"Temos produtores e paixão!", nas saunas da intimidade com Anna Hints e Tushar Prakash
Smoke Sauna Sisterhood
As saunas, hoje apropriadas por um certo sistema de castas ou como um escape de uma sociedade febrilmente acelerada, são parte integrante da tradição estoniana, estendendo-se a outras nações vizinhas. Não vamos abordar as suas propriedades medicinais, nem a "fuga à realidade" que as metrópoles "franchisaram", e sim do seu lado confessional. É através desta última faceta que a dupla Anna Hints e Tushar Prakash nos envolve em dois filmes que explora traumas, intimidades, géneros e irmandades. "Smoke Sauna Sisterhood" (2023, prémio de Realização na categoria de World Cinema - Documentários no Festival Sundance) retrata a ligação entre mulheres, as suas histórias e experiências, ecoando naquele espaço — não numa busca por compreensão, mas numa escuta atenta. Já a curta-metragem "Sauna Day" (2024), onde o silêncio é a linguagem predominante, invoca uma ligação xamânica entre homens que desafiam convenções e as pressões historicamente impostas sobre os seus ombros.
Estes filmes abordam temas profundamente contemporâneos, da imagem aos corpos, o nu sem festins, mas o nu a descoberto, entre homens e mulheres, que se tornam nos maiores contadores de histórias. No contexto da 7.ª edição do festival BEAST, que decorreu de 25 a 29 de setembro, e da iniciativa da Embaixada da Estónia, o Cinematograficamente Falando … conversou com estes autores, abordando confissões, processos criativos e, sobretudo, a confiança — a sua maior arma (ou melhor, desarma) no Cinema.
Portanto, o vosso díptico - o “Smoke Sauna Sisterhood” e o “Sauna Day” - decorre e ocorre no mesmo ambiente, mas são filmes completamente diferentes entre si. Então, talvez comece com o primeiro que foi lançado, o “Smoke Sauna Sisterhood”, do qual o Tushar Prakash contribuiu na montagem.
[Dirigindo a Anna Hints] Algo que me impressionou foi como conseguiu criar um elo de confiança para com estas mulheres? O qual sem ela não seria possível a concepção deste filme.
Anna Hints: Bem, antes de mais, acho que este filme foi possível porque venho da cultura da sauna de fumo. Portanto, sim, essa é uma questão muito importante quando queremos representar uma cultura ou uma comunidade: qual é o teu acesso e qual é a tua relação com essa comunidade? A cultura da sauna de fumo é específica do sudeste da Estónia, no sentido em que tem uma expressão mais forte nessa região. Também existe em algumas ilhas, mas o património que está sob a proteção da UNESCO e que ainda se mantém vivo é no sudeste da Estónia, particularmente nas culturas indígenas de Võromaa e Setos. Portanto, sim, considero que isso foi crucial, pois faço parte da comunidade. Era como se as pessoas, as mulheres lá, tivessem confiança que representasse a cultura de uma forma fidedigna.
A segunda questão é que há muitos aspetos a considerar, especialmente porque estas mulheres estão completamente despidas. Na verdade, o grande desafio para mim foi garantir que este olhar não crítico, que existe na sauna de fumo, se mantivesse quando estamos juntas, a sangrar juntas.
Sim, quando estamos na sauna de fumo juntas, temos corpos diferentes. Estamos a suar, a sangrar, a urinar juntas, e não há objetificação entre nós. Não existe esse olhar crítico. Mas, ao mesmo tempo, na sociedade, os corpos femininos nus são tão sexualizados, tão objetificados. De facto, um grande desafio para mim foi como garantir que este olhar não sexualizado também se transferisse para o cinema.
Tenho uma licenciatura em fotografia e estou muito consciente de que, sempre que se pega numa câmara, esta nunca é objetiva. A câmara é sempre subjetiva, sempre tem um olhar. Assim, antes de me encontrar com as mulheres e de filmar, dediquei tempo com o diretor de fotografia para calibrar o nosso olhar através da lente. Fomos juntos à sauna de fumo e filmámos o meu corpo nu, à procura de uma linguagem. Depois, queria mostrar às mulheres de que maneira é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos.
Anna Hints
A montagem também teve algum papel importante na dessexualização destes corpos?
