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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O Lugar da Mulher é na realização! Arranca o 2º Screenings Funchal Festival

Hugo Gomes, 01.06.23

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Iniciado em 2017, o Screenings Funchal é uma iniciativa cinematográfica madeirense que visa enriquecer esse panorama no Funchal. Até à data, foram mais de 200 filmes exibidos, oriundos de mais de 30 países, contando obras-primas, cultos, redescobertas ou êxitos improváveis, tudo em nome do cinema e a sua arte de partilhar e de ver o Mundo, sistematicamente em todos os fim-de-semanas. 

Contudo, o evento sucedâneo deu origem a um festival, uma mostra cinematográfica fora do âmbito convencional do que se predomina ser festival de cinema. Ciclos temáticos que não só vieram para fortalecer a proposta em si como também criar pontes imaginárias unificadoras da ilha com o cinema, seja lá qual for, longe dos catálogos mainstreams e supra-vendidos que preenchem multiplexes no continente. À chegada da segunda edição o Screenings Funchal Festival (do dia 2 a 24 de junho), seguimos numa pequena viagem pelo cinema assinado no feminino; de Vera Chytilová, a “mãe da Nova Vaga checoslováquia", a Kinuyo Tanaka, a sensação nipónica na distribuição portuguesa deste ano, com paragens em Kelly Reichardt, na consagrada e irreverente Chantal Akerman e a promissora Eliza Hittman. Mulheres, e além disso, cineastas a conhecer ou revisitar, gestos e olhares para além da delicadeza e da serenidade. 

Para conhecer melhor este festival, o Cinematograficamente Falando … conversou com Pedro Pão, programador, dando luzes à programação, aos propósitos, aos desafios e mais que tudo, ao Cinema [toda a programação poderá ser consultada aqui].

Visto que o Screenings Funchal é uma iniciativa que corresponde a sessões correntes em quase todos os fim-de-semanas, o que difere este intitulado Screenings Funchal Festival da periódico evento que os cinéfilos do Funchal estão habituados?

Na nossa actividade regular semanal, trabalhamos essencialmente com obras com distribuição portuguesa. O Festival Screenings Funchal além do número superior de filmes exibidos (8 em vez de 4), permite-nos construir uma programação com menos “restrições” e trabalhar com distribuidoras internacionais se houver necessidade disso e ter cá convidados que possam contribuir para o enriquecimento da experiência cinematográfica e de certa forma minimizar, mesmo que por breves momentos, a nossa condição ultraperiférica.

Este Screenings Funchal Festival posiciona-se na casa feminina, numa mostra que compreende cinco cineastas / realizadoras. Quais foram os critérios de seleção das oito obras e das suas protagonistas?

A primeira parte da seleção definida foi o ciclo. Dada a frequência pouco habitual do festival, um ciclo parece-me dar alguma coesão ao mesmo e minimizar de certa forma o espaçamento existente entre as sessões. Soube o ano passado que a The Stone & The Plot ia exibir em Portugal o ciclo da Kinuyo Tanaka e pareceu-me importantíssimo não só que as obras viessem ao Funchal mas que fossem o pilar central desta edição e que se usasse a promoção adicional à disposição para promover estas obras e chegar ao maior número de pessoas possível. Ajudou que o feedback do público tivesse sido muito positivo quando exibimos o ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos I

Um dos critérios principais é exibir filmes que não tenham estreado no Funchal e nesta segunda parte da programação procurei que os filmes cumprissem isso e que comunicassem de certa forma entre si e com o ciclo. Acho que em todos os filmes há um olhar feminino sobre questões que me parecem extremamente pertinentes e que apresentam uma abordagem única (sem falar na óbvia qualidade artística das obras) pelas suas autoras. Apesar das limitações da programação, procurei tematicamente ter diversidade e universalidade nas lutas das protagonistas, achando importante que essas lutas não se restringissem a uma época específica. Procurei algum distanciamento temporal entre elas. Começamos na década de 60 com “Daises” e acabamos em 2020 com “Never Rarely Sometimes Always”. 

