ao diretor de fotografia... Durante a preparação, todos assistimos juntos a muito material de arquivo. E depois, claro, trabalhámos intensamente sobre essas imagens na sala de montagem. Diria que, pelo menos 70% do tempo de edição foi dedicado a encontrar o equilíbrio certo entre o que criámos e o que herdámos dos arquivos.

Decidimos que o material de arquivo devia estar cheio de rostos, de gente. Nunca os contei exatamente, mas devem ser entre 400 e 500 rostos diferentes nas imagens de arquivo. Porque queríamos transmitir a ideia de que aquela grande ambição não era a ambição de um único indivíduo, mas sim um sonho verdadeiramente coletivo.

Existem vários filmes que abordam o incidente de Aldo Moro, nem seja no propósito de contexto temporal. O seu filme, porém, o retrata como aquilo que verdadeiramente é na sociedade italiana, uma ferida, um trauma, e avança com as sequelas desse ato. esse acontecimento marcou o início do declínio da esquerda em Itália, a sua evaporação no campo das ideias, abrindo caminho ao avanço de forças conservadoras, populistas e até extremistas, como as que dominaram o cenário político nos anos 90, com figuras como Berlusconi e idem?

Uma das questões problemáticas da esquerda, e talvez uma das razões pelas quais fiz este filme, tem a ver com a forma como contamos a história do caso Aldo Moro. Um dos objetivos do filme foi também abordar essa história a partir do ponto de vista de Berlinguer e do Partido Comunista Italiano. É quase um lapsus freudiano coletivo o facto de nunca termos contado essa perspetiva. Fez-se muitos filmes sobre o caso Moro — filmes excelentes, realizados por cineastas importantes como Marco Bellocchio, só para dar um exemplo. Não tenho absolutamente nada contra esses filmes. Mas é de notar que, em todos eles, o ponto de vista de Berlinguer e do PCI esteja ausente.

E no entanto, o rapto e o assassinato de Aldo Moro foi um dos acontecimentos políticos mais extraordinários do século XX na Europa - raptar e assassinar um primeiro-ministro é algo extremamente raro, tem um peso histórico imenso. O que aconteceu é que esse assassinato serviu, claramente, para travar o avanço de Berlinguer e do PCI. Formalmente, o rapto foi levado a cabo pelas Brigadas Vermelhas. Mas até hoje não é claro quem as ajudou a fazê-lo. Se perguntares a qualquer italiano quem matou Aldo Moro, todos te dirão: “As Brigadas Vermelhas… com a ajuda de alguém”, e esse alguém nunca foi identificado. Porque é evidente que as Brigadas Vermelhas não teriam conseguido levar a cabo uma operação tão complexa sem ajuda de dentro do sistema … de alguém com poder se me entendes.

E o porquê dessa ajuda? Porque assassinar Aldo Moro foi uma forma de travar o projeto de abertura democrática que ele estava a tentar concretizar com Berlinguer. É muito claro, e, no entanto, nunca fizemos um filme que chegue ao caso Moro vindo “de trás”, dos cinco anos anteriores, que são fundamentais para entender por que razão ele foi raptado. Se quisermos realmente compreender esse acontecimento, temos de começar em 1973, com o golpe no Chile e a morte de Salvador Allende. A partir daí, percebe-se o significado histórico do que se passou com Moro.

Quando Moro foi assassinado, o projeto político de Berlinguer morreu com ele. Berlinguer ainda viveu mais cinco anos e tentou relançar a sua proposta, com um novo conceito chamado “Alternativa Democrática”: um projeto politicamente e intelectualmente interessante, mas que não teve o mesmo peso, a mesma força, que os cinco anos anteriores. Foram esses cinco anos que o filme tenta contar — os anos em que havia uma verdadeira possibilidade de mudança do poder numa democracia ocidental. O PCI tinha a maioria, administrava todas as grandes cidades, de Milão a Palermo, de Nápoles a Veneza. Era a maioria na sociedade, e, por isso, era legítimo que participasse no governo.

Mas isso não foi possível, por causa das estruturas invisíveis de poder - os chamados “Palácios do Poder, tanto em Itália como a nível internacional, e essa é uma enorme questão democrática. Hoje, compreendemos muito bem o que significa viver com problemas de democracia, quando há interesses que interferem nas escolhas legítimas dos povos. E é também por isso que este filme quer ligar a memória de Berlinguer ao presente.