AH: Não. A edição não pode salvar nada quando se começa a pôr realmente tempo. O que estou a dizer é que, imagina que passámos horas e horas com um cinematógrafo a filmar o meu corpo e a encontrar essa maneira de filmar. Começa já com a forma como filmas, porque a câmara é um olhar. E, tendo um diploma em fotografia, quando alguém diz que "a câmara é objetiva", isso é uma grande mentira. A câmara nunca é objetiva. Portanto, mesmo esta situação aqui poderia ser filmada de uma forma excessivamente sexualizada ou com uma certa dinâmica de poder.
Assim, estávamos a explorar isso e a encontrar esta chave visual. Depois, mostrei-a às mulheres porque queria que elas clarificassem e verificassem como é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos? Como se sentem? Se estão confortáveis com isso? Todas se sentiram seguras e bem. Na verdade, o material que entrou na edição já não continha essa sexualização. Também é muito importante dedicar tempo a encontrar essa chave visual anteriormente, porque todas aquelas histórias que ouves vêm naturalmente das mulheres. Elas não são escritas. Não sabíamos. Não sabíamos a cada vez que íamos.
Tushar Prakash: Cada vez que íamos à sauna de fumo, era simplesmente o embate com o desconhecido.
AH: Eu não sabia que histórias iriam surgir. Não era uma questão de: "Oh, vamos falar sobre antes disto". A chave é ter certeza em relação à nossa abordagem, à nossa linguagem, para que, quando entrássemos na sauna realmente aquecida a 80 ou 90 graus, não começássemos a procurar algo, ou a repetir também as histórias. Tinha que ser algo que se capturasse. Acho que o material que foi para a edição já estava — vamos dizer, entre aspas, dessexualizado.
TP: Nós não tínhamos um olhar dessexualizado de todo. O material já estava bastante... adequado nesse sentido. A Anna também esteve presente na edição durante todo o processo, como também foi uma das editoras. Tivemos sempre essa orientação na edição para manter essa sensibilidade ao longo de todo o processo também.
AH: Mas isto é, por um lado... é uma resposta mais longa à tua pergunta sobre como foi trabalhar com estas mulheres. Uma das coisas que me perguntaram é: "Como é que as convenceste?". Acho importante salientar que as não convenci. Sabia perfeitamente que fazer este filme só seria possível quando não houvesse nenhum traço de persuasão.
No sentido em que não posso dominar a voz delas. O que fiz foi que, quando conheci as mulheres do sul e da comunidade, fui muito transparente sobre o que queria fazer. Depois perguntei se queriam fazer parte deste projeto, ao que me responderam que sim. Quando senti que a resposta era um não ou um talvez,não insisti. Ao mesmo tempo, fiz o filme durante sete anos, e o processo de edição foi de dois. Sinto que a sociedade também mudou. Houve o movimento #MeToo, e algumas mulheres começaram a reconectar-se comigo e disseram: "Ok, agora quero estar no filme."
E a terceira coisa que é muito importante e que, normalmente, quando alguém diz "sim, quero estar num filme", é o facto da produção trazer papeis legais, para que se assina antes das filmagens, basicamente cedendo os teus direitos antes de qualquer processo. E isso parecia tão errado para mim. Como realizadora, é crucial saber quem são as pessoas com quem trabalhas.
Tenho que realmente congratular e celebrar a minha produtora, Marianne Ostrat, que assumiu connosco um grande risco, ao concordámos que não assinariamos nada antes. Imagina, estivemos a filmar durante sete anos e tínhamos um acordo de que só quando tivéssemos o corte na edição do qual estivéssemos satisfeitas é que mostraríamos às mulheres. Elas teriam o direito de dizer sim ou não até ao fim. Portanto, isso significa que alguém poderia ter dito não e perderíamos todo o projeto. O filme foi possível porque não as convenci, e sim, lhes mostrei como a nossa câmara estava a tratar os seus corpos. Todos concordaram. Não obtive nenhum não.
Smoke Sauna Sisterhood
Como é que criou esta atmosfera de intimidade, sabendo que havia uma equipa presente. Sabemos que uma pequena equipa que estava lá. Portanto, como é que se chega a um ponto de confiança em relação a essas pessoas se abrirem-se desta maneira, sabendo que a equipa irá ver e testemunhar as suas confissões? A confiança para chegar e dizer "Ok, precisamos da perch."