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Daisies (Vera Chytilová, 1966)

Uma das coisas que gostaria de conseguir transmitir é a sensação que há muito trabalho a fazer. Noutro formato teria sido possível pensar as coisas de outra forma, mas neste e em torno destas obras da Kinuyo Tanaka pareceu-me fazer sentido assim. Vamos ver como corre e qual será o feedback do público.

O festival apresentará 4 obras de Kinuyo Tanaka, e receberá o investigador Miguel Patrício [para apresentar a palestra intitulada “Quem és tu, Kinuyo Tanaka?”], que foi um dos responsáveis por trazer o integral da cineasta nipónica ao circuito comercial nacional. Gostaria que me falasse destes gestos que vão além da distribuição convencional, e enquanto coordenador de um festival, os desafios que estes filmes (e outros) possuem para vingar nas telas além do ambiente de festival de cinema?

Só posso (tentar) responder a esta questão refletindo sobre a situação particular da região. Não me sinto habilitado a tentar responder acerca desses desafios em Portugal Continental apesar de ter uma ideia de como as coisas correm por aí. Não temos festivais a “roubar” público às salas porque a realidade local é outra. Quando os festivais que já existiram no Funchal tinham antestreias, os filmes regra geral não estreavam cá depois.

Simplesmente não havia espaço para cinema, excepto animação e blockbusters. Durante algum tempo, por exemplo o Madeira Film Festival que decorria uma semana por ano, era a única hipótese de quem queria ver este cinema poder fazê-lo. Um dos desafios principais é fazer com que as instituições locais repensem a forma como pensam o cinema. Aqui parece-me que primeiro se pensa no impacto económico, depois no turístico, depois ainda virá certamente o educativo e o social (a arte pela arte parece-me ser um conceito alienígena por estas bandas) antes de se pensar no impacto cultural. Creio ser essencial que certas instituições (que têm poder/dever para apoiar, dinamizar e divulgar) comecem a ver o cinema como um acto de cultura e isso infelizmente não me parece que seja o caso.

Mas ainda assim no que diz respeito a desafios, acho que temos é de olhar ao espelho. Continuo a achar que o grande problema é a falta de curiosidade do público. Acho que há um grupo pequeno de pessoas a trabalhar muito para distribuir filmes fora dessa distribuição convencional, tal como há um grupo pequeno de críticos a trabalhar muito, a escrever e a fomentar discussões muito importantes sobre estas obras e que do outro lado há uma enorme massa de pessoas que só quer ver aquilo que conhecem e aquilo que já viram e que não parecem minimamente cientes das discussões que este cinema tem para oferecer.

A importância de eventos cinematográficos deste género fora, além das metrópoles, do Portugal continental?

A insularidade é uma coisa tramada, e não duvido que seja equivalente ao que ocorre fora das grandes cidades no resto do país. Um madeirense ir a um festival de cinema tem custos astronómicos. É um luxo. E por vezes não tem hipótese de ver os filmes de outra forma. E acho que não devia ser assim. O streaming devia ser um último recurso, ou um complemento, e nunca a única solução possível. Acho importantíssimo e perfeitamente exequível que houvesse articulação entre entidades locais e alguns desses festivais de forma a que se tornasse mais fácil para os madeirenses (e todos aqueles de certa forma isolados geograficamente) de acederem a esses eventos, por exemplo através de extensões. E tenho a certeza que haveria público, se as coisas fossem feitas com discernimento, em locais onde estivessem garantidos conforto e qualidade de projecção e onde se colocasse em primeiro lugar o impacto cultural das iniciativas e não deixando o imperativo económico dominar. Acho que esse investimento teria repercussões brutais a todos os níveis.

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The Eternal Breasts / Para Sempre Mulher (1955)

Ambições para o futuro? Quais outros signos a explorar em eventuais novas edições do Screening Funchal Festival?

Conseguir mais apoios do que temos seria muito benéfico e iria permitir eventos com outros formatos (cineconcertos por exemplo) e trazer mais realizadores e outros convidados que pudessem enriquecer de alguma forma a oferta existente, porque esse contacto faz-nos falta e acho que é importante. Não sei, no entanto, se poderia classificar esse desejo de uma ambição para o futuro. É que já lá vão 6 anos e o reconhecimento ao que tem sido feito nestes anos geralmente vem de fora. Temas a explorar? Anteriormente referi a falta de curiosidade e como reação a isso, estou constantemente à procura de algo que provoque uma reação (boa ou má) nas pessoas. 