No circuito português, conhecemo-lo sobretudo por “Io Sono Li” (2011), a história de uma imigrante que venceu a Competição da Festa do Cinema Italiano em Lisboa e estreou comercialmente nos nossos cinemas. Desde então passaram-se 13 anos até à estreia de “Berlinguer: La grande ambizione”, o seu segundo filme a estrear em sala em Portugal. Durante esse hiato, realizou vários outros filmes, muitos deles centrados na questão da migração. Hoje, esse tema tornou-se altamente politizado e central em várias eleições. O que continua a ver, tanto do ponto de vista cinematográfico como político, nesse tópico, para persistir enquanto foco recorrente do seu trabalho?

Fiz muitos documentários e filmes de ficção sobre migrações, e muitos jornalistas perguntam-me: “Por que estás tão interessado no tema da imigração?” Tenho duas respostas simples para isso.

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Io Sono Li (2011)

Primeiro: foi precisamente através do tema da migração que cheguei ao cinema. Eu não estudei cinema formalmente, o meu percurso académico é em sociologia. Tenho um doutoramento em Sociologia dos Processos Culturais, e o meu tema de investigação era a relação entre comunicação social e migração. Comecei, portanto, como sociólogo e foi nesse contexto que comecei a usar o cinema como ferramenta para contar as histórias das pessoas com quem fui-me cruzando no trabalho de campo. Ou seja, o cinema entrou na minha vida por causa do meu interesse pelas migrações.

Segundo: sempre senti que a migração era o grande tema que estava a transformar o mundo, e então… por que motivo não haveria de falar sobre isso? A migração é uma questão que está a mudar os equilíbrios dentro das democracias, dentro das sociedades.

Hoje isso é mais claro do que nunca: a extrema-direita está a conquistar poder em muitos países, usando a migração como arma política. Estão a apontar o dedo aos estrangeiros pobres, ao invés de responsabilizar os seus próprios membros ricos e privilegiados.

E quanto a novos projetos? Voltará ao tema da imigração?

Neste momento, ainda estou a pensar no que farei a seguir, mas, para ser sincero, não tenho nada decidido. Ainda estou muito envolvido com a distribuição de “Berlinguer: La grande ambizione”, que, como referi, está a correr muito bem a nível internacional. O meu cérebro ainda está bastante ocupado com este filme. O que posso partilhar, no entanto, é que estamos a considerar montar um documentário sobre o impacto do próprio filme na sociedade italiana. Durante a distribuição em Itália, levei comigo a minha equipa — o diretor de som, o comentador — e gravámos várias discussões, encontros e situações ligadas à exibição do filme.

Nestes dias tenho andado a rever essas imagens, e talvez possamos montar um documentário a partir disso: um filme sobre as reações, sobretudo dos jovens, e sobre a relação entre esta memória (a de Berlinguer e do PCI) e o presente. Portanto, talvez o meu próximo filme seja esse: um documentário sobre o efeito que Berlinguer teve. Ainda está em aberto, mas é uma possibilidade muito real.

A "americanização" do cinema dos "portugueses de bem" ...

Hugo Gomes, 05.06.25

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Não há tanto tempo assim … semana passada vá … numa entrevista destinada a promover o seu último trabalho, Vicente Alves do Ó afirmou com todos os seus dentes que os “portugueses não se reveem no seu cinema, naquelas histórias”. A ‘bujarda’ foi lançada sob o escudo de “Os Portugueses”, essa sua obra, enquanto, em portas da estreia, conversava com colegas críticos, que referiam-o como algo obsceno e oportunista aos simbolismos do 25 de Abril. Nesse quadro, a questão impõe-se pertinente: serão os críticos dignos da nacionalidade portuguesa?

Antes de mais: o que são, afinal, os “portugueses”?

À data do qual me dirijo a esta (qualquer coisa) de crónica, ainda não meti olho no filme do Alves do Ó, mas não pude notar nesse seu discurso uma perigosamente proximidade de um preciso slogan populista. A da invocação “portugueses de bem”, tentativa de dividir águas entre um certo ideal de portugalidade e o respectivo simbolismo cultural. Confirma-se, porém, que o realizador joga do outro lado do campo ideológico. Continuando, talvez os meus colegas estejam enganados: não seria a primeira vez, ou talvez eu próprio esteja a ser injusto ao associar o realizador de “Al Berto” e “Florbella” a essa lógica que nos atravessa com inquietude nestes incertos ventos, marcados por um clima político instável e forças emergentes glutonas do caos e das inúmeras frustrações. Caixas de bolos sortidos de frustrações é o que é!