AH: Havia um diretor de fotografia, um operador de som e eu. O que é também muito interessante é que, devido à falta de diretora de cinematografia na Estónia, eram todos homens. Portanto, havia um diretor masculino, o Ants Tammik. O que fiz para lidar com isso foi que, uma vez que mostrei como estávamos a tratar os seus corpos, também perguntámos quem queria mostrar o rosto e quem não queria. Assim, elas tinham confiança nisso. Além disso, tinham a certeza de que iriam ver o material, pois não tinham assinado nada. Também passámos tempo juntos, porque estávamos a filmar no campo. Elas passaram tempo com o diretor de fotografia e o operador de som e sentiam-se bem na presença deles, seguras diria. Tudo funcionou lindamente. Acho que este é um dos aspectos mais importantes da realização de um filme: como criar essa confiança.
Estivemos a passar tempo juntas fora da sauna de fumo, mas havia a condição de que não falássemos sobre o que íamos discutir na sauna. Garanti que não entrássemos lá com essa intenção, como também não haveria pressão para o que iriam dizer. Podíamos simplesmente ir para lá e ficar em silêncio. Ao mesmo tempo, sabia e tinha confiança de que as histórias começariam a surgir. Além disso, tínhamos o tempo a nosso favor.
Acho que, quando fazes essa pergunta sobre como foi possível, tens que ter crucialmente tempo. Quando tens uma equipa pequena e crias todo o processo de filmagem de uma forma que não é apressada, tens que dedicar tempo; assim, essa intimidade pode evoluir. Todos tinham o direito de se afastar ou de não entrar. Mas funcionou maravilhosamente. Tenho pensado nisso, e é bastante louco, porque foi fisicamente desafiador. Era realmente uma sauna de fumo quente, a quase 90 graus. Uma sessão de sauna de fumo dura três ou quatro horas. Também podes pensar nisso: não era como se disséssemos: "Entramos na sauna de fumo e imediatamente começamos a falar." Talvez a primeira hora tenha sido apenas para nos sentarmos, ajustarmo-nos, e estarmos confortáveis com a situação. As histórias começaram a surgir na segunda hora. Mas tínhamos tempo. E, de alguma forma, porque o processo era transparente, havia confiança de ambas as partes. Era apenas o operador de som, o de fotografia e eu. Ninguém mais.
Existe algo que me fez refletir no vosso filme. Algo contra os tempos em que vivemos, porque estamos a ouvir estas mulheres falarem durante 10 minutos sobre as suas histórias e nunca as interrompemos, nunca respondemos, e elas nunca sentem que precisam de uma resposta. Hoje em dia, mesmo nos documentários, há uma necessidade de se responder a tudo. Aqui, apenas limitamo-nos a ouvir.
AH: Isso é muito verdade e preciso! Porque comecei realmente a perceber o poder de ouvir enquanto fazia o filme. E, de facto, é o oposto. Em muitas maneiras, o espaço da sauna de fumo é um antídoto para este mundo em que vivemos agora, onde temos de dar opiniões o tempo todo, de responder, de comentar, de dizer se gostamos ou não gostamos. Estamos sempre nas redes sociais, sempre, o tempo todo. Mas na sauna de fumo, ao entrares, entras nu. Só isso já é diferente. Na sociedade, temos as nossas roupas. As roupas físicas, mas também as roupas metafóricas, como "Eu sou isto, eu sou aquilo", as definições que damos de nós mesmos. Agora, imagina que entras neste útero escuro e tiras todas essas roupas. Todos estão nus ali. Todos têm o direito de existir. Ninguém te julga.
Com o calor, primeiro as camadas mais profundas de sujidade física começam a emergir, e depois também a "sujidade" emocional começa a vir à superfície. O calor é super importante, como também a escuridão – não há eletricidade. Lavar a alma significa exatamente isso: quando as emoções, quando as histórias começam a emergir, os outros apenas ouvem. Percebi que há um enorme poder em dar voz à nossa história e dar espaço para ouvir as histórias dos outros. Pensei muito nisso e percebi que é como alguém partilhar, e os outros não comentarem, apenas ouvirem. E, através disso, o ato de ouvir torna-se num ato poderoso, é como testemunhar. É como dizer: "Testemunhei a tua realidade." E, ao fazer isso, dás à outra pessoa o direito à sua própria realidade. Não há competição de realidades. Não há julgamento das realidades.