Gostava de num futuro próximo me focar no género de terror, que me parece ter muito má reputação em Portugal (incluindo na própria crítica), e mostrar que é um género com uma grande variedade e riqueza cinematográfica, como todos os anos o festival MOTELx bem nos mostra. Para o ano, havendo uma 3º edição do festival gostaria imenso de dedicar um ciclo ao John Waters. Estou convencido que o “Pink Flamingos”, em exibição articulada com as escolas secundárias, universidade e decisores políticos pode ser a chave para despoletar não só uma renovação de público em massa aqui no Funchal como para nos desbloquear novas formas de apoio financeiro.

Simão Cayatte: "o meu trabalho enquanto realizador é muito privado"

Hugo Gomes, 31.05.23

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Joana Santos e Rúben Simões em "Vadio" (Simão Cayatte, 2022)

“Vadio” foi uma das estreias nacionais deste ano, marcando a transgressão de Simão Cayatte, do reino das curtas, para a sua primeira longa-metragem. Uma ficção de longa gestação sobre um país em período de seca extrema, e não somente em condições climatéricas, como também em termos político-sociais. Num Alentejano austero, um adolescente (Rúben Simões) une esforços com uma mulher misteriosa e ferida (Joana Santos) para encontrar o paradeiro do seu pai, que o abandonou e que mesmo assim hipótese negada pelo jovem. Um “400 Golpesà portuguesa, sem novas vagas e Balzacs, onde o desamparo das suas personagens concentram a inevitável fonte dramática deste filme. 

Conversei com Simão Cayatte sobre o projeto, expandido pelo seu trabalho enquanto argumentista, ator e ainda produtor, um dos responsáveis pelo resgate do “realizador malditoRichard Stanley.  

Deixa-me iniciar com uma espécie de fact-checking, o argumento deste filme teve aprovação em 2016, certo?

Teve apoio do ICA em 2016 e depois o luso-francês, se não me engano, que complementou a montagem financeira em 2018.

… e em 2019 terminou …

Exato, só em 2019 pude filmar.

E depois deste hiato, o filme estreia em 2023, e mesmo assim, o seu pano de fundo mantém-se presente nos nossos dias, refiro à questão das secas, que ainda hoje abalam o nosso país e pelos vistos não há maneira de abrandar.  A sua sociopolítica é também ela representativa dos dias de hoje, mesmo que, tal como deixa subtilmente saliente numa televisão ligada algures na ação - a voz de Pedro Passos Coelho - dando a entender o seu período. “Vadio” decorre nos tempos da Troika? 

É, o filme passa em 2012, durante a crise. Essa é a única referência contextual até porque não queria sinalizações muito concretas a nível de datas ou assim, mas é engraçado falar sobre a questão da seca porque as pessoas têm se focado bastante nas personagens, o que é natural, mas por trás há uma falta de água, que é aquilo que abre o filme, uma seca profunda, que é um tema, infelizmente, cada vez mais atual.

E não é meramente uma seca física.

Não, não. É também a da proveniente da alma.

E temos aqui duas personagens marcadas, cada uma, por uma ausência, e não é só o que têm em comum, ambas estão em constante fase de negação para com esse vazio. Ele, André, o pai o abandonou e ela, Sandra, está em negação pela questão da filha, ou seja negando o seu negligente, assim sendo. Até que ponto esta improvável aliança não é uma forma de preencher os seus respectivos vazios. 