Mas deixemos Vicente Alves do Ó sossegado, pois não é nele que desejo centrar-me. Quero, sim, reter-me na imagem acima (a do lado esquerdo): a tal “americanização do cinema português”, no 10º Encontros do Cinema Português, evento promovido pela maior distribuidora actualmente em actividade no país, a mesma que, não há muito, foi incapaz de promover um filme da sua própria chancela distributiva. “Os Infanticidas” angariaram uns vergonhosos 70 espectadores [post-it]. A tendência é sempre culpar os filmes e nunca os públicos. O contrário poderá suscitar reacções por parte de quem se sente ofendido, culminando em acusações óbvias de elitismo e condescendência deste género (peço perdão pela aludida interpretação) . No entanto, se olharmos com atenção para o que se consome nas salas de cinema em Portugal, perceberemos bem a escassez de paladar entre os múltiplos e diversos públicos, e não falamos apenas, nem sequer produção restrictamente “portuguesa”, nem dos públicos enquanto somente “gente da nossa terra”.

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Os Portugueses (Vicente Alves do Ó, 2025)

Assim, “americanizar” o cinema luso, como alguns propõem, talvez através das guinadas de Leonel Vieira, no mimesis de segunda aos formatos hollywoodescos ou das cuspidelas televisivas lançadas em grande ecrã, é esvaziá-lo de identidade. É, de uma forma ou de outra, colocá-lo numa competição desleal com produções mais abastadas, atirando-o para o ridículo ou para um provincianismo confrangedor. Continuamos a culpar os filmes em vez de fomentar o espírito crítico nos públicos. A Cultura, essa, encaixada entre as pastas da Juventude e do Desporto … talvez porque, para certa Direita, tudo venha do mesmo pomar.

É nessa dissociação que se realizam os Encontros do Cinema da NOS: entre risinhos e copos, com pitchs onde produtores e profetas dançam com ideias suas perante o julgamento de uma plateia de possíveis compradores desinteressados, sob o lema do promotor de que o cinema português precisa de ser isso mesmo … “americanizado”. Mas o cinema português, esse nosso apanágio, as nossas dores, não é perfeito (discute-se!), só que é nosso. E que maravilhas estão lá, escondidas! Basta espreitar. Para isso, é preciso que o público cultive a curiosidade.

Quanto a Vicente Alves do Ó, muitos portugueses - inúmeras espécies de portugueses - já se identificaram com o seu cinema: uma comunidade com “Lobo e Cão”, umas determinadas sensibilidades com “A Metamorfose dos Pássaros, os joviais fora de prazo com “Verão Danado”, os emigrantes com “Via Norte”, os marginais e sonhadores com “Manga d’Terra”, os lisboetas com “A Vida Luminosa ou os nostálgicos com “Ramiro”... continuaria por aí fora. Sabem porquê? Porque o português não é um só. São muitos. E são variados. Variações até!

Todos a bordo! O comboio do leste prossegue para a 8ª edição do BEAST IFF!

Hugo Gomes, 05.06.25

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Cestovatel (Veronika Jelšíková, 2024) / East Wave Competição Oficial

Depois da Estónia, o “comboio” BEAST IFF chega à sua oitava paragem – e nesta estação, não há um país de honra, mas a bússola continua virada para dentro, para a própria essência do festival. BEAST vira-se todo para ciclos: de mudança, de memória, de descoberta, de resistência, a renovação como mote e destino a atingir. Em formato cápsula, entre os dias 6 e 8 de junho, o cinema do Novo Leste regressa ao Porto com programação no Batalha, Trindade, Passos Manuel, OKNA, Reitoria da Universidade do Porto e outros pontos de encontro e partilha.

A sessão de abertura traz ao grande ecrã “When the Phone Rang”, de Iva Radivojević, onde uma importante chamada telefónica leva o seu protagonista a questionar a sua identidade e história. Mas este é só o primeiro aceno. O programa segue com secções como In (E)Motion, Anima East, experimentalEAST ou East Doc, num verdadeiro carrossel de linguagens e formas, que vão desde a animação à performance, do ensaio político ao gesto íntimo, cinema com C grande sem se render a convenções e normatividades.