“Smoke Sauna Sisterhood” não significa que temos de partilhar as mesmas realidades ou sentir o mesmo em relação ao mundo. Realidades diferentes podem coexistir naquele espaço escuro. É na verdade, uma sensação super poderosa. Coexistir com todos esses corpos diferentes, com essas experiências diferentes. Exatamente. Não há julgamento, e também não há julgamento em não responder, porque muitas vezes, quando achamos que estamos a ouvir, já estamos a pensar em como vamos responder, ou no que vamos ensinar ou pregar. Mas aqui é simplesmente: "Essa foi a tua história..." E digamos que partilhas uma história, e talvez ressoe, talvez crie algo em mim, e depois simplesmente partilho a minha história. Mas não comento a tua.
Agora passamos para o “Sauna Day” … há algo cómico nele, porque com as mulheres temos um filme longo, já que elas falam, mas os homens não falam uns com os outros, por isso, temos uma curta-metragem. Como surgiu a ideia do “Sauna Day”? Foi uma resposta ao “Smoke Sisterhood”, ou tentaram usar a mesma abordagem com os homens?
AH: Sim, de certa forma, pode-se dizer que o “Sauna Day" nasceu da experiência do “Smoke Sauna Sisterhood”. O que me fascinou foi que, apesar de termos este espaço incrível da sauna de fumo na nossa cultura, a forma como se expressa a vulnerabilidade e a intimidade não é a mesma entre os géneros. Mesmo no Sul, onde temos a sauna de fumo e os homens também vão lá, eles não partilham ao mesmo nível que as mulheres. Comecei a ficar realmente fascinada pela forma como se evita a intimidade. É como se as palavras que os homens usam não fossem importantes, de certa forma. Eles falam sobre trabalho, sobre política, mas o que começa a ser realmente interessante é o que não estão a falar e como retratar isso.
No “Sauna Day”, vemos dois homens que estão lá, conversam, mas não o fazem através de palavras. É através do silêncio. Sim, é na ação. Isso tornou-se interessante para nós, ao compararmos os dois filmes: enquanto em “Smoke Sauna Sisterhood” as mulheres partilham a sua voz, expressando-se através das palavras, na sauna, eles partilham sem palavras.
Quando viajei com o “Smoke Sauna Sisterhood" por toda a Estónia a mostrar o filme … oh, meu Deus! … em cada sessão havia sempre um homem na audiência que dizia: "Como é possível que quando vamos à sauna, falamos apenas de coisas triviais, em vez de abordarmos o que realmente importa? Por que evitamos a intimidade?" A partir daí, comecei a receber propostas. Não conheço essas pessoas, mas elas enviaram-me cinco propostas por e-mail: "Oi, Anna, eu dou-te dinheiro. Por favor, faz o ‘Smoke Sauna Brotherhood’." E claro, essas pessoas não têm ideia de quanto custa fazer um filme, mas foi tão doce. Uma delas disse: "Poupei 2.000 euros. Podes fazer um filme com isso?" Isso fez-me perceber que sim, há uma necessidade de abertura, mas existem barreiras e medos enormes. Dessa forma encorajava: "Antes de fazer qualquer filme, comece por abrir-se. Seja a primeira a dar o primeiro passo."
Sauna Days
Estamos todos à procura de conexão humana, mas, de alguma forma, gostamos de fazê-lo de forma confortável. No entanto, acredito que não há outra forma do que aceitar a desconfortabilidade, porque para se conectar, é necessário ser vulnerável. E quando não estás habituado a isso, torna-se desconfortável. É também assim que os homens, e Tushar pode falar mais sobre a masculinidade tóxica que vocês enfrentam, sentem a pressão e o conceito do que é um “homem forte”.
Essa força é vista como uma forma de evitar a intimidade. A intimidade e a vulnerabilidade são frequentemente percebidas como fraqueza. Por isso, onde quer que vá, tento questionar essa perspectiva, porque, para mim, a verdadeira força reside na coragem de ser vulnerável. Além disso, talvez possas falar sobre a troca de códigos e o que retratámos nesse contexto [dirigindo-se para Tushar].
TP: Em relação à masculinidade tóxica, uma coisa que também gostaria de acrescentar sobre o “Smoke Sauna Sisterhood” é que, durante a edição, tomámos uma decisão muito consciente: nunca se expressa uma opinião sobre os homens no filme. Não dizemos: "os homens são assim" ou "os homens são assado". Eles são retratados através das histórias. Essa foi uma escolha deliberada na edição. Através dessas narrativas, mesmo o público masculino, ao ver o filme, pode vivenciar a experiência que as mulheres estão a partilhar. De certa forma, uma opinião bloqueia a empatia, mas quando uma história é narrada, e uma mulher se mostra vulnerável ao compartilhar o que viveu, os homens ou qualquer pessoa podem conectar-se com essa experiência.