É verdade. Não sabemos até ao final do filme se o pai o abandonou realmente. Como também nunca saberemos se foi um ato de negligência ou não. Temos a versão da mãe da Sandra e temos claramente uma pessoa que errou. E pode eventualmente ter sido negligente, mas que ao mesmo tempo onde se coloca a questão, vale a pena a crucificação pública que ela sofre? Vale a pena ser despedida do seu estabelecimento? Vale a pena a guarda da filha ser retirada pela própria mãe? Portanto, são estas as questões para mim mais importantes em relação ao que diz respeito à personagem da Sandra. Mas sim, são um pouco a boia de salvação um do outro. Nem que seja num nível mais simétrico. Ele procura um pai. Na realidade, acho que ele procura realmente uma mãe. E é isso que o André procura na Sandra. E é impossível, não é? Porque são pessoas que pertencem a mundos muito diferentes. Ela não sabe dar e ele não sabe receber. Portanto, eles estão o filme inteiro, no fundo, à luta. 

Deixemos de parte essa disputa pugilista, que os protagonistas de “Vadio” defrontam até que finalmente conciliam, gostaria que me falasse sobre os desafios deste avanço na primeira longa-metragem, visto que trabalhou várias vezes em Curtas. Aliás, refere-se usualmente que você foi a pessoa que descobriu a atriz Alba Baptista [“Miami”, 2014].

Sim, é o que dizem por aí! [risos]

Sobre os desafios que teve ao avançar numa longa metragem?

Passar para uma longa, em primeiro lugar, é a questão de sprint versus maratona. Uma curta acaba-se em seis dias, ou sete, na pior das hipóteses, e aqui [“Vadio”, longa-metragem] estamos a falar de seis semanas ou mais. Neste caso filmei durante seis semanas, com seis dias de rodagem e um dia de descanso. E num contexto bastante violento a nível de calor e de... E pronto, e estar longe de casa e essas ‘coisas’ todas. Agora, com preparação, tudo se faz. Estive rodeado de uma equipa enorme e de grande talento. Nádia Henriques na arte [direção artística], Olivier Blanc no som, o Bartosz Swiniarski na fotografia, Lucha d'Orey no guarda roupa, a Olga José na maquiagem, Angela Sequeira [assistente de direção], Teresa Font [edição], e por aí fora. Não é um trabalho que se faz sozinho, e sim em equipa, obviamente coordenado, mas senti-me mais que tudo preparado.

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Simão Cayatte

E visto que foi … quer dizer, neste caso, ninguém o deixa de ser … um ator e que trabalhou com cineastas como o Werner Schroeter, no "Esta Noite" [“Nuit de chien”], ou com o Ivo Ferreira no "Cartas da Guerra", belíssimo filme aliás. De certa forma, adquiriu com essa experiência, ferramentas que foram possíveis para este filme?

Cada vez que estou em platô aprendo sobre o que é que é representar. Quanto às ferramentas, não tanto. Acho que cada realizador tem o seu método. Talvez inconscientemente vá bebendo coisas, mas o meu trabalho enquanto realizador é muito privado. Agora, no meu trabalho como ator, acho que vou crescendo e ajustando. Ainda este ano, atuei logo a seguir nas escrita, o qual foi muito interessante esse saltitar de uma coisa para a outra. Aconteceu com a "A Sibila", realizado pelo Eduardo Brito, que penso que estreará este ano. E o que acontece é que cada vez que trabalho como ator sinto que fico a compreender um bocadinho melhor os atores e isso permite também conseguir falar com eles de igual para igual. Sinto que nunca é real. Não é realmente de igual para igual, mas pelo menos … esforço para tal. 

Uma pergunta assim, distante do filme. Trabalhou como “script doctor” na produtora do Darren Aronofsky …

Não trabalhei como “script doctor", e sim como “script reader”. Na altura era jovem demais para ser “script doctor”. Hoje em dia já faço esses trabalhos.

Alguém colocou na sua biografia que trabalhou como “doctor”, mas já agora que é um “reader”?

Na indústria americana o que acontece é que as várias produtoras de cinema contratam, normalmente jovens que estão a começar, mas que tenham experiência de argumento ou que tenham estudado na universidade de argumento, ou assim, contratam para serem readers, ou seja, as produtoras têm sempre muitos guiões a entrar lhes pela caixa de correio, de coisas que podem vir a produzir. E o Aronofsky, para além de fazer os seus filmes, também produz. Produziu, inclusive, o “Jackie” e outros filmes. E chegavam guiões todos os dias. E cabe a alguém ler esses guiões e, no fundo, recomendá-los ou não. Então, até havia alguma responsabilidade. Eu lembro de ler uma versão muito precoce, de 2011, do “The Revenant”, por exemplo, era um guião ainda muito diferente, mas que foi parar ali à Protozoa [produtora de Aronofsky]. E então foi um trabalho super útil porque ler 5 a 6 guiões ou mais, talvez 10 guiões por semana, assim, durante um ano, é um treino daqueles.