Este ano, mais do que um país, há múltiplos territórios a ocupar: os da infância, os da resistência, os do desejo, os da perda. O queer, o feminino, o arquivo, a memória e a paisagem voltam a ser palavras-chave. E entre sessões, também há escutas, exposições, conversas e DJ sets para continuar a dançar no intervalo entre filmes.

Como sempre, o Cinematograficamente Falando … convida Teresa Vieira, directora artística, programadora e crítica para revelar o que se move por trás desta edição que é, acima de tudo, um gesto contínuo de reinvenção. O comboio BEAST não parou. Nem vai parar.

Ao chegar à oitava edição, que desafios e responsabilidades tem (ou adquiriu) enquanto festival?

A responsabilidade de um festival está - ou deverá estar - sempre presente, desde o primeiro momento. Os olhares,  pensamentos e acções de agentes representativos do  - e pertencentes ao - ecossistema artístico, inevitavelmente inseridos no contexto social, político e cultural, assumem isso mesmo: o BEAST não é excepção. As inquietações, os medos e os desafios de um mundo em crise têm impacto, de diferentes formas, em cada elemento da equipa que permite a criação e manutenção do festival, a cada passo que dá: a atenção e consciência para com o espectro de potenciais - do negativo ao positivo - é algo que carregamos em nós, individualmente, e que procuramos expressar através da curadoria de cada edição, através de diferentes propostas fílmicas e artísticas. 

Na caminhada de oito anos de festival, o futuro é sempre algo que não se procura adivinhar, mas para o qual se procura trabalhar. Não nos limitando a uma mostra acrítica de cinematografias distantes, mas com uma preocupação de criar um diálogo com o público que seja de ordem permanente e frutuosa, e que aproxime culturas e realidades. 

“Esta mudança não promete nada”, é este o mote do festival. Estaremos perante um gesto de resignação política ou uma crítica afiada ao próprio conceito de promessa cultural?

O mote da 8ª edição é inspirado numa fala do filme “Endless”, da secção queer do festival. Num ano em que o festival atravessa uma fase de transição de posicionamento no calendário de actividades culturais da cidade do Porto, a mudança que isso implica é assumida como um facto - com as suas vantagens e desafios inerentes - , mas acima de tudo serviu de inspiração para a criação da edição: estando o conceito de “transição” (nas suas mais diversas formas) presente - e servindo como grande inspiração - na linha curatorial deste ano. E o resultado desta mudança está ainda por se verificar: a experimentação a que este ano o festival se permitiu terá impacto em futuras edições. A identidade do festival mantém-se e afirma-se ao longo de toda a sua trajectória, numa linearidade que assume e representa as restantes transformações pelas quais o BEAST tem atravessado: e tal acrescenta força aos ideias e valores de base, que, ano após ano, transparecem.

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When the Phone Rang (Iva Radivojević, 2024) / Filme de Abertura

Na secção IN(E)MOTION, a efemeridade da vida é o ponto de partida. Estará o festival a propor que o verdadeiro “coming of age” é, afinal, um processo contínuo e nunca consumado?

A secção IN (E)MOTION apresenta um double-bill de filmes com retratos de diferentes pólos de um possível contexto cinematográfico coming-of-age: do urbano ao rural, do infantil ao juvenil, entre outros aspectos. A ligação, com esta base na diferenciação, recai sobre o confronto com a efemeridade da vida, em ambas as narrativas. A morte de um ente-querido é aquilo que impulsiona cada uma destas vidas e histórias. A ideia de um aproximar da idade adulta é algo que pode acontecer de diferentes formas, em diferentes alturas. Mas, mesmo na construção diária e constante do “eu”, que se espera sempre em evolução, atinge-se um certo “estado de adulto” a certo ponto, ao qual não se pode escapar. Aqui não procuramos ressignificar esse processo, há anos reflectido pelas várias artes - com direito a categorização específico -, mas sim um foco nesse movimento - e numa possível emocionalidade - que tal implica.

Com "Endless" e a secção How to Care for Cosmos, temos um cinema queer que se quer gesto curatorial. Mas até que ponto o cuidado e a visibilidade não são, também eles, estratégias de resistência institucional?