Uma das melhores coisas ao mostrar o “Smoke Sauna Sisterhood" em todo o mundo foi ouvir o público masculino dizer que também se sentiu conectado ao filme. Eles não se sentiram excluídos, mas parte da narrativa. É por isso que quando Anna contou a história de homens que a procuraram e disseram: "Podes, por favor, falar também sobre a nossa vulnerabilidade?", ficou claro que eles desejavam vivenciar isso também, o que me deixa muito orgulhoso.
O “Sauna Day” me fascina por abordar temas como masculinidade, intimidade masculina, e a toxicidade associada a isso. O filme é definitivamente sobre a intimidade masculina e a incapacidade dos homens de se conectarem emocionalmente. Eles carregam o peso de ter de se conformar aos padrões de gênero, de ganhar dinheiro e de se integrar na sociedade. Carregam o fardo dos mitos dos seus antepassados sobre o quão arduamente trabalharam. Conhecemos homens assim na Estónia rural e também na minha família na Índia, que estão sempre a tentar viver à altura das expectativas dos homens que vieram antes deles. E nunca conseguirão, porque quase mitificaram a ideia de seus antepassados, que carregavam 100 quilos de peso, que morreram no trabalho ou que trabalharam de manhã à noite em temperaturas de menos 20 graus.
Esses homens sentem que nunca serão tão bons quanto seus avós ou pais. Isso cria um espaço onde não conseguem abrir-se, onde não conseguem ser íntimos, pois veem a intimidade e as emoções como fraquezas que os tornariam incapazes de funcionar na sociedade. Isso sempre me fascinou. O “Sauna Day” foi um passo para explorar essa dinâmica.
Sim, a sauna é um cenário realmente interessante para explorar ideias e experiências humanas. Também sentimos que os homens são vítimas do patriarcado, não apenas as mulheres. As mulheres, sem dúvida, são as mais afetadas; “Smoke Sauna Sisterhood” mostra isso de forma muito clara. Mas os homens também sofrem sob as mesmas pressões. Sentimos que havia espaço para explorar isso.
Uma questão que o filme também aborda é a troca de códigos: como, quando os homens falam e participam na sociedade, eles se conformam a padrões de gênero, mantendo conversas factuais e abordando assuntos superficiais, como o telhado ou outras banalidades. A linguagem torna-se uma espécie de pele, uma roupa que esconde a verdadeira essência deles, uma forma de se encaixarem na convivência. Porém, quando as palavras emergem do espaço da sauna e os dois personagens ficam sozinhos, surge uma nova linguagem: a linguagem dos corpos, dos gestos, dos instintos, onde talvez o gênero, a sexualidade e os relacionamentos sejam mais fluidos e as coisas não possam ser nomeadas com clareza. Isso foi algo que desejávamos explorar.
Queríamos também que o filme não parecesse estrangeiro à comunidade onde foi filmado, mas que fosse visto como uma história do seu próprio meio. Esse foi um dos nossos desafios: como fazer o filme parecer parte da comunidade. Conseguimos ultrapassar essas barreiras, fazendo com que a comunidade visse o filme como uma história sobre amizade masculina ou uma excelente sessão de vapores entre dois homens. Não precisavam interpretá-lo como um filme queer, mas sim como um filme sobre homens a partilharem algo importante entre si.
Tushar Prakash
AH: Isso é verdadeiramente fascinante. O que estás a falar, essa troca de códigos ou code-switching, e o ritual que desempenhamos na sociedade, é algo que realmente explora camadas profundas do comportamento humano. Por exemplo, o ato de usar o ramo de vihtas na sauna, que vemos como um ritual amplamente aceito na cultura da sauna, carrega muito mais significado do que aparenta. O “whisking” [ato de chicotear com as ervas vihtas] pode ser visto de várias formas. Por um lado, é apenas um ato físico, um cuidado corporal tradicional, mas, ao mesmo tempo, pode ser interpretado como algo tão íntimo quanto fazer amor. Há algo incrivelmente ambíguo nesse gesto.
O que me parece particularmente interessante é a incapacidade ou relutância de nomear os sentimentos, porque há esse medo profundo de que, ao nomeá-los, damos-lhes existência. O que nos fascinou foi como, mesmo nesse ato de whisking, há tanto uma presença de intimidade quanto uma tentativa de evitá-la. É um jogo constante entre a proximidade e a distância. Esse jogo de tensões é essencial nas comunidades retratadas.