O “script reader”, é o que recomenda, e o “doctor” é aquele que, mais ou menos, encaixa as "pecinhas" que estão fora?

É curioso fazeres essa pergunta porque de facto cá ainda há pouco. Tenho executado, sobretudo, lá fora, e vou agora fazer cá com uma produtora nacional e não está longe da função que tenho muitas vezes também enquanto tutor. Eu dou aulas de guião para o Le Groupe Ouest que estão ligados ao Less Is More, mas um “script doctor” é, no fundo, um consultor. É muito comum nos EUA. Pode acontecer numa fase inicial de tratamento, como pode acontecer quando o guião já tem uma ou duas versões, mas é alguém que é contratado para dar uma olhada de fora e fazer uma análise do guião e, em muitos casos, sugerir alterações.

Muito bem, para não desviar mais, a questão é que tem um experiência com o guião e o guião, e neste mundo, ou melhor, a realidade portuguesa, deparamos com o improviso e a liberdade criativa dos atores quanto aos seus desempenhos. Visto pertencer a um território oposto, e ao mesmo tempo trabalhar como ator e, neste caso, como realizador, como consolida esses dois mundos na direção dos seus atores?

São dois lados da mesma moeda. O ator e o argumentista estão interligados porque ambos trabalham com ações, com verbos e um bom argumentista sabe que um ator tem que tornar aquelas palavras suas principalmente. Não me preocupo com o puritanismo de que cada palavra deve ser dita e daquela e determinada maneira. E um ator precisa de um bom texto dramático. E outras pequenas ‘coisas’, por exemplo, acredito que um argumentista deve ler aquilo que escreveu em voz alta. Por vezes há a tendência de escrever, escrever, e só no confronto com os atores é que se apercebe o que escreveu. Eu como também sou ator tenho por âmbito ler alto o que escrevo, porque no fundo um guião é um guia, são palavras escritas num papel para depois transformarem-se, sair da boca de um ator como algo orgânico. E é isso, custe que custar, as palavras devem ser orgânicas e verdadeiras. Ponto final. 

Existem muitos realizadores cujo argumento é sagrado, não há volta a dar. Porém, e tendo em conta a conversa que tenho com outros realizadores, principalmente na área de cinema, é que o argumento é desvalorizado, muitíssimo maleável ou até mesmo descartável na sua integral natureza. 

O que acontece é que tens muitos realizadores que escrevem os seus próprios filmes, mas julgo que a situação da classe dos argumentistas está a mudar em Portugal, resultado da grande procura para as séries de televisão ou das plataformas de streaming

Algo que encontrei em “Vadio”, principalmente no protagonista, André, é possui o espírito de um “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut, uma espécie de Antoine sem Balzac.

Não foi uma influência direta, mas fico lisonjeado com a invocação. Eu conto a história de um vadio, e em certa maneira, os “400 Golpes” é a história de um “pequeno vadio”. Essa falta de um herói, essa solidão, esse abandono, encontra-se muito presente em ambos os filmes, penso que por aí que começa e acaba a comparação entre este pequeno filme e o génio do Truffaut.

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Color Out of Space (Richard Stanley, 2019)

Novos projetos?

Já estou a trabalhar numa próxima longa, ainda estamos na fase de escrita, irei começar a filmar neste verão, será para televisão … de momento não posso dar mais pormenores.

Tenho uma curiosidade sedenta que preciso que você me sacie [risos], visto que co-produziu o “Color Out of Space” de Richard Stanley, como foi trabalhar com o …

Nicolas Cage? [risos]

Não, não, mesmo com o Stanley? Eu vi aquele documentário sobre o “acidente” da “A Ilha do Dr. Moreau” [“Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley 's Island of Dr. Moreau”] e fiquei curioso.