O gesto curatorial é algo que se pretende atento e cuidado em qualquer circunstância. Enquanto uma equipa composta por diversos indivíduos queer, de Portugal e da Europa Central de Leste, confrontados com realidades cada vez mais distópicas, de um acentuar de discurso de ódio e de tentativa de apagamento da existência e realidade queer, a representação queer na linha curatorial do festival é algo que o BEAST considera de ordem (sempre - e cada vez mais) urgente. A resistência, através de uma associação e de um espaço de criação de diálogo através - e com e pelo - cinema e artes, com diferentes públicos, é algo que está de forma inerente presente.

Em Re-Focus, a cineasta ucraniana Kateryna Gornostai regressa sete anos depois ao festival. No press release é mencionado que o seu regresso é um lembrete de como os artistas mudam, evoluem até, talvez influenciados pelo mundo ao seu redor. O que implica estas tais mudanças na curadoria de um festival como ao BEAST e se estarão abertos a todo o tipo de transições artísticas?

A secção RE/FOCUS foi criada na edição de 2023 de forma a não perder a ligação com cinematografias, autores, vozes e visões anteriormente em destaque no festival. Um espaço dedicado à possibilidade de revisitação (que não implique somente programas de retrospectiva), num festival que procura a cada ano expandir o aprofundar de diferentes realidades - nomeadamente com a secção de Focus Country

Este ano, o festival decidiu dar mais uma vez destaque à realizadora em foco na edição de 2018: Kateryna Gornostai. É na verdade a terceira vez que o festival apresenta os trabalhos de Kateryna Gornostai: depois de uma mostra das suas curtas-metragens, em 2018, e da exibição da sua primeira longa-metragem, “Stop-Zemlia”, em 2022, o BEAST apresenta em 2025 a sua mais recente longa-metragem, “Timestamp”. Um retrato documental sobre a realidade escolar neste período de guerra na Ucrânia. Um filme que encaixa inevitavelmente na visão curatorial do festival, com um impacto tremendo, de uma sensibilidade única e distinta, que permite um aproximar para com a realidade da vivência ucraniana.

O programa Portuguese Abroad foca-se na animação portuguesa em co-produção com países do leste. Que importância tem este tipo de colaboração no nosso panorama, tendo em conta que a animação portuguesa é um traço forte e mundialmente reconhecido da nossa cinematografia?

Num ano em que uma longa-metragem de animação da Letónia venceu um Óscar, dois anos depois da primeira nomeação de um filme português aos Óscares (com uma curta-metragem de animação), o festival sentiu um apelo em explorar os cruzamentos tão frequentes entre estes dois universos: a animação em Portugal e a animação na Europa Central e de Leste. Não são só eventos recentes, nem reconhecimentos do agora: a tradição de décadas da produção cinematográfica de animação da Europa Central e de Leste foi desde sempre reconhecida naquela que constitui a história do cinema; o caminho do cinema de animação em Portugal é traçada por um grande impacto, força e reconhecimento a nível internacional. Existindo um vasto espólio de colaborações, e sendo o BEAST um espaço dedicado precisamente ao contacto entre estes dois pólos da Europa, a proposta de Ema Lavrador (parte do core da equipa de organização do festival) de apresentar uma selecção de curtas-metragens que reflectem sobre essas dinâmicas de diferentes formas, foi inevitavelmente acolhida. É uma proposta curatorial que o festival pretende estimar e cultivar para o futuro e algo que procura igualmente ter a possibilidade de levar a mais públicos, em diferentes países.

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Timestamp (Kateryna Gornostai, 2025) / Re-Focus

O que poderá dizer-nos sobre os convidados do festival?

O festival conta com a presença de cineastas e produtores do programa dedicado às co-produções de filmes de animação Europa de Leste-Portugal (“Portuguese Abroad”), tendo uma conversa no final da sessão, moderada pela curadora Ema Lavrador. Ala Nunu, Alexandre Sousa, Alina Didenko, André Cunha, Cristina Neto, Cynthia Levitan, Gábor Mariai e Natália Azevedo Andrade falarão então sobre a sua experiência de co-produção e cooperação entre diferentes países.

O BEAST conta também com a presença da directora artística do BIEFF, Oana Ghera, curadora do programa “Lost in Transition”, tal como de Andrei Rui, professor de História do Cinema e Estudos Cinematográficos na UNATC. Será uma oportunidade para aprofundar as propostas deste programa: que oferece um retrato da produção cinematográfica no período de transição que se seguiu à queda do regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu (em particular no contexto de produção da UNATC). Teremos também a presença de cineastas da competição oficial do festival. 