Um momento particularmente marcante foi quando o filme foi exibido em uma grande praça ao ar livre em Tartu, em agosto passado, e cerca de 1.500 pessoas estavam a assistir. O que foi realmente interessante foi a diversidade de reações que recebemos. Homens vieram até nós dizendo: "Isto é exatamente como me senti quando me separei da minha esposa e fizemos esse ritual do whisking." Foi uma representação tão poderosa das suas emoções.
Por outro lado, mulheres também compartilharam o seu ponto de vista: "Sim, isto descreve perfeitamente os homens estonianos, que não falam sobre as suas emoções." E ainda havia o feedback da comunidade queer, que também se sentiu profundamente conectada: "Isto é tão queer. Esta é exatamente a nossa experiência."
A riqueza de interpretações foi incrível. Foi fascinante ver como cada grupo encontrou uma ligação diferente com o filme. Certos códigos de intimidade que talvez não sejam compreendidos por todos, especialmente por aqueles fora da comunidade queer, ainda ressoaram de forma universal. As pessoas conseguiam entender tanto a presença da intimidade quanto a sua ausência, bem como a tensão entre evitá-la e desejá-la.
Essa capacidade do filme de falar de forma tão abrangente e, ao mesmo tempo, tão pessoal a diferentes audiências é algo que realmente nos tocou. Mostra como os rituais culturais e os gestos humanos são capazes de transcender as barreiras de linguagem e identidade, conectando-se a algo mais universal e profundo sobre a experiência humana.
TP: Os códigos são muito culturais. Desculpa, só um pequeno desvio. Mas, na Índia, os homens adoram dar as mãos, e estes são homens que não se identificam como queer. São homens que têm esposas, filhos, mas gostam de dar as mãos. Lembro-me que, sempre que os meus amigos vinham da Europa, olhavam para isto e diziam: "Uau, estão numa relação ou algo assim?" Não, dizia eu, isto é uma forma de partilharem intimidade. É uma forma de partilharem a sua amizade.
Temos de perceber que estes códigos de intimidade são muito baseados na cultura. Só um pequeno facto trivial. Estou a estudar folclore, por isso tenho observado estes pequenos códigos culturais e tudo mais.
Segundo a minha experiência, normalmente, a intimidade e de partilha entre homens acontece à volta de uma mesa, álcool à mistura.
AH: Mas também, algo que me interessa muito - visto que estou a fazer o meu mestrado e agora consegui articular sobre o que quero escrever, o qual chamo de “cinema físico”. Temos o teatro físico quando referimos teatro, mas o cinema físico e como trazer o espaço, o corpo e a fisicalidade para o cinema, de forma a que o sintas no teu corpo. É isso que me fascina. Tendo formação em arte contemporânea e fiz muito... como se diz? … performances ligadas ao espaço. Uma performance site-specific, em que tens o corpo, e o corpo que respira, o corpo que cheira, o corpo que existe, o corpo do público, e tu sentes isso. Para mim, sempre houve esse dilema entre o filme e a arte que estava a fazer. Muito bem, mas algo está a faltar. Como fazer com que o ecrã cheire, que transpire, que o sintas nos ossos? Nesse sentido, a sauna de fumo é um espaço muito generoso. Sim, poderia haver uma cena onde os homens estão a beber e a falar, mas o que me fascina mais é o corpo, está molhado.
Sim, e eles também estão a falar sobre isso. A própria pulsação manifesta-se. Sim. Às vezes, quando estás a trabalhar com atores, há certas palavras que podemos dizer. "Está um dia bonito." Mas o que estamos realmente a dizer? Qual é o subtexto? Interessa-me esses subtextos. Interessa-me o que estamos a dizer ou o que não estamos realmente a dizer, e encontrar formas de capturar isso
Sauna Day
Sobre essa exposição na “Smoke Sisterhood Sauna”, nenhuma mulher dentro da sauna mostra o rosto, exceto uma pessoa (Kadi Kivilo). E essa mulher acaba por se tornar a principal ouvinte, a personagem principal. Como surgiu essa ideia?