Com o Stanley foi inacreditável! [risos].

Portanto, o meu trabalho na produtora SpectreVision foi sobretudo a escolha do país. Recebi um telefonema da Elisa Lleras, que produziu uma das minhas primeiras curtas [“A Viagem”], a perguntar-me se este projeto seria exequível ser rodado em Portugal [em Sintra]. Respondi “obviamente que sim”, expressando vontade imensa em trazer este filme para o nosso país … o resto, logo se via. Depois fiquei encarregue da formação da equipa, e estava tudo a correr bem com uma só excepção - o realizador não chegava!

Nesse momento, o Richard Stanley estava a viver no meio dos Pirenéus, numa pequena vila onde há a maior confluência de teorias da conspiração do Mundo [risos]. Estamos a falar de panóplia que vai desde OVNIs a Templários [risos]. Mas a verdade é que ele não chegava, nem por nada, então literalmente tivemos que o ir buscar. Fomos de carro, eu e o Josh Waller, o outro produtor, e subimos os Pirenéus pela noite dentro, sem saber o que encontrar ou se o iríamos encontrar. E assim deparamos com ele naquele sítio, do qual não recordo do nome. Possivelmente estava com “cold feet”, como dizem os ingleses, ou seja medo visto que não filmava há muito tempo, mas de resto foi um verdadeiro “gentleman”, impecável, com uma visão abrangente. 

Foi uma questão de ajudá-lo a adaptar-se em Lisboa, e encontrar um “match” certo para o storyboard, o qual percebi que não era um storyboard convencional e sim algo mais próximo dos comics. A minha função foi mais ou menos essa, pegar em alguém para ajudar a trazer todo aquele imaginário em imagens. 

E o Nicolas Cage? Como integrou o projeto? Caiu de “páraquedas”?

O Nicolas Cage havia trabalhado no “Mandy” do Panos Cosmatos, também produzido pela SpectreVision, o qual traduziu numa espécie de renascimento seu, pelo menos naquele género de filmes, estreou em Cannes e foi uma “bomba”. Cage sempre expressou vontade em voltar trabalhar com a produtora, pelo que esta tinha o filme do Richard Stanley na gaveta, e o ator prosseguiu até porque queria trabalhar com o realizador, o qual tinha grande admiração e sentia que fora um autor atropelado pelos infortúnios e negado à carreira que bem merecia. Portanto, juntou-se estas duas forças e assim aconteceu … 

Viva Varda!!

Hugo Gomes, 30.05.23

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Hoje comemora-se 95 anos de Agnès Varda, data que parece não interessar nem mesmo a quem "celebra" o cinema nas redes sociais, chegamos a um ponto do qual se fala mais de egos do que propriamente de Cinema. Mas não interessa, já estou habituado, cá vai:

VIva Varda! Viva Agnès! Viva o Cinema!

Diabo que o carregue ...

Hugo Gomes, 24.05.23

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Que nome poderemos dar a Kenneth Anger?

Experimental?

Como muitos pintarão como amenizador da sua natureza provocateur.

O realizador do Diabo?

Como o próprio ousava intitular-se como choque ou negação a uma sociedade que via com desprezo as suas escolhas de vida. No cinema, tal enfoque esteve presente, num homoerótismo mordaz, de fazer “corar” as pedras da calçada, aliás, progressivo enquanto um dos primeiros nos EUA.

O maldito?

Chamaremos assim, que muito gosto lhe daria, despede-se, de alma perturbada, mas contente estaria com tal resultado. 

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Scorpio Rising (1963)

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Kustom Kar Kommandos (1965)

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Rabbit's Moon (1972)

 

Kenneth Anger (1927 - 2023)

 

O regresso do Festival Internacional de Cinema de Santarém: o cinema enquanto terra que nos marca

Hugo Gomes, 23.05.23

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Após três décadas, Santarém volta a receber de ”braços abertos” o seu Festival Internacional, uma vontade de consolidar os cinéfilos da região e, quem sabe, do restante país e globo. O Internacional descrito no título sugere esse apelo, essa vontade e ambição de arrancar por caminhos há muito atravessados. 2023 marca, por fim, essa idealização, materialização, algo terreno como o tema que o acompanha, a Terra, a nossa, da mesma forma que não existe outra. 