Em mais colaborações curatoriais, o BEAST apresenta “Local Time Only”, com curadoria de Simona Constantin. A realizadora estará presente para apresentar a sessão de filmes, tal como realizar um workshop. A exposição “It Slips Between My Fingertips” e as performances “Bits Of You” e “Volcanic Sand” são de curadoria do colectivo queer ucraniano MOFO.GALLERY, sediado no Porto, que estarão então também no festival. A curadora da Listening Session, Pavla Rouskova, estará presente na abertura dessa experiência patente na Reitoria da Universidade do Porto

Toda a programação poderá ser consultada aqui

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Hugo Gomes, 03.06.25

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Imaginem pegar no "Tio Boonmee" (“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”) de Apichatpong Weerasethakul e desafiar a sua costumeira naturalidade com a sobrenaturalidade: numa espécie de paródia que transgride constantemente a sua própria essência. 

Para olhos ocidentais, conviver com fantasmas que encarnam aspiradores, que aguardam nas salas de espera dos hospitais respeitando as normas dos mortais ou assistir à oficialização matrimonial entre mortos e vivos pode parecer um prólogo de fantasia trágico-humorística. Mas, em "A Useful Ghost", isso surge como uma tentação de colar os elementos paranormais à sua politização. Aqui, os fantasmas são postos à prova quanto à sua utilidade, não se trata de assombrar por assombrar, deve-se antes possuir um propósito quanto à sua deambulação no mundo que os pertencera na pré-finitude. Nesse acto, há que evidenciar, ou até exibir, uma funcionalidade perante a sociedade.

E então, julgando nós, entre carne, órgãos e vértebras, seremos capazes de decidir se outros, mesmo os que já partiram,  são mais úteis do que alguns vivos? Ratchapoom Boonbunchachoke criou um filme algures entre o ridículo, o lúdico, o camp, e a crítica social travestida desse registo, do propósito humano enquanto ser social. Que com o aumento populacional, sem ceder a métodos malthusianos, será possível encontrar uma definição para quem quer que seja?

Um curioso retrato fantasmagórico, com sequências a fazer corar ou rir embaraçosamente, mas pouco dessa sensibilidade ocidentada (e acidentada) importa: é precisamente para isso que serve. O filme tem a utilidade de ser um ‘cadavre exquis’ com uns quantos ditos prontos a subjugar o espectador.

Filme visualizado no âmbito da Semana da Crítica, Cannes 2025

As Cartas ...

Hugo Gomes, 01.06.25

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Ao pé coxinho entre curtas e longas, Alice Douard parte da lógica LGBT como ativismo, pescando nela o crucial dia em que França legaliza o casamento entre pessoas do mesmo sexo [18 de maio de 2013], para depressa descartar esse gesto político e ceder ao foro emocional e da redenção. “Love Letters” (“Des preuves d'amour”) é um drama contido entre um casal de lésbicas: Céline (Ella Rumpf, "Tiger Girl") e Nádia (Monia Chokri, "Babysitter", "The Nature of Love"), cuja luta judicial por criar uma família nos moldes tradicionais as leva a solicitar cartas a conhecidos e familiares que possam atestar as aptidões de ambas nessa missão.

Como um malabarista, o filme atira os seus conflitos ao ar, da relação a manter, das dúvidas quando a maternidade “bater à porta”, e, como “bola maior” nesse jogo de braços, o aparecimento da figura matriarcal (Noémie Lvovsky): talentosa pianista, presença-canhão pronta a disparar. Até aqui, há uma relação em temor, quem sabe, o antagonismo da aparente harmonia com que os direitos são conquistados e enfiados no gavetão dos garantidos (até ao dia, conforme os sopros politizados que aí chegam).

"Love Letters" não é tanto o tema, nem tanto a linha dramática, é o modo como representa uma época específica sem se pronunciar num contexto moroso. É colocar este casal num zeitgeist compreensível. E, nesses termos, fugir das estéticas queer, ou das transgressivas por convenção, apenas pedir, com algum carinho, o molde generalizado, a não-diferença. A normatividade como opção social, a tão bem formar saúdes de ferro nessas dignas sociedades. O filme de Douard apenas acompanha a ideia: ser-se “mais do mesmo” sem realmente o ser, ou melhor, querer essa hipótese de.

Filme visualizado no âmbito da Semana da Crítica, Cannes 2025