AH: Sim, ótima pergunta. Então, essa mulher é a Kadi Kivilo. Ela é uma amiga de longa data, e entrou no projeto no segundo ano de filmagens. Foi assim que aconteceu: ela sabia que estava a fazer o filme e contactou-me, dizendo: "Quero estar no filme com o meu rosto, com o meu nome, a 100%." Antes disso, já tinha perguntado às mulheres quem queria aparecer com o rosto e quem não queria. Para mim, isso tornou-se também um documento interessante do nosso tempo, porque muitas mulheres estavam dispostas a mostrar os seus corpos, mas não os seus rostos.
Isso mostra o quanto ainda existe vergonha, o quanto ainda há medo. E, quando pensamos na Estónia, é importante lembrar que é uma comunidade muito pequena, uma população de apenas 1,3 milhões de pessoas. Então, quando a Kadi disse que queria aparecer com o rosto percebi a sua presença total. Ela o fez através do rosto, porque com ele, ofereceu ao público uma face com o qual nos podemos relacionar e ouvir. Além disso, tem essa capacidade natural de escutar plenamente. É incrível a forma como ela ouve. Foi aí que percebi que isso era a chave. Depois disso, foi a pessoa presente em todas as saunas de fumo. Ela participou em todas. Tornou-se a guardiã da sauna. Foi assim que estruturamos o filme. Lidera o acendimento do fogo na sauna de fumo, mantém o espaço e dá-nos a oportunidade de ouvir, juntamente com ela. Foi realmente incrível. Tudo aconteceu de forma muito orgânica.
Têm novos projetos?
AH: Sim, estamos a trabalhar numa longa-metragem.
Podem falar sobre essa longa’?
AH: Ainda não, não chegámos a esse ponto. Temos 15 páginas de treatment escritas.
Quinze?
AH: Sim, páginas do treatment. É como um esboço. Portanto, estamos na fase inicial de desenvolvimento. Mas…
TP: Vamos seguir um pouco a superstição de Fellini, que ele tinha de não querer falar sobre a história antes de ela estar escrita [risos].
Diz-se que Fellini consultava médiuns para “saber” se os filmes seriam êxitos ou não [risos] …
AH: Isso é muito interessante. Acho que, embora não vá a médiuns, sei disto: o que faço é testar a minha voz. Preciso de me isolar dos outros. Este verão, estivemos no sul da Estónia, no campo, porque, depois de ganhar no Sundance, estive a viajar sem parar. E surgiu esta pergunta: "Anna, o que vais fazer a seguir?" Sabes, aquela pressão. E então percebi que tinha de simplesmente... ir lugar onde nem sequer havia sinal. Conectei-me verdadeiramente comigo mesma, com a natureza e com a minha voz interior. E fiquei muito feliz porque, na verdade, tive ideias para cinco filmes. Elas fluíam naturalmente, e senti-me forte em relação a todas. A questão então tornou-se: não vou a médiuns, mas entro num espaço dentro de mim para testar, para perceber que essa voz para o filme vem de dentro, que não é algo para provar a alguém, ou para fazer um filme para um festival, ou o que seja. Sei que essa é a única forma de ser criativamente livre, de não estar a fazer filmes para festivais.
Fazer um filme é um compromisso tão grande, que leva vários anos. E tem de se tornar numa sensação corporal. Tens que sentir isso. Não preciso que um médium me diga se é forte, sinto-o, dentro de mim, se é forte. E também essa disposição para falhar completamente. Acho que isso é super importante. Falhar, aos olhos de outra pessoa, porque não estás a fazer para agradar alguém. Para isso, preciso de me afastar dos médiuns e ir ao meu núcleo. E sim, depois surgirão estas ideias, e percebemos que, é nisto em que devemos trabalhar. Temos produtores e paixão.
TP: Também preciso fazer algo semelhante. Como ir a um retiro de meditação de 10 dias em total silêncio. Quando o ruído desaparece, o teu cérebro começa a dizer-te: "É este o filme? Este filme está realmente a vir de um espaço honesto? O que é que neste filme te afeta verdadeiramente?" E aí as peças começam a juntar-se. Depois disso, vou fazer o Caminho de Santiago também. O mesmo objetivo: duas semanas para assentar os pensamentos, com papel e caneta, a escrever, para realmente juntar as peças e ver como me sinto.
Acho que é muito importante não partilhar logo no início porque precisas dessa conexão contigo mesmo primeiro. Precisas de entrar em contacto com a ideia, sentir se realmente vem de dentro. Só depois, então, podes começar a partilhar a história com o mundo.