Ao Cinematograficamente Falando …, Rita Correia, Presidente do Cineclube de Santarém e diretora do FICS [Festival Internacional de Cinema de Santarém], “descortinou” a celebratória programação, contando com filmes (que mais?) que conectam com a região, com o espírito e com o futuro. 

O Festival Internacional de Cinema de Santarém decorre de 24 a 28 de maio, quatro dias a “apoderar” o Teatro Sá de Bandeira e transformá-la no pólo cinematográfico scalabis [ver programação completa e mais informações aqui]. 

Após trinta anos de ausência, pergunto o que levou a encarar este como o momento oportuno para o regresso do festival?

Na verdade, estamos a reativar o Festival há cerca de 5 anos. Desde o início da reativação do Cineclube de Santarém, há cerca de 12 anos, percebemos que a cidade queria o Festival de volta; havia uma geração de cinéfilos que ainda tinha memórias dos festivais antigos, e uma nova geração que queria trazer de volta o Festival Internacional de Cinema de Santarém. Criámos um dossier de projeto, que trabalhámos e melhoramos ao longo dos anos, e fomos procurar apoios. Entretanto, os anos de pandemia atrasaram o processo e agora, com o apoio imprescindível da autarquia, foi possível fazer esta 16ª edição do FICS.

O que poderá dizer sobre a programação deste ano, e a importância dos filmes de realizadores scabilitanos na seleção?

Vamos programar 31 filmes, oriundos/produzidos por 21 países. Temos 4 secções: a Competição Internacional, a Competição Nacional, Panorama e Em Foco.

Em Foco vão estar obras dedicadas às agro-poéticas de libertação e às lutas ecológicas. Os filmes propõem uma reflexão sobre a devastação das paisagens naturais e uma visão da história de violência colonial e extrativista em torno das práticas agrícolas de comunidades na Índia, Palestina, Moçambique e Mali. Na secção Panorama propomos uma visão da produção cinematográfica contemporânea, onde destacamos a estreia mundial do filme “Nomadic Island” de Mattia Mura Vannuzzi.

Na competição nacional destacamos os realizadores scalabitanos do coletivo Waves of Youth. Para a equipa do FICS era muito importante dar oportunidade aos jovens realizadores para mostrarem o seu trabalho a um público crítico e cinéfilo, e criámos um prémio especial para o Melhor Filme Regional.

Tendo em conta o período de “hibernação” (chamaremos assim) que desafios encontraram na seleção de filmes a integrar na programação, principalmente os da Competição Nacional, e com que critérios irão abraçar daqui para a frente?

O principal desafio da programação foi o tema do Festival, tínhamos algum receio de não encontrar muitos filmes portugueses dentro da temática. Na competição internacional recebemos muitas inscrições e fizemos também alguns convites a filmes. De um modo geral, a nossa principal preocupação foi criar um diálogo entre obras, e que isso pudesse ser sentido através da programação do festival. Este foi um critério fundamental para nós, e que pretendemos manter daqui para a frente.

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Boca Cava Terra (Luís Campos, 2022)

O tema rural e agro’ revelou-se ao longo da história do festival numa espécie de tradição, tende em manter esse espírito para além da secção Em Foco deste ano ou estabelecer o FICS como um festival especializado a esses territórios? Tendo em vista que a maior parte dos filmes da programação acentuam essas temáticas da relação humana com a natureza.

Desde o início deste projeto foi decidido manter a temática original: agrícola, rural e ambiental e assumimos que o FICS pretende ser um festival especializado nessas temáticas da relação humana com a natureza e o seu meio envolvente.

No início do festival, 1971, a temática foi uma forma inteligente de contornar a censura do regime do estado novo. Ao assumir-se como um Festival de "temática rural", não só estava a valorizar o seu território de origem - o Ribatejo - como lhe permitia uma aceitação que à época seria mais difícil. O que sabemos da história do Festival foi que muitos filmes estrangeiros, especialmente de origem russa, foram possíveis de ser exibidos em Portugal por ter existido uma "permissividade" da censura, que de outra forma não podia ter acontecido.

Este ano, no início do séc.XXI, no meio de uma crise climática, depois de uma pandemia, e em que as questões do impacto do homem sobre o seu meio estão na ordem do dia, foi unânime manter a temática do Festival, e fazê-lo através de obras contemporâneas, que de certa forma captem a urgência de pensar sobre estes temas, sob diversos pontos de vista, usando a linguagem cinematográfica.

Sobre os convidados, o que pode dizer sobre eles? 

Temos vários convidados, nomeadamente os realizadores portugueses José Filipe Costa, Marta Pessoa, Pedro Mourinha, Miguel Canaverde, Tiago Melo Bento, Maria Simões, Luís Campos, Diogo Cardoso, Paulo Antunes e Raúl Domingues. Como convidados internacionais teremos o realizador Mattia Mura Vannuzzi na estreia mundial do seu filme Nomadic Island, a realizadora indiana Radhamohini Prasad do filme “Farmer Collectives of North Bengal” e o bailarino Ramon Lima, participante do filme “Tes Jambes Nues” um filme que funde o trabalho coreográfico e o trabalho agrícola.

Ambições para o festival, resiliência ou expansão? 

A maior ambição é fazer desta edição um sucesso. Queremos que este seja um regresso em grande, e que nos permita alcançar outros apoios para que a próxima edição seja ainda melhor, com mais condições e durante mais dias. Queremos ainda fazer extensões do Festival, tanto a nível local, numa perspectiva de descentralização cultural, levando o FICS às freguesias rurais do concelho, como a nível nacional, nomeadamente através da programação dos Cineclubes. Não nos podemos esquecer que este Festival é organizado por um Cineclube e da importância que isso tem no movimento cineclubista nacional.

O Povo e o "Boneco"

Hugo Gomes, 22.05.23

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Realmente precisávamos de falar para o “boneco”? Em “Fato Macaco”, o percurso documental segue o propósito de registo (e quiçá de arquivo), testemunhos, muitos deles sob o signo de resistência (grande parte laboral), oriundo dos Bairros dos Pescadores, do Grito do Povo e no centro da cidade de Setúbal. Por entre esta colheita é-nos apresentada uma figura performativa e de presença zeitgeist em toda essa costurada narrativa, aí cedemos à existência daquele tal “boneco” … ou se calhar não! 

Para que serve essa figuração para além do mero estruturalismo? Ao ver “Fato Macaco”, de André Costa, surgiu-me vislumbres de “É o Amor” (2013), ensaio documental do cineasta João Canijo (“Sangue do Meu Sangue”, “Mal Viver), um mecanismo de desmistificação da imagem da “mulher de Caxinas”. Como processo, o realizador convidou Anabela Moreira (uma das suas atrizes de eleição) a enveredar um falso-estudo de personagem, a possibilidade desta interpretar uma da Caxinas com isto infiltrando-se no seu seio. O filme, em si, muitos nos diz sobre esta comunidade sem o uso da pedagogia documental, e por sua vez, consome-se num protótipo de falso-documentário no preciso momento em que Moreira, atriz de método, encontra-se presa na sua espiral criativa, entre complexos de impostor ou de outras inquietações como a autenticidade daquelas mulheres que a confrontam com a artificialidade do seu ofício. “É o Amor”, foca na sua anomalia, na atriz que não pertence a este mundo, para poder, sorrateiramente, integrar este mesmo. 

Fato Macaco" por sua vez, não deparamos nesse convite, a “mascote” não ilude da sua intenção de distração, e pior que isso, os seus momentos a solo soa-nos como enchimentos de uma produção que não esconde a sua modéstia na pesquisa (para mais a duração de 48 minutos, frescura perante mastodônticos em cartaz). Longe de ser um “macaco de imitação” (nada disso), “Fato Macaco” (inserido no projeto “Rota Clandestina” com o apoio da Câmara Municipal de Setúbal), mesmo conquistando com a simplicidade da sua filtragem ou da pureza dos seus relatos, não nos apresenta arrojo algum quanto à sua natureza performativa, ou de diluição entre formato e linguagens.